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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16581.046 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Ser Mais: coerência entre a vida e o conceito de Paulo Freire

Being More: coherence between life and Paulo Freire’s concept

Ser Más: coherencia entre la vida y el concepto de Paulo Freire

Vania Finholdt Angelo Leite* 
http://orcid.org/0000-0003-4583-7165

*Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora Adjunta da Faculdade de Formação – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e do Programa de Pós-Graduação em Educação: processos formativos e desigualdades sociais. E-mail: <vfaleite@uol.com.br>.


Resumo:

Neste texto, discute-se a coerência entre a construção teórica do conceito de Ser Mais com ações e decisões ao longo da vida de Freire, o que pode justificar a repercussão de sua obra. O estudo partiu da análise de 12 entrevistas realizadas com Paulo Freire de 1992 a 1997, disponíveis no Acervo Paulo Freire. Após as análises, foram identificadas nove características do Ser Mais, são elas: consciência de si; consciência do mundo; esperança, lidar com a diferença – aprender quem eu sou; estar sendo e humildade; identidade cultural; ser político – não neutralidade; e sonho. Nota-se que há uma coerência entre a teorização do conceito Ser Mais e o ser histórico, inacabado, limitado, que nunca traiu seus sonhos. Freire sempre denunciou a sociedade exploradora e injusta e propôs a educação libertadora que anuncia uma sociedade mais democrática e inclusiva. Uma educação em que Ser Mais é o objetivo de todos os educandos e educadores.

Palavras-chave: Educação libertadora; Ser Mais; Paulo Freire

Abstract:

In this text, the coherence between the theoretical construction of the concept of Being More with the actions taken throughout Freire’s life, which may justify the repercussion of his work is discussed. The study started from the analysis of 12 interviews with Paulo Freire from 1992 to 1997, available at Paulo Freire Collection. After the analysis, it was identified nine characteristics of Being More, namely: self-awareness; awareness of the world; hope; dealing with difference – learning who I am; being and humility; cultural identity; being political – non-neutrality; and dream. It is noted that there is a coherence between the theorization of the Being More concept and the historical, unfinished, limited being that never betrayed his/her dreams. Freire has always denounced the exploitative and unjust society and proposed the liberating education that announces a more democratic and inclusive society. An education in which Being More is the goal of all students and educators.

Keywords: Liberating education; Being more; Paulo Freire

Resumen:

En este texto se discute la coherencia entre la construcción teórica del concepto de Ser Más con acciones y decisiones a lo largo de la vida de Freire, lo que puede justificar la repercusión de su obra. El estudio partió del análisis de 12 entrevistas con Paulo Freire de 1992 a 1997, disponibles en el Acervo Paulo Freire. Después del análisis, fueron identificadas nueve características de Ser Más, son ellas: autoconciencia; conciencia del mundo; esperanza; lidiar con la diferencia – aprender quién soy yo; estar siendo y humildad; identidad cultural; ser político – no neutralidad; y sueño. Se nota que hay una coherencia entre la teorización del concepto Ser Más y el ser histórico, inacabado y limitado que nunca traicionó sus sueños. Freire siempre ha denunciado a la sociedad explotadora e injusta, y propuso la educación liberadora que anuncia una sociedad más democrática e inclusiva. Una educación en la que Ser Más es el objetivo de todos los estudiantes y educadores.

Palabras clave: Educación liberadora; Ser más; Paulo Freire

Introdução

Considero que a obra de Paulo Freire é atual, complexa e que, ainda, há reflexões a serem acrescentadas, por isso me proponho a escrever este texto. Concordo com Freire quando ele afirma que “[...] dizer coisas de novo é tão importante quanto escrever coisas ainda não ditas” (FREIRE, 1992a, p. 28). Ao dizer coisas não ditas, não significa repetir suas palavras, mas reinventá-las. Como afirma Gadotti (2002, p. 8), “[...] recordar o legado de Freire não significa repetir Freire, mas continuar Freire, reinventando-o”.

Apresentarei fatos e relatos narrados por Freire em entrevistas, relacionando-os com o conceito de Ser Mais, foco central deste texto. Argumento que não há separação entre a vida, as ações e as decisões de Freire com a construção teórica desse conceito. Considero que a coerência entre a vida e o que ele defendia teoricamente é o que o torna um autor atual.

Outro aspecto relevante de sua teoria é o fato de ter influenciado diversos países no mundo, evidente em suas palavras. Em entrevista um pouco antes de falecer, em 1997, ele disse:

A Pedagogia do Oprimido deve estar hoje [1997] traduzida para 36, 37 idiomas. Só em inglês, sobretudo na Inglaterra, ele conseguiu cobrir todo o Oriente. Eu viajei muito nos anos 70 levado pelo Pedagogia do Oprimido. Em 1972, fui à Austrália, Nova Zelândia e ilhas do Pacífico Sul; falava para duas, três mil pessoas e era como se eu estivesse morando numa das ruas da ilha de Fiji. Não sei nem descrever esse tipo especial de emoção, em que um autor, de repente, se sente sendo percebido como se morasse naquele bairro de um mundo completamente estranho para ele. Se não tiver uma boa cachola, você corre o risco de se perder. (FREIRE, 1997a, p. 12).

Freire continua contribuindo para que possamos compreender os desafios (e respondê-los) de políticas de educação voltadas somente para o mercado econômico, em que se valoriza a educação como mercadoria e não mais como formação humana. Ainda persiste, no Brasil e na maior parte do Mundo, a exclusão racial, a desigualdade social, a desvalorização do ser humano em detrimento da economia como acompanhamos durante a pandemia de COVID-19 em 2020.

A metodologia deste estudo foi qualitativa. Selecionei textos de Freire (1978, 1999, 2002, 2006) para fundamentar o argumento apresentado anteriormente, assim como as 12 entrevistas com ele dos últimos cinco anos (1992a, 1997), disponíveis no Acervo Paulo Freire, para ratificar o argumento deste artigo, cujo cerne é buscar as vivências narradas nas entrevistas, ligando-as ao conceito de Ser Mais defendido nos seus livros, textos, documentários. Por isso, não pretendo aprofundar outros conceitos teóricos.

Escolhi as entrevistas (FREIRE, 1992a, 1992b, 1993, 1994, 1995a, 1995b, 1996a, 1996b, 1997a, 1997b, 1997c, 1997d), porque elas trazem os depoimentos mais espontâneos de Freire, mostram a forma de ser e de agir do autor. Li, na íntegra, as 12 entrevistas. Após a leitura exaustiva, procurei ver o que era recorrente nos depoimentos de Freire e sua experiência de vida/profissional, tendo como referência dessa busca nas entrevistas o conceito de Ser Mais. Isso significa que o ser humano se move para constituir a sua humanização. Na perspectiva de Freire, trata-se de reconhecer que o ser humano é inconcluso, “[...] em e com a realidade, que sendo histórica também, é igualmente inacabada” (FREIRE, 1978, p. 83, grifos nossos), porque existir, humanizar-se é pronunciar o mundo e modificá-lo. A condição de devir, vocação ontológica do ser humano, exige de cada ser um compromisso de intervir no mundo, ao mesmo tempo em que se humaniza.

Partirei, portanto, do saber da experiência de Freire, que foi transformado em conceito teórico de Ser Mais. Essa ideia veio do próprio autor que valorizava o saber da experiência e do senso comum, evidenciado por ele em entrevista:

[...] um grande respeito, também, pelo saber só de experiências feito, como diz Camões, que é exatamente o saber do senso comum. Discordo dos pensadores que menosprezam o senso comum, como se o mundo tivesse partido da rigorosidade do conhecimento científico. De jeito nenhum! A rigorosidade chegou depois. A gente começa com a curiosidade indiscutível diante do mundo e vai transformando essa curiosidade no que chamo de curiosidade epistemológica. (FREIRE, 1995a, p. 6).

O texto organiza-se a partir do que Freire nos aponta nas entrevistas sobre sua vivência, suas ideias que contribuíram para a construção teórica do conceito de Ser Mais.

Ser Mais: uma construção contínua

Nesse tópico, abordo o conceito de Ser Mais. Segundo Freire, antes de sermos educadores, somos seres humanos. Busco, portanto, as evidências da construção do conceito teórico de Ser Mais com as vivências do autor, como ele afirma na entrevista concedida a Esther Picco - reitora da Universidade Nacional São Luís – Córdoba: “[...] antes de ser educador, sou homem, como você, antes de ser reitora, é mulher. Somos pessoas e minha tese continua sendo uma pedagogia da humanização, da gentileza, precisamos formar pessoas e não apenas especialistas” (FREIRE, 1996b, p. 27).

Organizei as nove características do Ser Mais identificadas a partir das análises das entrevistas nos últimos cinco anos, como expliquei anteriormente. Elas são abordadas ora conjuntamente uma da outra, ora separadamente, nessa ordem: a) Consciência de si e do mundo; b) Esperança; c) Lidar com a diferença – aprender quem eu sou; d) Estar sendo e humildade; e) Identidade cultural; f) Ser político – não neutralidade; e g) Sonho.

A primeira característica da humanização é a vocação histórica constituída da consciência de si e do mundo que foi percebida por Freire ainda pequeno nas festas de Natal, quando ele relata que seus amigos mostravam a ele vários presentes recebidos do Papai Noel. No entanto,

Papai Noel não baixava lá em casa; então uma das minhas preocupações críticas era com o que me parecia uma certa injustiça do velho Papai Noel [...]. Vem daí o que eu chamaria de consciência crítica, de uma concepção mais crítica do real. Então, eu me comprometi com a briga pela mudança do mundo. (FREIRE, 1997a, p. 9).

Sua vida mostra que ele e sua família sofreram algumas experiências dolorosas em decorrência da crise de 1929, mas “[...] não tão duras quanto aquelas vividas por milhares de crianças brasileiras hoje, mas o suficiente para me marcar de modo a me fazer disponível em termos de abertura” (FREIRE, 1997b, p. 21). Essas foram as primeiras experiências que o mobilizaram a pensar a consciência de si e do mundo. Ao relatar sobre sua mocidade vivida em diálogo com grupos populares, camponeses, trabalhadores urbanos, favelados das áreas do Recife, que também contribuíram para sua proposta no campo da educação e da política, por exemplo, ele afirma que “[...] foi exatamente, toda essa experiência anterior que, depois se alongou durante o exílio fora do Brasil que me deu matéria para, refletindo sobre ela, fazer propostas como as que venho fazendo [...]” (FREIRE, 1996a, p. 38).

Percebe-se que o conceito de conscientização foi gestado desde a infância de Freire com as experiências natalinas que o põem diante de uma triste realidade de não receber presentes, assim como ocorre com grande parte das crianças brasileiras ainda hoje (2020). Portanto, os livros e a teoria de Freire foram escritos a partir de sua vivência, isto é, dos “tempos fundantes” (FREIRE, 2006, p. 19), das entrevistas realizadas em diálogo com intelectuais brasileiros e internacionais e das leituras de “[...] Marx, Lukács, Fromm, Gramsci, Fannon, Memmi, Sartre, Kosik, Agnes Heller, M. Ponty, Simone Weill, Arendt, Marcuse” (FREIRE, 2006, p. 20). Isso nos mostra que não houve uma separação entre vida e teoria.

Outra característica do Ser Mais é a esperança, explicada por Freire em seis entrevistas (FREIRE, 1992b, 1993, 1995a, 1996a, 1996b, 1997a). Trago dois exemplos para fundamentar o argumento, “[a esperança] faz parte da minha experiência ontológica” (FREIRE, 1996a, p. 47), como também “[...] a esperança faz parte de mim como o ar que respiro” (FREIRE, 1993, p. 8). Essas duas afirmativas mostram como ele era enfático ao abordar a esperança, considerando-a como ar que respira e parte da experiência ontológica. Por isso, Freire afirma que não podendo perdê-la nem nos momentos de crise, mesmo que “[...] os ditadores, tanto quanto podem, aniquilam a esperanças das massas. Ora sob o susto, o medo, o pavor. Ora sob o assistencialismo” (FREIRE, 1993, p. 9). Principalmente nesses momentos, a esperança é fundamental, porque é na busca e na luta que nos constituímos como seres da transformação. Se não fôssemos assim, estaríamos sendo alienados e renunciando nossa práxis no mundo.

Para ele, a esperança é parte constituinte do ser humano, da sua experiência ontológica, ela se constitui na vivência de cada um de nós, mesmo nos tempos de crise. Sobre esse aspecto, Freire (1992b, p. 46) argumenta que são “[...] nesses momentos em que temos que ter esperança”. Além disso, o autor relaciona a esperança ao ser humano histórico que somos, por isso vislumbramos um amanhã, não o teremos sem esperança. Como ele afirma: “Eu não posso prescindir do amanhã enquanto ser histórico. E não é possível não prescindir do amanhã sem esperança. Então, a esperança, para mim, não é uma ‘arminha besta’ qualquer, ela faz parte da minha natureza humana, histórica, na briga de transformação do mundo” (FREIRE, 1996a, p. 47).

É uma esperança que se realiza na luta pela transformação do mundo, que se afasta da ideia de uma esperança “fatalista” que nada realiza, espera o que virá passiva e inativamente. Mesmo sabendo que não encontraremos o que queremos, Freire (1995a, p. 5) nos diz para irmos em busca: “[...] vou produzir o encontro. Não posso procurar sem esperança e só é possível esperança na procura realizada na luta”.

Em relação a produzir o encontro entre o que queremos e o que nos apresenta a vida para termos esperança, trago o trecho em que Freire (2006) conta sobre sua dor e a esperança concreta. Ele narra que um dia regressou a Jaboatão à procura de sua infância:

Foi sob chuva forte que visitei o Morro da Saúde onde, menino, vivi. Parei em frente à casa em que morei. A casa em que meu pai morreu no fim da tarde [...]. [...]. Naquela tarde chuvosa, de verdura intensa, de céu chumbo, de chão molhado, eu descobri a trama de minha dor. Percebi a razão de ser. Me conscientizei das várias relações entre os sinais e o núcleo central, mais fundo, escondido dentro de mim. Desvelei o problema pela apreensão clara e lúcida de sua razão de ser. (FREIRE, 2006, p. 31).

Freire não ficou paralisado diante da sua dor, procurou a razão dela. Segundo ele, “[...] trabalhei as coisas, os fatos, a vontade. Inventei a esperança concreta em que um dia me veria livre de meu mal-estar” (FREIRE, 2006, p. 31).

A esperança, nessa perspectiva, é crítica, por saber que sozinha não transformará o mundo, ela precisará “[...] ancorar-se na prática para tornar-se concretude histórica” (FREIRE, 2006, p. 11). Assim, Freire que nunca perdeu a esperança de “[...] acabar com a opressão, com a miséria, com a intolerância e transformar o mundo em um lugar mais gostoso e mais justo para viver” (FREIRE, 1993, p. 8). Foi em prol dessa transformação que o autor escreveu seus textos. O fato de Freire abordar recorrentemente a esperança, porque para ele não existe a possibilidade de o educador defender a liberdade e autonomia do ser humano que não seja uma pedagogia da esperança. Por isso, ele afirmava “[...] a pedagogia do oprimido é em si a pedagogia da esperança” (FREIRE, 1997a, p. 12).

Ligado à esperança crítica, na realidade vivida pelo educador/educando, Freire defende que o Ser Mais implica saber lidar com a diferença – “[...] uma luta contra mim mesmo, aprendendo quem eu sou” (FREIRE, 1993, p. 12).

Em uma das entrevistas, Freire contou que o pai era espírita e a mãe católica. Um dia, ele comunicou ao pai que faria a 1ª comunhão. O pai, ao receber a notícia, beijou-o na testa e disse que iria com ele nesse evento. Nas palavras de Freire:

Ali ele foi um pedagogo e democrata. Mais do que uma prova de que me queria bem, ele me deu uma lição de que, se você respeita o outro, é preciso aprender a conviver com a diferença. A democracia é isso: essa liga de todos nós, para conviver com a diferença e poder lutar contra o antagônico. No fundo, não havia antagonismo nenhum entre a crença nascente, incipiente do filho de sete anos que ia fazer comunhão, convencido de que recebia Deus, e o seu desenho de mundo amoroso, feliz e fraterno. Ele me deu a grande lição da virtude indispensável ao educador progressista, ao revolucionário, que é a virtude da tolerância. (FREIRE, 1992a, p. 31).

Ter ideias diferentes, religiões diferentes, partidos diferentes, nada disso, nos impede de conviver e de dialogar com o outro, como nos mostra Freire em seus depoimentos nas entrevistas analisadas e em seus textos, ambos referidos anteriormente. Ele propunha que se “[...] buscasse uma unidade na diversidade” (FREIRE, 1992b, p. 44), que significa distinguir a diferença com o sectarismo, uma vez que o sectário não consegue coexistir com o diferente, com aqueles que não pensam como ele. Nas palavras de Freire (1992b, p. 44), “[...] o sectário está doente, é um caso absolutamente patológico, é a distorção da realidade”.

Atualmente (2020), no Brasil, estamos separados por ideias sectárias na política e na saúde, principalmente, como vimos, no enfrentamento da COVID-19. De um lado, há os que defendem o uso da cloroquina, por razões políticas sem avaliar o que as pesquisas científicas evidenciam nos estudos; de outro lado, há os que não a defendem por seguir as recomendações das pesquisas. Se, hoje, o Brasil se vê separado por ideias antagônicas, nos anos de 1970, Freire lutava contra o discurso sectário stalinista. Segundo o autor, sua pedagogia era mais perigosa do que esse discurso, porque buscava desvelar as injustiças, desocultar a mentira ideológica, “[...] eu defendia uma Pedagogia democrática que partia das ansiedades, dos desejos, dos sonhos, das carências das classes populares” (FREIRE, 1992a, p. 36). Quando há o sectarismo de ideias, há “[...] a negação do outro, a negação do contrário, negação do diferente, negação do mundo e da vida. Quer dizer, ninguém pode continuar vivo se sectariza” (FREIRE, 1993, p. 13). Por isso, considero as ideias de Freire ainda atuais, pois podemos discordar dos outros, mas não rivalizarmos a ponto de não conseguir dialogar com o outro ser humano como eu.

Retomo um trecho de Freire (2006) que ilustra como ele foi aprendendo a lidar com os diferentes pontos de vistas, em um episódio que ocorreu no Serviço Social da Indústria (SESI), no qual ele estava discutindo com os pais sobre disciplina. Freire conta que recebeu uma lição clara e contundente de um jovem de uns 40 anos. Ele “[...] pediu a palavra e fez um discurso que jamais pude esquecer, que me acompanha vivo na memória do meu corpo por todo esse tempo e que exerceu sobre mim enorme influência” (FREIRE, 2006, p. 25). Trago um pequeno trecho da fala desse jovem rapaz no qual ele explicou o motivo pelo qual ele batia em seus filhos:

[...] uma coisa é chegar em casa, mesmo cansado, e encontrar as crianças tomadas banho, vestidinhas, limpas, bem comidas, sem fome, e a outra é encontrar os meninos sujos, com fome, gritando, fazendo barulho. E a gente tendo que acordar às quatro da manhã do outro dia pra começar tudo de novo, na dor, na tristeza, na falta de esperança. Se a gente bate nos filhos e até sai dos limites não é porque a gente não ame eles não. É porque a dureza da vida não deixa muito pra escolher. (FREIRE, 2006, p. 27).

A lição que Freire recebeu naquela noite o fez refletir sobre sua postura, a linguagem utilizada na ocasião com os trabalhadores que o afastava dos participantes da reunião, assim como a desatenção dele com a realidade dos ouvintes. Essas reflexões foram realizadas em parceria com sua esposa Elza, que sempre o acompanhava nessas reuniões. Nas palavras de Freire:

A contribuição de Elza foi enorme. Raramente ela não ia junto: só quando uma criança nossa adoecia, por exemplo. Como éramos jovens, chegávamos em casa a uma hora da manhã e no outro dia às sete ela estava no grupo sem problema. Quando ela me acompanhava, ficava calada, escutando tudo e depois dizia: hoje eu acho que você errou quando disse isso. (FREIRE, 1992a, p. 34).

Essas experiências e reflexões nortearam seus textos, assim como, a partir delas, Freire passou a se interessar pela linguagem, vocabulário e forma de falar dos pescadores, camponeses e outros trabalhadores, uma das fontes para construir o conceito de relação dialógica. Em uma das entrevistas, Freire (1992a) narra que passou um mês com pescadores anotando as frases, as palavras, as histórias que eles contavam. Esse foi um momento de aprendizado para ele.

Eu aprendi muito durante um mês de convivência com os pescadores. Houve uma coisa extraordinária. Antes eu falava para os pescadores, depois esse falar virou falar com os pescadores. Porque eu usava todas as metáforas que tinha aprendido na praia com eles. A comunicação se fazia facilmente e eu podia colocar para eles, como desafio, questões muito sérias. [...]. Eu me lembro de que quando eu ia falar sobre esses problemas, era entendido exatamente por que usava a linguagem. (FREIRE, 1992a, p. 34, grifos nossos).

Freire (1992a) mostra que a convivência com os pescadores lhe possibilitou a mudança na sua relação dialógica com eles, porque passou a falar com eles e não mais para eles. A partir dessas reflexões, Freire escreve sobre a relação dialógica na qual a expressão verbal e o sistema de signos linguísticos são percebidos pelos sujeitos. Se não houver um acordo em torno dos signos, não poderá haver compreensão entre os sujeitos, o que impossibilitará a comunicação. Nas palavras de Freire (2002, p. 70), “[...] exige que sujeitos interlocutores incidam sua ad-miração sobre o mesmo objeto; que o expressem através de signos linguísticos pertencentes ao universo comum a ambos, para que assim compreendam de maneira semelhante o objeto de comunicação”.

Assim, ao falar com o outro, cada pessoa envolvida na relação dialógica precisa expressar por meio de signos linguísticos comuns ao universo vocabular de todos os participantes, isso que nos mostrou Freire na sua vida e na sua obra (FREIRE, 2002, 2006). Posso perceber que a proposta de alfabetização, em que ele trouxe uma compreensão de alfabetização em uma dimensão histórico-social-linguística que não era percebida naquela época ainda (FREIRE, 1992a). Além da alfabetização, a questão da linguagem permaneceu nas reflexões de Freire, que não podia ser pensada, estudada e refletida fora da ideologia, como ele narra em uma das entrevistas, quando aborda a sintaxe do menino proletário que diz “a gente chegamos”. Para Freire,

[...] em primeiro lugar, preciso revelar concretamente, testemunhalmente, que respeito o “a gente chegamos”. Em segundo lugar, preciso revelar que “a gente chegamos” é tão bonito quanto a gente chegou. Não é possivelmente para os meus ouvidos, mas o é para os ouvidos do povo. Os ouvidos do povo ouvem outra coisa e não a minha fala. Em terceiro lugar, eu preciso, agora, sugerir ao menino operário que lute para aprender – tendo antes apreendido a função da linguagem – a sintaxe dominante, para melhor brigar contra o dominante. É isso que eu proponho. [...] proponho que o ensino da sintaxe dominante parta do reconhecimento da validade da sintaxe popular” (FREIRE, 1995b, p. 7).

Freire respeita a fala do menino proletário, sinaliza que devemos tê-la como ponto de partida, para ensinar a sintaxe dominante, para que o menino possa “brigar contra o dominante”. Nessa entrevista, Freire discutiu que foi mal interpretado por alguns de seus críticos, que não entenderam quando ele disse “parta do reconhecimento”. Isso não significa ficar só na sintaxe da classe operária. Freire chamou atenção para o verbo “partir”, que nos indica iniciar pelo conhecimento e a sintaxe do aluno. Era o ponto de largada para um processo de ensino e não o ponto final como alguns críticos consideravam a sua proposta. Freire começava com o reconhecimento do saber da classe proletária. Era fundamental na sua pedagogia, pois nenhum conteúdo era imposto aos educandos, mas era justamente o contrário. Ele defendia que “[...] o menino proletário, o menino camponês assumisse a legitimidade de sua linguagem, de seu discurso, contra o qual há toda uma barreira de classe”. Essa era a tarefa do(a) educador(a) para Freire (1995a, p. 7).

No encontro com o outro é que ocorre a conscientização. Como nos aponta Freire (1994, p. 15), “[...] nós conscientizamos juntos. [...] o processo de conscientização se dá na lucidez da leitura do mundo e na opção de luta para efetivar um mundo melhor, um mundo menos ruim. Então, eu não posso me arvorar em proprietário de uma consciência crítica que os outros não tenham”.

Para Freire, não foi fácil aprender com suas experiências e reflexões. Ele conta, em uma das entrevistas, que não aceitava tão facilmente as análises de Elza (sua esposa). Ele a retrucava, mesmo sabendo que suas críticas o ajudavam muito, como ele relata: “As reflexões que ela fazia numa reunião de um dia, me ajudavam a não errar nos outros. Obviamente eu não aceitava as observações passivamente. Às vezes, eu discordava. Às vezes ela dizia: você está discordando porque está sendo criticado. Eu dizia: não, não é isso!” (FREIRE, 1992a, p. 34).

Mais de uma vez Freire reconheceu a contribuição de Elza, como neste exemplo, ao conversar com ela depois de uma palestra com os operários:

  • - Pensei que havia sido tão claro – disse eu. – Parece que não me entenderam.

  • - Não terá sido você, Paulo, quem não os entendeu? – perguntou Elza, e continuou: - Creio que entenderam o fundamental de sua fala. O discurso do operário foi claro sobre isto. Eles entenderam você, mas precisavam de que você os entendesse. Esta é a questão. (FREIRE, 2006, p. 28).

Esse trecho da conversa demonstra como as reflexões cotidianas acerca das suas intervenções com os grupos, acrescida das críticas, problematizações e análises de Elza, contribuíram para escrever seus textos. Freire (2006, p. 28) reconhece que a “Pedagogia do oprimido falava da teoria embutida na prática daquela noite”, ao corroborar, na entrevista, com Carlos Torres: “[...] quanto mais eu me aprofundava no mundo do camponês chileno, quanto mais eu ouvia os camponeses falarem, mais clara ficava para mim a relação de opressor e oprimido. [...] que tinha que escrever o que ocorria comigo” (FREIRE, 1997c, p. 32). Essas duas afirmativas demonstram que não havia uma separação entre a sua vida e a sua obra, que seus textos foram frutos de suas vivências e reflexões sobre elas.

Outras duas características do Ser Mais são a inconclusão, que significa estar sendo, e a humildade de saber quem é, suas qualidades e defeitos. Nas palavras de Freire:

Se você me pergunta: Paulo, você se acha um professor? Eu diria: não! Ninguém nunca é. Nós estamos sendo... Daí a necessidade que temos, professores e professoras de nos indagarmos constantemente de como estamos sendo educadores, porque há sempre possibilidade de mudar de ser melhor. Isso demanda uma outra qualidade sine qua non para ser educador: a humildade, que não tem nada a ver com a possibilidade da humilhação. (FREIRE, 1997a, p. 11).

Freire coloca o inacabamento do ser humano relacionando-o à humildade, porque, para ele, nunca estamos prontos, é um fazer-se constante, construindo a História com os outros seres humanos, “[...] um tempo de possibilidades e não determinismo” (FREIRE, 1999, p. 58). Como somos seres inacabados, na perspectiva do educador, “[...] a gente só é [humilde] quando está sendo, e a gente está sendo na vida cotidiana” (FREIRE, 1994, p. 5). Para Freire, todos nós temos opções, não somos determinados por uma situação, como seres humanos construímos a História.

Ele levava muito a sério o direito e o dever de cada ser humano ter uma opção (FREIRE, 1996a). Como seres incompletos, precisamos nos conhecer, saber quem somos, isso significa ser humilde, uma das preocupações constantes de Freire, abordado por ele nas sete entrevistas (FREIRE, 1992a, 1992b, 1993, 1994, 1995b, 1997a, 1997d). Por exemplo, em uma delas, ele disse: “[...] se você não tiver uma boa ‘cachola’, você corre o risco de se perder” (FREIRE, 1997a, p. 12), quando, nessa entrevista, ele se referia à publicação do livro Pedagogia do Oprimido em vários idiomas e vários países. Para ele, o fato de ser reconhecido, ter sucesso não poderia influenciar na sua relação com os outros, porque sempre sabemos algo e desconhecemos algo. Por isso, a humildade é tão importante para Freire, porque só reconhecendo o que sabemos e o que desconhecemos é possível respeitar a curiosidade e a ignorância do educando na prática pedagógica. Ratificado por ele: “[...] uma coisa que continua em mim, como pessoa e como educador, quer pensando a prática educativa, quer fazendo a prática educativa, é um profundo respeito a figura do educando [...]” (FREIRE, 1995b, p. 5). Respeitar o educando não é concordar com tudo, como já foi mencionado anteriormente, o respeito para Freire, se relaciona a aprender com o diferente e “[...] poder lutar contra o antagônico” (FREIRE, 1992a, p. 31). Freire se preocupava em não cair na sectarização, ele lutava contra ele mesmo, para não se fechar no sectarismo.

Além da humildade, outra característica marcante do Ser Mais é a identidade cultural, explicitada por Freire:

[...] é exatamente o sol da inventividade humana. A gente inventa coisas, na transformação das coisas e o produto que a gente ganha é cultural. [...] cultura é, afinal de contas, a extensão inventiva do homem e da mulher. O ser humano dentro da história é um pouco o alongamento da cultura. E a cultura é um pouco também de elemento fabricador da história. (FREIRE, 1994, p. 15).

Na busca do Ser Mais, a identidade cultural não poderia ficar de fora, pois faz parte da dimensão individual e de classe dos educandos por estar ligada à possibilidade de reinvenção do mundo, por ser extensão inventiva do homem e da mulher como seres históricos. A cultura sempre foi preocupação de Freire, desde o SESI, no Movimento Cultura Popular na Prefeitura de Recife de Miguel Arraes. Na época, esse movimento foi liderado por Ana Paes Barreto – discípula de Ulisses Pernambuco. Nas palavras de Freire (1992a, p. 36), “[...] foi um prolongamento do que eu fizera no SESI e abriu uma larga possibilidade de aprendizado e de gestação de uma teoria pedagógica”.

A teoria pedagógica defendida por Freire era uma pedagogia progressista, na qual todo processo de ensino envolve a existência de sujeitos que se relacionam com um objeto do conhecimento em um contexto escolar. É um processo criador, em que o educando assumiria o papel de sujeito de seu processo de aprender. Nas palavras de Freire,

[...] não caberia ao professor alfabetizar e ao alfabetizando, alfabetizar-se. Mas, os dois trabalhando com o sentido de efetivação do objetivo daquele ensino que era ler e escrever. [...] o próprio programa do ensino, portanto, os conteúdos deste ensino deviam partir, deviam ser retirados da experiência cultural, da experiência local dos alfabetizandos. (FREIRE, 1994, p. 14).

Nessa entrevista, Freire retoma a questão da experiência cultural e local dos alfabetizandos que ele defendeu em seus textos. O envolvimento e a preocupação com a alfabetização nos anos de 1960 ocorriam por ser um problema concreto daquela época, que perdura ainda nos anos de 2020, no Brasil. Freire esclarece que ele buscava “[...] compreender a prática educativa, um de seus capítulos [da prática educativa] era a alfabetização” (FREIRE, 1994, p. 14). Se nos anos de 1960 o problema era a alfabetização, nos anos de 1997, Freire indicava que enfrentávamos o neoliberalismo tão influente nas políticas educativas daquela época como agora. Em suas palavras, percebe-se que a lógica neoliberal desconsidera o ser humano, passando a tratá-lo como objetos e não seres humanos. Para Freire,

[...] é necessário discutir sobre essa questão que chamei de conscientização com o papel de sujeitos da história na mesma medida em que somos ou nos percebemos como objetos da história, ou seja, luto para ser um sujeito, porque estou me percebendo como um objeto. E não há mais momento crucial no discurso neoliberal em que somos objetos [...]. Temos que lutar contra esse fatalismo. (FREIRE, 1996b, p. 29).

Mais uma vez, notamos a ênfase de Freire no conceito de Ser Mais – “luto para ser um sujeito” que constrói sua história e “luta contra o fatalismo”. Se nos anos de 1960, o plano era lutar contra a opressão da ditadura militar, Freire continuou sua luta contra o neoliberalismo que tenta nos posicionar como objetos, assim como ele denunciava na proposta de educação bancária. Não há fatalismos, porque somos nós que criamos a história; ao criá-la, nos tornamos na história. Nessa afirmativa, Freire sustenta o papel da subjetividade na “feitura da história” (FREIRE, 1992a, 1996a), uma das críticas que realizava aos marxistas mecanicistas que, em sua perspectiva, negaram a importância da individualidade para ressaltar o social.

Outro ponto recorrente nas entrevistas (1992-1997) em relação à característica do Ser Mais é o ser político, que se distingue da ideia de tomar partido por a ou b, não é nessa perspectiva a defesa de Freire. Se tomamos partido de a ou b, estamos sendo sectários, não teremos a visão do todo, mas de uma parte (de um partido). Ser político significa que não somos neutros na educação, todos optamos em defesa ou contra algum projeto pedagógico que está a favor ou contra uma classe social. Freire (1996b, p. 25) aponta que “[...] um dos grandes problemas que temos hoje é como nos comunicarmos com os maiores, divididos em minorias e que não percebem a maioria, como a maioria se sente, como coexiste, como desafiar”. Os maiores aos quais Freire se refere são os detentores das fortunas no mundo que estão em pequenos grupos, mas são maiores pelo poder que exercem na maioria do povo. Esse alerta de Freire ainda é pertinente nos anos de 2020, porque a educação ainda sofre com imposições neoliberalistas que não percebem o que a maioria da população sente, deseja e precisa. Desconsideram o ser humano. Por isso, ainda é válida a defesa da ontologia – qualidade de ser do ser humano. Nas suas palavras,

[...] quer dizer, eu sou responsável como educador com relação a esse núcleo básico que nos marca, que nos caracteriza – e que se constitui histórica e socialmente e não a priori da história – que é a vocação do ser mais. A minha responsabilidade é com isso. Por isso, falo em ontologia. Eu sou responsável na minha prática educativa no sentido de ajudar-me e ajudar os outros a ser mais. (FREIRE, 1993, p. 11).

Freire destaca que sua responsabilidade enquanto educador é “ajudar-me e ajudar os outros a ser mais”, isso que norteou sua proposta educativa no SESI, no Movimento de Cultura Popular no Recife, na Secretário de Educação de São Paulo com outros educadores, e em tantos outros lugares.

O foco de Freire em Ser Mais é inseparável do ser aluno de uma escola pública, popular, aberta, com características democráticas, como ele menciona:

Sabíamos, por exemplo que defendíamos uma escola que sendo pública, deveria tornar-se uma escola popular. [...] a gente queria que essa escola tivesse a cara brasileira, portanto uma escola aberta, feliz, crítica que provocasse a criatividade dos meninos e não o medo. Para isso, precisávamos de uma administração assim também. Não é possível pensar no sonho democrático da escola tendo uma administração autoritária. (FREIRE, 1993, p. 11).

Notamos que a escola pública seria um local feliz, provocador da criatividade e da criticidade, do sonho e não do medo. Esses são aspectos que nos constituem enquanto seres humanos. Sem desconsiderar “[...] a seriedade, o rigor e a transformação do mundo, para que os homens e mulheres possam amar com menos cobrança” (FREIRE, 1997a, p. 15).

Por último, abordo o sonho que é muito importante no Ser Mais, por constituir como característica dos seres humanos, corroborado na afirmativa: “[...] o gosto de vir a ser faz parte da ontologia do ser. Ninguém pode decretar que os homens e mulheres deixem de sonhar. Isso é negócio de ditador” (FREIRE, 1993, p. 11).

Em outra entrevista, Freire mostra-se satisfeito consigo mesmo, porque não traiu seus sonhos:

Com 22 anos não era possível ter essa posição que tenho aos 70 anos, aos 22 não sabia o que sei hoje, porque não parei de estudar, não parei de entender, de procurar coisas. Então, não me arrependo. Às vezes, aceito a paz, reconheço que poderia ter sido melhor, mas ao mesmo tempo, descubro que não era possível porque sou histórico, como todas as pessoas. Estou limitado pela história, limitado pelas culturas, por tudo. Então, ainda estou feliz, talvez não me arrependa, porque nunca traí meus sonhos. (FREIRE, 1992b, p. 44).

Nesse trecho, Freire enfatiza a importância do momento histórico e das experiências vividas, ao enfatizar que as possibilidades que tinha aos 22 anos eram diferentes das que tinha aos 70 anos por tudo que aprendeu e viveu. Ele sabia quem era aos 22 anos, assim como aos 70, características da humildade (estar sendo constantemente). Esse depoimento ratifica a coerência de sua teoria, porque indica o inacabamento do ser (“sou histórico”), os limites de todos os seres humanos “históricos e culturais”, por isso diz que não se arrepende por não trair seus sonhos – isto é – Ser Mais. Outro ponto que demonstra que Freire não traiu seu sonho, porque denunciou a sociedade exploradora e injusta, propondo/defendendo a educação libertadora que denuncia e anuncia uma sociedade mais democrática e inclusiva. Para ele, a tarefa dos seres humanos “[...] é refazer o mundo reconstruir o mundo, no sentido de fazê-lo menos feio, menos injusto, menos maldoso, um mundo mais humano [...]” (FREIRE, 1994, p. 14).

Considerações finais

Finalizo este texto pontuando que a questão humanizadora presente na teoria e na vida de Freire ainda é uma demanda nos nossos dias. As políticas de educação – por exemplo, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – não têm como cerne a identidade cultural, a diferença dos alunos; a consciência de si e do mundo não é essencial, assim como desconsidera o processo de aprendizagem dos alunos (estar sendo), centrando-se nos resultados e nos desempenhos.

Destaco, também, algumas características do Ser Mais desenvolvidas anteriormente, mostrando o que permaneceu, o que mudou e os não ditos em relação a esse conceito, tendo como referência as entrevistas de 1992 a 1997. Esse é um dos limites do estudo, não abarca todas as características do conceito Ser Mais desenvolvidas por Freire, mas aquelas mais recorrentes abordadas nesse período.

Nas entrevistas analisadas, noto que permaneceram, nos seus textos e na sua vida, a preocupação com a esperança, o respeito pelo outro, a subjetividade, a não neutralidade dos atos e da educação, a transformação do mundo e o sonho. Freire fez autocrítica ao seu trabalho, durante umas das entrevistas (FREIRE, 1992a), que, segundo ele, exagerou na feitura da História enquanto prática pedagógica, mas que pôde retificar na Pedagogia do Oprimido. Outra mudança de Freire ao longo da sua obra foi utilizar os termos “homem e mulher” em seus textos e entrevistas, por ter sido criticado de machista nos primeiros livros, o da Educação como prática da liberdade e o da Pedagogia do Oprimido. Ele reconheceu a importância das mulheres em criticá-lo e enfatizou que tais críticas contribuíram para que pudesse reparar o quanto a linguagem é ideológica. A partir disso, passou a utilizar homem e mulher em todos os textos, entrevistas e depoimentos.

Em relação ao não dito, na entrevista em 1992(a), Freire diz que nunca havia mencionado o desejo enquanto fenômeno vital do ser humano, aspecto fisiológico, diferenciando-o do sentido de querer realizar algo, uma aspiração de escritor e de vida. Outra característica do Ser Mais não abordada nas entrevistas analisadas por Freire foi o medo. Quais foram os motivos de deixá-lo de fora nos últimos anos de sua vida? Deixou de mencionar somente nas entrevistas? Essas indagações se constituirão novas pesquisas, novos textos.

Concordamos com Freire (1996b) que a questão humanizadora da educação nunca perde seu valor e importância, embora, de tempos em tempos, ela perca força como temos percebido ultimamente com as políticas educativas, de saúde e de economia, em que o ter é enaltecido pelo desempenho, eficiência, produzir mais – em detrimento do ser. Mesmo assim, a humanização sempre ressurge, porque é a vocação ontológica dos seres humanos.

Enfim, notamos, em sua obra, uma unidade entre a teorização e a vida de Freire marcada pela defesa de Ser Mais – sempre com a possibilidade de melhorar-se, respeitando o que é específico de cada ser que responde e procura maneiras e caminhos diferentes.

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Recebido: 07 de Agosto de 2020; Revisado: 01 de Março de 2021; Aceito: 05 de Março de 2021; Publicado: 31 de Março de 2021

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