SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16Educación, Utopía y Paulo FreireFormación permanente freireana en la Educación de Jóvenes y Adultos: reinventando políticas y prácticas en el municipio de São Paulo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.15.16597.042 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

A unidade na diversidade em Paulo Freire: avanços para a transformação educacional*

The unity in diversity in Paulo Freire: advances for educational transformation

La unidad en la diversidad en Paulo Freire: avances para la transformación educativa

**Doutora em Educação. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <fabiana@ufscar.br>.

***Doutora em Educação. Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: <roseli@ufscar.br>.

****Doutora em Educação. Universidade Federal de São Carlos/Fundação CASA. E-mail: <denise.bachega@gmail.com>.


Resumo:

Neste artigo, relacionamos o conceito de unidade na diversidade, elaborado por Paulo Freire, a atuações educativas que promovem ao mesmo tempo aprendizagem acadêmica e valorização do convívio na diversidade. Inicialmente, apresentamos conceitos-chave desenvolvidos pelo autor em diferentes obras e ressaltamos a sua atualidade. Posteriormente, destacamos o conceito de unidade na diversidade e como ele dá base a Atuações Educativas de Êxito para a Educação de Jovens e Adultos, tendo por base os resultados de um estudo de caso qualitativo, desenvolvido entre 2014 e 2016. Por fim, destacamos como a teoria e a compreensão que Paulo Freire nos oferece continuam vivas e atuais, principalmente por evidenciarem a história que vem sendo construída por homens e mulheres em prol da humanização e da educação democrática.

Palavras-chave: Unidade na diversidade; Atuações Educativas de Êxito; Humanização

Abstract:

In this article, we relate the concept of unity in diversity, developed by Paulo Freire, to educational actions that promote both academic achievement and improvement in social coexistence in diversity. Initially, we present key concepts elaborated by the author in different publications and we emphasize its relevance. Subsequently, we highlight the concept of unity in diversity and how it underpins Successful Educational Actions (SEA) for Youth and Adult Education, based on the results of a qualitative case study, developed between 2014 and 2016. Finally, we highlight the way that the theory and the comprehension that Paulo Freire offers us remains alive and current, mainly by demonstrating the history that has been built by men and women in favor of humanization and democratic education.

Keywords: Unity in diversity; Successful Educational Actions; Humanization

Resumen:

En este artículo relacionamos el concepto de unidad en la diversidad, elaborado por Paulo Freire, con actuaciones educativas que promueven el aprendizaje académico y la valoración de la convivencia en la diversidad. Inicialmente, presentamos conceptos clave elaborados por el autor en diferentes obras y resaltamos su actualidad. Posteriormente, destacamos el concepto de unidad en la diversidad y cómo él da base a las Actuaciones Educativas de Éxito (AEE) para la Educación de Jóvenes y Adultos, teniendo como base los resultados de un estudio de caso cualitativo, desarrollado entre 2014 y 2016. Por fin, destacamos cómo la teoría y la comprensión que nos ofrece Paulo Freire continúan vivas y actuales, principalmente por poner en evidencia la historia que ha sido construida por hombres y mujeres a favor de la humanización y de la educación democrática.

Palabras clave: Unidad en la diversidad; Actuaciones Educativas de Éxito; Humanización

Introdução

Concordamos com Ramon Flecha (1997) ao afirmar que nenhum estudo rigoroso sobre a escola pode deixar de reconhecê-la tanto como reprodutora quanto como transformadora da sociedade. Aqui, torna-se importante pensar no papel que as teorias sociais devem assumir no reconhecimento da estrutura e da ação humana como transformadora do mundo.

As teorias sociais já têm demonstrado o caráter dual da ação: sistema e mundo da vida em Habermas, estrutura e agência humana em Giddens; as concepções sistêmicas e estruturalistas apresentam dúvida por considerar somente uma dessas dimensões (sistema-estrutura). Se a sociedade e a educação são somente consequência das estruturas, nada se pode fazer as pessoas e os movimentos. Se também as relações intersubjetivas entre a gente (mundo da vida-agência humana) geram sociedade e educação, as atuações políticas e pedagógicas devem apresentar as orientações que desejam dar às transformações que inevitavelmente produzem. (FLECHA, R., 1997, p. 29).

Certamente, nos últimos anos, vemos a presença de um giro dialógico desenvolvido na sociedade que influencia diretamente as relações entre as pessoas e as instituições, inclusive as escolas. Há, também, nesse novo contexto, um processo de individualização que permite a desintegração das certezas da sociedade industrial e a reinvenção delas para si e para os outros que não a possuem, chamada por Beck (1997) de modernidade reflexiva.

Quanto ao papel da reflexividade na vida social moderna, destacam-se, também, as contribuições de Giddens (1991), em relação a sua dupla função: institucional, por ser uma forma de pensar intrínseca à modernidade; e social, por ser um modo de vida. Assim, “[...] a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformuladas à luz de informação renovada sobre essas próprias práticas, alterando assim seu caráter” (GIDDENS, 1991, p. 45).

Tomando o contexto atual como o aqui descrito, afirmamos a atualidade da teoria freireana. Freire (2003) nos ajuda na reflexão-ação-reflexão da construção de uma educação crítica e humanizadora ao propor que o respeito ao mundo dos(as) educandos(as) e ao seu conhecimento de experiência feito deve ser acompanhado de processo dialógico, desafiando-os(as) a pensar criticamente o mundo por meio dos conteúdos.

Atualmente, no Brasil, são quase 55 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, sobretudo a população preta ou parda, que representa 38,1 milhões de pessoas (72,7%), sendo as mulheres as mais afetadas, representando 27,2 milhões, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2018). A diferença entre raças também permanece quando cruzada aos anos de estudo para pessoas com mais de 16 anos, entre os anos de 1999 e 2009 (IBGE, 2018). A desigualdade de oportunidades para negros, mulheres e indígenas, migrantes, imigrantes torna-se ainda mais central nesse processo.

Na década de 1970, já exilado no Chile, Freire (2003), em Pedagogia do oprimido, denunciou de forma intransigente as ações discriminatórias, sobretudo em suas múltiplas negações da concepção do “ser mais” para a população negra. Passadas algumas décadas, o autor voltou ao tema em sua obra Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido, com base em suas vivências e diálogos com pessoas da África do Sul e dos Estados Unidos. Nessa obra, o autor reconhece a força da herança colonial ainda com nuances estruturais no Brasil e afirma, frente a posições sectaristas na luta por direitos:

Respeito a posição de vocês, mas estou convencido de que quanto mais as chamadas minorias se assumam como tais e se fechem umas às outras tanto melhor dorme a única e real minoria, a classe dominante. Em todas as épocas, o poder, entre muitos direitos que se outorga, sempre teve como condição intrínseca a si mesmo, o direito de perfilar, de descrever quem não tem poder. E o perfil que os poderosos fazem dos a quem falta poder, ao ser encarnado por eles ou elas, obviamente reforça o poder dos que o têm e em razão de que perfilam. Os colonizados jamais poderiam ser vistos e perfilados pelos colonizadores como povos cultos, capazes, inteligentes, imaginativos, dignos de sua liberdade, produtores de uma linguagem que, por ser linguagem, marcha e muda e cresce histórico-socialmente. Pelo contrário, os colonizados são bárbaros, incultos, ‘a-históricos’, até a chegada dos colonizadores que lhes ‘trazem’ a história. Falam dialetos fadados a jamais expressar a ‘verdade da ciência’, ‘os mistérios da transcendência’ e a ‘boniteza do mundo’. (FREIRE, 2003, p. 77).

Para Freire (2003), os primeiros sinais de inconformismo daqueles que são carentes de poder gera a rebeldia contra os perfis daqueles que lhes impõem seu poder. Tal situação pode conduzir à luta esperançosa pela mudança no momento em que as chamadas minorias passam a se reconhecer como maioria. O caminho para esse reconhecimento está no ato de trabalhar as semelhanças entre si, e não somente as diferenças, criando-se a unidade na diversidade, sem a qual não há possibilidade de aperfeiçoar-se e construir uma democracia substantiva, radical.

Tais inquietações guiam o presente texto na argumentação sobre a necessidade de a educação escolar estar pautada na “unidade na diversidade” como via de resposta às desigualdades sociais estabelecidas no atual contexto. Defendemos, neste artigo, que igualdade de resultados e igualdade de diferenças são igualmente importantes e indissociáveis.

Paulo Freire: conceitos centrais

Ao fazer um balanço sobre a Pedagogia do oprimido, já na década de 1990, Freire (2003) reafirma que as mudanças são possíveis pela capacidade do humano de ser programado para aprender, sendo condicionado pela realidade, mas não por ela determinado. Isso por ser movido por sua curiosidade, pela paixão de conhecer, em uma vocação ontológica para a humanização, ou seja, para o “ser mais”. No entanto, assim como a humanização, a desumanização é uma possibilidade histórica que se apresenta como uma distorção da vocação do “ser mais”, porém nem a humanização nem a desumanização são destinos certos.

Sonhar com a humanização, que se concretiza processualmente, implica ruptura das condições reais, de ordem econômica, política, social, ideológica, que condenam à desumanização. “O sonho é assim uma exigência ou uma condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e que nos faz e re-faz” (FREIRE, 2003, p. 99). Nesse sentido, a linguagem da possibilidade ganha potencialidade ao ser assumida por aqueles(as) que, inseridos(as) na realidade contraditória, lutam pelo sonho de fazê-la menos perversa. É a linguagem de quem luta por sua utopia, pacientemente impaciente e move todos os esforços para a organização das classes populares, e outros segmentos, objetivando a instauração democrática de uma sociedade mais igualitária, que só é possível na presença do gosto pela liberdade e pela esperança, bem como por meio de uma educação problematizadora.

Por muito tempo, imperaram sobre a escola os modelos reproducionistas que apresentavam a educação como eixo de desigualdade social. Em Pedagogia do oprimido, Freire (2005a) já apresentava a concepção “bancária” da educação como instrumento de opressão:

[...] a narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipiente a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. [...]. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. (FREIRE, 2005a, p. 66).

Freire repudia, portanto, qualquer visão mecanicista da realidade em que os sujeitos são reduzidos à condição de objetos por outrem conforme a posição que ocupa. O autor também anuncia uma nova proposta de educação, tendo como elemento chave o papel do sujeito em todo o processo. Trata-se de uma educação de caráter político, ético, científico, que consiste na problematização, pelos homens e pelas mulheres, em todas as suas idades, das suas relações com o mundo, considerando, sobretudo, sua historicidade e sua inconclusão a partir de seu “saber de experiência feito”. Esse saber é a base efetiva da leitura de mundo de cada sujeito, representando o ponto de partida na relação educador(a)-educando(a).

Para Freire (2003), os objetos de conhecimento devem ser entregues à curiosidade cognoscitiva de professores(as) e alunos(as). “Uns ensinam e, ao fazê-lo, aprendem. Outros aprendem e, ao fazê-lo ensinam” (FREIRE, 2003, p. 112). O educador ou a educadora progressista não devem esconder sua leitura de mundo, mas também tem o papel de reconhecer e respeitar outras leituras de mundo, que são diferentes e, às vezes, contrárias às suas. Há dois posicionamentos políticos e ideológicos dos(as) educadores(as), os quais implicam práticas educativas diferentes no tratamento do conteúdo, igualmente criticadas por Freire (2003). Um deles é a exacerbação da autoridade, se alongando em autoritarismo; o outro é a anulação da autoridade do(a) educador(a), que acaba por instalar a licenciosidade.

No primeiro caso, o da exacerbação da autoridade, do seu alongamento em autoritarismo, se dá a “posse” do conteúdo por parte do educador ou da educadora. Dessa maneira, “possuindo” como coisa própria o conteúdo, não importa que tenha ou não participado de sua escolha, possuindo os métodos com que manipula o objeto, manipula também os educandos. Mesmo dizendo-se progressista e democrático, o educador autoritário de esquerda, incoerente com parte, pelo menos, de seu discurso, se sente tão mal diante de educandos críticos, indagadores, que não dizem amém a seus discursos, quanto o autoritário de direita.

No segundo caso, temos a anulação da autoridade do professor ou da professora que imerge no já referido clima licencioso e numa prática igualmente licenciosa, em que os educandos, entregues a si mesmos, fazem ou desfazem a seu gosto. (FREIRE, 2003, p. 113).

Educadores e educadoras progressistas, diante da questão dos conteúdos, devem empenhar-se na luta incessante pela democratização da sociedade, que implica a democratização da escola, do ensino e da programação dos conteúdos. Para isso, não é preciso esperar que a sociedade se democratize, transformando-se radicalmente, para que se dê início à democratização da escolha e do ensino dos conteúdos. A democratização das escolas faz parte da democratização da sociedade.

Freire (2005b) explica que, sob a perspectiva da ideologia neoliberal, a pedagogia crítica presta-se apenas a resolver problemas de ordem técnica ou burocrática. Questões sociais e político-ideológicas não constituem preocupações da prática educativa, que é considerada neutra e assumida como treino de profissionais, que possa qualificá-los para o mundo da produção. Em uma visão progressista, torna-se impossível pensar apenas em uma formação técnica, que não se pergunte “a favor de que” e “de quem” e “contra que” se trabalha.

A constante e acelerada revolução tecnológica modifica a realidade socioeconômica, exigindo novas formas de compreensão dos fatos sobre os quais se deve fundar uma nova ação política. Apesar disso, Freire (2005b) já observava, na década de 1990, que, mais do que em outros tempos, faz-se necessário o trabalho sério, a pesquisa meticulosa e a reflexão crítica a respeito do poder dominante, que continua crescendo. Assim sendo, o papel de intelectuais progressistas deve ser o de quem reconhece a força dos obstáculos, sem considerá-los intransponíveis, recusando uma posição fatalista. Os obstáculos, nesse caso, devem ser entendidos como desafios, e a tarefa dos intelectuais deve ser a de buscar respostas adequadas a eles.

O posicionamento de Freire (2005b), ao revelar a esperança na possibilidade de transformação do mundo, não desconsidera as dificuldades envolvidas na ação política favorável aos direitos dos oprimidos. O autor reconhece os obstáculos que a nova ordem social impõe às camadas mais desprotegidas do mundo, assim como aos intelectuais, conduzindo-os, muitas vezes, a posições fatalistas diante da concentração do poder.

A percepção dos obstáculos não significa, no entanto, a atitude de aceitação da realidade, acomodando-se no silêncio ou tornando-se o eco, envergonhado ou cínico, do discurso dominante. Tal percepção exige das pessoas a responsabilidade ética e política diante do mundo e dos outros. Essa postura é explicitada nas palavras de Freire (2005b, p. 44) ao afirmar: “Não posso ser se os outros não são; sobretudo não posso ser, se proíbo que os outros sejam”.

De acordo com essa perspectiva, os(as) intelectuais progressistas têm, como uma de suas tarefas mais importantes, a desmitologização dos discursos pós-modernos sobre a inexorabilidade das situações sociais concretas. Se há um poder econômico e político que destitui os fracos de seus direitos e espaços, tal situação não é imutável, mas deve ser superada pela força daqueles que podem ser capazes de instaurar a justiça. Transformar a fraqueza em força requer a recusa ao fatalismo, considerando que somos seres da transformação e não da adaptação. Nas palavras de Freire (2005b):

Não podemos renunciar à luta pelo exercício de nossa capacidade e de nosso direito de decidir e de romper, sem o que não reinventamos o mundo. Neste sentido insisto em que a História é possibilidade e não determinismo. Somos seres condicionados, mas não determinados. É impossível entender a História como tempo de possibilidade se não reconhecermos o ser humano como ser da decisão, da ruptura. Sem esse exercício não há como falarmos em ética. (FREIRE, 2005b, p. 23).

Quando nos posicionamos a favor dos grupos sociais historicamente injustiçados, vemos na escolaridade e na base freireana de educação transformadora elementos fundamentais de apoio à nossa caminhada como educadoras. O conceito de unidade na diversidade assume, então, lugar central. Passamos a ele.

A unidade na diversidade de Paulo Freire como eixo de igualdade educativa

Falar de unidade na diversidade, para Paulo Freire (2003), significa falar de uma perspectiva intercultural de entendimento das relações entre os sujeitos a partir do diálogo intersubjetivo que não se pauta apenas no reconhecimento da diferença entre as culturas, mas, sim, no interior delas enquanto riqueza humana.

O diálogo, com base em Freire (2005a), é o encontro dos sujeitos, mediatizados pelo mundo, não se esgotando na relação eu-tu.

E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideais de um sujeito no outro, nem tampouco torna-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes. (FREIRE, 2005a, p. 91).

Nesse sentido, a unidade na diversidade requer, entre diversos aprendizados, um demasiado importante, e difícil de ser concretizado: a compreensão crítica que as “minorias” devem ter de sua cultura não pode se esgotar nas questões de raça e de sexo, mas demanda compreensão do corte de classe. Um aspecto do problema, apenas, não pode explicá-lo. O problema da discriminação deve ser compreendido em sua totalidade, em sua relação com as divisões de classe, levando em consideração a ideologia que a cerca (FREIRE, 2003).

Outra questão importante é o problema da multiculturalidade, que não se constitui em uma justaposição de culturas, nem no poder exacerbado de umas sobre as outras. Ela se faz na liberdade conquistada, no direito assegurado de toda cultura mover-se respeitando sempre a outra, sem correr riscos pelas diferenças.

Freire (2003) explica que, necessariamente, as diferenças entre as culturas, na multiculturalidade, trazem tensões dentro de relações democráticas. Essa tensão é vivida no processo de construção, de criação, de produção da multiculturalidade, que nunca está pronta e acabada. Ela é gerada pelo inacabamento, assumido como razão de ser da própria procura e de conflitos que não são antagônicos, criados na situação de medo, prepotência, “cansaço existencial”, vingança ou pelo desespero diante da injustiça que parece perpetuar-se. Por isso, não há multiculturalidade como fenômeno espontâneo, mas criado, produzido politicamente na história.

Nessa perspectiva, a criação da multiculturalidade implica a unidade na diversidade, a luta por ela, o que demanda decisão, vontade política, mobilização, organização de cada grupo cultural, quando se almeja um objetivo comum. Além disso, também requer uma prática educativa coerente com os objetivos traçados e uma nova ética, fundada no respeito às diferenças.

A unidade na diversidade, defendida por Freire (2003) enquanto luta política, que exige mobilização e organização de forças culturais, sem desprezar o corte de classe, deve constituir-se com a superação da democracia puramente liberal. Isso significa ir além de sociedades nas quais as estruturas geram a ideologia, segundo a qual a responsabilidade pelos fracassos e insucessos, que elas mesmas criam, pertence aos fracassados enquanto indivíduos, e não às estruturas ou à maneira como funcionam as sociedades.

Freire (2003) descreve a fala de Osmarino Amâncio, líder dos seringueiros na ECO - Rio 92, sobre a diversidade, relatando que:

No começo” afirmou ele, “instigados pelos poderosos acreditávamos que os índios eram nossos inimigos. Por sua vez, os índios manipulados pelos mesmos poderosos, acreditavam que éramos seus inimigos. Com o tempo, fomos descobrindo que as nossas diferenças não deveriam ser jamais razão para que nos matássemos entre nós em favor do interesse dos poderosos. Descobrimos que éramos todos ‘povos da floresta’ e que queríamos e queremos uma coisa só em torno da qual nos devemos unir: a floresta”. Hoje, “conclui”, “somos uma unidade nas nossas diferenças. (FREIRE, 2003, p. 155-156).

O sonho, como projeto, “desenho” de um mundo diferente, menos feio, é extremamente necessário aos sujeitos políticos, que transformam o mundo e não se adaptam a ele. Por isso, no que se refere aos interesses das classes dominantes, quanto menos sonharem as classes oprimidas, deixando de exercitar uma aprendizagem política do comprometimento com a utopia e tornando-se abertas aos discursos “pragmáticos”, mais tranquilidade oferecerão àqueles que provocam sua subordinação (FREIRE, 2003).

Devido a essa situação, é preciso que as classes trabalhadoras continuem aprendendo, na prática de sua luta, a demarcar limites para suas concessões, ensinando à camada dominante as limitações de seus movimentos. Não é possível esquecer que as relações entre as classes sociais constituem um fato político e geram saberes de classe, demandando lucidez na escolha das melhores táticas que, sendo históricas, devem estar coerentes com os objetivos estratégicos.

As classes sociais, bem como seus interesses antagônicos e suas lutas, não são desfeitos por meio dos discursos neoliberais; as lutas têm historicidade e mudam nos diferentes espaços e tempos. Como afirma Freire (2003, p. 93), “[...] a luta não nega a possibilidade de acordos, de acertos entre as partes antagônicas. Os acordos fazem parte igualmente da luta”. O autor afirma ainda que:

Há momentos históricos em que a sobrevivência do todo social coloca às classes a necessidade de se entenderem, o que não significa, repitamos, estar-se vivendo um novo tempo histórico vazio de classes sociais e de seus conflitos. Um novo tempo histórico sim, mas em que as classes sociais continuam existindo e lutando por interesses próprios. (FREIRE, 2003, p. 94).

A compreensão dos seres humanos, como seres históricos, culturais, sociais, que tomam decisões, fazem opções e constroem suas lutas, estabelecendo possibilidades para seus contextos e suas relações e negando o determinismo, está relacionada à ideia da necessidade de superação das certezas. As certezas não podem se estabelecer diante da compreensão de que os seres humanos gestam sua natureza no processo histórico, fazendo-se objetos e sujeitos dele. Para Freire (2003), não há como entender a presença humana no mundo fora de uma visão histórica, social e cultural da existência, como seres que fazem seus caminhos e se entregam a ele, ao fazê-lo e refazê-lo.

Ao contrário dos animais, que não se tornaram capazes de transformar a vida em existência, os seres humanos engajam-se na luta pela igualdade de possibilidades, pois carregam diferenças entre si. A evolução humana, em relação ao animal, fez-se mediante a interação permanente entre o inato e o adquirido. No contexto dessa relação, a consciência de si, de sua existência e de seu saber conduziu as pessoas a saberem mais e buscarem a razão de ser de tudo.

Para Freire (2005a), o diálogo, que é palavra verdadeira, implica reflexão e transformação sobre o mundo, uma vez que não há palavra verdadeira que não seja práxis. Dizer a palavra verdadeira, portanto, é transformar o mundo. A palavra inautêntica, em sua concepção, com a qual não se pode transformar a realidade, resulta de uma dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes: a ação e a reflexão. Quando esgotada a palavra de sua dimensão de ação, a reflexão fica, automaticamente, sacrificada, e essa palavra transforma-se em verbalismo, blábláblá, e por isso alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação.

Quando, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da reflexão, Freire ressalta que a palavra se converte em ativismo. Este, que é a ação pela ação, ao minimizar a reflexão, nega também a práxis verdadeira e impossibilita o diálogo. Na verdade, qualquer dessas dicotomias, ao gerar-se em formas inautênticas de existir, gera formas inautênticas de pensar, que reforça a matriz em que se constituem, uma vez que, na visão de Freire (2005a), a existência, porque humana, não pode ser muda, nem nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, por meio das quais os homens e as mulheres transformam o mundo. Nas palavras do autor, “[...] não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão. O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE, 2005a, p. 90-91).

Sem a curiosidade, que nos lança permanentemente à indagação, na qualidade de seres da pergunta, não há atividade gnosiológica, que é a expressão concreta da possibilidade humana de conhecer. Por isso, Freire (2005a) enfatiza a grande importância de uma educação crítica da curiosidade, contrária à memorização mecânica de conteúdos e ao discurso de respostas a perguntas que não foram feitas.

De acordo com a prática educativa progressista de Freire (2003), os objetos de conhecimento devem ser entregues à curiosidade cognoscitiva de professores(as) e alunos(as), pois têm implicações ideológicas e políticas que são aprendidas pelos sujeitos cognoscentes. Por isso, a dinâmica relação entre a leitura do mundo e o conhecimento da palavra, do conteúdo, do objeto cognoscível, impõe-se. A autêntica prática progressista reconhece que não se pode pensar autenticamente se outras pessoas não pensam. O pensar não deve se dar pelos outros, nem para os outros ou sem os outros. O pensar autêntico faz-se com os outros.

Em nenhuma sociedade, as mudanças em favor da justiça, da igualdade de direitos, da democracia, fazem-se por vontade dos dominantes de proporcionar uma nova vida aos “condenados da terra”. A superação dos problemas sociais exige decisão política, mobilização popular, organização, intervenção política, liderança lúcida, democrática, esperançosa, coerente, tolerante (FREIRE, 2005b).

Para Freire (2005b), a tolerância é uma virtude que não se ensina, pois implica testemunho, abertura aos outros, conhecimento na luta pelo sonho. Não se exercita a tolerância no isolamento da própria verdade, rejeitando o que é diferente, mas pela disposição de conviver e lutar com ele, contra o antagônico. No entanto, a tolerância não pode existir fora da coerência entre o que se diz e o que se faz, pois, se assim ocorrer, ela pode se transformar em conivência. Isso significa que é possível discutir as próprias posições com neoliberais, mas não firmar acordos que impliquem concessões para a deterioração do sonho estratégico.

Assim, a prática educacional democrática, voltada à formação da cidadania, não poderá prescindir de situações em que os(as) educandos(as) vivenciem a força e o valor da unidade na diversidade, a solidariedade e o companheirismo em que um(a) educador(a) democrata respeita a liberdade dos(as) educandos(as), mostrando-se aberto(a) à escuta e justo(a) no tratamento dos problemas. Isso afirma a sua autoridade. Autoridade que não pode se perder na licenciosidade nem no autoritarismo. O que sustenta a autoridade do(a) educador(a) democrata é a sua coerência. “O educador que diz uma coisa e faz outra, eticamente irresponsável, não é só ineficaz: é prejudicial. Desserve mais do que o autoritário coerente” (FREIRE, 2005b, p. 73).

O autoritarismo do(a) educador(a) bancário(a), ao contrário, está voltado(a) à vigilância acirrada sobre os(as) educandos(as); manifesta-se pelo desrespeito à criatividade, à identidade cultural, ao estar sendo dos(as) educandos(as); revela-se na visão estreita com que compreende o processo ensinar/aprender, reduzindo os(as) estudantes a memorizadores(as) mecânicos(as) do conteúdo que é depositado pelo(a) educador(a).

Ao teorizar sobre uma educação democrática, Freire (2005b) não quer dizer que a democracia deva ser ensinada ou aprendida por meio de discursos. Aprende-se a fazer e ensinar democracia fazendo-se democracia, o que não dispensa a discussão sobre a presença ou a ausência da prática democrática, sobre as razões de ser da inexperiência democrática em nosso país.

Nesse processo de conhecer, assim como no âmbito da existência humana, a dialogicidade se faz prática fundamental à democracia, ao mesmo tempo em que se constitui em uma exigência epistemológica, estratégica e não simples tática para alcançar determinados resultados. Na ação educativa, a dialogicidade não poderá ser entendida como instrumento utilizado, esporadicamente, pelos(as) educadores(as), em coerência com sua opção política. “A dialogicidade é uma exigência da natureza humana e também um reclamo da opção democrática do educador” (FREIRE, 2005b, p. 74). Nessa perspectiva, as Atuações Educativas de Êxito (AEE) na área educacional indicadas pela pesquisa INCLUD-ED (2006-2011), desenvolvida pelo Centro de Excelência para todos(as) (CREA) da Universidade de Barcelona, Espanha, ganham destaque.

Com base nesses conceitos freireanos, as pesquisadoras e os pesquisadores do núcleo de pesquisa ao qual pertencem as autoras do texto vêm se dedicando, há quase duas décadas, ao processo de transformação de escolas em comunidades de aprendizagem e na difusão de AEE como concretização de processos democráticos – guiados, ao mesmo tempo, por sonho e ciência. Para ilustrar a maneira como o núcleo desenvolve seu trabalho pautado em princípios freireanos, apresentamos a seguir o conceito de AEE e resultados de pesquisa em escola brasileira de Educação de Jovens e Adultos (EJA) que as implementou desde 2010. Nas análises, destacamos os conceitos de unidade na diversidade (FREIRE, 2003) e igualdade de diferenças (FLECHA, R. 1997).

As Atuações Educativas de Êxito (AEE)

Em linhas gerais, as AEE perpassam todo o processo de desenvolvimento de uma comunidade de aprendizagem por meio dos princípios da aprendizagem dialógica: diálogo igualitário, dimensão instrumental, inteligência cultural, transformação, criação de sentido, solidariedade e igualdade nas diferenças. De acordo com Mello, Braga e Gabassa (2012), esses princípios articulam-se às formulações teóricas para permitir descrever o que, na prática, se dá como uma unidade.

A Aprendizagem Dialógica acontece nos diálogos que são igualitários, em interações em que se reconhece a inteligência cultural de todas as pessoas, e está orientada para a transformação do grau inicial de conhecimento e do contexto sociocultural, como meio de alcançar o êxito de todos. A Aprendizagem Dialógica acontece em interações que aumentam a aprendizagem instrumental, favorecendo a criação de sentido pessoal e social, e que são guiadas pelo sentimento de solidariedade, em que a igualdade e a diferença são valores compatíveis e mutuamente enriquecedores. (AUBERT et al., 2008, p. 167).

Ao aderir à proposta de Comunidades de Aprendizagem1, a escola dá início a um plano de ação para realizar as atividades que buscam melhorar a aprendizagem dos estudantes e o convívio respeitoso entre todos(as). Esse processo ocorre pela participação dos familiares e da comunidade de entorno nas comissões mistas que se responsabilizarão pela realização das ações priorizadas e dos sonhos da fase de transformação, planejando, executando e avaliando as ações, em conjunto aos membros de outras comissões (FLECHA, A. et al., 2009). Ou, também, como voluntariado apoiando o trabalho do(a) professor(a) nos Grupos interativos, os quais têm por objetivo reforçar os conteúdos já trabalhados em sala de aula por meio do apoio de uma pessoa voluntária que dinamiza a interação em torno de uma atividade elaborada pelo(a) docente, com base no que foi trabalhado em dias anteriores.

Para a realização dessas atividades, é necessário que haja uma organização da aula em grupos heterogêneos, tendo em vista a ideia de que todos aprendam e realizem os exercícios de maneira solidária em interação respeitosa. Os Grupos interativos ocorrem uma vez por semana nas salas de aula, considerando-se a máxima diversidade de composição entre os estudantes e com duração de 15 a 20 minutos cada. Neles, os(as) estudantes dedicam-se a realizar entre quatro a cinco atividades em cada grupo, apoiando-se mutuamente na aprendizagem. Assim como os Grupos interativos, outras atuações também se destacam, como a Biblioteca tutorada, que se caracteriza por ser uma atuação que visa à extensão do tempo de aprendizagem para além da aula regular, priorizando o atendimento ao alunado por meio da interação e do diálogo de quem participa (professores, voluntários, estudantes, familiares, bibliotecários dentre outros).

As Tertúlias dialógicas são encontros semanais dedicados à realização da leitura de obras clássicas de produção nacional e internacional. Essa atuação caracteriza-se por ser um processo de leitura mediada pelo diálogo em torno dessas obras e a partir do destaque e do comentário pessoal de cada participante, gerando, assim, mais aprendizagem e conhecimento. Além disso, tal processo acarreta a produção de novos significados que transformam a linguagem e o conteúdo da vida das pessoas envolvidas. Elas podem ser literárias, artísticas, pedagógicas e científicas. Vale dizermos da importância que tem a mediação do(a) moderador(a) para que de fato consiga promover o diálogo igualitário entre todos(as) os(as) participantes.

A formação de familiares e a participação educativa da comunidade permitem maior aproximação da comunidade de entorno escolar em temas que sejam de seu interesse, como alfabetização, informática, língua estrangeira e nos espaços e nas atividades relacionadas diretamente à aprendizagem das crianças, como as tertúlias, os grupos interativos, a biblioteca tutorada e outros. O fato de participarem desses espaços na escola ajuda a potencializar suas relações com a escolarização e a aprendizagem de outros membros de sua família, fortalecendo em casa e na vizinhança vínculos e motivações com a escola (DE BOTTON et al., 2014).

Por fim, o modelo dialógico de prevenção de conflito desenvolve-se a partir de uma ação que seja recorrente na escola e também amplamente reconhecida pela sociedade como um problema e uma violência. Detectada essa ação, monta-se uma comissão mista formada entre estudantes, familiares, profissionais da escola, que tem por objetivo levantar junto a todos os(as) estudantes, de sala em sala, a problemática na escola de modo a propor uma primeira redação de norma, que será debatida com todos, chegando-se a uma formulação posta em consenso entre estudantes e profissionais para, por fim, levá-la a uma assembleia com familiares para que todos a assumam como sua. É papel da comissão acompanhar se a norma proposta está de fato servindo como parâmetro ou se tem de ser reformulada, ou mesmo abandonada em caso de que a situação que a gerou foi superada na escola.

O projeto INCLUD-ED (2006-2011) teve por objetivo indicar estratégias para inclusão e coesão social na Europa a partir da Educação (INCLUD-ED, 2012). Mais especificamente, o Projeto realizou 26 estudos de caso em oito países dos 14 envolvidos na pesquisa mais ampla, em escolas de êxito, para verificar de perto os resultados que ali estavam ocorrendo (VALLS; PADRÓS, 2011). A indicação das escolas foi feita pelos Ministérios da Educação, considerando as regiões com desvantagem social, que congregassem diversidade cultural acentuada e que estivessem obtendo os melhores resultados educativos.

Como principais resultados do INCLUD-ED (2006-2011), teve-se a aprovação de uma série de recomendações e resoluções políticas (Parlamento Europeu, Comissão Europeia, Conselho da Europa), que indicam aos Estados-Membros transformar suas escolas em comunidades de aprendizagem e implantar as atuações educativas de êxito que têm componentes universais passíveis de transferência. São eles: a) gerar mais altas melhorias nos resultados de aprendizagem e de convivência na prática; b) transferência de tais êxitos a muitos e diversos contextos; c) demonstração dos dois pontos anteriores em pesquisas científicas que levem em conta as vozes de todos(as) os(as) envolvidos(as), e não apenas de um tipo de participante; e d) validação dos três pontos anteriores, por meio de publicações em periódicos reconhecidos pela comunidade científica internacional, representados pelos conselhos editoriais das revistas indexadas internacionalmente, como a base Scopus, a Web of Science e a Journal Citation Report (JCR).

De acordo com as contribuições de Valls e Kiriakides (2013), o projeto representa um avanço do conhecimento na área da educação, uma vez que trouxe a reorganização dos recursos disponíveis nas escolas e na comunidade de entorno, com a finalidade de garantir o êxito acadêmico de todos os estudantes, ao invés de sua segregação por nível, o que reduziria suas oportunidades educacionais.

Algumas das atuações que já compunham o desenho de Comunidades de Aprendizagem desde sua origem foram validadas a partir do INCLUD-ED (2006-2011) com base em duas ações centrais: aquelas que envolviam os familiares na vida da escola a partir de uma participação decisória e educativa e aquelas destinadas à aprendizagem tanto dentro quanto fora da sala de aula (FLECHA, R., 2015). Além dessas, surgiram outras duas atuações referentes à formação de professores e ao Modelo dialógico de prevenção de conflitos. Chegava-se, assim, as sete AEE que atualmente compõem a transformação de escolas em comunidades de aprendizagem: Grupos interativos, Tertúlias dialógicas, Biblioteca tutorada, Formação dialógica do professorado, Modelo dialógico de prevenção de conflitos e Participação educativa da comunidade.

No Brasil, desde 2002, o Núcleo de Investigação e Ação Social e Educativa (NIASE), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), transferiu para o país tanto o processo de transformação de escolas em Comunidades de Aprendizagem como as AEE que o compõem. Validada a transposição em uma sequência de pesquisas, a seguir, focalizamos uma delas, realizada em uma escola pública de EJA do interior paulista.

Metodologia de pesquisa

Os dados aqui apresentados fazem parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida entre os anos de 2014 e 2016 a partir de um estudo de caso qualitativo em relação à transformação da primeira escola de Educação de adultos no Brasil em Comunidades de Aprendizagem (MELLO; BRAGA, 2018).

A Metodologia Comunicativa é baseada nas contribuições das Ciências Sociais sobre a virada dialógica dos eventos na sociedade, que se refere ao diálogo como principal meio de compreender e transformar a realidade (BECK, 1992; ELSTER, 2001; GIDDENS, 1991; HABERMAS, 1987). Assim, por meio de um diálogo intersubjetivo e igualitário, busca potencializar todas as vozes das pessoas envolvidas na pesquisa por meio das técnicas de coleta e de análise de dados, rompendo, assim, com a hierarquia interpretativa existente entre pesquisador e participante em todo o processo de pesquisa (GÓMEZ; PUIGVERT; FLECHA, 2011).

Mais, especificamente, as técnicas de coleta utilizadas na pesquisa abordaram momentos individuais (entrevistas comunicativas – EC; relatos comunicativos de vida cotidiana – RC; momentos coletivos (grupo focal comunicativo - GC) e observações comunicativas - OC), considerando a participação de sujeitos envolvidos no processo de transformação da escola em CA (coordenador geral, coordenador de apoio, professores, estudantes, voluntariado). A Tabela 1, a seguir, traz as técnicas de coleta utilizadas e indica os sujeitos e o número de vezes, por ano, que as técnicas foram utilizadas. Nos anos de 2014 e 2015, a coleta foi realizada ao final do ano letivo, para que os participantes tivessem visão global do processo; e, no ano de 2016, foram complementados dados com entrevistas com duas voluntárias, com o coordenador geral e com uma coordenadora de apoio da EJA na escola.

Tabela 1 Técnicas de coleta de dados, sujeitos e anos da pesquisa 

Técnicas de coleta Sujeitos Número de vezes
2014 2015 2016
Entrevista comunicativa (EC) Coordenação geral EJA (CoordG.) 1 1 1
Coordenação de Apoio. (Coord.Ap.) 1 1 1
Relato comunicativo de vida cotidiana (RC) Estudante 1 (Est.1) 1 1
Estudante 2 (Est.2) 1 1
Estudante 3 (Est.3) 1
Estudante 4 (Est.4) 1
Estudante 5 (Est.5) 1
Estudante 6 (Est.6) 1
Vol. 1 (Vol.1) 1
Vol. 2 (Vol.2) 1
Vol. 3 (Vol.3) 1
Vol. 4 (Vol.4) 1
Vol. 5 (Vol.5) 1
Vol. 6 (Vol.6) 1
Prof. 1 (Prof1) 1 1
Prof. 2 (Prof2) 1 1
Prof. 3 (Prof3) 1
Grupo focal comunicativo (GC) Estudantes (Est.1 a Est.20) 1 1
Voluntários(a) (Vol.1 a Vol.13) 1 3
Professores(as) (Prof.1 a Prof.10) 1 1
Observação comunicativa (OC) Comissões mistas (CM) 2 2
Tertúlia Literária Dialógica (TLD) 1 1
Grupos Interativos (GI) 1 1
Extensão do tempo de aula (ETA) 1 3
Formação dialógica (professorado e voluntários) (FD) 1 1

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Para cada coleta, as pesquisadoras apresentavam ao grupo como funcionaria a técnica de coleta e as questões abertas a partir das quais dialogariam. As questões focalizaram obstáculos e aspectos favorecedores da escolarização e das aprendizagens e recomendações para superar os obstáculos encontrados. As atividades foram gravadas em áudio e em vídeo, sendo posteriormente transcritas e organizadas pelas pesquisadoras. No cuidado com os aspectos éticos da pesquisa, o projeto foi aprovado pelo Conselho de Ética da UFSCar e, cientes dos objetivos e das finalidades do estudo, os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Cada transcrição foi identificada com um código, criado da junção de: a) sujeito, composto pela categoria de participação na escola (coordenador geral, coordenador(a) de apoio, professor(a), estudante, voluntário(a)), seguido de um número para cada sujeito; b) técnica de coleta (entrevista comunicativa, relato comunicativo de vida, grupo focal comunicativo e observação comunicativa, e, nesse caso, em qual atuação educativa de êxito – comissão mista, grupo interativo, tertúlia literária dialógica ou extensão do tempo de estudo); e c) ano da coleta.

Na codificação, foram usados números e letras da seguinte maneira: a) para os sujeitos, a partir da autoidentificação durante a coleta, foram atribuídas abreviaturas para a categoria de participação na escola (Coord., para coordenador(a); Prof. para professor(a); Vol., para voluntário(a); Est., para estudante), seguida de número, de 1 até no máximo 20, em cada categoria; depois foi atribuída uma letra para sexo/gênero (H. para homens, M. para Mulheres e T. para transgênero); uma letra para cor-raça (b., para branco; p. para pardo; n. para preto; i. para indígena; o. para descendente de oriental); e uma letra para grupo de idade, divisão estipulada por documentos legais brasileiros (j. para jovens entre 15 e 25 anos; a. para adultos entre 26 e 59 anos; i. para idosos entre 60 e mais anos); b) para as técnicas de coleta de dados, foram atribuídas letras referentes ao nome das técnicas: Entrevista Comunicativa (EC), Relato Comunicativo de Vida (RC), Grupo Focal Comunicativo (GC), Observação Comunicativa (OC) e, no caso da observação comunicativa, à continuação, as primeiras letras da Atuação Educativa de Êxito observada, ou seja, para Comissões Mistas (CM), para Tertúlias Literárias Dialógicas (TDL), para Grupos Interativos (GI), para Extensão do Tempo de Estudo (ETE) e para a Formação Dialógica (FD); por fim, foram agregados dois dígitos referentes ao ano da coleta (14, 15 ou 16). Como exemplo de aplicação do sistema de código, ao se tomar um depoimento colhido em 2015, em relato comunicativo de vida, de uma estudante mulher, parda e entre 25 e 59 anos a codificação correspondente ficaria: Est2.M.p.a_RC15.

Por seu recorte transformador, na Metodologia Comunicativa, a organização e a análise dos dados dão-se em dois eixos: os aspectos excludentes e os aspectos transformadores, de forma a registrar o número de vezes que foram mencionados pelos(as) participantes. Os aspectos excludentes são os que impedem instituições e sujeitos de alcançarem os instrumentos necessários para o exercício da igualdade social; os elementos transformadores são aqueles que favorecem tal acesso.

A unidade na diversidade a partir das AEE

Quando falamos de Comunidades de Aprendizagem e das AEE, falamos de dois eixos centrais referentes à melhoria da aprendizagem e da convivência respeitosa. Embora tenham suas especificidades, eles aparecem de forma muito articulada, principalmente pelas ações de solidariedade entre os/as estudantes. Para Freire (2005b), a prática educacional democrática, voltada à formação da cidadania, não poderá prescindir de situações em que os(as) educandos(as) vivenciem a força e o valor da unidade na diversidade, a solidariedade e o companheirismo.

Nesse sentido, os dados da escola de EJA transformada em CA que desenvolveram as AEE revelaram grandes contribuições para pensarmos a unidade na diversidade, principalmente a partir do diálogo igualitário estabelecido entre as diferenças expressadas nessa unidade escolar (religião, políticas partidárias, machismo, racismo, relação entre jovens e pessoas adultas). O Quadro 1, a seguir, apresenta a frequência de menções a esses elementos destacados na coleta de dados, essencialmente por meio dos relatos comunicativos ou das entrevistas e dos grupos focais comunicativos referentes a essas subcategorias.

Quadro 1 Elementos transformadores e elementos excludentes do convívio em CA 

Categoria Subcategorias Dimensão transformadora Dimensão excludente
Convívio em CA - religioso 1 - 4 menções 1 - 2 menções
- gênero 2 – 5 menções 2 – 4 menções
- questões sociais e escolhas políticas 1 – 1 menção 0
- geracionais 2 – 10 menções 1 – 17 menções
- raciais, étnicas 1 – 3 menções 1- 1 menção
5 subcategorias 7 – 23 menções 5 – 24 menções

Fonte: Elaborado pelas autoras.

No aspecto referente à religião, na escola, havia frequentemente confrontos entre pessoas de diferentes credos. Após ter se transformado em CA e de nela se desenvolverem as AEE, as falas de estudantes, coordenador geral e professorado indicaram que o convívio melhorou, considerando os espaços que foram sendo abertos para o diálogo respeitoso.

Então, as atividades, os grupos interativos e as tertúlias, elas facilitaram essa interação entre os estudantes, foi muito bonito de ver as pessoas se ajudando, as pessoas conversando, diferentes gerações interagindo, e uma coisa interessante que eu percebi, porque eu gosto muito de andar pela escola, eu fico andando, andando, mesmo quando não era grupo interativo as pessoas se ajudando. Um dia eu cheguei, me chamou muita atenção, cheguei 22h30min, bate o sinal 22h35min, uma aula de matemática e os estudantes estavam um do lado do outro, sentados um do lado do outro, eu perguntei: - Professora, nossa, o que está acontecendo? Eles estão se ajudando. Então, da prática do grupo interativo de matemática, eles estão levando para as aulas comuns, estão se ajudando, então isso aí eu achei um aspecto muito bom, então que ajudou nessa questão da convivência. (Coord.1_H.b.a._GC_2014).

A transcrição do trecho de observação comunicativa de TLD, com o livro A Metamorfose, de Franz Kafka, ilustra o que aqui se afirma. O professor começou indicando em que ponto das reflexões pararam no encontro anterior: na comparação que uma participante fez entre a relação da família com Gregor, a personagem que se transforma em inseto, e a de uma amiga sua com o neto homossexual. Então a participante diz:

Fui eu. Foi a que vivi. Fui à casa de uma amiga e na roda que fizemos no quintal da casa dela, apareceu o neto dela vestido de mulher e pediu a benção: “Benção avó”. Ela humilhou o menino, dizendo que ele não era mais neto dela, que um homem vestido de mulher era pecado. Eu achei muito ruim o que ela fez. Ele tem direito de escolher. A família tem de entender! (Est1._M.p.a._OC_TLD_2015).

Na continuidade da conversa, outra senhora pediu a palavra e disse: “Mas está na bíblia, é pecado homem querer ser mulher. Eu não aceitaria! É pecado!” (Est2._M.p.a._OC_TLD_2015). Então, um jovem pediu a palavra e argumentou:

Eu conversei sobre isto com um colega outro dia. Eu não sou gay e nem fico estimulando ninguém, mas se eu tiver um filho ou uma filha que seja gay ou lésbica, eu não vou colocar para fora de casa, eu vou apoiá-los! (Est3._M.n.j._OC_TLD_2015).

Dirigindo-se à Est.2, ele perguntou: “Se seu filho ou filha fosse gay, você os colocaria para fora de casa? Eu gostaria de entender isso.” (Est1._M.n.j._OC_TLD_2015). E ela, depois de refletir um pouco, afirmou: “Não, eu não colocaria” (Est1._M.n.j._OC_TLD_2015).

O professor que estava mediando a TLD perguntou se os estudantes tiveram a oportunidade de pesquisar, de buscar informações sobre a dúvida que tinham no encontro anterior sobre se ser gay é uma escolha ou uma orientação sexual. Diante da negativa da turma, ele mesmo então disse que pesquisou e que trouxe um material organizado pelo movimento Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBT) da cidade e perguntou se podia ler o trecho que se referia a tal dúvida. A turma consentiu e escutou a leitura (OC_TLD_2015).

Esse exemplo evidencia o respeito e a valorização da leitura de mundo dos/as participantes, porém sem acomodação a ela, pois trata de pontos de partidas importantes a serem problematizados a partir do diálogo. Um diálogo, segundo Freire (2003), em que todos, educandos(as) e educadores(as), possam se assumir como sujeitos capazes de conhecer, implicando um respeito fundamental entre eles. Nesse sentido, as AEE vão criando espaço para esse convívio respeitoso e cognoscente, promovendo aprendizagem, reflexão e transformação. Um professor que realizava grupos interativos em sua sala revelou:

Então, foi a questão da violência contra a mulher, a questão de gênero, saúde... É que a gente viu, a gente estudou o sistema reprodutor só que eu busco não ficar só na parte fisiológica/biologia, então eu busco também as questões sociais com eles né.

Discutir o aborto, a questão de gênero, até porque nós temos um casal de homossexuais na sala, são duas meninas. Então, gerou várias discussões legais. A gente vê que tem muita coisa de senso comum e, ao trazer estas informações de leis, das leis que estão sendo aprovadas que eles não tinham conhecimento, isso me chamou muito a atenção que o discurso machista, até as próprias mulheres acabam tendo este discurso. Aí eles falam: “A moça está saindo de shortinho curto é porque ela está querendo alguma coisa”. Então, as próprias mulheres acabam tendo este discurso que é uma coisa que vem sendo colocada na sociedade, e se a gente não discute na escola ou em outro lugar, eles vão levando esse discurso.

E as meninas estagiárias, porque é assim, ficava “a gente não pode colocar o nosso discurso” e eu falei: “Não, a gente tem que mostrar outras formas de pensar”. Eu não vou destruir tudo que eles acreditam, até porque tem bastante religiosos, eu não vou destruir o discurso religioso, mas vou mostrar outra forma de encarar a realidade.

Então, foi bacana essa discussão que a gente acabou tendo. E um fato que me chamou a atenção foi uma aluna que morava, não lembro agora o estado do Nordeste, mas ela sofria violência do marido, violência física, o marido a traia, violência física, psicológica, enfim... e ela achava isso normal. Para ela isso era normal, pois via isso na mãe dela, aconteceu isso, todo mundo que ela via passou por isso. Isso para ela era normal. Depois que ela veio para São Paulo que ela começou a trabalhar, aí ela começou a ter outras visões da realidade, e ela acabou separando do marido. Ela falou que foi muito duro, que ficou muito tempo sem chegar perto de homem algum, ficou traumatizada. Ela ficou por muito tempo achando que era normal. E eu pensei “Caramba, como assim em pleno século XXI a gente ainda presencia isso?” Isso me chocou bastante. (Prof3_Hba_EC_2015).

Nesse processo, a escuta atenciosa é a parte necessária do diálogo que requer postura de respeito, amor, humildade, tolerância, entre outras qualidades em relação à fala do outro que vão sendo construídas nessa prática democrática de escutar. A atuação do professor vai ao encontro dessa prática ao afirmar-se como intelectual progressista, constituindo-se uma de suas tarefas mais importantes a desmitologização dos discursos pós-modernos sobre a inexorabilidade das situações sociais concretas. Se há um poder econômico e político que destitui os fracos de seus direitos e espaços, tal situação não é imutável, mas deve ser superada pela força daqueles que podem ser capazes de instaurar a justiça. Transformar a fraqueza em força requer a recusa ao fatalismo, considerando que somos seres da transformação e não da adaptação.

Além do professor, também foi possível ver a presença dessa postura democrática no coordenador geral da escola ao explicar sua ação diretamente com o agressor de forma a limitar sua atuação discriminatória (CoordG._H.b.a._2015). Exemplo de intervenção foi observada pela equipe de pesquisa quando, em 2014, um dos estudantes – homem, branco, adulto – nos grupos interativos, se recusava a se sentar nos grupos onde estava uma voluntária negra jovem, porque, para ele, “negra e jovem não saberia nada”. Diante do ato racista, o coordenador geral da EJA encaminhou conversa com o estudante indicando que se tratava de racismo e que isso era inadmissível (OC_2014). Na mesma época, uma intervenção de uma voluntária do bairro – mulher, parda, adulta – foi feita junto a esse senhor, em reunião de comissão mista: frente ao comentário de que os jovens que não se concentravam nas aulas deveriam apanhar, a voluntária interferiu lembrando que as coisas devem ser resolvidas com diálogo, e não com violência (OC_2014).

Isso se torna possível porque em um diálogo os sujeitos dialógicos conservam suas identidades e as defendem, crescendo um com o outro (FREIRE, 2003). Ninguém precisa concordar com o outro, mas há de considerar que o outro pode pensar e viver diferente de si; o limite ético das diferenças, na aprendizagem dialógica, encontra-se nos direitos humanos (VALLS; MUNTÉ, 2010).

[...] o que facilita a prática dialógica, o que facilita é buscar entender que nós podemos aprender também com o outro, a partir do momento que a gente entende que pode aprender também com o outro, que nós não sabemos tudo, e que nós estamos sempre aprendendo a partir do momento que a gente entende, isso fica mais fácil colocar e o que dificulta é tudo isso que eu tenho falado, romper algumas coisas postas, de quem sabe que é o professor, de quem comanda uma escola que é o diretor, não, romper algumas coisas pra juntos a gente pensar, porque pensando juntos a gente pensa melhor. (CoordG_H.b.a._GC_2014).

Destarte, a construção da humanização não é algo dado a priori, pois concretiza-se processualmente; implica ruptura das condições reais, de ordem econômica, política, social, ideológica, que condena à desumanização e traz em si a necessária esperança e a importância da compreensão da linguagem e de seu papel na conquista da cidadania.

Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos, limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a transformação da sociedade. (FREIRE, 2003, p. 100).

Assim como o convívio, a aprendizagem foi outro eixo importante destacado nas falas dos(as) professores(as), estudantes e voluntariado da Comunidades de Aprendizagem da EJA, por meio dos relatos comunicativos ou nas entrevistas e nos grupos focais comunicativos, tendo em vista três aspectos distintos: um referente à aprendizagem instrumental (habilidades e conteúdos necessários para maior movimentação do atual contexto); outro acerca das habilidades e das atitudes que fortalecem o sujeito no mundo e, consequentemente, de suas famílias e da comunidade de entorno; e a última acerca da formação docente, conforme exposto no Quadro 2.

Quadro 2 Elementos das dimensões transformadora e excludente da aprendizagem em CA 

Categoria Subcategorias Dimensão transformadora Dimensão excludente
Aprendizagem em CA - leitura 4 – 31menções 2 – 3 menções
- matemática 3 – 8 menções 0
- inglês 2 – 3 menções 1 – 1 menção
- outras matérias 3 – 12 menções 1 – 1 menção
- fortalecimento pessoal 2 – 23 menções 0
- fortalecimento da família e da comunidade 1 – 4 menções 0
- formação de professores 3 – 16 menções 2 – 2 menções
7 subcategorias 18 – 97 menções 6 – 7 menções

Fonte: Elaborado pelas autoras.

As subcategorias demonstradas no Quadro 2 reafirmam o papel da dimensão instrumental para a educação democrática. De acordo com Freire (2003), o conteúdo da educação não é uma doação ou uma imposição que deve ser depositada nos(as) estudantes, mas uma devolução organizada, sistematizada e acrescentada a eles(as) de elementos que ainda têm desestruturados. Esse conteúdo constrói-se a partir da situação presente, existencial, levando-se em consideração o contexto de vida dos alunos e das alunas. Implica a escolha de problemas que desafiam os homens e as mulheres, que lhes exijam respostas, tanto no nível intelectual, como no nível da ação. Não podem estar distantes dos anseios das pessoas, de suas dúvidas, esperanças e temores. Além disso, não podem ser impostos, precisam ser pensados e elaborados com as pessoas. Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-lo a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa” (FREIRE, 2005a, p. 100).

De todo modo, vale ressaltarmos que essa aproximação entre os sujeitos no processo dialógico não os torna iguais; pelo contrário, destaca suas singularidades e proporciona seu crescimento como pessoas à medida que aprendem um com o outro e relacionam-se dialogicamente. Quanto a essa constatação, assim discorre Freire (2003) em Pedagogia da esperança:

O diálogo entre professoras ou professores e alunos ou alunas não os torna iguais, mas marca a posição democrática entre eles ou elas. Os professores não são iguais aos alunos por n razões, entre elas porque a diferença entre eles os faz ser como estão sendo. Se fossem iguais um se converteria no outro. O diálogo tem significação precisamente porque os sujeitos dialógicos não apenas conservam sua identidade, mas a defendem e assim crescem um com o outro. O diálogo, por isso mesmo, não nivela, não reduz um ao outro. Nem é favor que um faz ao outro. [...]. Implica, ao contrário, um respeito fundamental aos sujeitos nele engajados, que o autoritarismo rompe ou não permite que se constitua. (FREIRE, 2003, p. 117-118).

Assim, esse diálogo é vislumbrado dentro de uma dupla dimensão: de preparo técnico ao lado do conhecimento crítico, formando profissionais e cidadãos. O papel do professor(a), nesse caso, deve ser entendido como desafiador do ato cognoscente, em que desafia a curiosidade ingênua dos(as) educandos(as), partejando a criticidade com eles/as. A fala de um professor da escola da EJA evidencia bem a presença dessa rigorosidade metodológica:

Não, mas eu sempre procuro até quando dou avaliação estar sempre ... porque assim, eles não têm tempo para estudar, então eu dou bastante texto para eles, textos de revistas, textos de reportagens. Eu trago algo relacionado com a aula e aí eu tiro tudo ali do texto, e eu falo que a leitura é muito importante, sempre friso. Sempre vou trazendo trabalho com tabelas, gráficos, que são tipos diferentes de textos para eles aprenderem a interpretarem esse tipo de informação. Então eu sempre procuro diferenciar as atividades, trabalho com texto, com imagem, charge, tabela, gráfico, sempre vou fazendo, diferenciando as atividades tanto no grupo interativo quanto nas avaliações. Para não ficar uma coisa decoreba, eles não vão ter tempo para estudar e vão ficar decorando o negócio, isso não é interessante. (Prof3_Hba_EC_2015).

A formação de professores, vista sob a perspectiva formação democrática (FREIRE, 1996) torna-se essencial para a construção dessa rigorosidade metodológica. A pesquisa apontou as formações realizadas nas atuações educativas de êxito como um diferencial para a melhoria da qualidade do conhecimento e das ações na escola e na profissão. O formato da Tertúlia Pedagógica Dialógica e das oficinas de Grupos Interativos e de Tertúlias com professores e voluntários aprofundam o conhecimento docente. A rotatividade de professores e a falta de interesse de professor novo que chega à escola, em conhecer as atuações educativas de êxito, são obstáculos ao sucesso das aprendizagens dos alunos (GC_profes_2014; GC_profes_2015).

Os processos favorecidos pela participação educativa e decisória nas atuações educativas de êxito foram mencionados muitas vezes por estudantes e voluntários/as advindos da comunidade de entorno no que diz respeito à aprendizagem diante do mundo e de fortalecimento pessoal, familiar e da comunidade. A fala de uma jovem voluntária de 15 anos, ex-aluna do período diurno da escola, comenta:

Eu achei importante fazer parte do voluntário, porque é legal, a gente se interessa mais pela lição, você consegue conversar com os alunos, tem até aluno que chega aqui vem falar com a gente, cumprimentar. Os professores ajudam a gente, tem lição que nem eu lembro, aí os professores vêm explicar. E muita coisa. Minha irmã já fez comigo o voluntário, a gente já participou de quase tudo, tudo que teve aqui na escola a gente participou, eu gostei bastante, e se Deus quiser ano que vem eu estou aqui de novo. (Vol.1_M.p.j._GC15).

A aprendizagem por parte dos voluntários(as), seja de conteúdo, seja de postura frente às situações, revelada neste estudo, coincide com resultados de pesquisa realizada no Brasil com voluntários(as) de escolas de crianças, visto que há benefícios e aprendizagens pessoais para eles(as) (MELLO; BRAGA; GABASSA, 2012).

Considerações finais

Ao iniciar uma discussão sobre os conceitos freireanos que permeiam o processo de transformação de escolas em comunidades de aprendizagem e a difusão das atuações educativas de êxito como concretização de processos democráticos, tendo por base o conceito da unidade na diversidade (FREIRE, 2003) e igualdade de diferenças (FLECHA, R., 1997), nosso desafio era de poder contribuir, em alguma medida, com possibilidades de mudança na construção de uma educação democrática em que o diálogo é chave. Estamos certas de que a educação é um dos meios fundamentais para isso, mas depende da ação dos sujeitos para transformar e/ou recriar o mundo. Por não sermos seres determinados, estamos abertos ao “inédito viável” (FREIRE, 2005b), ou seja, à possibilidade de transformação.

Conforme destacado inicialmente, o diálogo é uma característica marcante do contexto atual. Para Freire (2003), é exigência e essência para a humanidade. Um reclamo de coerência entre palavra sincera e ação comprometida. Uma postura necessária de respeito às diferenças e à busca de uma ética universal em prol da humanização do mundo. Um chamamento à prática educativa democrática, que vise a formação autônoma de seus educandos e de suas educandas.

Falar de formação autônoma implica falar de uma escolha comprometida e responsável em busca de ser mais. Quando pensamos em uma educação libertadora, voltada para a formação humana e autônoma de educandos(as), não podemos perder de vista a importância de considerar as vozes dos(as) oprimidos(as), como forma imprescindível desse processo. Entretanto, para além disso, não devemos ignorar o constante exercício de aprender a escutar o(a) outro(a).

No tocante a essas possibilidades, a capacidade de escutar o(a) outro(a) torna-se fundamental no processo de comunicação entre as pessoas, pois proporciona o movimento interno do pensamento, que, para além de simples possibilidade auditiva, estende-se à abertura e ao entendimento do que o outro é, nem sempre correspondente com o que penso ou sou (FREIRE, 1996).

Destarte, na educação progressista defendida pelo(a) educador(a), quando aprendemos a escutar o(a) educando(a), passamos a falar com e não para eles e elas. Portanto, lidar com o diferente tem importância fundamental nesse processo, na medida em que fortalece nossa abertura para a diversidade de pensamentos existentes. Para Freire (1996), esses saberes da escuta e da fala são inerentes ao diálogo e ao estabelecimento de uma prática educativa democrática, pois portam-se como exigências para o exercício de sua condição de sujeito em relação com o(a) outro(a).

Tanto esse saber da escuta que envolve respeito e sinceridade e a melhoria do convívio, somados à aprendizagem, estavam presentes na escola de EJA, a qual se transformou em uma Comunidade de Aprendizagem e realizava as atuações educativas de êxito. Parte-se, portanto, da premissa e da definição de formação como ato de formar, formar-se e reformar-se, anunciada por Freire (1996), que tem a participação da comunidade e dos(as) estudantes nos processos educativos e decisórios, tal qual desenhado nas AEE e no processo de transformação e de desenvolvimento de uma Comunidade de Aprendizagem como eixo fundamental.

Um resultado que se faz com a presença da voz de todos os agentes educativos em processos dialógicos de transformação, como instrumento que articula ciência e sonho; global e local; universal e particular, elementos presentes no atual contexto. Apostamos na capacidade de ação, de linguagem, de reflexividade e de transformação de cada pessoa, que, por meio da comunicação e da intercomunicação, possa desenvolver seus argumentos e sua aprendizagem em condições de igualdade desde a perspectiva de um processo educativo humanizador. Uma ação coordenada e condicionada que faça cada vez mais frente à realidade objetiva, somando-se na caminhada de muitas marchas de transformação.

O pensamento pedagógico freireano inspira-nos na construção desses caminhos alternativos para projetos inovadores em educação. Afirma o autor, “[...] uma educação em cuja prática o ensino dos conteúdos jamais se dicotomize do ensino do pensar certo. De um pensar antidogmático, anti-superficial. De um pensar crítico, proibindo a si mesmo, constantemente, de cair na tentação do puro improviso” (FREIRE, 2003, p. 168).

Um caminho a ser buscado a cada dia pelos inéditos viáveis que surgem a partir da práxis de um movimento contínuo de ação-reflexão-ação que se faz em comunhão. Um caminho esperançoso e utópico que exige criticidade, rigorosidade metódica, insistência ética e solidária na construção de um mundo mais humanizado.

Notes

*A pesquisa contou com o financiamento Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

1Modelo educativo comunitário que envolve oito fases de transformação, das quais cinco são pertencentes à primeira etapa de ingresso (sensibilização, tomada de decisão, sonhos, seleção de prioridades e de planejamento); e três, à segunda etapa de consolidação da proposta (investigação, formação e avaliação). Todas priorizam a participação democrática deliberativa por todos os seus segmentos.

Referências

AUBERT, A. et al. Aprendizaje dialógico en la sociedad de la información. Barcelona: Hipatia, 2008. [ Links ]

BECK, U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. (org.). Modernização reflexiva. São Paulo: Editora da Unesp, 1997. p. 11-68. [ Links ]

BECK, U. Risk society: towards a new modernity. London, UK: SAGE, 1992. [ Links ]

DE BOTTON, L. et al. Moroccan mothers’ involvement in dialogic literary gatherings in a Catalan urban primary school: Increasing educative interactions and improving learning. Improving Schools, [s. l.], v. 17, n. 3, p. 241-249, 2014. DOI: https://doi.org/10.1177/1365480214556420Links ]

ELSTER, J. La democracia deliberativa. Tradução José Maria Lebrón. Barcelona: Gedisa Editorial, 2001. [ Links ]

FLECHA, R. Compartiendo palabras: El aprendizaje de las personas adultas a través del diálogo. Barcelona: Editora Paidós, 1997. [ Links ]

FLECHA, A. et al. Participación en escuelas de éxito: una investigación comunicativa del proyecto Includ-ed. Cultura y Educación, [s. l.], v. 21, n. 2, p. 183-196, 2009. DOI: https://doi.org/10.1174/113564009788345899Links ]

FLECHA, R. Successful educational action for inclusion and social cohesion in Europe. Nova York: Springer International Publishing Company, 2015. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 23. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da esperança: em reencontro com a pedagogia do oprimido. 15. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 43. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005a. [ Links ]

FREIRE, P. À sombra dessa mangueira. 4. ed. São Paulo: Olhos D’agua, 2005b. [ Links ]

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991. [ Links ]

GÓMEZ, A.; PUIGVERT, L.; FLECHA, R. Critical Communicative Methodology: Informing Real Social Transformation Through Research. Qualitative Inquiry, [s. l.], v. 17, n. 3, p. 235-245, mar. 2011. [ Links ]

HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa. Racionalidad de la acción y racionalización social. Madrid: Taurus, 1987. [ Links ]

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de Indicadores Sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2018. v. 27. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf. Acesso em: 3 mar. 2021. [ Links ]

MELLO, R. R.; BRAGA, F. M. School as learning communities an effective alternative for adult education and literacy in Brazil. Frontiers in Education, [s. l.], v. 3, p. 1-17, 2018. DOI: https://doi.org/10.3389/feduc.2018.00114Links ]

MELLO, R. R.; BRAGA, F. M.; GABASSA, V. Comunidades de aprendizagem: outra escola é possível. São Carlos: EDUFSCar, 2012. [ Links ]

INCLUD-ED. Final INCLUD-ED Report. Strategies for inclusion and social cohesion in Europe from education. INCLUD-ED Project. Strategies for inclusion and social cohesion in Europe from education, 2006-2011. 6th Framework Programme. Citizens and Governance in a Knowledge-based Society. CIT4-CT-2006-028603, 2012. Disponível em: https://crea.ub.edu/projects/included/wp-content/uploads/2010/12/D25.2_Final-Report_final.pdf. Acesso em: 3 mar. 2021 [ Links ]

VALLS, R.; KYRIAKIDES, L. The power of Interactive Groups: how diversity of adults volunteering in classroom groups can promote inclusion and success for children of vulnerable minority ethnic populations. Cambridge Journal of Education, [s. l.], v. 43, n. 1, p. 17-33, 2013. DOI: https://doi.org/10.1080/0305764x.2012.749213Links ]

VALLS, R.; MUNTÉ, A. las claves del aprendizaje dialógico en las comunidades de aprendizaje. Revista Interuniversitaria de Formación del Profesorado, [s. l.], v. 24, n. 1, p. 11-15, abr. 2010. [ Links ]

VALLS, R.; PADRÓS, M. Using dialogic research to overcome poverty: from principles to action. European Journal of Education, [s. l.], v. 46, n. 2, p. 173-183, jun. 2011. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1465-3435.2011.01473.xLinks ]

Recebido: 09 de Agosto de 2020; Revisado: 07 de Março de 2021; Aceito: 08 de Março de 2021; Publicado: 20 de Março de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.