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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16596.048 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Educação, Utopia e Paulo Freire

Education, Utopia and Paulo Freire

Educación, Utopía y Paulo Freire

Izadora Maleski Serrano Alves* 
http://orcid.org/0000-0003-0052-3971

Sandra Regina Ferreira de Oliveira** 
http://orcid.org/0000-0002-9777-4461

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Marília). Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Diretora de Escola Municipal na Rede de Ensino de Marília. E-mail: <izadora.msa@gmail.com>.

**Professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista Produtividade em Pesquisa – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Nível 2. E-mail: <sandraoliveira.uel@gmail.com>.


Resumo:

A abordagem Educação, Utopia e Paulo Freire deriva de uma pesquisa de Mestrado intitulada Educação, utopia e sonho: contrapontos da Pedagogia Empreendedora. Nela, além das abordagens conceitual e política, realizou-se uma investigação no material didático da Pedagogia Empreendedora de Fernando Dolabela, que foi implementado na Rede Municipal de Ensino de Londrina, Paraná, no ano de 2011. A partir da discussão acerca do empreendedorismo na Educação é que Paulo Freire passou a compor o escopo da discussão e a promover reflexões de tais conceitos. A intenção deste artigo, portanto, é relacionar o período de fala do autor com a atualidade e aproximá-los do debate da educação escolar para, posteriormente, assumir, por meio do trabalho do professor, o compromisso de libertação dos indivíduos alienados. Essa é a Utopia defendida pelo autor, que se constrói pelo compromisso da escola e da sociedade.

Palavras-chave: Educação; Utopia; Paulo Freire

Abstract:

The Education, Utopia and Paulo Freire approach derives from a Master’s research entitled Education, utopia and dream: counterpoints about the Entrepreneurial Pedagogy. In it, in addition to the conceptual and political approaches, an investigation was carried out on the educational material of Fernando Dolabela’s Entrepreneurial Pedagogy, which was implemented in the Municipal Education Network of Londrina, Paraná, Brazil, in 2011. From the discussion about entrepreneurship in Education, Paulo Freire started to compose the scope of the discussion and to promote reflections on such concepts. The intention of this article, therefore, is to relate the author’s speech period to the present and bring them closer to the debate on school education to later assume, through the teacher’s work, the commitment to liberate alienated individuals. This is the Utopia defended by the author, which is built by the commitment of the school and society.

Keywords: Education; Utopia; Paulo Freire

Resumen:

El enfoque Educación, Utopía y Paulo Freire deriva de una investigación de Maestría intitulada “Educación, utopía y sueño: contrapuntos de la Pedagogía Emprendedora”. En él, además de los enfoques conceptual y político, se llevó a cabo una investigación en el material didáctico de la Pedagogía Emprendedora de Fernando Dolabela, que fue implementado en la Red Municipal de Educación de Londrina, Paraná, Brasil, en el año 2011. A partir de la discusión sobre emprendimiento en la Educación es que Paulo Freire pasó a componer el alcance de la discusión y a promover reflexiones de tales conceptos. La intención de este artículo, por lo tanto, es relacionar el período de habla del autor con la actualidad y acercarlos al debate de la educación escolar para, posteriormente asumir, por medio del trabajo del profesor, el compromiso de liberación de los individuos alienados. Esta es la Utopía defendida por el autor que se construye por el compromiso de la escuela y la sociedad.

Palabras clave: Educación; Utopía; Paulo Freire

O caminho investigativo

Este texto é fruto de uma dissertação de Mestrado, defendida no ano de 2014, no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), intitulada Educação, Utopia e Sonho: contrapontos da Pedagogia Empreendedora, de Alves (2014). As concepções abordadas no período em que a dissertação foi escrita se mostram ainda atuais, tendo em vista os elementos conjunturais e estruturais que compõem o cenário nacional.

O Brasil vem sofrendo impactos significativos nos seus âmbitos político, econômico, social e cultural, visto que, após as eleições de 2018, posicionamentos localizados à extrema direita do espectro político tornaram-se constantes no discurso da população: ideias conservadoras, neoliberais, com forte fundamentalismo religioso e desprovidas de caráter científico e histórico. Essas ideias são defendidas pelo Capitão Jair Messias Bolsonaro, presidente da República e, atualmente, sem partido.

Desde a sua campanha, o atual presidente deixou explícita sua opinião quanto à educação brasileira, a qual, segundo ele, segue uma ideologia de “esquerda”. Ademais, ele fez acusações aos professores que, influenciados pela teoria de Paulo Freire – a quem ele chama de “energúmeno” – estariam doutrinando os alunos por todo o país1. Além disso, o governo vem firmando uma frente de combate à ciência e desqualificando o trabalho das universidades públicas. Segundo Pereira (2019):

As universidades de modo geral, em específico as federais, têm sofrido com o forte impacto das políticas já executadas no início do governo, como por exemplo o contingenciamento de recursos de custeio e investimento. Além disso, já o constante reforço de uma narrativa recorrente em discursos do presidente e seus ministros da Educação que colocam as instituições universitárias no conjunto das principais antagonistas do governo. (PEREIRA, 2019, p. 335).

Ocorre também, paralelamente, um movimento denominado “Escola Sem Partido”, que está se fortalecendo no Brasil e está presente nos debates em todas as esferas da gestão pública. Esse movimento é liderado por um “[...] grupo conservador, racista, homofóbico e elitista que escolheu Paulo Freire como inimigo principal para seus ataques, pois [...] o desqualifica como educador do mundo, uma vez que considera Paulo Freire marxista, superficial, equivocado e comprometido com ideologias sinistras” (ARELARO; CAETANO, 2020, p. 6). De acordo com essas autoras:

Esse grupo pretende, inclusive com mudanças na legislação maior da educação – a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) –, introduzir seus princípios reacionários e conservadores. Há, inclusive, Projeto de Lei, no momento arquivado, mas sistematicamente reativado, que propõe: Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios: I- neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (ARELARO; CAETANO, 2020, p. 6).

Por que Paulo Freire tornou-se alvo de ataques? A resposta a essa indagação consiste em considerar a postura dele como um revolucionário em relação aos padrões da educação: atacou com veemência a política neoliberal, promoveu a educação aos menos validos e fez de seu método a marca de sua atuação (FREIRE, 2013a, 2013b, 2013c).

O objetivo da pesquisa foi analisar o material didático utilizado pela proposta de empreendedorismo que a Rede Municipal de Ensino de Londrina passou a adotar em seu currículo. Durante os estudos realizados nos textos de Fernando Dolabela (2003) e no material que foi ofertado aos docentes para a aplicabilidade da proposta com os alunos dos anos iniciais do Ensino Fundamental do município, surgiu a necessidade de trazer os ideais de Paulo Freire (1921-1997) para compor essa reflexão mediante a seguinte problemática: Quais os pressupostos teóricos e metodológicos que sustentam a Pedagogia Empreendedora como uma proposta pedagógica?

As obras de Paulo Freire são amplamente conhecidas no âmbito da educação de adultos e da educação popular. No entanto, Freire também expõe em seus estudos as suas preocupações com as infâncias. Franciele C. Peloso e Ercília M. A. T. de Paula (2021) destacam essas aproximações entre os estudos freirianos e a educação das infâncias e mapeiam na obra de Freire passagens nas quais sustentam a afirmação de que é possível identificar “[...] as preocupações de Paulo Freire com a educação das crianças para que se constituam como protagonistas da história, pessoas curiosas, capazes de autoria, de autonomia, sujeitos da ação educativa, dentre outros aspectos” (PELOSO; PAULA, 2021, p. 4). Haveria relação entre as preocupações de Freire para com a educação das infâncias e o postulado na proposta da Pedagogia Empreendedora?

De forma sucinta e para exemplificar essa abordagem, a Pedagogia Empreendedora, adotada pelo município de Londrina,

[...] considera que desenvolver o espírito empreendedor deve ser atribuição dos professores desde os primeiros anos da escolarização das crianças, pois, diante da realidade social e cultural que os alunos vivem, sonhar e buscar a realização de seu sonho é indispensável à constituição dos alunos como indivíduos ativos e vivos numa sociedade competitiva. (ALVES, 2014, p. 17).

Apesar de ser uma aposta institucional para as unidades escolares da cidade, os estudos realizados, atrelados à experiência na sala de aula, não permitiram o fácil convencimento acerca dessa incumbência atribuída ao professor, pois se considera “[...] que o sonho e o ato de sonhar, principais pressupostos desta proposta, se configuram como algo muito aquém do que os professores podem e devem oferecer aos alunos” (ALVES, 2014, p. 18).

A pesquisa de Mestrado em pauta neste artigo, após abordagens teóricas e conceituais, realizou-se no caderno de atividades “[...] destinado à faixa etária dos nove anos, atual quinto ano do ensino fundamental” (ALVES, 2014, p. 22).

O material é de autoria de Cordélia Rodrigues, membro da equipe de Fernando Dolabela e responsável pela elaboração do material para a faixa etária dos nove anos. Neste estudo, serão explicitadas as características da proposta metodológica da Pedagogia Empreendedora e os elementos de suporte pelos quais os professores devem se respaldar para desenvolver as atividades. (ALVES, 2014, p. 22).

Esse material, com data de publicação de 20032, “[...] é composto por atividades previstas para trinta e seis aulas a serem distribuídas no cronograma do professor para serem trabalhadas uma vez por semana” (ALVES, 2014, p. 92). As atividades são apresentadas desde as mais simples às mais complexas, mas, de acordo com orientações previstas no caderno, elas não precisam ser ofertadas na sequência. “A proposta é articular tais atividades aos conteúdos que o professor necessita desenvolver no seu dia a dia com seus alunos” (ALVES, 2014, p. 98). Assim sendo, foram selecionadas três atividades3: a primeira, logo na abertura do material; a 18ª, com dificuldade mediana; e a 27ª, apesar de não estar exatamente no final do caderno, foi escolhida por propiciar uma temática interessante para compor a discussão. Uma breve descrição da Atividade 27 é a seguinte:

O nome da atividade é “Modelos” e a proposta para sua execução consiste em “propiciar a explicitação de valores pessoais dos alunos através da identificação com modelos”. Esses “modelos” são pessoas famosas que as crianças se identificam e, durante a execução da atividade, elas deverão estabelecer relações entre o famoso em questão com sua vida. (ALVES, 2014, p. 112).

Nesse momento da análise é que Paulo Freire foi fundamental para promover a reflexão acerca do objetivo, perante a educação, do trabalho docente e da escola. O sonho, elemento de suporte do trabalho com a Pedagogia Empreendedora, sob a análise do autor, faz-se instrumento reforçador de desigualdades, de subjugações dos indivíduos às demandas externas, leia-se sociais, culturais e econômicas; para tanto, coloca a escola a serviço delas. Desse modo, como elemento de interlocução e de enfrentamento de tal proposta, o conceito de Utopia de Freire foi trazido para compor esta análise, na exata posição de contraponto, pois a reflexão do universo da educação escolar precisa ser mediada por diversas questões que envolvem o papel da escola, dos cursos de formação, dos saberes curriculares e de uma infinidade de temáticas que compõem a prática docente. O conceito de Utopia foi, portanto, elemento balizador desse momento da investigação.

A Utopia em Paulo Freire: uma análise política

O aprofundamento desta análise permeou toda a discussão acerca dos ideais do autor, de modo especial, de um conceito da obra dele: a Utopia. Dessa maneira, iniciar uma discussão sobre Utopia à luz de Freire, algo tão particular, não seria possível sem que, antes de tudo, façam-se algumas considerações sobre a sua concepção de educação, sobretudo sobre seus pressupostos para essa ciência e sobre o papel de cada sujeito ao longo dessa construção.

O que Paulo Freire define por “Utopia” não está presente apenas nessa ou naquela obra do autor, visto que permeia a definição em suas reflexões. Assim, a tarefa desta pesquisa foi, entre outros pontos a discutir, identificar os elementos que o autor destina a esse conceito e atrelá-los à concepção de educação escolar, pois a escola é o lugar onde pulsa o motivo da pesquisa.

O que se pretende nesta discussão é compreender o sentido que Freire dá ao ato de sonhar, tendo como escopo conceitual a concepção de sujeito/indivíduo presente nas instituições escolares. O ponto de partida, então, foi compreender o ser humano como um sujeito constituído a partir das relações que ele estabelece. As instituições escolares, por sua vez, são produto da interação delas com o mundo a sua volta e com os demais seres humanos que o compõem.

No mais, o sujeito configura-se como tal mediante a uma complexa rede de relações que demandam dele muitas habilidades para permanecer nessa situação, isto é, como sujeito. Para Paulo Freire, “[...] formar um sujeito para viver neste mundo vai além do treino ou do condicionamento proposto pelo neoliberalismo” (ALVES, 2014, p. 104). Esse aspecto é necessário para compreender a Utopia como elemento de transformação do sujeito e do sonho empreendedor, apresentados anteriormente. Nesse ponto, a contribuição de Freire é incontestável, visto que “[...] o ato de sonhar na Pedagogia Empreendedora não se assemelha ao conceito de utopia de Freire” (ALVES, 2014, p. 105).

Como se define “utopia” em Paulo Freire? É fruto do engajamento, do compromisso dos sujeitos com a coletividade, da construção de uma sociedade livre, mais justa e na qual todos os seres humanos possam viver em sua inteireza. O embate de Paulo Freire apresentado neste texto é o de rechaçar os esforços do sujeito e da escola na busca por resultados pessoais que atendam, exclusivamente, ao mercado capitalista e às demandas dele. Para Alves (2014):

A busca do sonho individual não pode ser o foco do indivíduo, segundo o autor. Utopia para Freire é ato de compromisso e responsabilidade com o outro e com a transformação da coletividade. Na escola, na perspectiva de Freire (2013a) 4, as questões individuais de cada um precisam ser colocadas como elemento de reflexão do grupo. Aos educadores, o autor ressalta que sua prática deve ser pautada na eticidade e permeada de intencionalidade e compromisso com a formação dos sujeitos menos favorecidos. Contudo, esta ética não pode ser considerada quando o indivíduo se curva diante do mercado e dos interesses do lucro. (ALVES, 2014, p. 105).

A Utopia é um elemento presente em toda a obra de Paulo Freire, como bem se mencionou. O autor a defende como premissa de transformação do sujeito da condição de mero indivíduo. Para que essa compreensão seja possível, foi elencada para este tópico uma obra basilar da bibliografia de Paulo Freire: a Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (FREIRE, 2013b). Para dar suporte a essa discussão, foram selecionados, também, os textos de Gadotti (1996), Freire (2013c) e Cardarello (2005), autores que propiciam reflexões acerca da teoria de Paulo Freire ou mesmo aproximações com seus ideais. São textos ricos em elementos que fazem da filosofia de Freire importante fonte de investigação, de modo especial para os educadores que fazem de sua prática uma oportunidade de reflexão sobre a educação escolar.

É importante ressaltar que o recorte investigativo proposto nesta pesquisa faz com que se discuta o conceito de Utopia em Paulo Freire, de modo a colocar o foco na questão da educação escolar, ou seja, nas práticas de educadores e de educandos em seu fazer diário. Tendo em vista a leitura que se faz do trabalho docente na atualidade, a reflexão sobre esses elementos é indispensável.

O livro Pedagogia da autonomia: saberes necessários às práticas educativas (FREIRE, 2013b) apresenta muitos elementos que devem ser considerados no entendimento das questões discutidas pelo autor quanto ao fazer docente em sua plenitude, sobretudo no momento em que os docentes passam a ser alvo dos ideais fascistas que emanam da sociedade. Não se pode deixar de considerar, nesse aspecto, a defesa do Governo, por meio do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, representado por Damares Alves, sobre a implantação da Escolarização Doméstica (homeschooling)5. “A opção pela palavra escolarização expõe a tentativa de a família substituir, no espaço doméstico, os processos formativos complexos que acontecem nas escolas por meio do ensino” (PENNA, 2019, p. 11). Para o autor:

Os grupos que defendem a escolarização doméstica o fazem com base em sua percepção dos perigos das escolas públicas: baixo desempenho acadêmico, segurança física e descontentamento com os valores desenvolvidos. Não se trata aqui de negar os problemas da escola pública, mas identificar como a possibilidade do êxodo deste espaço pode vir a prejudicá-lo enquanto uma instituição democrática que pode promover o bem comum. A escola desempenha tanto finalidades privadas como públicas: a escolarização ajuda os indivíduos a terem acesso a melhores empregos e garante mão de obra qualificada para as empresas e indústrias, ao mesmo tempo que tenta garantir a adesão a valores democráticos que favorecem a participação dos cidadãos na vida pública. Toda sociedade se beneficia da expansão da rede pública de escolas, no entanto alguns grupos tendem a se preocupar apenas com as finalidades privadas da escolarização. É exatamente esse o movimento que os defensores da escolarização doméstica fazem, focando apenas nas suas finalidades privadas para o ensino, sejam elas quais forem. (PENNA, 2019, p. 15).

No paradoxo dessa proposta dá-se a forma como Paulo Freire trata a Utopia. Ela está imersa na escola e no trabalho do professor como questão indispensável ao alcance do sonho, que transcende qualquer objeto ou desejo pontual. Para Freire (2013), o sonho é uma construção coletiva, baseada na liberdade, no embate político e na responsabilidade do sujeito diante de si e da sociedade em que está inserido.

Chega-se a um ponto importante para retomar-se a ideia da Pedagogia Empreendedora (DOLABELA, 2003), no intuito de tecer-se o contraponto das concepções. Quando Freire defende o engajamento, a luta pelos direitos coletivos e a atuação política dos sujeitos na transformação da realidade, a proposta do empreendedorismo, segundo Dolabela (2003), faz a reflexão no processo inverso. O autor reitera que:

A atividade do empreendedor não se restringe à interação técnica com seu objeto de trabalho, mas envolve relações multiformes com a realidade. Por isso, o conhecimento que deve adquirir não pode ser limitado apenas a conteúdos científicos ou técnicos. O saber útil ao empreendedor diz respeito ao grau de congruência entre seu próprio eu e a realidade individualmente construída. (DOLABELA, 2003, p. 29).

Nessa reverberação dos conceitos é que se intenta elucidar o conceito de Utopia na obra Pedagogia da autonomia: saberes necessários às práticas educativas (FREIRE, 2013b), pois é necessário esclarecer o alicerce político ao qual ele conduz o seu pensamento. O autor faz, na obra mencionada, críticas severas ao neoliberalismo e aos seus pressupostos, de modo mais incisivo aos que envolvem a escola e as práticas educativas.

O final da vida de Freire, últimos anos da década de 1990, foram fortemente marcados pelo neoliberalismo e seus pressupostos. Contudo, com a intenção de contextualizar o embate travado pelo autor quanto a essa questão, faz-se relevante levantar alguns aspectos. Pablo Gentili (1996) discorre acerca da doutrina neoliberal e da maneira como suas acepções passaram a interferir na educação. Para o autor:

Por um lado, trata-se de uma alternativa de poder extremamente vigorosa constituída por uma série de estratégias políticas, econômicas e jurídicas orientadas para encontrar uma saída dominante para a crise capitalista que se inicia ao final dos anos 60 e que se manifesta claramente já nos anos 70. (GENTILI, 1996, p. 1).

Originária da instabilidade do capitalismo por conta dos movimentos sindicais e trabalhistas, a doutrina neoliberal trazia para o Estado a necessidade de um discurso carregado de uma retórica, sobremaneira convincente, que pudesse minimizar as possíveis consequências aos cenários político e econômico do país. Aqui, há mais um ponto em comum entre o período em que Paulo Freire tecia a crítica ao cenário político e ao atual. Segundo Rosário (2020),

[...] há uma clara convergência política, entre o ultra neoliberalismo, enquanto expressão dos interesses do capital financeiro e a atual ascensão da extrema-direita e neofascismo, pois as reformas agressivas e excludentes daquele acabam por colidir com o Estado de direito e com a democracia liberal, e a demandar um Estado de Exceção. As principais plataformas ultraliberais do governo Bolsonaro levadas adiante até o momento foram a reforma previdenciária e a precarização da educação pública, especialmente do ensino superior, liderada por seu ministro da educação Abraham Weintraub6. (ROSÁRIO, 2020, p. 8).

Dessa forma e retomando Gentili (1996, p. 10), “[...] os governos neoliberais não só transformaram materialmente a realidade econômica, política, jurídica e social, como também conseguem que esta transformação seja aceita como única saída possível (ainda que, às vezes, dolorosa) para a crise”.

A proposta desses governos, incluindo o atual, seria afastar o Estado do comando político e econômico (Estado Mínimo), com incentivo ao livre mercado e colocando sob a responsabilidade da sociedade a solução para os problemas estruturais das nações. Gentili (1996) adverte – quanto à premissa do Estado Mínimo – sobre a construção do “novo senso comum”, no sentido de garantir um novo imaginário social acerca das condições verdadeiras enfrentadas pelo Estado. Nesse sentido, sua influência nas esferas política e social é nociva, de acordo com a retórica apontada pelo autor, e o discurso é pela possibilidade de livre concorrência e de êxito em um cenário econômico de crise.

Se o homem comum não afirma na sua vida cotidiana o valor da competição, se a sociedade não aceita as enormes possibilidades modernizadoras que o mercado oferece quando passa a atuar sem a prejudicial interferência do Estado, as consequências são nefastas para a própria democracia: os piores serão os primeiros, o totalitarismo aumentará e a planificação centralizada tomará conta da vida das pessoas, impedindo-lhes de expressar seus desejos individuais, sua vocação de melhora contínua, sua liberdade de escolher. (GENTILI, 1996, p. 10).

Com essas ideias, a doutrina neoliberal insere-se na escola no intuito de direcionar as práticas educativas e de “moldar” os indivíduos aos interesses do mercado. Nessa perspectiva, Paulo Freire aponta sua crítica a essa doutrina política, pois, avesso a essa premissa, trava um imenso embate acerca dos preceitos neoliberais e de sua influência perniciosa nos cenários político, social e, principalmente, educacional.

A responsabilidade da escola e dos demais espaços formadores transcende a necessidade de competição ou mesmo de adequação ao mercado. Para Freire, formar um sujeito para viver neste mundo vai além do treino ou do condicionamento proposto pelo neoliberalismo. “Daí a crítica permanente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e sua recusa inflexível ao sonho e à utopia” (FREIRE, 2013b, p. 16).

Colocar a escola e o direito de Utopia a serviço das mazelas sociais, para o autor, é uma afronta à ética e ao comprometimento das instituições educativas com a vida dos que ele denomina “condenados da Terra” (FREIRE, 2013b, p. 16). É nesse sentido que a Utopia em Paulo Freire (2013b, p. 17) é construída, a partir da parcialidade e da “[...] responsabilidade ética no exercício de nossa tarefa docente”. A prática educativa, de professores e de professoras, deve ser pautada na eticidade e permeada de intencionalidade e de compromisso com a formação dos sujeitos menos favorecidos. Contudo, essa ética não pode ser considerada quando o indivíduo se curva diante do mercado e dos interesses do lucro.

Dando sequência à reflexão, a liberdade como conceito precisa ser refletida e, para sua compreensão, outra indagação é válida: O que é ser livre para Freire? Seria, em uma análise preliminar, a capacidade de despir-se de valores enraizados na existência de cada um, sejam estipulados social ou politicamente, no sentido de, a partir desse abandono, ser capaz de adquirir outros valores, sem que se perca o sentido de quem se é. Esse é um exercício importante do sujeito, em uma espécie de diálogo pessoal, pois reconhecer-se em sua condição é o ponto de partida para a transformação.

Entretanto, para Freire, a transformação ocorre de maneira ativa, crítica e, na educação, isso se denomina práxis, ou seja, a capacidade de reflexão sobre a ação. Conforme afirma Gadotti (1996, p. 4): “Paulo Freire não pensa pensamentos. Pensa a realidade e a ação sobre ela. Trabalha teoricamente a partir dela. É metodologicamente um pensamento sempre atual e vem ganhando mais força nos últimos anos pela sua compreensão da política que nunca foi orientada por qualquer cartilha”.

Essa constatação de Gadotti faz referência à dimensão libertadora da teoria de Freire, porém, para tanto, faz-se imprescindível reconhecer as forças que fazem o sujeito sucumbir, sejam elas em contraposição à classe dominante pela desigualdade social, sejam por modelos burocráticos e políticos. Ademais, ser livre é ser capaz de libertar-se de padrões, de normas que impedem o livre acesso do sujeito pelos espaços por ele determinados. Em Freire, de acordo com Gadotti (1996, p. 4), essa liberdade é tão emblemática que, por meio “[...] dele, a poesia conseguiu visto permanente para transitar os textos científicos”.

Na teoria e na prática, Paulo Freire tem uma visceral incompatibilidade com esquemas, principalmente burocráticos. Tanto sua forma de agir quanto de se expressar refletem uma certa rebeldia em relação a paradigmas rígidos. Seu comportamento não se submete a modelos burocráticos e políticos. Sua linguagem não segue os padrões hegemônicos da academia. Para a expressão linguística que abusa do pedantismo e da erudição com a intenção de ser reconhecida cientificamente, Paulo Freire não faz concessão. (GADOTTI, 1996, p. 4).

Ao levar-se em conta esse ideário, Paulo Freire é considerado um educador voltado à educação popular. Ela, para contemplar seus pressupostos, deve ser, indistintamente, uma prática baseada no diálogo. Para Freire (2013b, p. 24), “[...] a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência”. Esse é o caminho para buscar a essência do conhecimento que liberta e emancipa. É o que faz o sujeito refletir, reconsiderar posturas e rever suas possibilidades de acordo com a sua realidade, ou seja, a sua práxis educativa.

Para o autor, ao discutir-se, é preciso compreender que “[...] ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado” (FREIRE, 2013b, p. 25). Segundo ele, a ação docente esvazia-se quando quem ensina e quem aprende são colocados na condição de objeto, um diante do outro.

É possível afirmar que a Utopia pode se traduzir também no desejo de formação, de libertação. A formação prevê o que o autor denomina de “curiosidade epistemológica” – “[...] a curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta, faz parte integrante do fenômeno vital” (FREIRE, 2013b, p. 33). Assim, é impossível dissociar essa atitude da presença de um educador diante do conhecimento do qual ele é o interlocutor, na antítese da escolarização doméstica proposta pelo atual Governo. Para Freire (2013c, p. 9), o conhecimento “[...] exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade”.

O professor, em seu fazer diário, é o articulador que dá início ao processo de transformação coletiva por meio do conhecimento científico, aquele que emancipa e liberta. Por meio de suas inferências, o indivíduo começa a reconhecer os meios para a construção de uma nova realidade, diferente daquela imposta pelo sistema dominante. Autonomia, respeito e liberdade são conquistas que derivam do trabalho efetivo do educador, quem, portanto, deve ser profundo conhecedor daquilo que faz. “Conhecer, na dimensão humana, que aqui nos interessa, qualquer que seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito, transformado em objeto, recebe, dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõe” (FREIRE, 2013c, p. 28). Isso porque, para Freire (2013c):

Conhecer, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica invenção e reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. (FREIRE. 2013c, p. 29)

É com esse olhar que se traduz a atuação crítica dos professores diante daquilo que desenvolvem com seu grupo de educandos. Contudo, não se trata da crítica pela crítica, conforme o autor convoca, mas da crítica como fruto da reflexão e da análise da realidade, com a finalidade de transformá-la por meio da libertação dos oprimidos. Esse é um aspecto muito relevante da obra de Paulo Freire, escopo conceitual para a definição de Utopia. Para fins da educação, Freire não define a realidade apenas como um mero observador, de modo a encontrar respostas para suas questões acerca do que vê ou vive. “Ele busca, nas ciências (sociais e naturais), elementos para, compreendendo mais cientificamente a realidade, poder intervir de forma mais eficaz nela” (GADOTTI, 1996, p. 5). É assim que a crítica promove a práxis e torna-se o mote da transformação dos sujeitos, e os educadores são os condutores dessa conquista que, para o autor, é o fim da educação.

Para Freire (2013c), toda forma de educação que impede a reflexão para a liberdade é uma forma de manipulação, de domesticação. Segundo o educador:

Estimulando a massificação, a manipulação contradiz, frontalmente, a afirmação do homem como sujeito, que pode ser a de que, engajando-se na ação transformadora da realidade, opta e decide. Na verdade, manipulação e conquista, expressões da invasão cultural e, ao mesmo tempo, instrumentos para mantê-la, não são caminhos de libertação. São caminhos de “domesticação”. (FREIRE, 2013c, p. 51).

Romper com essa invasão cultural apontada, fruto da influência neoliberal, implica uma atitude, uma busca consciente daquilo que se pretende romper. É necessária, ao sujeito, uma conduta de pensamento, por assim dizer, histórica. Ainda, para Freire (2013b, p. 39), “[...] a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer”. Esse “pensar certo” é uma atividade refletida, crítica e histórica, e seu entendimento e sua consciência acerca do fazer docente são requisitos para a conquista de um plano de ação rumo à sua emancipação. Para tanto, a atuação do educador precisa investir-se de intenções problematizadoras que levem o indivíduo a pensar, a refletir sistematicamente sobre si e o outro, sobre seu mundo e o que o cerca. Diante dessa responsabilidade, o autor adverte que:

O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente a sua sintaxe e sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de impor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (FREIRE, 2013b, 59).

No mais, Freire (2013c) reforça:

Ser dialógico é empenhar-se na transformação constante da realidade. Esta é a razão pela qual, sendo o diálogo o conteúdo da forma de ser própria da existência humana, está excluído de toda relação na qual alguns homens sejam transformados em “seres para outro” por homens que são falsos “seres para si”. É que o diálogo não pode travar-se numa relação antagônica. (FREIRE, 2013b, 51).

De acordo com essas apresentações acerca de como a educação se revela na leitura de Paulo Freire, foi traçado o caminho para a discussão específica de um dos conceitos desta pesquisa: a Utopia. Tal Utopia não se reduz à mera realização de um desejo, como aponta o empreendedorismo na Educação. Essa simplicidade atribuída a ela perde o valor quando imersa em ideias vazias e desprovidas de reflexão e de análise acerca de sua finalidade. A busca pela Utopia precisa estar, necessariamente, embasada por razões e responsabilidades políticas, históricas e éticas, as quais sejam capazes de mover o sujeito da condição de oprimido para a libertação. Essa é uma tarefa que só se alcança no confronto com o outro, na busca pela liberdade coletiva.

O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história. (FREIRE, 2013b, p. 53).

Não é possível identificar um único lugar em que a Utopia se encontra no pensamento do autor. Para ele, por meio da educação, as conquistas individuais de liberdade do ser humano são produto de sua posição diante do outro e do mundo, no confronto com as outras liberdades. Utopia é, portanto, o alcance dessa condição do sujeito diante de seus pares, e essa é a batalha travada pelo autor na crítica ao neoliberalismo, como já anunciado.

Não é difícil, ao exprimir o desejo de Freire por uma educação libertadora e humanista como alavanca da transformação do sujeito, verificar traços evidentes de um idealista, que traz como meta, ou mesmo Utopia, a revolução das mazelas humanas por meio da educação popular. Diferentemente da proposta neoliberal, segundo Gadotti (1996):

A libertação como objetivo da educação é fundada numa visão utópica da sociedade e do papel da educação. A educação deve permitir uma leitura crítica do mundo. O mundo que nos rodeia é um mundo inacabado e isso implica a denúncia da realidade opressiva, da realidade injusta, inacabada e, consequentemente, a crítica transformadora, portanto, o anúncio de outra realidade. O anúncio é a necessidade de criar uma nova realidade. Essa nova realidade é a utopia do educador. (GADOTTI, 1996, p. 6).

Na concepção de Freire, a Utopia é caracterizada pela busca do sujeito por denunciar certa realidade, em que ele vive e se situa historicamente e, assim, projetar uma nova realidade. Quando se age diretamente sobre a práxis, quando se articula a reflexão e o diálogo do sujeito com a sua realidade, é possível a ele a “tomada de consciência”. Essa prática

[...] significa a passagem da imersão na realidade para um distanciamento desta realidade. A conscientização ultrapassa o nível da tomada de consciência através da análise crítica, isto é, do desvelamento das razões de ser desta situação, para constituir-se em ação transformadora desta realidade. (GADOTTI, 1996, p. 6).

Nessa passagem, é possível verificar que, no ideário de Paulo Freire, não é possível conceber o fatalismo ou o conformismo da doutrina neoliberal, tampouco ceder à imposição da escolarização doméstica ou mesmo ao movimento “Escola Sem Partido”. Refutar a condição de oprimido deve ser o mote da educação e dos educadores. Curvar-se diante do cenário desfavorável é sucumbir ao sonho e, para Freire, isso é inconcebível. Ensinar, para ele, é mais do que aprender a conformar-se ou a adaptar-se, trata-se, então, de “[...] transformar a realidade, para nela intervir, recriando-a” (FREIRE, 2013b, p. 67). O autor ainda reitera que “[...] a desproblematização do futuro em uma compreensão mecanicista da história, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança” (FREIRE, 2013b, p. 71). Para o autor, portanto, o alcance da Utopia está condicionado à luta, ao embate, à busca pelo conhecimento e pela construção da condição de liberdade em relação ao sistema opressor.

Este é um cuidado do educador que baseia sua prática em atitudes libertadoras: problematizar o conhecimento, colocá-lo em diálogo com o educando. Provocar questionamentos, indagações, dúvidas, curiosidades. Para Freire (2013c, p. 68), “[...] nenhum cientista elaborou seu pensamento sem ter sido problematizado ou desafiado”. Não que a pretensão do professor seja formar cientistas, mas, como Freire (2013c) bem coloca:

O que defendemos é precisamente isto: se o conhecimento científico e a elaboração de um pensamento rigoroso não podem prescindir de sua matriz problematizadora, a apreensão deste conhecimento científico e do rigor deste pensamento filosófico não pode prescindir igualmente da problematização que deve ser feita em torno do próprio saber que o educando deve incorporar. (FREIRE, 2013c, p. 69).

O autor aponta o seu repúdio ao fatalismo neoliberal. Por meio da educação e do trabalho engajado de professores que procuram pensar certo e promover o mesmo movimento em seus educandos, qualquer realidade opressora precisa ser superada. O anúncio de uma nova realidade só é possível por meio da denúncia daquilo que desagrada e desrespeita o sujeito e implica procura pela inversão dessa condição. Está imbricada a sede de conhecimento e de saberes que garantem a todos os indivíduos da realidade opressora a condição de sujeitos essencialmente humanos. Para Freire (2013b, p. 85), “[...] não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência”.

A negação do sonho e da condição humana do sujeito imposta por regimes autoritários e fatalistas ameaça as condições de superação. Autoridade, a saber, é uma questão discutida por Paulo Freire e é considerada neste momento da análise e em toda a pesquisa. Na construção de sonhos coletivos, fruto do engajamento e do embate social, relações autoritárias comprometem o seu desenrolar, de modo especial na escola, no processo de aprendizagem estabelecido entre educadores e educandos.

Além disso, o autoritarismo compromete a liberdade e o confronto de sujeitos livres diante da realidade socialmente construída. Para Freire, ele favorece a indisciplina e impede o aparecimento da autoridade, elemento indispensável ao sujeito livre no confronto com seus pares. Distintamente do autoritarismo, autoridade e liberdade são elementos intrínsecos à prática de professores comprometidos com a ética. Nesse aspecto, Freire (2013b) coloca:

O bom seria que experimentássemos o confronto realmente tenso em que a autoridade de um lado e a liberdade do outro, medindo-se, se avaliassem e fossem aprendendo a ser ou a estar sendo elas mesmas, na produção de situações dialógicas. Para isso, o indispensável é que ambas, autoridade e liberdade, vão se tornando cada vez mais convertidas ao ideal do respeito comum como podem autenticar-se. (FREIRE, 2013b, p. 87).

A segurança prevista nessa proposta é a chave dos educadores na garantia da busca pela Utopia. A autoridade dessa atuação depende de conhecimentos sólidos, de bases epistemológicas construídas por meio de formação, de reflexão e de ação, ou seja, da práxis. Não é possível a nenhum educador trabalhar na realização de sonhos coletivamente construídos se não conhecer a realidade, não se inserir nesse contexto e não buscar condições para compreendê-lo. Isso é autoridade docente, daquele que elimina qualquer relação autoritária fatalista; contudo, a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor. Para Freire (2013b), professor competente é aquele dotado de generosidade, de olhar intimista a cada um de seus educandos e de humildade para colocar-se junto a eles na condição de aprendiz.

A arrogância que nega a generosidade nega também a humildade, que não é virtude dos que ofendem nem tampouco dos que se regozijam com sua humilhação. [...]. A autoridade docente mandonista, rígida, não conta com nenhuma criatividade do educando. Não faz parte de sua forma de ser, esperar, sequer, que o educando revele o gosto por aventurar-se. [...]. A autoridade coerentemente democrática está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta. (FREIRE, 2013b, p. 90-91).

A autoridade apontada pelo autor é a que garante autonomia ao sujeito, a qual está implicitamente fundamentada na responsabilidade deste. Essa é a busca do educador, por meio da aquisição da autonomia responsável por parte do educando, aquele se torna apto a sonhar e a buscar, por meio da luta e da práxis, a realização desses sonhos – éticos, comprometidos, libertadores, possíveis.

Sobre a busca por sonhos possíveis é que discorre Paulo Freire. Sonhos bem sonhados, realizações tangíveis, frutos de luta, por vezes de rebeldia ou de insubordinação, porém sempre de embates reais em prol da coletividade. A realização desse sonho é baseada no diálogo, no que ele denomina “relação horizontal”, a saber: entre iguais com o mesmo propósito. Nesse sentido, a condição de oprimido supera-se diante da relação que se estabelece, pela educação, entre educando e educador. O objetivo é um, mas a luta é de todos. De acordo com Gadotti (1996, p. 8), dessa relação “[...] nutre-se amor, humildade, fé e confiança”. A vertente dessa utopia solidifica-se no respeito, por parte dos educadores, aos educandos que a alimentam. “As diferenças entre o educador e o educando se dão numa relação em que a liberdade do educando ‘não é proibida de exercer-se’, pois essa opção não é, na verdade, pedagógica, mas política, o que faz do educador um político e um artista, e não uma pessoa neutra” (GADOTTI, 1996, p. 9).

A proposta ao educador, na busca da realização do educando, é de, por meio do seu trabalho, desvelar a dualidade entre o opressor e o oprimido e, pela Utopia, promover no oprimido a oportunidade de galgar caminhos outrora inconcebíveis. É nesse sentido que Freire considera que educar exige comprometimento por parte do educador. Não é admissível a esse profissional o descompromisso com a sua atividade de problematizador, de formador de opinião e de intelectual. Ao professor que promove a Utopia é exigida a capacidade de pensar politicamente e de estabelecer essa rotina de pensamento e de reflexão em suas práticas com os seus educandos, desde a mais tenra idade.

A consciência política e a compreensão da realidade devem ser ensinadas aos alunos desde muito cedo, no início de seu processo de escolarização. O professor deve ser o interlocutor dessas ideias, o condutor desse processo de reflexão e o mediador desses conceitos em relação aos elementos conteudistas impostos pelo mercado ou pelo sistema. A aprendizagem que promove a Utopia é solidária e compartilhada entre todos os envolvidos. “Nesse sentido, quanto mais solidariedade exista entre o educando e o educador no ‘trato’ deste espaço, tanto mais possibilidades de aprendizagem democrática se abrem na escola” (FREIRE, 2013b, p. 95).

A aprendizagem democrática é resultado da compreensão por parte dos educandos da realidade política e, desse modo, não se pode deixar de citar as doutrinas neoliberais, consideradas por Paulo Freire como as grandes responsáveis pela desigualdade e pela exclusão social, principalmente na esfera da educação pública. Essas doutrinas são agentes que impossibilitam a concretude dos sonhos, pois limitam as ações educativas, sejam por parte dos educadores, sejam por parte da escola. Gadotti (1996) apresenta a comparação que Paulo Freire tece sobre a influência das doutrinas neoliberais na educação, tendo por base o reducionismo da educação bancária, a qual

[...] tem por finalidade manter a divisão entre os que sabem e os que não sabem, entre os oprimidos e opressores. Ela nega a dialogicidade, ao passo que a educação problematizadora funda-se justamente na relação dialógico-dialética entre o educador e o educando; ambos aprendem juntos (GADOTTI, 1996, p. 9).

Essa atitude dialética, reflexiva e ativa por parte de todos os envolvidos, educandos ou educadores, dirige esses sujeitos rumo ao que Paulo Freire denomina “Pedagogia do Desejo”. Se a proposta deste estudo é estabelecer os contrapontos do cenário político atual para a educação e das ideias de Paulo Freire, a Pedagogia do Desejo mostra-se como aquela que não permite a minimização dos seres humanos envolvidos nos processos de aprendizagem, ainda que estes sejam compostos por grupos de minorias sociais desprovidos de poder econômico. Essa proposta reside exatamente na superação dessa condição social e na promoção da igualdade entre os sujeitos no confronto com suas liberdades. Ela promove a resistência, a indignação, a “justa ira” dos seres humanos diante de opressões da ideologia fatalista, a qual promove a “[...] desvalia dos interesses humanos em relação ao mercado” (FREIRE, 2013b, p. 99).

Aos educadores progressistas, comprometidos com a transformação da realidade e com a revolução social do indivíduo para tornar-se sujeito, cabe o desejo de sonhos efetivamente políticos. Além disso, conforme Cardarello (2005, p. 49), “[...] torna-se necessário aos sujeitos modernos saber do seu desejo, nomeá-lo, conceituá-lo e objetivá-lo; confessando-o, colocando-o em análise e em discurso”. Grande é o desafio de encucar no sujeito moderno, como coloca a autora, a consciência de estimular o exercício reflexivo do sujeito diante de sua condição, de modo a superá-la. O educador, ao trabalhar para a construção dos desejos em seus educandos, tem, portanto, de ir além da caridade, como bem aponta Freire, pois requer uma luta política e um embate com os preceitos ideológicos.

A luta pela não resignação diante da condição de opressão deve ser o propósito das escolas e, também, dos professores. Nesse sentido, Paulo Freire coloca-se na condição de professor e rebate afirmando:

Sou professor a favor da docência contra o despudor, a favor da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda. Sou professor a favor da luta constante contra qualquer forma de discriminação, contra a dominação econômica, dos indivíduos das classes sociais. Sou professor contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: a miséria na fartura. (FREIRE, 2013b, p. 100).

O sonho descrito por Freire é o sonho da liberdade, esta que amadurece apenas quando colocada em confronto com outras liberdades, “[...] na defesa de seus direitos em face da autoridade dos pais, do professor, do Estado” (FREIRE, 2013b, p. 103). Dessa maneira, para Paulo Freire, o sonho dá-se de acordo com quem o sonha. Aos trabalhadores sem-terra, o sonho somente será real com a reforma agrária; aos que morrem de fome nas ruas, quando tiverem comida em abundância; aos analfabetos, quando conseguirem decodificar os signos linguísticos que formam as palavras e lê-las. Então, o que poderia ser classificado como sonho, na óptica de Paulo Freire?

É necessário, a fim de responder a essa questão, pontuar os sujeitos que compõem a escola: educandos e educadores na busca pela autonomia e pela liberdade. No entanto, o autor adverte que “[...] ninguém é autônomo primeiro para depois decidir” (FREIRE, 2013b, p. 105). A autonomia constrói-se na experiência, na ousadia da tomada de consciência e na decisão diante de uma questão. Para tanto, a escola e os educadores devem promover ao educando experiências ricas de embate e de escolha, no sentido de estimularem o desenvolvimento de sua autonomia e, consequentemente, de sua liberdade.

É na diretividade da educação, esta vocação que ela tem, com ação especificamente humana, de “endereçar-se” até sonhos, ideais, utopias e objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da educação. A qualidade de ser política, inerente à sua natureza. É impossível, na verdade, neutralidade na educação. (FREIRE, 2013b, p. 108).

Diante do conceito de Utopia apontado por Paulo Freire – como um professor, frente a seus educandos –, pode-se trabalhar pedagogicamente o sonho e a realização apenas como uma vontade individual?

A realização docente, portanto, deve também se configurar na busca pela mudança, tendo em vista sua posição social, política e histórica, para que, democraticamente, promova-se a busca de seus educandos por suas realizações. Para Freire (2013b), a educação apenas deixaria de ser política se o mundo deixasse de ser humano. O desejo, então, deve ser ir além, romper com essa condição e vislumbrar o progresso pela luta e pelo engajamento social. Para ele, “[...] lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele” (FREIRE, 2013b, p. 109). Nessa perspectiva, a educação e o engajamento dos professores diante desse desafio são alavancas para tal conquista.

Para tanto, alguns requisitos éticos são apontados por Paulo Freire aos educadores para que a busca não seja apenas para a simples realização de seus sonhos, mas para a construção de seus projetos políticos ancorados nesses desejos. Pela lógica neoliberal, a ética reduz-se ao mercado e às suas determinações. Aos educadores críticos, não é possível sucumbir a essas imposições fatalistas. Para os professores, bem reforça Freire, a intenção deve ser a busca pela realização do sonho solidário e democrático, no sentido de aprender a escutar os anseios de seus educandos e trabalhar para o entendimento e a conscientização deles na procura pela realização.

Assim, sucumbir aos ideais neoliberais anula qualquer esforço do professor em revestir sua atuação de práticas políticas e éticas. A padronização do trabalho para atender às necessidades do mercado e do sistema impede a liberdade do pensamento e do esforço epistemológico por parte dos professores e, por consequência, dos educandos. Esse aprisionamento de ideias é denominado por Freire como “burocratização da mente”, sendo “[...] um estado refinado de estranheza, de ‘autodemissão’ da mente, do corpo consciente, de conformismo individual, de acomodação diante de situações consideradas fatalistas como imutáveis” (FREIRE, 2013b, p. 112). Seria como se os professores aceitassem passivamente a morte de sua essência profissional, de sua história política, em uma permanência apática diante da realidade opressora.

Nesse aspecto é que se deve rechaçar as imposições fatalistas da doutrina neoliberal e suas interferências nas políticas educacionais. Paulo Freire mostra-se muito enfático nessa interpretação quando diz negar-se a ouvir o discurso de professores contaminados pelo fatalismo, principalmente como resultado da globalização da economia ou por outros fatores político-ideológicos. O autor adverte, também, que a formação continuada e o esforço cognitivo são condições para educadores progressistas não se deixarem contaminar por esses preceitos. A retórica neoliberal é capaz de seduzir, pois, segundo Freire (2013b, p. 113), “[...] a desconsideração total pela formação integral do ser humano e sua redução ao puro treino fortalecem a maneira autoritária de falar de cima para baixo”.

Nesse chamado do autor à formação, ao esforço cognitivo e ao embate político, ele coloca as instituições escolares como lugar de fomento da atividade crítica e da ética do sujeito – daí a crítica do atual Governo ao teórico. Mediada pelo trabalho efetivo do professor, a escola é o ambiente onde devem ser oportunizadas aos educandos vivências oportunas de sua Utopia. Assim sendo, desburocratizar as relações que se estabelecem dentro desses espaços e aproximar os sujeitos envolvidos no processo são deveres dessas instituições, no sentido de promoção do diálogo, da comunicação e do favorecimento a reflexões e a críticas de todos. Para isso, “[...] uma das tarefas essenciais da escola, como centro de produção sistemática de conhecimento, é trabalhar criticamente a inteligibilidade das coisas e dos fatos e a sua comunicabilidade” (FREIRE, 2013b, p. 121).

A proposta é colocar todos esses envolvidos em uma posição de humildade e de respeito aos diferentes objetivos dos sujeitos e, nessa medida, aproximar o professor de todas essas questões. Essa humildade, para o autor, não se trata de submissão ou de conformismo, mas de entendimento de que todos os desejos dos sujeitos devem ser considerados, mesmo que sejam diferentes entre si. Nesse processo, ninguém é superior a ninguém, nem o sonho de um é mais urgente ou mais importante que o do outro. Humildade é reconhecer-se no outro, na empatia e na luta coletiva pelas conquistas.

Diante do avanço das ideias neoliberais e fascistas da atualidade, o exercício da humildade é colocado na premissa do respeito, não da submissão. Falta de humildade representa arrogância, falsa superioridade diante das características das pessoas, sejam estas derivadas de cor, raça, classe social ou diferença cultural. Paulo Freire adverte que uma pessoa que se coloca acima de outra por qualquer uma dessas características comete transgressão da vocação humana. Ser humilde é ser par, ser coletivo, ser junto. Ser humilde não implica, necessariamente, ser pior ou menor. O exercício do reconhecimento do valor e da qualidade do outro aproxima os sujeitos nas qualidades humanas. Contudo, a humildade deve evitar o formalismo ou mesmo a obrigação burocrática de uma pessoa em relação a outra. Quando isso acontece, a diferenciação já se configura. Desse modo, Freire (2013b) argumenta:

O que a humildade não pode exigir de mim é a minha submissão à arrogância e ao destempero de quem me desrespeita. O que a humildade exige de mim, quando não posso reagir à altura da afronta, é enfrentá-la com dignidade. A dignidade do meu silêncio e do meu olhar que transmitem o meu protesto possível. (FREIRE, 2013b, p. 119).

O sonho e a sua realização implicam comprometimento, respeito, solidariedade e conhecimento. Professores, educandos e escolas devem estar cientes dos seus papéis na sociedade e de como a condução do seu trabalho garante a transformação da realidade e a libertação do sujeito, de modo especial em um momento da história nacional em que professores e instituições escolares sofrem tantos açoites por ideias conservadoras e fundamentalistas. A educação, nessa perspectiva, carrega consigo não só o desejo, mas a necessidade de promoção de mudança coletiva. Esse é o desafio aos educadores progressistas para com seus educandos.

Refletir e finalizar

O contraponto feito neste artigo entre as posições de Paulo Freire e a proposta da Pedagogia Empreendedora (DOLABELA, 2003) aponta para os antagonismos entre as ideias dos autores. Contudo, apesar de Paulo Freire ser um revolucionário em seus preceitos e avesso às ideologias que excluem os sujeitos do debate acadêmico, da ciência e da educação como prática motivadora da transformação social, não é incomum ver o seu nome atrelado ao oposto daquilo que ele postula. Um exemplo bastante emblemático é o texto Pedagogia Empreendedora, de Jussara Isabel Stockmanns (2014). Segundo a autora:

Também podemos dizer que Paulo, o sábio educador brasileiro, sintetizou esse espírito inovador, empreendedor, na seguinte frase: “A vida na sua totalidade me ensinou como grande lição que é impossível assumi-la sem risco”. Nos deparamos na vida com constantes riscos, e são eles que nos impulsionam a tomar atitudes, tomar decisões e a enfrentar os desafios cotidianos e, neste contexto da educação empreendedora, esta ação deve começar na mais tenra idade. (STOCKMANNS, 2014, p. 22).

No estudo realizado na pesquisa de Mestrado de Stockmanns (2014) e pelo entendimento dos ideais de Freire para a educação escolar, o empreendedorismo, sendo um conceito da gestão empresarial e amparado na lógica do capital, não poderia, de maneira alguma, ser aproximado aos postulados do autor. Ainda que com a justificativa de enfrentar desafios cotidianos, a base do debate do autor ocorre na coletividade, na busca pela transformação do sujeito e de seu entorno e isso só é possibilitado mediante a ciência, o método e a prática intelectual. Na leitura aqui proposta, a defesa de Freire para a educação escolar dá-se no diâmetro oposto ao que expõe Stockmanns (2014, p. 22) quando esta sugere que a tarefa da prática pedagógica “[...] é formar intelectos preparados a sonhar, a inovar, a planejar e assumir riscos visando sucesso. Os pressupostos desta formação empreendedora baseiam-se em dois eixos importantes: habilidades comportamentais e conhecimento científico”.

No ato da defesa da dissertação de Alves (2014), para aprofundar a reflexão acerca da compreensão do conceito de Utopia presente na obra de Paulo Freire e de modo a dar foco à educação escolar, foi utilizado o seguinte exemplo, quando se estabelece o contraponto aos aportes do empreendedorismo: o dos catadores de papel de luxo. Trata-se de uma reflexão muito séria quando, do lugar de professores ou gestores que atuam na educação escolar, atribuem-se certas incumbências para a escola e seus atores. Diante do abordado por Stockmanns (2014), baseada, inclusive, em Dolabela (2003), a escola passaria a ser responsável por formar esses catadores de papel de luxo. Conforme apresentado no texto de conclusão da dissertação de Alves,

[...] foi possível refletir que a escola, por meio do trabalho do professor, contribuísse para que seu aluno deixasse de recolher lixo apenas nos arredores de sua casa, mas que ele pudesse empreender e, junto com outros coletores de lixo, conseguissem aumentar a quantidade de material a ponto de montarem uma cooperativa. Ao invés de remexer o lixo da favela onde vivem, eles deveriam ir buscar lixos mais abundantes, nos condomínios de luxo da cidade. (ALVES, 2014, p. 117).

Há de parar-se e pensar. Quando isso poderia ser concebido na obra de Paulo Freire? Para ele, essa prática apenas corrobora o fato de que tais crianças, oprimidas pela sua condição de miséria imposta pela lógica da exclusão e da “malvadez”, mergulham cada vez mais em sua realidade opressora e alimentam em si o desejo de serem opressoras.

O “homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da superação da contradição, com a transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação. Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A visão do homem novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como pessoa, nem a consciência de classe oprimida. (FREIRE, 2013a, p. 45).

Para exemplificar esse excerto, Freire (2013a) aborda a temática da reforma agrária. Ele alerta para o perigo de essa reforma ocorrer visando apenas às questões individuais dos sem-terra. Se isso ocorrer, é possível que a reforma agrária aconteça não para que se tenha a posse da terra almejando o bem comum, mas que represente formas de opressão para aqueles que não a têm.

O que se pretende, portanto, nessa perspectiva de reflexão promovida pela referida pesquisa de Mestrado (STOCKMANNS, 2014) e por todos os conceitos aqui explicitados, é entender que o empreendedorismo proposto para as práticas escolares “[...] não se propõe a romper com as relações de opressor e oprimido, pois ela não prevê a revolução coletiva da realidade, mas apenas as conquistas individuais” (ALVES, 2014, p. 118). No mais, para Freire, essa prática não busca a liberdade, mas a perpetuação do ciclo da opressão, pois “[...] a liberdade que é uma conquista, e não uma doação e exige uma permanente busca [...], que só existe no ato responsável de quem faz” (FREIRE, 2013a, p. 46).

O desenvolvimento do senso de responsabilidade – outro conceito fundamental para se refletir sobre a análise de Freire para configurar a Utopia, o qual ele considera elemento basilar para a libertação dos sujeitos – é dever da escola e desafio aos professores: é preciso levar os alunos a superarem situações opressoras e contraditórias. “A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais oprimido, mas homem libertando-se” (FREIRE, 2013a, p. 48).

Quando considerada do ponto de vista contrário, a escola e, consequentemente, a educação escolar, torna-se um espaço de fragilidades e reforçador das práticas opressoras, pois fica incumbido da perpetuação de ideais que em nada colaboram para a transformação do sujeito, apenas à sua mera preparação para as demandas da vida submetida ao capital e às suas mazelas, além de desprezar a totalidade do desenvolvimento dos educandos: os aspectos físico, cognitivo e social.

A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são produtores desta realidade e se esta, na “inversão da práxis”, se volta sobre eles e os condicionam, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa de homens. (FREIRE, 2013a, p. 51).

A tentativa de finalizar este texto vem acompanhada da sensação de que as discussões promovidas por Freire não cessam. São muitos conceitos, submetidos a análises políticas, pedagógicas, sociais e culturais, o que dificulta pôr um fim a elas. Contudo, talvez essa seja a verdadeira intenção do autor, pois, quando se trata de educação escolar e das práticas que se dão no interior das escolas, o debate não pode parar. O que se pretende deixar, de forma permanente aos professores e aos demais envolvidos com a educação, é o convite que Paulo Freire propõe: reflexões sobre a escola e as práticas pedagógicas não podem parar ou mesmo sucumbir diante de propostas que não vislumbram a transformação da realidade.

A relação dialética, entre o sujeito e o objeto, o movimento da práxis, a “[...] reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 2013a, p. 52apudALVES, 2014, p. 119) devem ser atitudes constantes e que ocupem nossos corações e nossas mentes. A escola e os responsáveis pela conquista da Utopia – professores conduzindo os alunos – precisam ser e ceder, respectivamente, espaço de embate aos ideais que aprisionam os sujeitos na condição de indivíduos, o que impede que a educação cumpra seu principal papel, na visão de Freire: transformar a realidade imaginária e ilusória em concreta e possível. Essa é a Utopia em Freire. O restante, ou melhor, o sonho é facilmente encontrado nas vitrines das padarias, recheados de goiabada ou de creme.

Notes

1Pronunciamento do presidente Jair Messias Bolsonaro a respeito de Paulo Freire disponível em: http://g1.globo.com/globo-news/videos/v/jair-bolsonaro-chama-educador-paulo-freire-de-energumeno/8168517/. Acesso em: 20 jul. 2020.

2A data do material didático é de 2003 e a implantação da proposta da Pedagogia Empreendedora no município é de 2011; logo, oito anos mais tarde.

3Essas atividades podem ser conhecidas na íntegra no quarto capítulo da dissertação de Alves (2014).

4Trata-se da obra Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.

5Projeto de Lei 2401, de 17 de abril 2019 (BRASIL, 2019).

6Ministro da Educação no Governo Bolsonaro por 14 meses, entre os anos de 2019 e de 2020.

Referências

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Recebido: 25 de Agosto de 2020; Revisado: 17 de Março de 2021; Aceito: 18 de Março de 2021; Publicado: 31 de Março de 2021

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