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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16567.045 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Teatro com e para caminhoneiros e caminhoneiras e as ideias de Paulo Freire para a educação libertadora

Theater with and for truck drivers and Paulo Freire’s ideas for liberating education

Teatro con y para camioneros y camioneras y las ideas de Paulo Freire para la educación liberadora

Josemir Medeiros da Silva* 
http://orcid.org/0000-0001-5818-0209

Carina Maria Guimarães Moreira** 
http://orcid.org/0000-0001-9144-2581

Mônica de Ávila Todaro*** 
http://orcid.org/0000-0001-7777-925X

*Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) – Mestre em Artes Cênicas (UFSJ). E-mail: <josemirm@yahoo.com.br7gt;.

**Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) – Doutora em Artes Cênicas (UNIRIO). E-mail: <carinaguimaraes@ufsj.edu.br>.

***Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) – Doutora em Educação (UNICAMP). E-mail: <mavilatodaro@ufsj.edu.br>.


Resumo:

Este artigo é resultado da pesquisa “Teatro da Caravana Siga Bem: projeto com e para caminhoneiros à luz do legado de Paulo Freire”, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de São João del-Rei, Minas Gerais. De 2006 a 2016, o Teatro da Caravana Siga Bem ajudou a olhar para as questões sociais abordadas nos espetáculos que apresentava para caminhoneiros e caminhoneiras em postos de combustível do país com um elenco também de caminhoneiros e caminhoneiras. O quadro teórico baseia-se em Paulo Freire, Bertolt Brecht e autores que discutem cultura popular. A análise dos espetáculos foi feita à luz das ideias freireanas e brechtianas, a qual revelou afinidades entre esse projeto de teatro popular e pedagógico, que discutia temas como violência infantil e direitos humanos, e as ideias de Paulo Freire para uma educação libertadora e de Bertolt Brecht sobre Teatro Épico e didático.

Palavras-chave: Teatro; Educação libertadora; Temáticas sociais

Abstract:

This article is the result of the research “Teatro da Caravana Siga Bem: project with and for truck drivers in the light of Paulo Freire’s legacy”, presented in the Graduate Program in Performing Arts at the Federal University of São João del-Rei, Minas Gerais, Brazil. From 2006 to 2016, the Teatro da Caravana Siga Bem helped to look at the social issues addressed in the plays presented to truck drivers at gas stations in the country with a cast of truck drivers as well. The theoretical framework is based on Paulo Freire, Bertolt Brecht and authors who discuss popular culture. The analysis of the plays was made in the light of the Freirean and Brechtian ideas, which revealed affinities between this popular and pedagogical theater project that discussed themes such as child violence and human rights, Paulo Freire’s ideas for a liberating education and Bertolt Brecht’s ideas about Epic and didactic Theater.

Keywords: Theater; Liberating education; Social issues

Resumen:

Este artículo es resultado de la investigación “Teatro da Caravana Siga Bem: projeto com e para caminhoneiros à luz do legado de Paulo Freire” (Teatro de la Caravana Siga Bien: proyecto con y para camioneros a la luz del legado de Paulo Freire), presentada en el Programa de Posgrado en Artes Escénicas de la Universidad Federal de São João del-Rei, Brasil. De 2006 a 2016, el Teatro da Caravana Siga Bem ayudó a ver las cuestiones sociales abordadas en los espectáculos que presentaba a los camioneros y las camioneras en las estaciones de servicio del país con un elenco también de camioneros y camioneras. El marco teórico se basa en Paulo Freire, Bertolt Brecht y autores que discuten la cultura popular. El análisis de los espectáculos fue realizado a la luz de las ideas freireanas y brechtianas, el cual reveló afinidades entre este proyecto de teatro popular y pedagógico, que discutía temas como violencia infantil y derechos humanos, y las ideas de Paulo Freire para una educación liberadora y de Bertolt Brecht sobre Teatro Épico y didáctico.

Palabras clave: Teatro; Educación liberadora; Temáticas sociales

Introdução

O escritor Eduardo Galeano, em Livro dos Abraços, contou a história do menino Diego, que, ao ver pela primeira vez a beleza do mar, pede ao pai: “me ajuda a olhar” (GALEANO, 2011, p. 15). Galeano dá a essa história o título de “A função da arte” e, embora a arte possa ter tantas outras funções, poeticamente não há dúvidas que ajudar a olhar as coisas do mundo, belas ou não, seja mesmo a função da arte, assim como também deveria ser a incumbência da educação.

Durante dez anos, de 2006 a 2016, o Teatro da Caravana Siga Bem buscou cumprir esse papel de ajudar a olhar para as questões sociais abordadas nos espetáculos que apresentava, ao comunicar-se diretamente com um público de caminhoneiros e caminhoneiras, moradores e moradoras do entorno dos postos de combustível onde a sua carreta-palco estacionava. Eram, então, apresentadas peças de teatro popular de caráter pedagógico e colocados/as no palco, como atores e atrizes, os/as motoristas dos caminhões do evento de marketing “Caravana Siga Bem”.

Por conta dessa característica peculiar de um teatro popular de viés pedagógico, em razão da temática social dos espetáculos que apresentava, e pela especificidade de destinar-se a um público-alvo com características sociais próximas a dos oprimidos e das oprimidas, dos proletários e das proletárias ou dos subalternos e das subalternas, surgiu um interesse científico acerca de uma possível afinidade entre esse teatro e as ideias de Paulo Freire para uma educação como prática da liberdade.1 Uma educação que, assim como na função da arte defendida por Eduardo Galeno, também tivesse a finalidade de ajudar a olhar. Olhar para o mundo, esse mundo que se lê para além da pura e da simples leitura das palavras quando se alfabetiza uma pessoa de acordo com as convicções pedagógicas de Paulo Freire.

Os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem, de caráter pedagógico e político, trataram de temas variados, como o uso racional da água e os direitos humanos, passando pela violência contra a mulher e a exploração sexual de crianças e de adolescentes. Nesse sentido, procuraram ajudar o seu público de caminhoneiros, de caminhoneiras e de comunidades estradeiras a olhar para a vida, para o mundo, de forma crítica e conscientizadora.

Este artigo busca, assim, apontar afinidades do Teatro da Caravana em direção a Paulo Freire e ao Teatro Épico de Bertolt Brecht, o qual buscava romper com a passividade do espectador, da mesma forma que Paulo Freire também não acreditava no processo educativo baseado no puro e simples depósito de conhecimentos sobre um aluno ou uma aluna que não fosse sujeito na construção do seu conhecimento. Além disso, este texto procura encontrar aproximações com as peças didáticas de Brecht, cuja aprendizagem se voltava aos atores e às atrizes no palco, já que, no teatro da Caravana, o elenco também era de caminhoneiros e de caminhoneiras, igualmente sujeitos na construção de um conhecimento acerca dos temas sociais dos espetáculos.

Para isso, o presente texto está dividido em quatro seções: “Um teatro com e para caminhoneiros”, que traz o cenário de nossa pesquisa; “Paulo Freire, a cultura e a educação como prática da liberdade”, na qual apresentamos as ideias freireanas; “O Teatro da Caravana Siga Bem e Paulo Freire”, que visa a aproximar o processo teatral com os princípios de Paulo Freire; e “Brecht, Paulo Freire e o teatro dos caminhoneiros”, na qual propomos um diálogo entre os autores. Por fim, tecemos nossas considerações.

Um teatro com e para caminhoneiros e caminhoneiras

De 2006 a 2016, o Teatro da Caravana Siga Bem percorreu o Brasil, durante nove meses por ano, e apresentou espetáculos teatrais com temas sociais para um público de caminhoneiros e caminhoneiras, moradores e moradoras do entorno dos postos de combustível da Rede Siga Bem2, da Petrobrás. Nesses locais, as peças eram apresentadas em uma carreta-palco como parte integrante da Caravana Siga Bem, ação de marketing realizada pelo Grupo Cobram, que era patrocinada pela Petrobrás e por uma montadora de caminhões diferente a cada dois anos. Esse evento itinerante tinha o objetivo comercial de divulgar os produtos e os serviços de seus patrocinadores em uma comunicação direta com caminhoneiros e caminhoneiras, além de empresários e empresárias do setor de transportes, uma vez que a Caravana também fazia paradas nas concessionárias da montadora de caminhões que patrocinava o evento.

A incorporação de temáticas sociais às peças de teatro do evento deu-se, em 2006, por meio da Petrobrás, que decidiu incorporar ao evento comercial (Caravana Siga Bem) ações institucionais direcionadas ao público caminhoneiro que, no contexto empresarial, são consideradas como de responsabilidade social e que também lhe dariam o status de empresa cidadã. Para tanto, valeu-se da abrangência da Caravana que percorria todo o Brasil para comunicar-se diretamente com os/as motoristas de caminhão nos seus postos de combustível.

Por conta da possibilidade de aporte financeiro, por intermédio de patrocínio, feito pela Petrobrás ao Teatro da Caravana Siga Bem, o Governo Federal, nas gestões petistas, pôde incorporar à Caravana órgãos como o Ministério dos Direitos Humanos ou a Secretaria de Políticas para as Mulheres, que tinham orçamentos limitados. Tal fato possibilitou, assim, a inclusão das pautas de combate à violência contra mulheres, crianças e adolescentes, além dos direitos humanos na Caravana, em especial no seu teatro que, dessa forma, viu-se diante do desafio de abordar temas complexos, o que proporcionou um ganho de qualidade aos espetáculos e lhe trouxe protagonismo dentro do evento comercial. Não por acaso, o Teatro da Caravana Siga Bem deixou as estradas em 2016, no contexto do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando a Petrobrás do então governo Temer não renovou o patrocínio da Caravana, que até aconteceu, porém em uma configuração reduzida e que não comportava mais o teatro e as suas pautas sociais.

Conforme a pesquisa de Josemir Medeiros da Silva (2020), durante os dez anos do Teatro da Caravana Siga Bem, foram encenados sete espetáculos: “Água, um causo muito sério”, que tratou do uso racional da água; “Ih, ferveu”, que tratava do aquecimento global; “Um anjo na boleia”, que mostrava a importância de dirigir com cuidado; “Cassino do Cupido”, que tratava de um tema complexo, a violência contra a mulher; “Paixão é igual fumaça, sufoca mas passa”, que discutia a poluição enquanto orientava sobre as novas diretrizes governamentais para motores e combustíveis dos caminhões; “A linda rosa”, um musical que abordava a violência e a exploração sexual de crianças e de adolescentes; e, no último ano de existência do projeto, a peça “Quixotices, ó xente e os direitos da gente?”, que trazia como tema os direitos humanos.

O grande diferencial desse projeto de teatro para caminhoneiros e caminhoneiras, além da temática social dos espetáculos, da sua itinerância e da sua apresentação em um espaço não convencional, o pátio de um posto de combustível, reside no fato de que a grande maioria dos atores e das atrizes dessas peças eram também caminhoneiros e caminhoneiras, assim como seus espectadores e suas espectadoras. O elenco era composto por um ator profissional, que também era o apresentador das demais atrações do evento, pelos motoristas e pelas motoristas dos caminhões que integravam a Caravana Siga Bem, além de produtores e produtoras, fazendo, assim, valer a máxima de Augusto Boal (1991) de que todos podem ser atores e atrizes.

Para completar o ciclo, faltava o que está atualmente ocorrendo em tantos países da América Latina: a destruição das barreiras criadas pelas classes dominantes. Primeiro se destrói a barreira entre atores e espectadores: todos devem representar, todos devem protagonizar as necessárias transformações da sociedade. (BOAL, 1991, p. 14).

A destruição da barreira entre atores e atrizes e espectadores e espectadoras e a temática social dos espetáculos, especialmente as mais complexas (violência contra a mulher, exploração sexual de crianças e de adolescentes e direitos humanos), motivaram-nos a investigar as afinidades entre as peças teatrais e as ideias de Paulo Freire para uma educação libertadora. É importante frisar que o interesse pela busca dessas afinidades entre o Teatro da Caravana Siga Bem e a pedagogia de Paulo Freire surgiu no contexto do Mestrado em Artes Cênicas, visto que, na criação dos espetáculos, não havia uma intenção consciente de se fazer um teatro pedagógico de inspiração freireana. O objetivo era, pois, fazer teatro popular e introduzir pautas sociais para uma possível reflexão do seu público-alvo.

Dessa forma, ao refletir, posteriormente, sobre a experiência educativa do Teatro da Caravana Siga Bem, foi possível perceber a presença de um componente muito caro a Paulo Freire, que é a práxis ou o movimento dos homens e das mulheres refletindo e agindo sobre o mundo para transformá-lo. Caminhoneiros e caminhoneiras da plateia, a quem eram apresentadas as peças com temas sociais para reflexão, e seus pares no palco, problematizavam temas gerados por e nas suas experiências de ser, estando no mundo. Isso porque quem estava no palco dizendo ao caminhoneiro e à caminhoneira, proferindo o discurso de uma peça teatral que não se deve poluir o meio ambiente; que é importante dirigir com responsabilidade; que não se deve violentar uma criança e que é importante lutar pelos direitos humanos, era o seu igual, o seu par, outro caminhoneiro como ele ou outra caminhoneira como ela.

A pesquisa de Josemir Medeiros da Silva (2020) apontou não apenas as afinidades desse teatro popular e pedagógico com as ideias de Paulo Freire, mas também a presença de características muito próprias do Teatro Épico de Bertolt Brecht, quais sejam: as que se referem às possibilidades de levar o espectador a uma reflexão, a uma participação mais ativa naquilo que Boal (1991) chama de poética de Bertolt Brecht ou de poética da conscientização. Segundo Boal:

O mundo se revela transformável e a transformação começa no teatro mesmo, pois o espectador já não delega poderes ao personagem para que pense em seu lugar, embora continue delegando-lhe poderes para que atue em seu lugar. A experiência é reveladora ao nível da consciência, mas não globalmente ao nível da ação. A ação dramática esclarece a ação real. O espetáculo é uma preparação para a ação. (BOAL, 1991, p. 181).

Assim, por meio da pesquisa, foi possível perceber afinidades entre as ideias de Paulo Freire para a educação e essa forma de Brecht fazer teatro, na qual o espectador ou a espectadora não está passivo/a nem sujeito/a a viver uma experiência catártica. Tal qual Freire anunciava, acreditava-se ser importante educar pela reflexão crítica a respeito dos temas apresentados para agir sobre o mundo a fim de transformá-lo.

O caminho metodológico da pesquisa, além da revisão bibliográfica dos referenciais de Paulo Freire, Bertolt Brecht e outros/as autores/as que discutem as artes cênicas e a cultura popular, passou pela análise de dois espetáculos com temas complexos e delicados, como a exploração sexual de crianças e de adolescentes, em “A linda rosa” e os direitos humanos, em “Quixotices, ó xente e os direitos da gente?”.

Na sequência do texto, fazemos um recorte no qual é possível não somente identificar as afinidades do Teatro da Caravana Siga Bem com o legado de Paulo Freire para a educação, presente nesse projeto artístico, popular e pedagógico, como também apontar características que aproximam o patrono da educação brasileira de Bertolt Brecht, por meio do seu Teatro Épico revolucionário e político que objetivava, acima de tudo, tirar o espectador e a espectadora da sua passividade para que fosse capaz de refletir criticamente acerca das questões que lhe eram apresentadas nos palcos.

Paulo Freire, a cultura e a educação como prática da liberdade

Paulo Freire, antes de ficar conhecido pelo seu método de alfabetização de adultos aplicado, em 1963, na cidade de Angicos, localizada a 170 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte, fez parte do Movimento de Cultura Popular3 como membro efetivo e diretor executivo do Departamento de Documentação e Cultura (DDC), uma espécie de Secretaria de Cultura do município de Recife (PE). Esse fato mostra-nos que o educador e intelectual, reconhecido mundialmente, mantinha afinidades com os movimentos culturais e entendia a importância de valorizar o oprimido/subalterno e a oprimida/subalterna em sua condição de detentor/a de uma cultura própria, o que viria a ser um importante instrumento na sua pedagogia que pensava a educação como prática da liberdade.

No início dos anos de 1960, quando Paulo Freire entendeu a urgência e a importância de sistematizar um novo método de alfabetização de adultos no Brasil, o que existia até então no país como material didático para ensinar jovens e adultos/as analfabetos/as a ler e a escrever eram as mesmas cartilhas utilizadas para alfabetizar as crianças – um material totalmente inadequado e fora da realidade daquelas pessoas. A partir disso, Paulo Freire, ao entender que a educação deve ser pensada como instrumento de libertação das classes populares e não de manutenção de um status quo de dominação por parte das classes dominantes, defende que o sujeito que se alfabetiza aprenda não somente a ler as palavras, mas que também possa problematizar a sua realidade, no que seria então uma leitura crítica do mundo.

Dessa forma, deixando de lado as cartilhas infantis da época de conteúdo pobre, que pode ser representado pela expressão “Eva viu a uva”, irrelevante para qualquer pessoa, especialmente para um adulto, Freire (1991) decidiu alicerçar o seu método de alfabetização, cujas primeiras experiências foram aplicadas em Recife (PE) no contexto do Movimento de Cultura Popular, na premissa de que o homem fosse o sujeito na construção do seu conhecimento.

Pensávamos numa alfabetização direta e realmente ligada à democratização da cultura, que fosse uma introdução a esta democratização. Numa alfabetização que, por isso mesmo, tivesse no homem, não esse paciente do processo, cuja virtude única é ter mesmo paciência para suportar o abismo entre sua experiência existencial e o conteúdo que lhe oferecem para sua aprendizagem, mas o seu sujeito. Na verdade, somente com muita paciência é possível tolerar, após as durezas de um dia de trabalho ou de um dia sem “trabalho”, lições que falam de ASA — “Pedro viu a Asa” — “A Asa é da Ave”. Lições que falam de Evas e de uvas a homens que às vezes conhecem poucas Evas e nunca comeram uvas. “Eva viu a uva”. Pensávamos numa alfabetização que fosse em si um ato de criação, capaz de desencadear outros atos criadores. Numa alfabetização em que o homem, porque não fosse seu paciente, seu objeto, desenvolvesse a impaciência, a vivacidade, característica dos estados de procura, de invenção e reivindicação. (FREIRE, 1991, p. 104).

Na busca dessa educação que fizesse do homem um sujeito e não um objeto, tornava-se necessário que ele problematizasse o mundo à sua volta. Da mesma forma que aprenderia a ler as palavras ao juntar os sinais gráficos para que fizessem sentido, essa leitura crítica do mundo, na visão de Freire (1991), não poderia ser superficial, vazia de significado; ela deveria, ao contrário, ser uma leitura emancipadora. “Educação que lhe pusesse à disposição meios com os quais fosse capaz de superar a captação mágica ou ingênua de sua realidade, por uma dominantemente crítica” (FREIRE, 1991, p. 106).

O caminho para que esse objetivo fosse alcançado deveria passar longe de todo o tipo de educação conservadora que se tinha no Brasil do início dos anos de 1960, em uma sociedade que Paulo Freire classificava como “em transição”. Não haveria hipótese de se promover uma educação crítica na qual o homem fosse sujeito e não objeto sem o estímulo e a promoção do diálogo que levasse não à imposição de conteúdos e verdades de cima para baixo, mas ao que Freire (1991) denomina de Pedagogia da Comunicação.

Era o diálogo que opúnhamos ao antidiálogo, tão entranhado em nossa formação histórico-cultural, tão presente e ao mesmo tempo tão antagônico ao clima de transição. O antidiálogo que implica numa relação vertical de A sobre B, é o oposto a tudo isso. É desamoroso. É acrítico e não gera criticidade, exatamente porque desamoroso. Não é humildade. É desesperançoso. Arrogante. Autossuficiente. No antidiálogo quebra-se aquela relação de “simpatia” entre seus pólos, que caracteriza o diálogo. Por tudo isso, o antidiálogo não comunica. Faz comunicados. Precisávamos de uma Pedagogia de Comunicação, com que vencêssemos o desamor acrítico do antidiálogo. (FREIRE, 1991, p. 108).

Assim, a educação que pressupõe a prática da liberdade não pode prescindir do ato comunicativo. Conforme aponta Freire (1985, p. 46): “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados”. Outro pressuposto que Paulo Freire achava fundamental para proporcionar ao analfabeto ir além da simples decodificação de sinais gráficos, para alcançar a leitura crítica capaz de problematizar o mundo, consistia no conceito antropológico de cultura.

Freire (1991) acreditava que era imprescindível, diante de pessoas adultas, socialmente marginalizadas e naturalmente classificadas como incultas, considerar a cultura como resultante do trabalho desse homem em um acréscimo àquilo que a natureza não provê para que, assim, ele desempenhasse um papel ativo na criação e na recriação do mundo.

A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. A democratização da cultura – dimensão da democratização fundamental. O aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O homem, afinal, no mundo e com o mundo. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto. (FREIRE, 1991, p. 109).

Assim, as ideias de Paulo Freire para a educação fundamentavam-se basicamente em um processo dialógico capaz de promover a inserção do sujeito no mundo que lhe é estranho porque, ao negar a sua participação e a sua interferência, nega-se a sua própria cultura. Em uma perspectiva dialógica, a educação dar-se-ia de forma crítica para que fosse possível olhar o mundo e a existência em sociedade como realidade inacabada, em constante transformação.

A pedagogia de Freire (1987), na qual buscamos encontrar afinidades com o Teatro da Caravana Siga Bem, é aquela que afirma que a educação se dá no contato dos homens entre si e com mundo sempre em uma posição crítica, ativa e essencialmente democrática.

Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade. Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada. (FREIRE, 1987, p. 40).

Ao problematizarem, refletirem e desvelarem a realidade, os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem desafiaram caminhoneiros e caminhoneiras para atuarem no mundo e com o mundo, provocando-os/as, de uma forma pedagógica, a compreenderem criticamente a realidade, como algo em construção.

Se considerarmos as ideias de Paulo Freire para a educação e os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem, podemos, em um primeiro momento, pensar em uma possível divergência representada pela falta de participação dos caminhoneiros e das caminhoneiras no levantamento dos temas geradores da encenação. No entanto, o processo dialógico, tão fundamental para a educação libertadora de Paulo Freire, fez-se presente nas relações homem-mundo, caminhoneiro-realidade.

É importante reenfatizar que o “tema gerador” não se encontra nos homens isolados da realidade, nem tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações homens-mundo.

Investigar o “tema gerador” é investigar, repitamos, o pensar dos homens referido à realidade, é investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis.

A metodologia que defendemos exige, por isto mesmo, que, no fluxo da investigação, se façam ambos sujeitos da mesma – os investigadores e os homens do povo que, aparentemente, seria seu objeto.

Quanto mais assumam os homens uma postura ativa na investigação de sua temática, tanto mais aprofundam a sua tomada de consciência em torno da realidade e, explicitando sua temática significativa, se apropriam dela. (FREIRE, 1987, p. 56).

É preciso ressalvarmos que, embora os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem tivessem um viés pedagógico, não se tratava de uma educação formal de jovens e adultos, mas era um teatro popular que mantinha afinidades com o Teatro Épico de Bertolt Brecht, aquele que rompe com o ilusionismo e se reafirma o tempo todo como teatro para que seu público seja capaz de formar um senso crítico sobre as questões apresentadas no palco, conforme aponta Benjamin (1994), em seu estudo sobre Brecht e o Teatro Épico. Segundo o autor:

As relações funcionais entre palco e público, texto e representação, diretor e atores quase não se modificaram. O teatro épico parte da tentativa de alterar fundamentalmente essas relações. Para seu público, o palco não se apresenta sob a forma de “tábuas que significam o mundo” (ou seja, como um espaço mágico), e sim como uma sala de exposição, disposta num ângulo favorável. Para seu palco, o público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembleia de pessoas interessadas, cujas exigências ele precisa satisfazer. (BENJAMIN, 1994, p. 79).

É importante frisarmos que os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem abordavam questões sociais relacionadas à realidade do seu público-alvo; não eram, assim, peças com temáticas empobrecidas, vazias e desconexas do tipo “Eva viu a uva”, o que contribuía para fazer do público essa “assembleia de pessoas interessadas” de que nos fala Benjamin (1994) e, além disso, a dramaturgia e a encenação queriam mostrar que o palco era mais sala de exposição da realidade do que espaço mágico.

Os espetáculos buscavam provocar um debate capaz de estimular o senso crítico no seu público-alvo para os temas apresentados. Além disso, um dos objetivos era a inserção do caminhoneiro e da caminhoneira em um universo cultural, notadamente popular, seja por transformar motoristas de caminhão em atores e atrizes ou levar o teatro a lugares e pessoas que sempre estiveram privadas dessa e de tantas outras formas de arte. Freire (1991) acreditava ser importante, em seu método de alfabetização de adultos, desenvolver o conceito antropológico de cultura no contexto de uma educação libertadora. Para ele, “[...] a cultura como acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador” (FREIRE, 1991, p. 109).

O Teatro da Caravana Siga Bem e Paulo Freire

Os espetáculos da Caravana Siga Bem fizeram uma opção estética clara pelo teatro popular, especialmente pela comédia, mesmo quando os temas eram complexos e delicados. Esse foi o caminho escolhido para atrair a atenção do seu público-alvo que, em sua grande maioria, jamais havia frequentado um teatro e era surpreendido por uma peça teatral no pátio de um posto de combustível, no início da noite, quando parava para jantar e descansar.

Os espetáculos eram construídos e ensaiados na cidade de São Paulo (SP), sendo trabalhadas a temática, a dramaturgia e a encenação específicas para cada tema. Desta feita, percebe-se que o Teatro da Caravana Siga Bem era feito para o espectador e a espectadora pensar o que não teria pensado, uma vez que os espetáculos de caráter pedagógico tinham o propósito de provocar reflexão crítica nos espectadores e nas espectadoras, a exemplo do que ocorre no Teatro Épico. Conforme aponta Brecht:

O espectador do teatro épico diz: Eu não teria pensado nisso. – Não se deve agir assim. – Isto é verdadeiramente extraordinário, é quase incrível. – Isto não pode continuar. – O sofrimento desta pessoa me compunge porque sem dúvida haveria uma saída para ela. – Isto é a verdadeira arte: nada aí é evidente por si mesmo. – Eu rio dos que estão chorando e choro dos que estão rindo. (BRECHT, 1967, p. 97).

Isso nos leva a um primeiro questionamento acerca das possíveis afinidades entre o Teatro da Caravana Siga Bem e as ideias para a educação de Paulo Freire. Se o caminhoneiro e a caminhoneira a quem se dirigiam os espetáculos não tinham ingerência na determinação dos temas, na elaboração da dramaturgia ou na encenação e se tratava de espetáculos de caráter pedagógico, pode parecer, à primeira vista, que a pedagogia ali inserida estivesse mais afinada com um tipo de educação que Freire (1987) criticava, qual seja: a educação bancária.

Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fichadores das coisas que arquivam. No fundo, porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção ‘‘bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser. Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta distorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também. (FREIRE, 1987, p. 33).

No entanto, ao analisarmos a dramaturgia e a encenação dos espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem, podemos perceber que essas peças pedagógicas não faziam meros comunicados, mas buscavam desenvolver no seu público um olhar crítico para as questões que abordavam, para que ele pudesse problematizá-las e afiná-las, assim como faz o Teatro Épico. Segundo Brecht:

Não se permitia de modo algum ao espectador entregar-se sem qualquer crítica (e sem qualquer consequência prática) aos acontecimentos por meio da identificação com os personagens dramáticos. A representação submetia os assuntos e ocorrências a um processo de distanciamento. Trata-se do distanciamento, que é necessário para que se possa compreender. Em relação a tudo que é evidente por si mesmo se renuncia à compreensão. (BRECHT, 1967, p. 96).

Assim como no Teatro Épico de Bertolt Brecht, nas peças pedagógicas da Caravana Siga Bem, o objetivo, tanto da dramaturgia quanto da encenação, era que os espectadores e as espectadoras não delegassem aos atores e às atrizes o poder de pensar por eles e por elas e, dessa forma, buscava-se que o espetáculo se tornasse uma preparação para a ação.

A título de ilustração sobre o caráter não bancário das estratégias pedagógicas das peças do Teatro da Caravana Siga Bem, cumpre apontarmos que, em todos os sete espetáculos originais produzidos e nas duas reapresentações (“A linda rosa” e “Cassino do Cupido”), a estrutura dramatúrgica passava sempre por temas geradores de problematização (uso racional da água, aquecimento global, direção defensiva, poluição atmosférica, violência contra a mulher, prostituição infantil e direitos humanos) e procurava levar o espectador e a espectadora a posicionarem-se criticamente, em uma atitude ativa consoante às ideias freireanas de uma educação que,

[...] desvestida da roupagem alienada e alienante, seja uma força de mudança e libertação. A opção, por isso, teria de ser também, entre uma “educação” para a “domesticação”, para a alienação, e uma educação para a liberdade. “Educação” para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito. (FREIRE, 1991, p. 36).

Passamos, nesta parte do texto, a apresentar, de acordo com a pesquisa de Josemir Medeiros da Silva (2020), uma breve sinopse das peças montadas nos dez anos de existência do Teatro da Caravana Siga Bem, para que seja possível percebermos que o conteúdo didático nelas inserido propunha uma reflexão crítica que levasse à educação do “homem-sujeito” e não do “homem-objeto” a que Paulo Freire se refere, além das afinidades com o Teatro Épico, o qual narra, comunica conhecimentos e busca conscientizar o público.

O primeiro espetáculo, “Água, um causo muito sério”, de 2006, o tema era o uso racional dos recursos hídricos que se apresentava em forma de comédia. Um caminhoneiro preguiçoso e displicente deixava de consertar o vazamento da torneira de casa para assistir ao futebol na TV. Diante disso, sua mulher chamaria um encanador bonitão com o sugestivo nome de Ricardão para fazer o serviço que o marido se recusava a fazer. A mensagem didática, ainda que apoiada em um humor sexista, estava presente, porém não era imperativa e pressupunha uma tomada de consciência crítica por conta do público.

No espetáculo “Ih, ferveu!”, de 2007, o tema do aquecimento global era trazido pelo personagem caminhoneiro que não tinha consciência ecológica. Em um sonho, ele se via como árvore em uma floresta prestes a ser devastada. Assustado, acordava e decidia ajudar a preservar o meio ambiente.

A peça “Um anjo na boleia”, de 2008, tratava de direção responsável e colocava um caminhoneiro imprudente para conversar com o seu anjo da guarda que, cansado de tanto trabalho, ameaçava abandonar o seu protegido. Em tom de comédia, o conteúdo didático aparecia sem imposição de regras, o que permitia que o caminhoneiro e a caminhoneira da plateia refletissem sobre o seu comportamento ao volante e, eventualmente, mudassem a sua atitude.

O espetáculo “Paixão é igual fumaça, sufoca, mas passa”, de 2012, que tratava da poluição do ar, mostrava um caminhoneiro negligente com a regulagem do motor do seu caminhão, e, assim, ele contribuía para aumentar a poluição do planeta pela emissão descontrolada de gás carbônico por meio do escapamento do seu veículo. Esse caminhoneiro era abduzido por alienígenas, habitantes de um planeta super poluído, sendo obrigado a se casar com uma princesa extraterrestre e viver para sempre nesse local cinzento, esfumaçado e sujo. Novamente, cabia ao caminhoneiro e à caminhoneira da plateia fazerem uma reflexão crítica e mudar de atitude para cuidar melhor do planeta.

É importante ressaltarmos que nesses primeiros espetáculos – “Água, um causo muito sério”, “Ih, ferveu” e “Paixão é igual fumaça, sufoca, mas passa” –, cuja temática é ecológica, a abordagem é individualizada, cabendo, portanto, alguma crítica, uma vez que deixou de lado questões macro relevantes para a discussão de problemas ambientais no Brasil. Isso se deve, de fato, a uma abordagem própria dos primeiros espetáculos, visão que foi sendo modificada com o amadurecimento do projeto, resultante da complexificação dos temas discutidos nos últimos espetáculos, como, por exemplo, sobre a violência contra a mulher, a exploração sexual de crianças e de adolescentes e os direitos humanos.

Os temas mais complexos da violência e exploração sexual de crianças e de adolescentes e de proteção à mulher exigiriam uma mudança de comportamento para o/a personagem caminhoneiro/a. Na vida real, alguns caminhoneiros e algumas caminhoneiras poderiam ser os/as “vilões ou vilãs” dessas histórias, por isso, em “A linda rosa”, de 2013 e 2014, o personagem Justo era o caminhoneiro herói que salvava a menina Rosinha do seu algoz, ao telefonar para o Ligue 100, o telefone de denúncias do Governo Federal.

No “Cassino do Cupido”, de 2010 e 2015, paródia do programa do Chacrinha, que tratava da violência contra a mulher, não só o estereótipo do caminhoneiro machista e violento era quebrado, como também se destacava o empoderamento feminino. Tínhamos uma personagem caminhoneira, Theresinha, que, em um quadro da espécie namoro na TV, escolhia como companheiro o caminhoneiro Paulinho, em detrimento de um galã machista.

Nos dois espetáculos de temáticas delicadas, toda a mensagem didática com o objetivo de conscientizar o público sobre a importância de proteção à mulher e à criança era apresentada de forma a levar o caminhoneiro e a caminhoneira da plateia a formar seu senso crítico sobre o problema. Especialmente no caso de “A linda rosa”, que tratava da questão da criança, algumas pessoas saíam no meio do espetáculo, provavelmente incomodadas com a situação mostrada e identificando-se com os “vilões” da história.

No último espetáculo apresentado, “Quixotices – ó xente e os direitos da gente?”, de 2016, o conteúdo didático sobre a necessidade de lutar pelos direitos humanos trazia o caminhoneiro como um dos protagonistas. Ele era o Quixote do romance de Miguel de Cervantes, transformado em personagem das histórias de Cordel contadas e representadas em cena. Nesse caso, o Quixote era um caminhoneiro que lutava contra as ameaças aos direitos humanos. Entretanto, havia outro personagem importante, Severino, um agricultor sem-terra e analfabeto que, durante todo o espetáculo, fazia uma trajetória de conscientização e de construção da sua própria cidadania, passando de trabalhador rural explorado, em uma condição análoga à de escravo, para lutador consciente do seu direito a uma vida digna, por causa das histórias de cordel que ouvia.

No clímax do espetáculo, Severino dizia que queria entrar na história que ouvia porque precisava lutar por uma vida com dignidade e fazia isso recitando um cordel. Ele, que até então tinha apenas ouvido as histórias, dessa vez também criava, inserindo-se na vida cultural para além do papel de espectador. Ele gritava:

Sai da frente, eu vou lutar

Vou pra luta com vontade

O monstro vou derrotar

Pra viver com dignidade

[...]

Porque gente é diferente

Isso ninguém vai negar

Gente tem direito, ó xente!

E nós vamos conquistar.4

Novamente, o conteúdo didático apresentava-se sem nenhuma imposição do que poderia ser caracterizado como educação bancária. A importância de lutar por uma vida digna e pelos direitos humanos surgia como reflexão crítica que cada espectador e espectadora deveria fazer a partir das histórias do Quixote e da trajetória do personagem Severino.

Percebemos, portanto, que o Teatro da Caravana Siga Bem encontrou afinidades com as ideias de Paulo Freire para a educação naquilo que se refere à autonomia do educando, ao considerar que os espetáculos apresentavam as questões sociais a serem discutidas sempre com o objetivo de contribuir com o processo de construção da consciência nos sujeitos. Outra afinidade encontra-se na máxima de que “não existe docência sem discência”, isto é, quem ensina, aprende. Isso porque, por analogia, os caminhoneiros e as caminhoneiras, ao atuarem no palco como atores e atrizes, seriam os e as docentes, os professores e as professoras, que, na verdade, aprendiam com seus alunos e suas alunas da plateia a cada noite, uma vez que os conteúdos didáticos dos espetáculos, assim como os de uma aula, não podem simplesmente ser transferidos se o processo de aprendizado pressupõe o desenvolvimento da criticidade. Conforme aponta Freire:

Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível, a pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos.

Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinando, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos. (FREIRE, 1996, p. 14).

Esse olhar da construção do saber e da busca da autonomia, que embasou o Teatro da Caravana Siga Bem, é o que mais afinidades revela com as ideias de Paulo Freire para a educação. Ele nos mostra que, apesar da escolha dos temas, da criação da dramaturgia e da encenação prescindirem da participação dos caminhoneiros e das caminhoneiras, as peças de conteúdo pedagógico não se configuravam como educação bancária.

Da mesma forma, o caráter dialógico da pedagogia do Teatro da Caravana Siga Bem apresentava-se também na participação dos caminhoneiros e das caminhoneiras como atores e atrizes, porque os objetivos de aprendizagem eram igualmente vivenciados em cena por aqueles e aquelas que podemos entender, por analogia, como professores e professoras.

Como exemplo, podemos citar o caminhoneiro que interpretou Severino, personagem que construía seu pensamento crítico a respeito da importância de lutar pelo direito a uma vida digna ao longo da sua trajetória na peça “Quixotices, ó xente e os direitos da gente?”. Esse motorista profissional, contratado para dirigir um dos caminhões da Caravana, muito mais do que subir no palco e atuar em “Quixotices”, teria vivenciado um aprendizado sobre direitos humanos, porque a sua própria atuação poderia permitir a ele refletir e formar seu pensamento crítico a respeito do tema.

Assim, quando buscamos afinidades entre as ideias de Paulo Freire para a educação e o Teatro da Caravana Siga Bem, transparece que o objetivo dos espetáculos com temáticas sociais interpretados por caminhoneiros/as para caminhoneiro/as, em postos de combustível na beira das estradas brasileiras, era o de prover instrumentos para que tanto o público quanto os/as atuantes no palco pudessem, a partir desses temas, formarem o seu senso crítico, livremente, sem imposições, com toda autonomia, a partir dos estímulos à curiosidade crítica.

Nessa busca por afinidades, no universo das artes cênicas, é possível encontrar, ainda, similaridades entre esse teatro com e para caminhoneiros e caminhoneiras que percorreu o Brasil durante dez anos e as peças didáticas ou de aprendizagem de Bertolt Brecht, no que se refere ao trabalho com o elenco de não-atores/atrizes a quem também se buscava desenvolver um senso crítico sobre os temas cidadãos dos espetáculos. O dramaturgo alemão também se encontra com o patrono da educação brasileira por meio do seu Teatro Épico, no qual o espectador e a espectadora não são passivos, assim como o educando e a educanda de Paulo Freire que devem ser capazes de ação e de reflexão sobre a realidade para transformá-la.

A seguir, traremos Brecht e Paulo Freire em diálogo com o Teatro da Caravana Siga Bem que, na carreta-palco, não fazia imitação da vida, mas, sim, o necessário distanciamento capaz de levar essa práxis para que caminhoneiros e caminhoneiras refletissem sobre a temática social das peças e pudessem, assim, agir para transformar a realidade.

Brecht, Paulo Freire e o teatro dos caminhoneiros e das caminhoneiras

Esteticamente identificado com o gênero popular, os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem também foram divertidos, porque, criados em uma perspectiva que fosse capaz de despertar interesse em um público culturalmente distante do teatro, suas peças não poderiam abrir mão da diversão, valendo-se, para tanto, do humor, de diferentes apelos ao lúdico e das manifestações da cultura popular brasileira. No entanto, além de popular e divertido, o Teatro da Caravana Siga Bem se caracterizava como pedagógico. Seu propósito maior era abordar questões sociais de forma didática, com o objetivo de despertar no seu público-alvo uma reflexão crítica acerca de temas sociais, com o propósito de emancipação de seus espectadores e de suas espectadoras.

Assim, podemos afirmar que o Teatro da Caravana Siga Bem era popular, divertido, pedagógico e, obviamente, político, porque se propunha a provocar, no seu público-alvo de caminhoneiros e caminhoneiras, suas famílias e comunidades estradeiras, uma discussão a respeito de temas como proteção à criança, violência contra a mulher e direitos humanos, só para citar os últimos espetáculos, com vistas à construção de um pensamento crítico. Esse propósito de desenvolver na plateia um olhar crítico diante das questões sociais que serviam de tema para os espetáculos aproxima as peças da Caravana Siga Bem do Teatro Épico de Brecht (1967), que se distingue da forma dramática pela maneira como envolve o espectador na ação.

Forma épica

O palco narra um fato

transforma o espectador em observador do fato, mas desperta sua atividade

obriga-o a tomar decisões

comunica-lhe conhecimentos

ele é colocado em face a essa ação. (BRECHT, 1967, p. 96).

O Teatro Épico de Bertolt Brecht é também aquele que se caracteriza pela chamada “quebra da quarta parede”, que diz respeito à eliminação de uma divisão simbólica entre o palco e a plateia como se no teatro tradicional houvesse uma “parede” na frente do palco, tornando o espaço cênico em um local mágico inacessível ao público. Brecht, nos espetáculos do Teatro Épico, frequentemente praticava o efeito do distanciamento que se dá quando o ator ou a atriz se dirigem ao público para comentar uma ação e, assim, chamar o espectador a uma reflexão crítica, ou, conforme aponta Rosenfeld (2014, p. 155), surpreender e despertar o público: “O efeito de distanciamento procura produzir, portanto, aquele estado de surpresa que para os gregos se afigurava como o início da investigação científica e do conhecimento”.

Ao analisarmos os espetáculos do Teatro da Caravana Siga Bem, é possível encontrarmos diversos momentos nos quais ocorre o efeito de distanciamento, especialmente nos espetáculos de temáticas mais complexas como no musical “A linda rosa”, quando as questões que envolviam a exploração sexual de crianças e de adolescentes eram apresentadas ao público nesse momento de “quebra da quarta parede” e, também, em “Quixotices – ó xente e os direitos da gente?”, quando a plateia era chamada a se posicionar a respeito das questões de afronta aos direitos humanos.

Importante ressaltarmos que o efeito do distanciamento presente no Teatro Épico de Brecht, que busca levar o espectador e a espectadora a uma reflexão crítica e não deixa de ter um sentido pedagógico, torna-se, assim, mais um fator de afinidade entre Brecht e Paulo Freire, no Teatro da Caravana Siga Bem. Conforme afirma Anita Cione T. F. da Silva:

O sentido pedagógico do distanciamento enquanto problematização da realidade também é defendido por Freire (2011), que ressalta que a conscientização objetiva, crítica e histórica oportunizaria a redescoberta de si e do mundo por meio da reflexão distanciada acerca do próprio processo do participante, que se torna senhor de seu fazer e pensar. Para Freire, ao colocar-se como sujeito no processo histórico, o indivíduo permite a expressão de insatisfações sociais, corroborando uma visão muito similar à de Brecht, por tratar-se de um afastamento para reflexão, intencionando um processo de aprendizado. (SILVA, A. C. T. F. da, 2014, p. 75).

Essas características do Teatro Épico de Bertolt Brecht são importantes para afastar o caráter de educação bancária que poderia estar presente no Teatro da Caravana Siga Bem, de forma a aproximar esse projeto de teatro da obra de Brecht (1967), notadamente por uma preocupação de ordem prática presente tanto no Teatro Épico quanto nos espetáculos da Caravana. De acordo com Brecht:

O teatro épico está interessado, antes de tudo, no comportamento que os homens adotam uns diante dos outros, sempre que forem comportamentos significativos social e historicamente (típicos). Desenvolve cenas nas quais as pessoas se comportam de forma que as leis sociais a que estão sujeitas vêm à luz. Para tanto, precisamos encontrar definições de ordem prática: isto é, definições dos processos efetivos que possam ser usadas para intervir nos próprios processos. A preocupação do teatro épico é, portanto, eminentemente, prática. O comportamento humano é mostrado como alterável; o próprio homem como dependente de certos fatores sociais e econômicos e, ao mesmo tempo, capaz de alterá-los. (BRECHT, 1967, p. 83-84).

Além dessa afinidade com o Teatro Épico, observamos, ainda, uma aproximação entre o Teatro da Caravana Siga Bem e as chamadas peças didáticas ou de aprendizagem de Bertolt Brecht, por conta do fato de que, no palco da Caravana, estavam caminhoneiros e caminhoneiras que também eram sujeitos desse aprendizado a respeito dos temas sociais das peças. Isso porque, conforme aponta Koudela (2010), nas peças didáticas se dá o aprendizado do ator, enquanto atua.

A parte analítica do trabalho de Steinweg inicia-se com a especificação do conceito de peça didática. Diante da falta de clareza com que esse conceito era utilizado pela recepção crítica, Steinweg estabelece a diferenciação entre peça didática e peça épica de espetáculo, recorrendo ao marco de diferenciação da “regra básica”. De acordo com Steinweg, o termo “regra básica” indica que “a determinação de atuar para si mesmo é o pressuposto para a realização da peça didática como ato artístico”. Através dessa acentuação da regra básica, Steinweg entende o sentido das afirmações recorrentes de Brecht, entre 1929-1956, que qualificam a peça didática como um tipo de “empreendimento teatral” efetuado “menos em função dos observadores do que dos atuantes” e cujo objetivo de aprendizagem é alcançado quando a peça didática “é vivenciada, não quando é assistida”. (KOUDELA, 2010, p. 5).

No Teatro da Caravana Siga Bem, embora o processo de aprendizagem nas peças que apresentava também incluísse o caminhoneiro e a caminhoneira que atuavam no palco, esperava-se que os seus pares na plateia aprendessem algo; desse modo, os espetáculos da Caravana pretendiam alcançar seus objetivos pedagógicos não apenas quando vivenciados, mas também quando assistidos. É inegável, portanto, que o Teatro da Caravana Siga Bem, feito para e com os caminhoneiros e as caminhoneiras com um objetivo pedagógico, estabeleceu um processo comunicativo, como defendia Paulo Freire, no que se refere à educação direcionada ao/à caminhoneiro/a da plateia.

Se o objetivo é encontrar afinidades entre as peças do Teatro da Caravana Siga Bem e o pensamento de Paulo Freire para a educação daqueles a quem ele chama de oprimidos/as, então é fundamental refletir sobre a pedagogia presente na dramaturgia e na encenação desses espetáculos, para afirmar se ela está voltada para o homem-objeto ou para o homem-sujeito. Isto é, por quais motivos os espetáculos de caráter didático da Caravana Siga Bem não se configuram na prática da educação bancária?

O espectador caminhoneiro do Teatro da Caravana Siga Bem que, na beira das estradas brasileiras, se deparava com uma carreta-palco na qual um grupo de outros/as caminhoneiros e caminhoneiras lhe apresentava, sob a forma de espetáculo teatral, questões como a violência e a exploração sexual de crianças e de adolescentes, a proteção à mulher e a luta em favor dos direitos humanos poderia estar recebendo simplesmente uma educação bancária que em nada contribuiria para a sua transformação? Se pensarmos nessa relação como resultante de um processo educativo tradicional, em sala de aula, certamente a resposta a essa indagação seria positiva. De acordo com o que Paulo Freire defendia, esse ensinamento sobre as questões sociais se configuraria como uma prática de educação bancária. Contudo, estamos falando de um teatro popular não ilusionista afinado com o que Boal (1991) classifica como a poética de Brecht ou da conscientização na qual o espetáculo é uma preparação para a ação e, assim, tudo muda.

O que o Teatro da Caravana Siga Bem buscou foi promover a inserção dos caminhoneiros e das caminhoneiras, que subiam no palco como atores e atrizes, na realidade daquilo que se discutia em cena, para que os seus pares na plateia se reconhecessem neles e nelas e fosse criado um efeito multiplicador de modo que se tornasse possível a construção de um pensamento crítico capaz de promover alguma transformação.

De acordo com o sentido de práxis, que “[...] é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1987, p. 21), o caminhoneiro e a caminhoneira do palco, ao inserirem-se no projeto e repetirem durante cerca de nove meses por ano o mesmo recado sobre determinado tema social, estavam exercendo a sua práxis e refletindo sobre essa realidade para transformá-la. Assim, essa ação educativa que se dava por meio de um espetáculo teatral não tinha nada de educação bancária, mas trazia muitos elementos de uma pedagogia transformadora, mesmo porque permitia também ao caminhoneiro e à caminhoneira da plateia a sua inserção em uma determinada realidade, não para simplesmente receber o “depósito” de um conteúdo, mas para refletir sobre ele e estabelecer, então, um diálogo. Conforme defende Freire:

Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever que Lukács reconhece ao partido revolucionário de “explicar às massas a sua ação” coincide com a exigência que fazemos da inserção crítica das massas na sua realidade através da práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si mesma.

A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter, nos próprios oprimidos que se saibam ou comecem criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos.

Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles seres desditados, objetos de um “tratamento” humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados de entre os opressores, modelos para a sua “promoção”. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si mesmos, na luta por sua redenção. (FREIRE, 1987, p. 22).

Dessa forma, ao colocar caminhoneiros e caminhoneiras no palco, e revelar isso ao público, no final dos espetáculos, o que muitas vezes despertava no/a caminhoneiro/a da plateia o desejo de abordar o seu companheiro ou a sua companheira de profissão para tirar uma foto com ele/ela ou mesmo pedir um autógrafo, o Teatro da Caravana Siga Bem procurava estabelecer essa conexão para que as discussões suscitadas pelos espetáculos fossem objeto de uma reflexão crítica dos espectadores e das espectadoras. Na busca de afinidades com as peças didáticas de Bertolt Brecht, percebemos que esses atores caminhoneiros e essas atrizes caminhoneiras, atuantes e espectadores e espectadoras ao mesmo tempo, ensinavam e eram ensinados/as. Segundo Koudela (2010), Brecht, em seu texto Para uma teoria da peça didática, de 1937, afirmou:

A peça didática ensina quando nela se atua, não quando se é espectador. Em princípio não há necessidade de espectadores, mas eles podem ser utilizados. A peça didática baseia-se na expectativa de que o atuante possa ser influenciado socialmente, levando a cabo determinadas formas de agir, assumindo determinadas posturas, reproduzindo determinadas falas. (KOUDELA, 2010, p. 16).

As menções às afinidades entre as peças didáticas de Brecht e os espetáculos do Teatro da Caravana, portanto, surgem para demonstrar que, assim como nos experimentos do dramaturgo alemão, as peças com temáticas sociais do Teatro da Caravana Siga Bem, de nítida preocupação pedagógica, procuravam fugir de um modelo de educação classificada por Paulo Freire como “bancária”.

Assim, entendemos que tanto a pedagogia libertadora de Paulo Freire quanto o Teatro Épico e as peças didáticas ou de aprendizagem de Bertolt Brecht encontram afinidades com o Teatro da Caravana Siga Bem, no sentido de buscar não a imposição, mas a construção do conhecimento por meio do estímulo à formação do pensamento crítico. Assim como, para Bertolt Brecht, “[o] pior analfabeto é o analfabeto político”5, temos que, segundo Moura (2019, p. 149), “[...] na compreensão freireana de mundo é reforçada a importância de se posicionar e se comprometer na luta pela transformação social que liberte aqueles que são oprimidos por uma classe dominadora [...]”.

Mais do que levar conhecimento, as peças da Caravana Siga Bem buscavam, portanto, contribuir com a conscientização do seu público-alvo, de forma a estimular o posicionamento e o comprometimento político. É exatamente por recusar o caminho fácil e autoritário da educação bancária que o projeto se aproximava de Paulo Freire e de Bertolt Brecht, revelando-se como uma experiência de teatro popular, pedagógico e político.

Considerações finais

Na busca de afinidades entre o Teatro da Caravana Siga Bem e as ideias de Paulo Freire para a educação, objeto da pesquisa de Mestrado da qual resultou este artigo, foram encontradas similaridades entre uma experiência de teatro popular e pedagógico feito com e para caminhoneiros e caminhoneiras e as ideias de uma educação como prática da liberdade na qual o educando e a educanda são sujeitos na construção do seu conhecimento.

Encontrou-se uma forma de arte que, assim como poeticamente definiu Eduardo Galeano (2011, p. 15), “ajuda a olhar” para questões sociais tão variadas e relevantes quanto o uso racional da água do primeiro espetáculo e a luta pelos direitos humanos da sua última peça. Esse “ajudar a olhar” é uma característica essencial na educação como prática da liberdade, que é tão cara a Paulo Freire. Essa educação dialógica que não admite o mero depósito de conhecimentos feito por um educador ou uma educadora autoritário/a sobre um educando ou uma educanda passivo/a.

O “ajudar a olhar” da educação freireana é aquele que pressupõe a leitura crítica do mundo para além da leitura das palavras e, assim, permite que o sujeito se eduque por meio do exercício da práxis, da sua ação e reflexão sobre a realidade para transformá-la. Dessa forma, ao mirarmos com os olhos de pesquisadores/as a dramaturgia e a encenação dos espetáculos da Caravana Siga Bem, foi possível encontrarmos as afinidades entre o teatro popular, divertido e pedagógico da Caravana Siga Bem e as ideias de Paulo Freire para uma educação dialógica e libertadora.

Assim como Paulo Freire pensava em uma pedagogia para o povo oprimido, proletário, subalterno, o Teatro da Caravana Siga Bem direcionava as suas peças pedagógicas para um público-alvo de caminhoneiros e de caminhoneiras e comunidades do entorno dos postos de combustível onde se apresentava. Pessoas que também pertenciam a essa mesma classe social, o povo a quem, de um modo geral, sempre foi negada a fruição da arte teatral, a quem, portanto, não se dava essa possibilidade da ajuda para olhar determinadas questões sociais no exercício de uma criticidade emancipadora.

A pesquisa revelou uma aproximação entre os espetáculos da Caravana Siga Bem e o Teatro Épico brechtiano, no que se refere à busca da reflexão crítica por parte do público e, ainda, com as peças didáticas de Brecht quando se analisa a participação dos caminhoneiros e das caminhoneiras como atores e atrizes, visto que nelas o aprendizado se dá quando ocorre a sua atuação. Essa peculiaridade do Teatro da Caravana Siga Bem, que contava com o caminhoneiro-ator e a caminhoneira-atriz atuando para os seus pares na plateia, por analogia com professores e professoras que aprendem enquanto ensinam, refletem enquanto fazem refletir, acaba por revelar mais uma afinidade entre os espetáculos da Caravana e Paulo Freire, que é a máxima de que não existe docência sem discência.

Assim, este artigo buscou acrescentar ao dossiê Paulo Freire, por ocasião do seu centenário, essa peculiaridade da presença do seu legado para a educação brasileira em um projeto de teatro feito com e para caminhoneiros e caminhoneiras, espetáculos pedagógicos que se dispunham não somente a levar teatro a um público privado da fruição dessa arte, mas também a exercer uma função educativa e a provocar a reflexão acerca de temas sociais.

Por tudo isso, consideramos que a arte que transpareceu no Teatro da Caravana Siga Bem se aproximou das ideias de Bertolt Brecht e de Paulo Freire em sua função tão bem definida poeticamente por Eduardo Galeano (2011): a que ajuda a olhar as belezas, as mazelas, as tristezas e as alegrias de um mundo que precisa constantemente ser lido criticamente para que o povo, ao exercer sua práxis, possa refletir e agir para transformá-lo.

Notes

1Tal interesse resultou na pesquisa de Josemir Medeiros da Silva intitulada Teatro da Caravana Siga Bem: projeto com e para caminhoneiros à luz do legado de Paulo Freire, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de São João del-Rei, sob orientação da Professora Doutora Carina Maria Guimarães Moreira.

2“De acordo com a BR Distribuidora, subsidiária da Petrobrás, a Rede de Postos Siga Bem se propõe a oferecer um tratamento diferenciado para o caminhoneiro, seja na oferta de produtos e serviços, seja na infraestrutura que inclui restaurante, sala de repouso, chuveiros e pátios amplos e iluminados para estacionamento, além de ser um espaço para a divulgação de ações de cidadania e responsabilidade social para o público caminhoneiro” (SILVA, J. M. da, 2020, p. 18).

3O Movimento de Cultura Popular (MCP) foi criado pela prefeitura de Recife (PE) em 1960, na gestão do então prefeito Miguel Arraes. O Movimento reuniu artistas, estudantes e intelectuais com o objetivo de realizar um trabalho político-pedagógico-cultural para a cidade, com ênfase na conscientização das camadas populares. O MCP, que se constituiu como uma sociedade civil sem fins lucrativos mantida inicialmente pela prefeitura de Recife e, depois, pelo governo de Pernambuco, foi extinto em 1964, no contexto do golpe civil-militar que se deu no Brasil.

4Excerto do espetáculo “Quixotices – ó xente e os direitos da gente?”, peça encenada em 2016 pelo Teatro da Caravana Siga Bem. Texto não publicado apresentado na pesquisa de Josemir Medeiros da Silva (2020, p. 83).

5Autoria não confirmada. A frase foi atribuída a Bertolt Brecht pela primeira vez em Terra Nossa: Newsletter of Project Abraço, North Americans in Solidarity with the People of Brazil, Volumes 1-7, de 1988.

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Recebido: 24 de Agosto de 2020; Revisado: 17 de Março de 2021; Aceito: 18 de Março de 2021; Publicado: 24 de Março de 2021

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