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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16609.018 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

A constituição do ser humano a partir de diversos contextos e experiências nas infâncias: a complexidade das obras de Paulo Freire

The constitution of the human being from diverse contexts and experiences in infants: the complexity of Paulo Freire’s works

La constitución del ser humano a partir de diversos contextos y experiencias en las infancias: la complejidad de las obras de Paulo Freire

Franciele Clara Peloso* 
http://orcid.org/0000-0002-9647-001X

Ercília Maria Angeli Teixeira de Paula** 
http://orcid.org/0000-0002-8619-7558

*Professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Campus Pato Branco. Doutora em Educação. E-mail: <clara@utfpr.edu.br>

**Professora da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Doutora em Educação. E-mail: <serciliaangeli@yahoo.com.br>


Resumo:

Paulo Freire elaborou uma obra distinta, na qual defendeu múltiplos saberes: científicos, tecnológicos, técnicos, populares, humanitários. Freire é um intelectual infindo que se concentrou em compreender os problemas sociais. Suas obras são consideradas, majoritariamente, pelas suas contribuições à educação de pessoas adultas e, mais especificamente, à educação popular. Todavia, em suas obras, também existem reflexões acerca das crianças e suas infâncias. Assim sendo, este é um ensaio teórico cujo objetivo é discutir e refletir criticamente sobre as preocupações de Freire com a educação das infâncias. Essas análises permitem afirmar que os pressupostos freirianos podem ser recriados nos contextos relativos à educação das infâncias, anunciando outras possibilidades em relação às práticas realizadas com as crianças bem como às concepções das infâncias.

Palabras-clave: Paulo Freire; Crianças; Educação das infâncias

Abstract:

Paulo Freire elaborated a distinct work, in which he defended multiple knowledge: scientific, technological, technical, popular, humanitarian. Freire is an endless intelectual who focuses on understanding social problems. His works are mostly considered for his contributions to adult education and, more specifically, to popular education. However, in his works there are also reflections on children and their infancies. Thus, this is a theoretical essay whose objective is to discuss and critically reflect on Freire’s concerns with infant education. These analyses state that Freire’s assumptions can be recreated in the contexts related to infant education, announcing other possibilities in relation to practices carried out with children, as well as the conceptions of infancies.

Keywords: Paulo Freire; Children; Infant education

Resumen:

Paulo Freire elaboró una obra distinta, en la que defendió múltiples saberes: científicos, tecnológicos, técnicos, populares, humanitarios. Freire es un intelectual sin fin que se concentró en comprender los problemas sociales. Sus obras son consideradas, mayoritariamente, por sus contribuciones a la educación de personas adultas y, más específicamente, a la educación popular. Sin embargo, en sus obras también existen reflexiones sobre los niños y sus infancias. Siendo así, este es un ensayo teórico cuyo objetivo es discutir y reflexionar críticamente sobre las preocupaciones de Freire por la educación de las infancias. Estos análisis permiten afirmar que los supuestos freireanos pueden ser recreados en los contextos relativos a la educación de las infancias, anunciando otras posibilidades en relación a las prácticas realizadas con los niños, así como las concepciones de las infancias.

Palabras claves: Paulo Freire; Niños; Educación de las Infancias

Para iniciar

Este ensaio teórico é um desdobramento e atualização das considerações tecidas em uma dissertação de Mestrado em Educação1, defendida em uma universidade pública no interior do Paraná. Tal pesquisa investigou, de modo aprofundado, os pressupostos teóricos de Paulo Freire relacionados às infâncias2 das classes populares e às impressões expressas por meio de cartas de intelectuais brasileiras e brasileiros que foram amigas e amigos e tiveram contato com o referido educador.

As discussões das obras de Paulo Freire são complexas. Embora Freire seja, majoritariamente, reconhecido por sua contribuição à educação de pessoas adultas e, mais especificamente, à educação popular, consideramos que sua obra é marcada por questões ontológicas, epistemológicas e metodológicas. No Brasil, predominam os estudos voltados à educação de pessoas jovens e adultas, às análises dos processos de opressão, à humanização e às desigualdades sociais. Entretanto, nas últimas décadas, a obra freiriana tem sido estudada por pesquisadoras e pesquisadores que reconhecem também as influências do pensamento de Paulo Freire para a educação de diferentes crianças e infâncias. Nesse sentido, podemos citar as produções de Silva (2005), De Angelo (2006), Silva, Santos Neto e Alves (2008), Peloso (2009), Peloso e Paula (2011), Barbosa e Nunes (2012), Silva e Silva (2018) e Kohan (2018). Assim, as ideias de Paulo Freire e os estudos dessas pesquisadoras e desses pesquisadores nos trouxeram elementos para compreender as infâncias, em especial das crianças das classes populares. No anseio de alcançar a teoria por ele proposta, sua obra nos auxiliou na perspectiva de ir ao encontro de diferentes infâncias nas quais as crianças possam ser concebidas como sujeitos e não objetos.

De acordo com Freire (2005, 1996), a vocação ontológica e histórica dos seres humanos é a da humanização, como ele denominou: a do ser mais. Nesse entender, o ser humano é intuído como gente em processo permanente de busca, como sujeito historicamente construído, ou seja, inconcluso (sempre). Freire (2005) considerava o ser humano em sua inteireza; para tanto, podemos dizer que a sua concepção de ser humano tinha suas raízes na infância, no ser criança. Essa afirmação é válida a partir do entendimento de que a incompletude humana se inicia na infância, fase que, de acordo com Sarmento (2005), é geracional e faz parte da experiência de todos os seres humanos.

Nessa perspectiva, a infância é compreendida como condição da existência humana (SILVA, 2005). Se compreendida assim, é também encharcada de importância histórica e faz parte da relação dos seres humanos no mundo, com o mundo e com os outros. Desse modo, podemos considerá-la como parte do processo de humanização, momento (tanto quanto as outras fases geracionais) de aprender a reconhecer-se e a construir-se permanentemente. Nessa direção, é possível afirmar que a infância institui, juntamente ao ser criança, a base de um projeto de constituição da humanidade do ser humano (SILVA; SANTOS NETO; ALVES, 2008; PELOSO, 2009).

Paulo Freire elaborou uma obra distinta na qual defendeu múltiplos saberes: científicos, tecnológicos, técnicos, metodológicos, populares, humanitários, dentre outros. Podemos caracterizar Freire como um intelectual infindo que se concentrou em compreender os problemas sociais em seus diferentes temas – desde a infância até a (in)finitude da vida. Entendemos que sua obra tem alcance para subsidiar análises de diferentes temas de estudo. No entanto, observamos que, para a maioria das pesquisadoras e dos pesquisadores que estudam a Educação Infantil, as crianças e as infâncias em nosso país, a obra de Paulo Freire ainda é pouco discutida e/ou aprofundada. Atribui-se isso à carência de estudos sobre a teoria freiriana3 no Brasil e, em especial, sobre sua aproximação com a educação das infâncias4. Assim, este artigo se caracteriza como um ensaio teórico, apresenta uma revisão e atualização da dissertação supracitada e tem como objetivo discutir e refletir criticamente sobre as preocupações de Freire com a educação das infâncias.

Na dissertação de Mestrado de Peloso (2009), foi realizada uma revisão de literatura na obra de Paulo Freire para buscar elementos que permitissem identificar suas preocupações com as crianças e suas infâncias. Nesse processo, foram considerados os livros solo de Paulo Freire, publicados em português, no período de 1991 a 2000, sejam eles: A educação na cidade (1991)5; Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido (1992); Política e Educação (1993); Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar (1993); Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis (1994); À sombra desta mangueira (1995); Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (1996); e Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000). As análises de todas as obras estão disponíveis em Peloso (2009).

Entretanto, neste artigo, pela brevidade do texto, foi necessário um recorte das análises dessas produções. Portanto, serão considerados para análise, neste artigo, três livros de Paulo Freire: Política e Educação; Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis e Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. É preciso considerarmos que a escolha dessas publicações deve-se ao fato de que no livro Política e Educação, Freire (2001) 6 apresenta reflexões sobre as relações entre política e educação para diferentes níveis de ensino e para a educação de familiares com os filhos até a educação de jovens e adultos. A escolha do livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, Freire (2003) ocorre devido aos diálogos de Freire com sua sobrinha – são, assim, reflexões de Freire escritas nas cartas diretamente com uma criança. Quanto à escolha do livro Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar deve-se ao fato de que Freire (2008) elaborou reflexões para serem compartilhadas preferencialmente com professoras e professores da Educação Infantil. Consideramos toda a obra de Freire relevante e sublinhamos que ela traz inúmeras contribuições para a educação das infâncias; entretanto, neste momento, priorizamos essas três publicações.

Para subsidiarmos nossa análise, trazemos alguns fragmentos para melhor demonstrar as aproximações encontradas nos pressupostos freirianos e a educação das infâncias a partir dos três livros mencionados. Ainda, sobre os fragmentos, consideramos que é fundamental apresentá-los na íntegra, para que as leitoras e os leitores possam ter contato com as próprias formulações de Freire, para além de nossas interpretações. Para tanto, apresentaremos, na sequência, as análises dos três livros de Paulo Freire mencionadas anteriormente com o intuito de demonstrar a compreensão e a preocupação desse intelectual com a educação das infâncias, mais especificamente das classes populares. Acreditamos que essa compreensão pode contribuir para a ampliação do campo de estudos, tanto da obra freiriana quanto da educação das infâncias.

Para anunciar: as produções de Paulo Freire e a educação das infâncias

Compreendemos a infância como condição da existência humana. Essa compreensão propicia o entendimento da criança como alguém que é e está sendo no mundo, com o mundo e os outros. A partir de uma concepção freiriana, compreendemos o ser humano como uma “inteireza”, que faz a História e ao mesmo tempo se refaz. A infância é parte constituinte dessa História e desse fazer-se. Assim, de acordo com as ideias de Freire (2005), voltadas a uma educação libertadora, aproximando-as à educação das infâncias, é importante reconhecermos e considerarmos a pluralidade e as especificidades de lugares em que as infâncias acontecem. Consideramos que a práxis presente na obra de Freire fornece subsídios para a constituição de um conceito de infância múltiplo. É a partir dessa compreensão que estudamos a obra de Paulo Freire e buscamos reinventá-la.

De Angelo (2006), pesquisador das infâncias em Paulo Freire, discute em A Pedagogia de Paulo Freire nos quatro cantos da Educação da Infância dois momentos importantes para a construção da obra de Paulo Freire: 1) as memórias da adolescência de Paulo Freire sobre as suas vivências com crianças de diferentes infâncias; e 2) a experiência de Paulo Freire no círculo de pais quando trabalhou no Serviço Social da Indústria (SESI) em Pernambuco e desenvolveu as propostas dos temas geradores. De acordo com De Angelo (2006), essas práticas contribuíram para que Freire construísse uma pedagogia com as pessoas e não para as pessoas. É importante destacarmos que esses dois momentos trazem à baila diretamente questões relacionadas às infâncias, tanto a experienciada pelo próprio Freire, quanto as que teve contato enquanto educador no SESI.

Nessa perspectiva, é possível percebermos, a partir de nossas leituras, as preocupações de Paulo Freire com a educação das crianças para que se constituam como protagonistas da história, pessoas curiosas, capazes de autoria, de autonomia, sujeitos da ação educativa, dentre outros aspectos. Essas preocupações são demarcadas ao longo da obra freiriana, como buscaremos discutir neste ensaio, a partir dos livros escolhidos.

No livro Política e Educação, Freire (2001) discorreu sobre a reflexão político-pedagógica, com vistas a compartilhar com seus leitores uma compreensão crítica da História e da Educação. Verificamos que, nesse livro, existem diversas indicações que nos auxiliam a pensar as crianças e os contextos em que as infâncias acontecem, como observamos no fragmento a seguir:

Uma coisa é a “formação” que dão a seus filhotes os sabiás cujo canto e boniteza me encantam saltitantes, na folhagem verde das jaboticabeiras que temos em frente à nossa biblioteca e outra é o cuidado, o desvelo, a preocupação que transcende o instinto, com que os pais se dedicam ou não aos filhos. O ser “aberto” em que nos tornamos, a existência que inventamos, a linguagem que socialmente produzimos, a história que fazemos e que nos faz, a cultura, a curiosidade, a indagação, a complexidade da vida social, as incertezas, o ritmo dinâmico de que a rotina faz parte mas a que não o reduz a consciência do mundo que tem neste um não eu e a de si como eu constituindo-se na relação contraditória com a objetividade, o “ser programado para aprender”, condicionado mas não determinado, a imaginação, os desejos, os medos, as fantasias, a atração pelo mistério tudo isso nos insere, como seres educáveis no processo permanente de busca de que falei. (FREIRE, 2001, p. 12).

Nesse excerto é perceptível que Freire defendia a educação como formação contínua, como processo de conhecimento, de ensino, de aprendizagem, de experiência e de (re)criação da existência que ocorre a partir das práticas educativas. Segundo Freire (2005), o processo de humanização está intimamente ligado às práticas educativas, e ele afirmou que estas não se dão em termos provisórios, mas em termos de vida inteira. Dizia ele: “[...] o ser humano jamais pára de educar-se” (FREIRE, 2001, p. 13). Subtendemos que todos os períodos da vida, inclusive a infância, estão contextualizados e imersos em movimentos de fazer-se com os outros e o mundo, e esse fazer-se é mediado por práticas educativas.

Podemos afirmar, juntamente às interpretações de Kohan (2018) relativas à obra freiriana, que Freire defendia um projeto de educação que abrangesse a todas as idades e as todos os contextos. Freire (2001) citou que as políticas das cidades são violentas e que restringem a cidadania ao negar a educação para todas as pessoas. Ele escreveu sobre a importância das escolas públicas serem mais democráticas, menos elitistas, menos discriminatórias e mantidas pelo Estado para que pudessem cumprir seus papéis e afirmou que essa educação é um direito e um dever de todos os cidadãos, inclusive daqueles que se constituem no que, à época, denominou de “Primeiro Mundo”. Fez menção, também, ao contexto de educação das crianças quando salientou que as crianças do “Terceiro Mundo do Primeiro Mundo”7 precisam ser tratadas como gente, mas não como gente de um mundo estranho e exótico, mas entendidas dentro de seu contexto, de sua cultura, de seu mundo imediato e respeitadas a partir desse seu lugar de pertencimento onde constituem suas vidas e suas histórias. Frente ao exposto, Freire demonstrou, mais uma vez, a sua preocupação com as infâncias, ou seja, com a educação das crianças. Sobretudo, ele demonstrou o reconhecimento da constituição do humano desde suas distintas experiências infantis.

Ainda, em outras passagens deste mesmo livro Política e Educação, Freire (2001) fez referência à necessidade das cidades se fazerem educadoras, dialógicas e respeitarem as diferenças culturais, de gêneros, de classes, etnias, entre outros aspectos. Sobre isso, ele afirmou:

Não se faz nem se vive a substantividade democrática sem o pleno exercício desse direito que envolve a virtude da tolerância. Talvez as cidades pudessem estimular as suas instituições pedagógicas, culturais, científicas, artísticas, religiosas políticas, financeiras, de pesquisa para que empenhando-se em campanhas com este objetivo, desafiassem as crianças, os adolescentes, os jovens a pensar e a discutir o direito de ser diferente sem que isto signifique correr o risco de ser discriminado, punido ou, pior ainda, banido da vida. (FREIRE, 2001, p. 15).

Barbosa e Nunes (2012), pesquisadoras de Freire que discutem a participação das crianças na cidade, evidenciam esse conceito de cidades educadoras presente no livro Educação na cidade, o qual reflete a experiência de Paulo Freire quando foi Secretário da Educação em São Paulo. Nas reflexões de Barbosa e Nunes (2012) sobre essa experiência administrativa de Freire, as autoras apresentam os problemas vivenciados por ele nessa Secretaria como problemas quantitativos, pois não existiam escolas para todas as crianças e, também, qualitativos, pois os currículos precisavam ser revistos, tanto nas práticas como nas avaliações. Em muitos casos, esses currículos desconsideravam as realidades e os saberes populares das crianças discriminando-as, principalmente as das classes populares.

Freire (2001), no livro Política e Educação, reportava-se à educação popular também para crianças, mais especificamente ao processo de conhecimento e da necessidade de adequar a educação a partir das suas experiências, convicto de que as crianças das classes populares são capazes de aprender tanto quanto as crianças das classes mais favorecidas. Freire considerou as crianças como sujeitos integrantes e ativos da sociedade, como podemos depreender do excerto que segue:

Respeitando os sonhos, as frustrações, as dúvidas, os medos, os desejos dos educandos, crianças, jovens ou adultos, os educadores e educadoras populares têm neles um ponto de partida para a sua ação. Insista-se, um ponto de partida e não de chegada. Crianças e adultos se envolvem em processos educativos de alfabetização com palavras pertencentes à sua experiência existencial, palavras grávidas de mundo. Palavras e temas. Assim compreendida e posta em prática, a Educação Popular pode ser socialmente percebida como facilitadora da compreensão científica que grupos e movimentos podem e devem ter acerca de suas experiências. (FREIRE, 2001, p. 16).

Esse excerto nos coloca a razoar que, por mais que a educação popular de Freire tenha sido associada diretamente às pessoas adultas, seu pensar considerava o ser humano e seus movimentos em sua inteireza, envolvidos em práticas e processos educativos contínuos e promotores de aprendizagem, independentemente de sua fase geracional, e permeados pelas experiências do seu mundo, pelo seu “saber de experiência feito”.

Barbosa e Nunes (2012) destacam a defesa de Freire pelo “saber de experiência feito” e a responsabilidade da intervenção das educadoras e educadores nesse processo e afirmam que as práticas educativas, quando orientadas pelos pressupostos freirianos, devem considerar a experiência das educandas e dos educandos e daquilo que já trazem de conhecimentos para a escola. Sob essa perspectiva, ao analisar a necessidade da intervenção competente e democrática das educadoras e dos educadores nas situações dramáticas em que os grupos populares, “demitidos da vida”, geralmente se encontram, Freire (2001), também no livro Política e Educação, descreveu que não se pode recusar a importância do saber de experiência feito, da cotidianidade. Para melhor ilustrar, ele citou dois exemplos que envolviam crianças:

Recentemente, em conversa comigo em que falava de sua prática numa área castigada, sofrida, da periferia de São Paulo, uma pré-escola que funcionava em salão paroquial e de cuja direção hoje fazem parte representantes das famílias locais, me descreveu a educadora Madalena Freire Weffort um dos seus momentos de intervenção. [...]. Rondando a escola, perambulando pelas ruas da vila, seminua, sujo na cara, que escondia sua beleza, alvo de zombaria das outras crianças e dos adultos também, vagava perdida, e o pior, perdida de si mesma, uma espécie de menina de ninguém. Um dia, diz Madalena, a avó da menina a procurou pedindo que recebesse a neta na escola, dizendo também que não poderia pagar a quota quase simbólica estabelecida pela direção popular da escola. “Não creio que haja problema, disse Madalena, com relação ao pagamento. Tenho porém, uma exigência para poder receber ‘Carlinha’: que me chegue aqui limpa, banho tomado, com mínimo de roupa e que venha assim todos os dias e não só amanhã”. A avó aceitou e prometeu que cumpriria. No dia seguinte Carlinha chegou à sala completamente mudada. Limpa cara bonita, feições descobertas, confiante. Cabelos louros, para surpresa de toda gente. A limpeza, a cara livre das marcas do sujo, sublinhavam sua presença na sala. Em lugar das zombarias, elogios dos outros meninos. Carlinha começou a confiar nela mesma. A avó começou a acreditar também não só em Carlinha mas nela igualmente. Carlinha se descobriu; a avó se redescobriu. (FREIRE, 2001, p. 27).

E, respectivamente:

Sábado passado participei do Primeiro Tribunal do Menor, em Teresina, a que acorreram umas sete mil pessoas. Entre as testemunhas havia três crianças chamadas geralmente “menores carentes” que falaram de sua vida, de seu trabalho, da discriminação que sofrem, do assassinato de seus companheiros. E o fizeram com ótimo domínio de linguagem, com clareza, com sabedoria e, às vezes, com humor. “Se diz – afirmou um deles – que nós, as crianças, somos o futuro do país. Mas tão temos nem presente”, concluiu com um riso leve. (FREIRE, 2001, p. 28).

Nesses excertos é possível percebermos o olhar de Paulo Freire voltado às crianças populares e as suas infâncias vividas em condições de vulnerabilidade social. Nesse sentido, é importante destacarmos que, embora o texto de Freire seja datado da década de 1990, ainda encontramos muitas crianças como Carlinha no Brasil afora, e ainda outras que sofrem discriminações por conta de suas cores, suas etnias, seus gêneros, suas condições sociais e que são mortas todas os dias, brutalmente, por não terem sua humanidade reconhecida e/ou garantida.

Ainda no livro Política e Educação, ao retomar a discussão dos projetos idealizados e concretizados, quando assumiu a Secretaria de São Paulo, Freire (2001) novamente discutiu inquietações relativas à educação das crianças, principalmente aquelas das classes populares e afirmou que:

Enquanto sofríamos um déficit escolar elevado a 60% das unidades da rede escolar em estado precário o orçamento que recebemos previa cifras astronômicas para o que se chama grandes obras. Viadutos, túneis majestosos, ligando um bairro a outro, jardins, etc. não que os viadutos, os túneis, os jardins, os parques não sejam necessários. Não é da necessariedade que falo, mas da prioridade das necessidades. E é aí que se contradizem as opções. É que há prioridades para as classes dominantes e prioridades para as classes dominadas. Os viadutos eram prioritários, mas, para servir às classes abastadas e felizes, com repercussão adjetiva também entre as classes populares. As escolas eram prioritárias para as classes populares, com repercussão adverbial para as classes ricas. Do ponto de vista, contudo, do interesse imediato das classes populares, mais valia ter escolas equipadas e competentes para seus filhos do que viadutos escoando facilmente o tráfego dos carros poderosos. Saliente-se que não estamos negando aos ricos e felizes o direito de desfrutar o prazer de trafegar em seguros viadutos. Estamos defendendo apenas o direito de milhares de crianças estudarem como prioridade ao conforto de que já o tem excesso. (FREIRE, 2001, p. 51).

Mais um vez ficam explicitas as preocupações de Freire com as desigualdades sociais e a condição de vida das crianças das classes populares e suas experiências infantis.

O livro Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar foi organizado em dez cartas, as quais trazem uma discussão sobre o comprometimento que exige “ser professora”. Freire (2008) relatou que a sua intenção era a de mostrar que a tarefa do “ensinante”, que é também aprendiz, é prazerosa e igualmente exigente. Exigente de seriedade, de preparo científico, de preparo físico, emocional e afetivo. É uma tarefa que requer de quem se compromete com essa tarefa um gosto especial de querer bem não só aos outros, mas ao próprio processo que isso implica.

Assim, Freire (2008) abriu a discussão afirmando que ensinar é uma tarefa que exige trabalho e especificidade na sua execução. Ser tia, para ele, era uma relação de parentesco; portanto, não se configurava como profissão. Nota-se que, com essas afirmações, ele não tinha a intenção de desvalorizar a “tia”, mas, sim, de valorizar a professora, mostrando o que lhe é fundamental: sua responsabilidade profissional, que faz parte da exigência política de sua profissão e de sua formação de educadora. Freire explicitou que o termo “tia” é carregado de ideologia. Para ele, “tia” não briga, não faz greve, não luta por seus direitos, entre outros aspectos. O termo “professora” é também carregado de ideologia, de comprometimento social, político e de responsabilidade. Nas palavras de Freire (2008):

A recusa, a meu ver, se deve sobretudo a duas razões principais. De um lado, evitar uma compreensão distorcida da tarefa profissional da professora, de outro, desocultar a sombra ideológica repousando manhosamente na intimidade da falsa identificação. Identificar professora com tia, o que foi e vem sendo ainda enfatizado, sobretudo na rede privada em todo o país, quase como proclamar que professoras, como boas tias, não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve. já viu dez mil “tias” fazendo greve, sacrificando seus sobrinhos, prejudicando-os no seu aprendizado? E essa ideologia que toma o protesto necessário da professora como manifestação de seu desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de tias, se constitui como ponto central em que se apóia grande parte das famílias com filhos em escolas privadas. Mas também ocorre com famílias de crianças de escolas públicas. (FREIRE, 2008, p. 10-11).

Nesse sentido, observamos que, em Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar, mesmo tendo como ideia central questões relativas à “professora”, tem como pano de fundo um projeto educativo e nele estão contextualizadas as infâncias e as crianças.

Freire apontou, em muitas passagens desse livro, que a atitude das professoras é fundamental para o bom andamento dos projetos educativos. São elas que direcionam a prática e, para isso, é necessário que tenham uma visão crítica do que é estudar, ensinar e aprender. Outrossim, é preciso que as professoras se libertem das práticas dos “pacotes”, caso contrário não é possível que as crianças sejam livres, críticas, criativas e criadoras.

Nesse entender, seguem respectivamente alguns trechos que demonstram a inclusão das crianças na abordagem freiriana:

Um dos equívocos que cometemos está em dicotomizar ler de escrever e, desde o começo mesmo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos na prática da leitura e da escrita tomarmos esses processos como algo desligado do processo geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanha sempre, como estudantes e professores. (FREIRE, 2008, p. 36).

Se nossas escolas, desde a mais tenra idade de seus alunos se entregassem ao trabalho de estimular neles o gosto da leitura e o da escrita, gosto que continuasse a ser estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade, haveria possivelmente um número bastante menor de pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua incapacidade de escrever. (FREIRE, 2008, p. 37).

Este é um esforço que deve começar na pré-escola, intensificar-se no período da alfabetização e continuar sem jamais parar. (FREIRE, 2008, p. 37).

A prática educativa, pelo contrário, é algo muito sério. Lida-mos com gente, com crianças, adolescentes ou adultos. Participamos de sua formação. Ajudamo-los ou os prejudicamos nesta busca. Estamos intrinsecamente a eles ligados no seu processo de conhecimento. Podemos concorrer com nossa incompetência, má preparação, irresponsabilidade, para o seu fracasso. Mas podemos, também, com nossa responsabilidade, preparo científico e gosto do ensino, com nossa seriedade e testemunho de luta contra as injustiças, contribuir para que os educandos vão se tornando presenças marcantes no mundo. (FREIRE, 2008, p. 47, grifo do autor).

Nos excertos, transparece a presença das crianças e de suas infâncias como processo. Subentendemos, assim, que Freire concebia a criança como alguém que é e está sendo e o período da infância como condição da existência humana; por isso, mesmo quando em seus livros não cita literalmente as palavras “crianças ou infâncias”, elas já estão contextualizadas em suas reflexões e análises que tematizam sobre um projeto amplo de humanização.

No livro Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar, Freire (2008) retomou a questão da tensão entre autoridade e liberdade e mais uma vez, nesta discussão, estão contextualizadas as crianças e suas infâncias:

Retomo agora a análise do autoritarismo, não importa se dos pais e mães, se das professoras ou professores. Autoritarismo frente ao qual podemos esperar nos filhos e alunos ora posições rebeldes, refratárias a quaisquer limites, disciplina ou autoridade, mas também apatia, obediência exagerada, anuência sem crítica ou resistência ao discurso do autoritário, renúncia a si mesmo, medo à liberdade. (FREIRE, 2008, p. 56).

Ao dizer que do autoritarismo se pode esperar vários tipos de reação, entendo que, felizmente, no domínio do humano as coisas não se dão mecanicamente. Desta forma, é possível a certas crianças passar quase ilesas à rigorosidade do arbítrio, o que não nos autoriza a jogar com esta possibilidade e a não nos esforçar por ser menos autoritários se não por causa do sonho democrático, em nome do respeito do ser em formação de nossos filhos e filhas de nossos alunos e alunas. (FREIRE, 2008, p. 57, grifos do autor).

Em alguns trechos, Freire (2008, p. 98) insistiu que as educadoras precisam saber o que se passa no mundo das crianças com quem trabalham, “[...] o universo de seus sonhos, a linguagem com que se defendem, manhosamente, da agressividade de seu mundo. O que sabem e como sabem independentemente da escola”. É perceptível, nessa preocupação de Freire, uma sensibilidade muito grande com o universo infantil, com o mundo afetivo das crianças. Ele se refere ao mundo trágico, dramático em que vive um sem-número de crianças. Para exemplificar, Freire citou o seguinte exemplo:

“Você costuma sonhar?”, perguntou certa vez um repórter de TV a uma criança de uns dez anos, bóia-fria, no interior de São Paulo. “Não”, disse a criança espantada com a pergunta. “Eu só tenho pesadelo.” [...]. O mundo afetivo desse sem-número de crianças é roto, quase esfarelado, vidraça estilhaçada. Por isso mesmo essas crianças precisam de professoras e de professores profissionalmente competentes e amorosos e não de puros tios e de tias. (FREIRE, 2008, p. 69).

Além de saber o que se passa no mundo das crianças, Freire, em Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar, defendia a necessidade de compreender o contexto em que elas vivem suas infâncias. Isso implica respeitar a sintaxe, a ortografia, a semântica, a prosódia das crianças das classes populares. Entretanto, Freire assegurou que:

Jamais disse ou sequer sugeri que as crianças das classes populares não devessem aprender o chamado “padrão culto” da língua portuguesa do Brasil, como às vezes se afirma. O que tenho dito é que os problemas da linguagem envolvem sempre questões ideológicas e, com elas, questões de poder. Por exemplo, se há um “padrão culto” é porque há outro considerado inculto. Quem perfilou o inculto como tal? Na verdade, o que tenho dito e por que me bato é que se ensine aos meninos e meninas populares o padrão culto, mas, ao fazê-la, que se ressalte:

a) que sua linguagem é tão rica e tão bonita quanto a dos que falam o padrão culto, razão por que não têm que se envergonhar de como falam.

b) que mesmo assim é fundamental que aprendam a sintaxe e a prosódia dominantes para que:

1. diminuam as desvantagens na luta pela vida;

2. ganhem um instrumento fundamental para a briga necessária contra as injustiças e as discriminações de que são alvo. (FREIRE, 2008, p. 99-100).

Silva, Santos Neto e Alves (2008), pesquisadora e pesquisador da infância em Freire, analisaram a tese de Paulo Freire intitulada Educação e atualidade brasileira, apresentada no concurso para ser docente do curso de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco em 1959. Em sua tese, Freire criticava a educação tradicional e programas rígidos que oprimiam as crianças. Essa situação é destacada na seguinte passagem do texto analisado:

Somente uma escola centrada democraticamente no seu educando e na sua comunidade local, vivendo as suas circunstâncias, integrada com seus problemas, levará os seus estudantes a uma nova postura diante dos problemas de contexto. À intimidade com eles. A da pesquisa em vez da mera, perigosa e enfadonha repetição de trechos e de afirmações desconectadas das suas condições mesmas de vida. A do trabalho. [...]. Escola que se faça uma verdadeira comunidade de trabalho e de estudo, plástica e dinâmica. E que, ao em vez de escravizar crianças e mestras a programas rígidos e nacionalizados, faça que aquelas aprendam sobretudo a aprender. A enfrentar dificuldades. A resolver questões. A identificar-se com a realidade. A governar-se pela ingerência nos seus destinos. A trabalhar em grupo. (FREIRE, 1959, p. 85 apudSILVA; SANTOS NETO; ALVES, 2008, p. 8).

Essas descrições clarificam que Freire reconhecia que as crianças das classes populares eram desfavorecidas em muitos aspectos e que, a partir do momento que fossem compreendidas suas infâncias e as suas relações com o mundo, elas poderiam ser protagonistas de mudanças. A esse respeito, no livro Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar, Freire (2008) argumentou:

Não podemos deixar de levar em consideração as condições materiais desfavoráveis que muitos alunos de escolas da periferia da cidade experimentam. A precariedade de suas habitações, a deficiência de sua alimentação, a falta em seu cotidiano de atividades de leitura da palavra, de estudo escolar, a convivência com a violência, com a morte de que se tornam quase sempre íntimos. Tudo isso é, de modo geral, pouco levado em consideração não apenas pela escola básica, de primeiro grau, em que essas crianças estudam, mas também nas escolas de formação para o magistério. Tudo isso, porém, tem enorme papel na vida dos Carlos, das Marias, das Carmens. Tudo isso marca, inegavelmente, a maneira cultural de estar sendo dessas crianças. (FREIRE, 2008, p. 105).

Podemos perceber, aqui, um olhar não somente para as crianças, mas também para as educadoras e os educadores das infâncias. Freire também se preocupava com a formação da educadora e do educador, curiosa/o, questionadora/dor, e pela busca de comunicação dialógica, não violenta e construtiva com educandas e educandos no processo de construção de conhecimentos. No livro El grito manso, Freire destaca que: “Una de las tareas más hermosas y gratificantes que tenemos por delante como profesores y profesoras es ayudar a los educandos a constituir la inteligibilidad de las cosas, ayudarlos a aprender a comprender y a comunicar esa comprensión a los otros” (FREIRE, 2009, p. 33).

Em relação a algumas práticas que acontecem na escola e ao processo de comunicação que envolve crianças, educadoras e educadores, Freire (2008, p. 76), a partir de um olhar bastante sensível e atento, afirmou que: “As crianças têm uma sensibilidade enorme para perceber que a professora faz exatamente o contrário do que diz [...]”. Uma estratégia que Freire sugeriu, para aprender e ensinar juntos, eram os registros dos fatos. Ele explicou que a prática de registrar possibilita observar, comparar, selecionar, estabelecer relações entre fatos e coisas. Esta seria uma experiência formadora, pois educadoras/educadorese e educandas/educandos anotariam diariamente os seus momentos desafiadores com o intuito de constituir a intelegibilidade das coisas. Sobre isso, Freire (2008) escreveu:

Estou convencido, aliás, de que tal experiência formadora poderia ser feita, com nível de exigência adequado à idade das crianças, entre aquelas que ainda não escrevem. Pedir-lhes que falassem de como estão sentindo o andamento de seus dias na escola lhes possibilitaria engajar-se numa prática de educação dos sentidos. Exigiria delas a atenção, a observação, a seleção de fatos. Com isso desenvolveríamos também a sua oralidade que, guardando em si a etapa seguinte, a da escrita, jamais dela se deve dicotomizar. A criança que, em condições pessoais normais, fala é aquela que escreve. Se não escreve, torna-se proibida de fazê-la e, só em casos excepcionais, impossibilitada. (FREIRE, 2008, p. 83, grifos do autor).

Mais uma vez, Freire deixou transparecer a sua sensibilidade em relação às crianças, bem como o entendimento sobre as condições de ensino e de aprendizagem adequadas à faixa etária. É possível afirmarmos que Freire percebia e se preocupava com o tipo de educação oferecida às crianças, principalmente quando destinada às crianças das classes populares.

Outro elemento interessante presente no livro Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar é quando Freire (2008) fez referência à inclusão das crianças na vida e nas discussões político-pedagógicas da escola, mostrando-lhes dados do mundo real e colocando-as a par das discussões sociais e políticas da sociedade como um todo, como os desfalques materiais e danos éticos causados pelos governantes. Nesse sentido, ele asseverou: “É preciso mostrar as cifras às crianças, aos adolescentes e dizer-lhes com clareza e com firmeza que o fato de os responsáveis agirem assim, despudoradamente, não nos autoriza, na intimidade de nossa escola, a arrebentar as mesas, estragar o giz, desperdiçar a merenda, sujar as paredes” (FREIRE, 2008, p. 89). Esse fragmento nos leva a refletir o quanto Freire acreditou na capacidade das crianças, a partir de suas infâncias, de serem mais.

No fragmento que segue, podemos notar como Freire (2008) percebeu, considerou e defendeu as experiências infantis como parte essencial da existência humana:

Gostaria então que pensássemos no seguinte: mulheres e homens, quando criancinhas, começaram a falar não dizendo letras, e sim palavras que valem frases – quando o neném chora e diz “mamã”, o neném estará querendo dizer: “Mamãe, tenho fome” ou “mamãe, estou molhado”. Estas palavras com que os bebês começam a falar se chamam “frases mono-palábricas”, isto é, frases de ou com uma só palavra. Pois bem, se é assim que todos nós começamos a falar, como, então, no momento de aprender a escrever e a ler, devemos começar através de decoração das letras?

Ninguém rigorosamente ensina ninguém a falar. A gente aprende no mundo, na casa da gente, na sociedade, na rua, no bairro, na escola. A fala, a linguagem da gente, é uma aquisição. A gente adquire a fala socialmente. A fala vem muito antes da escrita, assim como uma certa “escrita” ou o anúncio dela vem muito antes do que a gente chama escrita. E assim como é preciso falar para falar, é preciso escrever para escrever. Ninguém escreve se não escreve, assim como ninguém aprende a andar se não andar.

Por isso mesmo, devemos estimular ao máximo as crianças para que falem e para que escrevam. É das garatujas, uma forma indiscutível de escrita, que devemos elogiar, que elas partem para a escrita a ser estimulada. Que escrevam, que contem suas estórias, que as inventem e reinventem os contos populares de seu contexto. (FREIRE, 2008, p. 109).

Além de acreditar na criança como alguém que é e está sendo e na infância como condição da existência humana, Freire deixou transparecer em Professora Sim, Tia Não: cartas a quem ousa ensinar, como já exposto, que, em seus pressupostos, infâncias e crianças não estavam ausentes, pelo contrário, acompanhavam suas reflexões e preocupações. Outro relato que evidenciou esse fato diz o seguinte:

Quando fui secretário municipal de Educação no governo de Luiza Erundina (1989-1991) levantei, numa das muitas entrevistas que dei, a questão da possibilidade de que alguma empresa, com a orientação pedagógica da Secretaria, aceitasse o projeto de “plantar frases” em lugares significativos de localidades iletradas. A intenção era provocar a curiosidade das crianças e dos adultos. Frases que tivessem que ver com a prática social da área e não fossem estranhas a ela. Frases que seriam também aproveitadas pelas escolas em volta da região da experiência. (FREIRE, 2008, p. 111).

Pelo exposto, novamente, consideramos que Freire também teve seu olhar e suas reflexões muito voltadas às questões das infâncias, uma vez que, em suas produções, ele retomava, em vários momentos, semelhantes afirmações sobre os contextos relativos às infâncias e às crianças e à vontade de estimular as pessoas independentemente de sua fase geracional.

O livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis se originou a partir de um pedido da sobrinha de Paulo Freire, Cristina, quando ele estava no exílio. Cristina, em 1967, com 9 anos na época, não entendia os motivos do tio ter saído do Brasil, por isso escreveu-lhe para perguntar. Paulo Freire aceitou o desafio de escrever para uma criança, sobre o processo que o tornou educador, no contexto de exílio e repressão. Dessa forma, o livro é dividido em duas partes. Na primeira parte, Freire (2003) relatou, em 13 cartas, a sua vida, suas memórias, suas recordações de infância, adolescência e idade madura. Tais relatos devem-se ao fato de estarem ligados ao seu trabalho como educador. Na segunda parte, Freire (2003) realizou uma reflexão sobre questões que considerava fundamentais, relacionou as dimensões pessoais aos contextos históricos vigentes, de acordo com temáticas que lhe eram sugeridas em entrevistas, seminários, dentre outros. Essas temáticas estavam relacionadas à educação, ao processo de libertação e à democracia.

O pesquisador e a pesquisadora Silva e Silva (2018), que discutem a perspectiva freiriana, fizeram uma análise do livro A casa e o mundo lá fora: cartas de Paulo Freire para Nathercinha, lançado em 2016 pela Zit Editora. Esse livro foi escrito por Nathercia Lacerda. Nathercinha era prima de Cristina. Freire (2003) explica que:

Antes de Cristina, no meu primeiro momento de exílio, o do Chile, após dois meses na Bolívia, tive outra correspondente, Nathercinha, prima de Cristina. Compartilhei com ela o espanto e a alegria de criança, em que de novo me tornava, quando apenas vi, pela primeira vez, a neve em Santiago, nas proximidades da cordilheira onde morávamos, mas também quando fui para a rua com meus filhos para ‘meninizar-me’, fazendo bolas de neve e expondo-me inteiro à brancura que caía em flocos sobre a relva, sobre meu corpo tropical. (FREIRE, 2003, p. 28).

Silva e Silva (2018) apresentam, em seus textos, as cartas escritas por Paulo Freire a Nathercinha e mostram a forma gentil da escrita e a descrição do Chile e da Cordilheira dos Andes. “Colocar-se como amigo; caprichar nas letras para que a menina pudesse compreendê-las; convidá-la em todas as cartas para uma conversa; atender à curiosidade da criança, instigando-a com elementos novos; tomar a natureza como caminho que atravessa as prosas” (SILVA; SILVA, 2018, p. 40). Esses eram os princípios da Pedagogia do Cuidado e Pedagogia da Infância tido por Freire.

Kohan (2018), ao analisar o livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, considera que Freire gostava de brincar com a linguagem, gostava de inventar palavras e se divertia com suas invenções, pois, ao relatar a primeira vez que brincou na neve com seus filhos, escreveu que foi para a rua “ meninizar” com eles. Kohan completa (2018, p. 17): “ Assim, Paulo Freire meniniza-se duplamente e, com ele, meninizamo-nos os seus leitores e leitoras de todas as idades”.

Pesquisadoras freirianas como Peloso e Paula (2011) também consideram que os livros de Paulo Freire expressam sensibilidade, críticas e visão ampla de mundo a partir de suas observações e vivências, conforme segue:

Paulo Freire ficou conhecido como filósofo e teórico da educação pelo mundo todo. Sua marca registrada era não separar a teoria da prática. Outra marca registrada era o seu jeito simples e bem-humorado. Seu corpo era frágil e suas palavras eram fortes! Nas andarilhagens que fez pelo mundo, era muito observador. Suas observações eram críticas e, ao mesmo tempo, poéticas. Ao ler seus livros, às vezes tem-se a impressão que ele tinha um olhar de criança detalhista que observava o universo nos fenômenos e gestos mais simples, que eram descritos de forma sensível e crítica. (PELOSO; PAULA, 2011, p. 4).

Outro pesquisador freiriano, Torres (2006) descreve que a ternura era uma característica da escrita de Paulo Freire. A emoção e o amor era como se fossem atos de valentia e uma espécie de “cimento” relacional entre as pessoas e a construção de solidariedades . De acordo com Torres (2006):

Freire mantuvo siempre esa correspondencia entre el amor y diálogo con los demás. Una modalidad de esa correspondencia está expresada en el vínculo de la emocion con el rigor cientifico de sus argumentaciones. La emoción completa la estrategia del diálogo verdadero. El pedagogo brasilño marca el límite a la emoción en términos de no obscurecer la comprensión crítica del interlocutor. Aqui vemos nuevamente la preocupación por los otros y otras en y con sus diferencias. (TORRES, 2006, p. 28).

Retomando o livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, na primeira parte, evidenciamos que Freire (2003) se remetia constantemente a sua infância. Ao remeter-se a sua infância, ele sublinhou a importância que esse período teve em sua vida, compreendendo, a partir dela, o desenrolar de sua vida, de suas escolhas e dos movimentos no mundo:

Quanto mais me volto sobre a infância distante, tanto mais descubro que tenho sempre algo a aprender dela [...]. No meu caso, porém, as dificuldades que enfrentei, com minha família, na infância e na adolescência, forjaram em mim, ao contrário de uma postura acomodada diante do desafio, uma abertura curiosa e esperançosa diante do mundo. (FREIRE, 2003, p. 37).

Aprendi na minha infância atribulada e convivendo com dor moral de meus pais, experimentada nas mais diversas situações e quase sempre “recheada” de uma linguagem despeitosa, sobretudo é óbvio, quando o sujeito paciente era minha mãe, a ser a tornar-me intensamente sensível ao dever de respeitar quem se acha em situação de fraqueza ou debilidade. (FREIRE, 2003, p. 69).

O gosto em mim da liberdade que me fez, desde a mais tenra infância, sonhar com a justiça, com a equidade, com a superação dos obstáculos à realização jamais absoluta, na história, do que viria a chamar a vocação humana para o ser mais, me engajou até hoje, à minha maneira, na luta pela libertação de mulheres e de homens. O gosto da liberdade gerando-se no amor à vida, no medo de perdê-la. (FREIRE, 2003, p. 207, grifo do autor).

Esses fragmentos confirmam a importância que Freire atribuia, especialmente, a sua infância. Certamente ele a considerou como momento fundante em dois aspectos: em sua busca do ser mais e, também, na construção de seus pressupostos teóricos.

Kohan (2018) considera que Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis é um texto autobiográfico, no qual Freire se lança em um diálogo consigo mesmo e com sua sobrinha. Para o pesquisador, “[...] a busca de Paulo Freire, sua necessidade de indagar na sua infância, pode também significar a abertura de uma nova infância na relação de educadores e educadoras com sua infância” (KOHAN, 2018, p. 4). Freire retoma de forma cronológica suas experiências infantis e busca tornar presente o seu passado. A vida de Freire em Pernambuco, a necessidade da mudança de cidade com a morte de seu pai, o regime autoritário do governo, e várias outras questões trouxeram marcas na vida de Paulo Freire menino.

De acordo com Kohan (2018):

Seu tempo de menino se faz presente com intensidade na sua maturidade. Numa primeira marca, é o início de um educador sensível a um estado de coisas que condena uma grande parte dos que o habitam uma vida não humana, tanto pelas condições em que vivem quanto pela repressão que recebem quando se rebelam contra ela. (KOHAN, 2018, p. 7).

No decorrer de Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, Freire (2003) fez alguns apontamentos sobre a educação dos filhos. Nesse sentido, ele retomou a discussão dos limites entre a autoridade e a liberdade:

Como ensinar tolerância e democracia a nossos filhos e filhas, a nossos alunos e alunas se lhes negamos o direito de ser diferentes de nós, se nos recusamos a discutir com eles suas posições, sua leitura de mundo, se não nos tornamos capazes de perceber que o mundo deles lhes faz desafios e exigências que o nosso não poderia ter feito? Como ensinar democracia e tolerância a nossos filhos e filhas, a nossos alunos e alunas se lhes dizemos ou lhes ensinamos que exigir o seu direito, que lutar contra uma afirmação falsa, que recorrer à lei é prova de autoritarismo, como se a democracia fosse silenciosa? (FREIRE, 2003, p. 195).

Nessa mesma linha de pensamento, é possível afirmar que Freire se preocupava não somente com a educação das crianças nas instituições de ensino mas também com a educação que recebiam em suas famílias. Esse fato estava diretamente associado a como Freire considerava a educação como um projeto maior, como um projeto de sociedade. Encontramos discussão semelhante a essa no livro Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (2000). Em Cartas a Cristina, Freire (2003) afirmou:

A liberdade que assume seus limites necessários é que luta aguerridamente contra a hipertrofia da autoridade. Quão equivocados estão os pais que tudo permitem aos filhos, muitas coisas às filhas, ora porque, dizem, tiveram a infância e adolescência difíceis, ora porque, afirmam, querem filhos e filhas livres. Assim, filhos e filhas decrescem, em lugar de crescer bem, filhos e filhas, sem consciência dos limites – que jamais experimentaram -, tendem a perder-se na irresponsabilidade do vale tudo. (FREIRE, 2003, p. 197, grifos do autor).

Mais uma vez, Freire explicitou sua preocupação com as “gentes pequenas” e com seus processos de educação. Sob essa perspectiva, clarificou-se que Freire defendia que os limites entre a autoridade e a liberdade deveriam ser experimentados pelas pessoas desde suas experiências primeiras, visto que as crianças deveriam ter a oportunidade de participar de experiências éticas, para que pudessem, desde suas infâncias, exercitarem uma postura ativia em seus processos de humanização, de ser mais. Certamente, para Freire, essas questões representavam que a formação das pessoas deveria estar pautada em um equilíbrio, o qual permitiria o “aprendizado” da tolerância e da democracia, além de possibilitar uma leitura crítica do mundo.

Freire (2003), ao afirmar que a vocação para o ser mais se achava condicionada pela realidade concreta do contexto, pela realidade histórica, econômica, social, político-cultural, dentre outros aspectos, explicitou que era preciso propor situações concretas às educandas e aos educandos, para que tivessem a oportunidade de se manifestar objetivando a democracia e a aprendizagem. Nesse sentido, assegurou que não importava a idade, a cor da pele, o sexo a que pertenciam ou a compreensão que dele tinham, era preciso estimular a aprendizagem da democracia.

Observou-se que, nessa busca pela aprendizagem da democracia, Freire (2003), em Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, ressaltou que existiam vários aspectos que necessitavam ser política e pedagogicamente tratados. Nesse viés, ele enfatizou:

A luta, no Brasil, pela democracia, passa por uma série de possíveis ângulos a ser política e pedagogicamente tratados – o da justiça, sem a qual, não há paz, o direitos humanos, o do direito à vida, que implica o de nascer, o de comer, o de dormir, o de ter saúde, o de vestir, o de chorar os mortos, o de estudar, o de trabalhar, o de ser crianças, o de crer ou não, o de viver cada um e cada uma a sua sexualidade como bem lhe aprouver, o de criticar, o de discordar do discurso oficial, o de ler a palavra, o de brincar não importa a idade que se tenha, o de ser eticamente inconformado do que ocorre no nível local, no regional, no nacional e no mundial [...]. (FREIRE, 2003, p. 203).

Freire (2003) reconhecia que muitas crianças não têm o direito de serem crianças, devido a uma série de fatores que impossibilitavam o seu estar no mundo como crianças, em busca do seu ser mais. Fatores como a miséria, a pobreza, experiências drásticas, dramáticas e castradoras de sua curiosidade, a alienação imposta pelo consumismo, dentre outros aspectos.

De acordo com Arroyo e Silva (2012), os atuais estudos sobre a infância intencionam compreender as crianças como sujeitos sociais ativos, com autonomia e criatividade, liberados do adultocentrismo, autores de sua história, modificando seu campo de viver, construindo novas culturas infantis e infanto-juvenis a partir dos contextos que figuram distintas infâncias. Sujeitos de experimentação, de intencionalidade, de produção de saberes, valores, conhecimentos. Essa forma de conceber as infâncias está diretamente relacionada aos pressupostos freirianos.

Os apontamentos feitos ao longo deste ensaio demonstram que, ao pensar a dinâmica da vida, que se constitui em prática educativa, Freire considerava, também, as crianças e suas infâncias. Assim, os elementos apresentados neste ensaio ajudam-nos a afirmar que os pressupostos freirianos podem e devem ser reinventados na educação das infâncias e, também, para desmistificar a ausência dessa discussão na obra freiriana. Da mesma forma, evidenciar os distintos contextos em que as infâncias acontecem e a necessidade de reconhecer a especificidade dos contextos populares e, a partir disso, reconhecer suas crianças e garantir-lhes o direito de ser e estar no mundo, com o mundo e as outras pessoas.

Para (in)acabar...

A partir das análises que empreendemos neste texto, podemos afirmar que as infâncias e as crianças não estão ausentes dos escritos freirianos, ao contrário, estão (re)significadas, nominadas, como sujeitos de preocupações e reflexões em sua obra. Assim, consideramos que os pressupostos freirianos contribuem significativamente para outras compreensões em relação à educação das infâncias, em especial as das classes populares. Isso porque uma das possíveis leituras acerca dos pressupostos freirianos seria compreender as infâncias como condição da existência humana e as crianças como sujeitos históricos e sociais, no mundo, com o mundo e com os outros, com vistas a cumprir, segundo Freire (2005), a vocação ontológica de TODAS as pessoas: a humanização (SILVA, SANTOS NETO; ALVES, 2008; PELOSO, 2009).

Quando nos reportamos ao Brasil, temos um contexto que nos permite olhar para as crianças e suas diferentes infâncias a partir de um viés multicultural e multirracial. Desde a origem da sociedade brasileira, as pessoas foram tratadas de forma desigual de acordo com suas etnias, culturas, gêneros e classes sociais. As crianças indígenas, negras e brancas na história do Brasil retratam as diferenças e as formas de subjetivação na e da infância. Faz-se necessário dar visibilidade para todas as formas de viver as infâncias e oportunizar a compreensão e o reconhecimento das diferentes formas de ser e estar no mundo e como o ser humano se constitui a partir das experiências infantis.

Pensar as crianças em diferentes contextos como sujeitos históricos e sociais significa, portanto, pensá-las na história e como sujeitos que afirmam suas identidades nas relações sociais e nos contextos de que fazem parte. É preciso reconhecer que os tempos das infâncias não são padronizados, mas tem características diferentes que variam de acordo com as classes sociais, com as culturas, com as etnias, com os gêneros, com as experiências socioeconômicas e políticas dos sujeitos em seus tempos históricos e das sociedades que participam.

Mesmo com todo o arcabouço teórico existente para explicar e compreender a situação das infâncias, na prática ainda há um quinhão de crianças brasileiras desrespeitadas, oprimidas ou invisíveis em suas formas de ser e estar no mundo. Nesse sentido, pensar as infâncias na contemporaneidade é dar visibilidade às crianças que participam de diferentes espaços, que recriam outras culturas e, a partir disso, nos permitem diferentes e múltiplas compreensões desse tempo da vida. Sob esse olhar, faz-se necessário pensar e reconhecer outros tempos e espaços de produção da educação das infâncias, espaços que têm emergido como formas de organização da própria sociedade civil.

De acordo com os pressupostos freirianos, a diferença não deveria ser a porta voz das desigualdades, mas condição para a humanização de todas as pessoas. A diferença é considerada um dos marcadores do pensamento freiriano e tem como base a dialogicidade. Para Freire (2005), é na comunicação, nas situações dialógicas, que as pessoas se tornam sujeitos e buscam superar as contradições e as desigualdades existentes no mundo.

A afirmativa de que os pressupostos freirianos podem ser recriados nos contextos relativos à educação das infâncias passa, então, pelo anúncio de outras possibilidades em relação à compreensão das próprias crianças, das infâncias, em suas diferentes possibilidades de ser. Assim, consideramos que a recriação dos pressupostos freirianos, relativos à educação das infâncias, poderia supor a constituição das experiências infantis como processo de integração de culturas e emancipação de todos os seres humanos. Nesse sentido, sublinhamos que Freire afirmou, em sua obra, um processo educativo sustentado pela ação dialógica, pela apreciação dos contextos sócio-históricos e pela valorização dos saberes, especialmente dos “saberes de experiências feitos” e, ainda, pelo compromisso com a transformação das realidades. Quando recriamos esses processos na educação das infâncias, afirmamos práticas que emancipam, que dão voz e sugerem a autonomia das crianças para que sejam autoras de suas histórias e signifiquem o seu estar no mundo. Segundo Banazak (2007):

La pedagogía crítica de Paulo Freire se ha comportado como una piedrita lanzada sobre la superficie de un lago. En El primer momento, cuando tocó por primera vez el agua, solo logro perturbar la tranquilidad de un milímetro del lago. Claro que el agua considero el hecho como una mera inconveniencia temporal que desaparecería después de unos segundos desagradables. Sin embargo, las onditas que causo, paulatinamente, se han extendido em círculos cada vez más anchos hasta inquietar a todo el lago, mover las algas de la superficie, oxigenar las profundidades, despertar a los peces adormecidos, acariciar los muelles de la orilla más lejana y aterrorizar a más de una barca orgullosa y falsamente considerada inhundible. (BANAZAK, 2007, p. 233).

Destacamos que a contribuição de Paulo Freire para a Educação tem se estendido, além de geograficamente, para muitas instâncias educativas. Há meio século, os pressupostos freirianos têm sido uma força desafiante e vivificante para muitas pessoas, sociedades e instituições que têm em comum a luta pela existência digna de todas as pessoas e o desejo de ser mais. Sob essa perspectiva, as reflexões e as possibilidades discutidas por este estudo se configuram como posicionamentos que impulsionam para a recriação das contribuições dos pressupostos freirianos também na educação das infâncias. Essas contribuições podem redimensionar a práxis pedagógica dos processos educativos com crianças que vivem distintas experiências infantis, para que sejam compreendidas e respeitadas em suas marcas, sobretudo superados os processos que as submetem à exploração, à crueldade e à negação de direitos.

Notes

1Estudo intitulado Paulo Freire e a Educação da Infância das classes populares em reflexões, imagens e memórias reveladas, do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG (2009). Defendida por Franciele Clara Peloso, sob orientação da Profa. Dra. Ercilia Maria Angeli Teixeira de Paula. A referida dissertação foi finaciada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

2O conceito infância será utilizado em seu plural sempre que nos referirmos a um conjunto de crianças. Sarmento (2003) menciona que dentro do conceito infância há várias infâncias. O estudioso explica que, na infância global, existe a desigualdade, e esse dado é essencial para contemplar as distintas infâncias na contemporaneidade. Nesse sentido, pluralizar esse conceito é potencializar o reconhecimento das diferentes formas de ser e estar no mundo de crianças que vivem distintas realidades. O conceito aparecerá no singular toda vez que fizer menção somente à fase geracional.

3Os estudos que objetivam estudar a obra de Paulo Freire trazem duas formas de adjetivar seus pressupostos. Alguns especialistas em Paulo Freire utilizam o “freireano”, outros o “freiriano”. Há justificativa para as duas terminações. Optamos por utilizar o freiriano. Romão (2008) nos ajuda a justificar nossa escolha quando explica que os radicais e os afixos são base de significação e, por isso, não podem se alterar. Quando o sufixo “iano” é aposto a nomes próprios que terminam com a vogal “e”, por uma questão de eufonia, na Língua Portuguesa, devem desaparecer. Assim, em coerência com esse pensamento, todas as vezes que nos referirmos ao legado de Paulo Freire, neste artigo, será utilizada a expressão freiriano ou freiriana e não freireano ou freireana.

4Estudamos essa temática desde o ano de 2006 e percebemos que houve um acréscimo de publicações sobre o tema nos últimos três anos; no entanto, quando esse número é comparado a outras temáticas associadas ao pensamento freiriano, ainda é muito pequeno.

5Estão indicadas entre parênteses a data da primeira publicação de cada obra com o intuito de apresentá-las em sua cronologia.

6Observamos que, a partir daqui, indicamos, entre parênteses, a data da edição da obra utilizada para este estudo.

7 Freire (2001) evidencia que há crianças no Primeiro Mundo que vivem em situação de vulnerabilidade social.

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Recebido: 29 de Agosto de 2020; Revisado: 01 de Fevereiro de 2021; Aceito: 02 de Fevereiro de 2021; Publicado: 09 de Fevereiro de 2021

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