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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16618.019 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

A infância como o outro libertador*

Childhood as the other liberator

La infancia como el otro libertador

Antonio Oliveira Dju** 
http://orcid.org/0000-0001-8954-2145

Darcísio Natal Muraro*** 
http://orcid.org/0000-0002-5413-8385

**Mestre em Filosofia de Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Bolsista do Programa de Pós-Graduação em Educação nível Mestrado pela CAPES. E-mail: <antoniodju@yahoo.it>

***Doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professor adjunto do Departamento de Educação – Programa de Pós-Graduação em Educação – da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: <murarodnm@gmail.com>


Resumo:

Este artigo objetiva analisar a concepção de Outro em Freire para compreender as relações com a infância e com a libertação da opressão. Para isso, levantamos a seguinte questão: que contribuição a concepção de Freire acerca do outro pode dar para compreender a infância e a libertação? O texto segue uma metodologia bibliográfica de caráter qualitativo, cujo aporte é a análise filosófica, como parte de nosso projeto de pesquisa de Mestrado que tem por foco investigativo a questão de Outro e a educação humanizadora. Como referencial teórico base, são utilizadas as obras de Freire: Pedagogia do Oprimido (1987); Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (2011). Na proposta de Freire, a infância é um sujeito livre e ativo do processo educativo, que problematiza, dialoga e desperta os adultos de sua dominação e opressão, e gera o processo democrático de transformação do mundo.

Palabras-clave: Outro; Infância; Libertação

Abstract:

This paper aims at analysing the conception of Otherness in Freire in order to understand the relations with childhood and the liberation from oppression. For that, we raised the following question: What contribution can Freire’s conception of the Other make to understand childhood and liberation? The text follows a qualitative bibliographic methodology, whose contribution is the philosophical analysis, as part of our Master’s research project which has as its investigative focus the question of Other and humanizing education. As a theoretical framework, the works of Freire: Pedagogy of the Oppressed (1987); Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educative - Pedagogy of Autonomy: necessary knowledge for educational practice (2011) are used. In Freire’s proposal, childhood is a free and active subject of the educational process, which problematizes, dialogues and awakens adults from their domination and oppression. In addition, it generates the democratic process of world transformation.

Keywords: Otherness; Childhood; Liberation

Resumen:

El presente artículo tiene como objetivo analizar la concepción de Otro en Freire para comprender las relaciones con la infancia y con la liberación de la opresión. Para ello, planteamos la siguiente pregunta: ¿qué contribución a la concepción de Freire acerca del otro puede servir para comprender la infancia y la liberación? El texto sigue una metodología bibliográfica de carácter cualitativo, cuyo aporte es el análisis filosófico, como parte de nuestro proyecto de investigación de Maestría que tiene como foco de investigación la cuestión del Otro y la educación humanizadora. Como referencia teórica básica son utilizadas las obras de Freire: Pedagogía del Oprimido (1987); Pedagogía de la Autonomía: saberes necesarios para la práctica educativa (2011). En la propuesta de Freire, la infancia es un sujeto libre y activo del proceso educativo, que problematiza, dialoga y despierta a los adultos de su dominación y opresión. Además de eso, genera el proceso democrático de transformación del mundo.

Palabras claves: Otro; Infancia; Liberación

Introdução

É possível identificarmos na história, em diferentes civilizações, a discussão sobre o Outro do ponto de vista econômico, ético e social a partir das lutas de resistência das minorias identitárias. No entanto, é ao longo dos últimos séculos que essa questão ganhou relevância, porque as minorias conseguiram se organizar para exigir e reivindicar seus direitos e reconhecimento público. Pela necessidade e relevância de aprofundar a compreensão sobre esse problema que busca conceituar o outro, vista a partir da infância, nosso questionamento central é: o que é o outro1 na perspectiva de Freire e como ele se relaciona com a infância e a libertação?

A discussão sobre o outro/outredade, às vezes usado como sinônimo de alteridade e algumas vezes como diversidade, é um dos temas centrais debatidos no século XXI (PRIETO, 2015; TODD, 2011), seja em educação, seja em outras ciências referentes ao campo das humanidades, pois envolve a questão da identidade (self – eu) e diferença (other – outro), que são dois aspectos da condição humana em relação com os pares. A relevância dessa discussão pode ser sentida em experiências que envolvem a resistência da participação do diferente no contexto sociopolítico, econômico e educacional em situações adversas, tais como: práticas de exclusão das minorias, autoritarismo, racismo, preconceito, exploração, violência física e moral, alienação etc. Na educação, assim como em outras ciências humanas, a abordagem desse tema torna-se uma condição sine quo non para compreensão e enfrentamento dos problemas sociais. Toda prática educacional lida com a diversidade de pessoas e grupos, deve ter clareza e necessita de um projeto formativo que promova o crescimento pessoal e social. Muitas escolas brasileiras procuram contemplar essa discussão em seus diferentes projetos escolares, porque tentam possibilitar a experiência e o desenvolvimento educativo de seus estudantes voltada para suas diferentes realidades e necessidades, isto é, a partir de suas diversidades. Essa preocupação consta, por exemplo, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de 1997 e nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica (DCNEB), publicadas em 2010. Esses dois documentos enfatizam a necessidade de a educação levar em conta a diversidade no trabalho pedagógico (BRASIL,1997, 2010).

O outro, na perspectiva de Freire, se trata de um conceito que visa compreender o ser humano em sua experiência existencial. Tomamos esse “ser humano” freiriano, especificamente neste texto, como a infância, isto é, o Outro como a infância/criança. O termo “infância” remete-nos a uma condição existencial relacionada ao incômodo, ao problemático no e com o mundo, e à busca por meio do diálogo do “ser mais”. Infância é muitas vezes relacionada a um período de crescimento da vida humana, que vai do nascimento à puberdade, com uma ênfase cronológica. Do latim in-fans, o termo designa aquele que não fala, que não tem linguagem, mas que está em processo de aprendizagem para se fazer ouvir, isto é, uma fase de construção, de criação, de teorização da condição da experiência humana. Apesar de sem linguagem, a infância fala pelo corpo, revela o que está no mundo e nos interpela constantemente. Isso é uma problemática filosófica. Aqui, a criança é vista não como adulto em potência, isto é, à luz do que deve vir a ser, mas como sujeito histórico e cultural em processo constante de criação e construção (sujeito inacabado, informado). Por conta disso, as filosofias recentes concebem a infância em si mesma, levando em conta suas manifestações próprias e a capacidade imaginativa e criativa. Ressaltamos a pioneira intuição de Lipman (1990) a propugnar a necessidade da filosofia da infância. Diz o filósofo: “[...] a infância é uma dimensão legítima do comportamento humano e da experiência humana e que não é menos habilitada ao tratamento filosófico que as outras dimensões para as quais já existe filosofias” (LIPMAN, 1990, p. 215).

Vale ressaltarmos que o interesse pela problematização do Outro remonta à filosofia clássica, analisado por Parmênides e Platão (PLATÃO, 2015) não sob o aspecto ético ou metafísico, mas sob a categoria de princípio da identidade (ontologia). Parmênides, inaugurando sua tese de unidade do ser (uno), isto é, a não divisibilidade, afirma o ser e nega o não-ser (o outro), ou seja, só existe o ser. Em outras palavras, Parmênides acredita que é impossível falar ou pensar em não-ser, já que se refere simplesmente a nada. Assim, afirmar ser e não-ser é absolutamente contraditório. Platão, por sua vez, tenta compreender o não-ser (o outro) como diferença em relação ao ser, superando, assim, a visão de contrariedade de Parmênides. Platão entende que se pode falar do ser e não-ser (o outro) ontologicamente, isto é, não há uma contraposição absoluta entre eles, mesmo que gerem aporias.

A filosofia moderna e contemporânea trouxe visões sob olhar ético da problemática em torno da abordagem do conceito de outro. Entralgo (1968) nos traz algumas dessas visões, com seus respetivos pensadores, que mencionaremos a seguir, mas sem pretensão de explorá-las, devido à limitação de nosso texto. Segundo Entralgo (1968), elas são

[...] “o problema do outro no âmbito da razão solitária” (Descartes); “o outro como objeto de um eu instintivo ou sentimental” (psicologia inglesa); “o outro como fim de atividade moral do eu” (Kant, Fichte e Munsterberg); “o outro na dialética do espírito e na dialética da natureza” (de Hegel a Marx); “o Outro como invenção do eu” (Dilthey, Lipps e Unamuno); “o outro na reflexão fenomenológica” (Husserl). (ENTRALGO, 1968, p. 7-9, grifos do autor).

Cada uma dessas afirmações nos dá a noção de outro como um alter ego (outro eu), representação do mesmo. Em outras palavras, elas não superam o “eucentrismo”. O alter ego continua sendo a representação do próprio eu, isto é, o Outro não passa do fruto do pensamento do eu. Ainda, segundo Entralgo, na filosofia contemporânea, falou-se do outro como reação à crise do egocentrismo (Scheler, Buber, Ortega e Gasset), fruto de uma filosofia da razão instrumental; como existência e coexistência (Heidegger, Marcel, Jaspers, Sartre); e, acrescentaríamos, como exterioridade que existe à margem do sistema, na compreensão de identidade e diferença (Dussel, Freire). A perspectiva de Freire parte do existencialismo fenomenológico para abordar o Outro como sujeito em relação ao eu e que se revela como tal, livre, resistindo à totalização instrumental do sistema opressor. Como exterioridade, o Outro interpela e dialoga com o eu de forma interdependente e interconstituinte.

Neste texto, propomos analisar o conceito de outro freiriano, sem pretensão de esgotar o tema, e responder a uma pergunta básica: Sendo a infância esse Outro que nos pro-voca (chama de frente), nos desperta, que contribuição a concepção de Freire pode dar para compreender a infância? O texto segue uma metodologia bibliográfica de caráter qualitativo, cujo aporte é a análise filosófica, como parte de nossa dissertação de Mestrado, cujo foco investigativo está na questão de Outro e na educação humanizadora. Como referencial teórico base, utilizamos as obras de Freire: Pedagogia do Oprimido (1987); Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa (2011). As escolhas dessas obras dão-se pelo fato de conter nelas a menção direta do conceito de outro. Isso não quer dizer que outras não serão contempladas.

A estrutura do texto segue a seguinte ordem: primeiro, analisaremos o conceito de outro em Freire diante da situação de opressão, como sujeito provocante, através de sua condição de criação e de construção; segundo, compreenderemos a infância como o Outro libertador.

O outro e a opressão

Freire não discute abertamente a terminologia “outro” em seus escritos. Isso quer dizer que ele não se dedicou literalmente à discussão desse termo. No entanto, pode-se dizer que o sentido do outro perpassa toda sua discussão filosófica e, consequentemente, educacional. Nessas discussões, a problemática sobre o outro aparece em Freire como reconhecimento da diferença na intersubjetividade, interdependência, interconstituição e no diálogo. A noção do termo aparece claramente em algumas de suas principais obras: Pedagogia do Oprimido (1987); Pedagogia de Autonomia (2011). Na Pedagogia do Oprimido, a conceituação do outro aparece como sujeito constituinte e constituído no diálogo. Diz Freire:

O eu dialógico, pelo contrário, sabe que é exatamente o tu que o constitui. Sabe também que, constituído por um tu – um não-eu –, esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialética destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu. (FREIRE, 1987, p. 165-166).

Nessa citação, o outro é referido como um tu, remetendo à forma como Buber (2017) trata o outro na sua obra Eu-Tu. O eu constitui e é constituído pelo Outro, que é com quem dialoga constantemente. A necessidade do eu entrar em relação com o tu e vice-versa revela a incompletude de cada um deles, que precisa um do outro para se constituírem pelo encontro. A noção de encontro de Buber implica a participação dos dois, eu-tu, ambos sujeitos, na constituição um do outro. Desse modo, o eu é um sujeito presente na vida do tu e vice-versa. A presença de um com o outro mostra a plenitude da relação, em que o eu é capaz de entregar a sua humanidade para receber a dádiva de viver o tu. Essa reciprocidade mostra que, na presença, o olhar o Outro é ver a si mesmo para além das singularidades e é abrir o brilho do espelho da alma, em que cada sujeito é capaz de compreender-se, não somente enquanto eu, mas também como parte do tu que o compõe.

Há outra citação em que Freire refere ao outro como um não-eu, diferentemente das visões filosóficas que concebem o outro como alter ego. Diz o autor: “Na verdade, não há eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu se constitui na constituição do eu constituído. Desta forma, o mundo constituinte da consciência se torna mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se intenciona” (FREIRE, 1987, p. 71).

Freire entende que não se pode reduzir o Outro ao “eucentrismo”, isto é, ao sistema do eu, pois é um sujeito exterior a qualquer tipo de sistema. Ele é diferente do eu, portanto um não-eu. E, por essa sua diferença, ele é condição para a constituição da própria identidade do eu. Quer dizer, não existiria o eu se não existisse o Outro e vice-versa. A constituição mútua de eu-Outro e Outro-eu mostra a necessidade da relação dialógica permanente dos dois. Aceitam e reconhecem um ao outro como sujeitos e se colocam em uma relação intersubjetiva. O Outro é com quem se faz no constante tornar-se (ser-mais).

Na Pedagogia de Autonomia, ao falar da importância de criar condições para que os educandos se assumam na relação com os(as) professores(as) e com os pares, Freire traz o Outro como aquele que nos desperta para isso. Diz ele:

[...] uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. [...]. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a ‘outredade’ do ‘não eu’, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu. (FREIRE, 2011, p. 42, grifos do autor).

É o outro que nos desperta de nossa alienação, opressão, egoísmo pela relação dialógica, para a liberdade, integração temporal com nosso mundo com o intuito de criar, recriar, construir/transformá-lo, para assumir, desse modo, a nossa radicalidade de ser sujeito histórico-cultural. É o outro que denuncia a situação opressora, na qual o “Eu” é opressor-oprimido e o faz sair dela. Quando o “Eu” narcisista domina, aliena, oprimi e conquista o outro, transformando-o em mero objeto, Freire acredita que só o outro estará em condição de despertar o “Eu” dessa condição desumanizadora. Entendemos que há uma ligação ontológica existencial do eu-outro. E qualquer ação provocada em um, recai também no outro. Por exemplo, se o eu oprime o outro, desumanizando-o, está a se tornar também oprimido e desumano igualmente. Freire (1992, p. 100) confirma isso quando diz: “[...] não sou se você não é, não sou sobretudo, se proíbo você de ser”.

O Outro é um sujeito existencial que decide sobre suas experiências diárias. Existir é participar, decidir, criar. Por isso, Freire pensa que é dever do Outro participar nas dimensões sociais que lhe diz respeito (política, educação, economia etc.). E pelo fato de existir, ele é relacional e não absoluto. Isso quer dizer que a sua relacionalidade implica-lhe possuir a capacidade de estar em si e sair de si. A dimensão de relação exige-lhe sair de si ao encontro de outros-eus. E dentro desse encontrar-se, ele afeta e é também afetado por eles. E isso impede sua absolutização (totalmente independente). Supõe-se que os sujeitos relacionados não são independentes de suas relações e a relação os afeta, os modifica. Relacionam com o mundo e com os pares. Freire entende que o Outro, por sua existência, deve integrar-se com sua realidade, participando criticamente na natureza, significando os entes naturais, e na cultura, criando os objetos, sem que se reduza a uma delas. Participar na natureza significa interferir em seu contexto de forma crítica, no qual molda e é moldado. E a participação do Outro na sociedade requere diálogo, que é participar em companhia dos pares.

Na sua dialética com seu contexto, Freire parte do pressuposto de que seu outro, referente a “homem”, se encontra em uma situação de opressão, da qual precisa se libertar. O outro se torna, assim, opressor-oprimido dentro da condição opressora de “contato”2. Segundo Freire (2006), essa realidade foi a herança da colonização, que determinou as relações de poder na sociedade brasileira, estabelecendo-as na condição de opressor-oprimido. Na situação concreta de opressão, o outro desvaloriza a si mesmo e não se reconhece na condição de oprimido e portador de outra forma de ser que não seja a replicação da opressão. Dessa forma, o outro não pode usar da liberdade por não ter consciência dela, porque, de um lado, se tornou opressor e, do outro, oprimido. O oprimido que internaliza o opressor não só não tem consciência dessa liberdade, como também tem medo dela. Diz Freire (1987, p. 24): “O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, [...] preferindo-a à liberdade arriscada”. Liberdade não é um valor dado, mas se torna valor no processo de sua conquista que é o resgate da sua condição de outro, nem opressor nem oprimido.

É papel do outro, na condição do oprimido, humano e historicamente falando, libertar a si mesmo e a seu opressor. Isso porque, segundo Freire (1987), a realidade do oprimido é a única que está em condição de libertar-se, tarde ou cedo, dessa situação. Freire entende que os opressores não têm comprometimento com a libertação dos oprimidos, pois seriam obrigados a olhar a realidade objetiva de opressão de forma crítica, e isso contraria seus interesses e privilégios. Isso quer dizer que querer modificar a condição opressora, transformando-a, prejudicaria os interesses dos opressores. Por isso, não fariam essa inserção crítica, porque a situação opressora é confortável para eles. Portanto, fazem de tudo para mantê-la, usando mecanismos de defesa: a) racionalizar os fatos de opressão, em outras palavras, vê-los a partir de privilégio que é justificado como direito e sem negá-los; b) justificá-los e persuadir os oprimidos com seus argumentos míticos; c) proibir e dificultar a imersão dos oprimidos nos fatos de opressão, para não conhecê-los.

Para manter a dominação, a conquista, por conseguinte, a opressão, criam mitos para impossibilitar o despertar crítico do oprimido diante da situação opressora. A relação opressor-oprimido, como sistema de dominação, estabelece um tipo específico da educação sistemática escolar, que Freire chama de “Educação bancária”. Essa é a crítica de Freire ao modelo opressor que quer reproduzir a si mesmo pela sua ideologia. Freire (1987) não especifica em que consiste essa expressão “bancária” que caracteriza a educação, mas entendemos que pode se referir ao sistema monetário de banco. Isso porque, nesse sistema, a finalidade de ter uma conta bancária é depositar o dinheiro ou valores com intuito de resgatá-los um dia. Esse tipo de educação nada mais é do que narrar o conteúdo programado de forma descontextualizada aos estudantes, sem considerar a leitura do mundo3 das crianças em seu agir pedagógico. Segundo Freire (1987, p. 57), “[...] narração de conteúdo que [...] tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto, sejam valores ou dimensões concretas da realidade”. Nesse sentido, podemos inferir que a infância se encontra nessa condição de opressão e que a educação bancária apenas mudará a condição de opressão transformando-a em oprimido adaptado ao mercado de trabalho.

Na visão de Freire (1987), a educação bancária estabelece e mantém a contradição opressor-oprimido na relação professor(a)-estudantes no contexto escolar, porque vê o primeiro (professor(a) depositante) como sujeito e o outro (crianças depositadas de conteúdo) como objeto. Assim, torna-se melhor o(a) professor(a) quanto mais conteúdo depositar nos estudantes. E a função destes, por sua vez, é receber e arquivar (memorizar) esse conteúdo. De tal modo, quanto mais conteúdo memorizarem, melhores se tornam. Aqui, o sucesso da formação do outro para a vida encontra-se na quantidade de conteúdo. E o conhecimento ou saber é dado de cima para baixo – do(a) professor(a), detentor(a) do saber, para o estudante, tabula rasa. Diz Freire:

Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta se encontra sempre no outro. (FREIRE, 1987, p. 58).

Freire entende que a visão sobre o outro da prática bancária, que está a serviço dos opressores, se pauta na noção de adaptação e de ajustamento. Assim, o outro oprimido é um ser que se adapta e se ajusta a qualquer realidade temporal. Dessa forma:

Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência de que resultaria a sua inserção no mundo, como transformadores dele, como sujeitos. [E] quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos. (FREIRE, 1987, p. 60).

A noção do outro que se tem na visão bancária de educação é distorcida e falsa. Primeiro, porque concebe o outro como ser desvinculado de sua realidade cultural, isto é, toma-o separado do mundo. O outro-formando, aqui, não possui nenhuma relação com o mundo e com o eu-formador no sentido construtivo de buscar ser mais. Pelo contrário, apenas vive no mundo e assiste as aulas no processo pedagógico. Segundo, o outro é tratado como ser passivo, puro receptor e vazio, cuja consciência pode ser entendida como um espaço de armazenamento compartimentado e que é enchido de conhecimento e de bens culturais pela prática bancária por meio do depósito do conteúdo da escola. Esse agir bancário não consegue ver o outro como ser com quem se relaciona sobre os fatos e as coisas sem que estes estejam dentro dele, assim, não enxerga a presentificação desses fatos e coisas perante a consciência do outro. Terceiro, o outro como ser de adaptação, adequação e ajustamento a qualquer contexto sociocultural. E quanto mais estiver adaptado, melhor será a sociedade. Freire vê isso como condição opressora criada pela elite intelectualista para manter a opressão do oprimido. A educação bancária é esse mecanismo de manutenção da opressão. Nela:

Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta destorcida visão da educação, não há criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca esperançosa também. (FREIRE, 1987, p. 58).

O que se vê na “educação bancária” é a elitização da educação, na qual o outro é visto em razão de seu resultado intelectualista e não em razão de sua experiência de vida. Freire acredita que há uma dominação e manipulação das elites nas camadas menos privilegiadas. Isso porque toda reflexão, problematização e solução dos problemas sempre partem do olhar delas e terminam com elas, isto é, o resultado da reflexão volta para elas como cultura. Nessa visão, só as elites têm cultura, que é o conhecimento já consolidado ou, ainda, em construção por elas. Parece que tudo gira em torno das elites. Por isso, elas justificam suas atitudes psicológicas pela prática bancária de querer introduzir sua cultura no outro de forma pacífica via disciplina, via moralismo. Freire denuncia essa cultura de elites como sendo depositária da cultura (conhecimento acumulado). Em contraposição à educação bancária, a infância é significada com qualidades como criatividade, invenção, busca inquieta, impaciente, permanente e transformação no fazer um novo mundo.

Na condição de opressão, o outro pode se despertar para sua libertação, eliminando a situação opressora, restaurando sua vocação ontológica de criar, construir e de ser mais de forma dialógica. A criatividade e a construção do Outro revelam essa vocação ontológica do ser humano, vista na infância. A infância é a condição existencial contínua, a vocação ontológica para ser mais, cujas características são a imaginação, o questionamento, a criatividade e a construção. Se o Outro é um sujeito de integração em relação com o eu, que exige (re)criação e construção de seu mundo (transformação, (re)construção de seu mundo) pela imaginação, questionamento e criatividade, então a infância é esse Outro em relação interdependente. Por isso, as diferentes perspectivas filosóficas, incluindo a de Freire, nesse assunto, defendem que é impróprio colonizar, oprimir, dominar ideologicamente essa fase da vida.

Podemos remeter-nos à experiência de criança em que a infância dá vazão mais plenamente das características do fazer filosófico como o questionamento, a criação e a recriação. Essas características, infelizmente, são limitadas depois na educação formal pelo eu-opressor. Essa prática opressora de adultos é vista em várias sociedades, pois nelas se acredita que a infância é a preparação para a vida adulta. Por isso, ela deve ser educada à imagem e à semelhança dos adultos. Isso faz com que as crianças reproduzam os valores e as ideologias sociais. É nesse sentido que Bourdieu faz crítica à escola, dizendo que é reprodutora do sistema social dominante, que ele chama de “violência simbólica”. Diz ele:

A ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural. [...] a ação pedagógica escolar reproduz a cultura dominante, contribuindo desse modo para reproduzir a estrutura das relações de força, numa formação social onde o sistema de ensino dominante tende a assegurar-se do monopólio da violência simbólica legítima. (BOURDIEU; PASSERON, 1992, p. 20-21).

Nessa crença, o processo do conhecimento é circular, pois é depositado e transmitido de geração em geração. Não há, nessa ação pedagógica, a possibilidade de a criança exercer sua criatividade na construção do conhecimento na relação dialógica com o(a) educador(a). No Brasil, percebemos movimento do atual governo em destruir a luta de muitos pensadores brasileiros pela liberdade do Outro-infantil diante de sua educação opressora. Essa destruição é justamente para poder impor essa violência simbólica, ideológica e opressora, sobretudo pelo viés religioso conservador e moralista. Por exemplo, retiram a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias do currículo escolar da Educação Básica, as quais possibilitam às crianças problematizar o conhecimento social e seu contexto pelo diálogo e pela criatividade. E insistem na instituição da chamada “escola militar”, cujo agir educativo se pauta na disciplina, obediência total e cega e imposição, acomodação sem possibilidade de diálogo. Freire critica esse tipo de educação, na qual há uma relação opressora na formação desse outro infantil, denominando-a de “educação bancária”, elitizada. A criança exige ser reconhecida como sujeito ativo do processo educativo e não mais objeto passivo, consumidor do conhecimento dos adultos, visto que exige a libertação. E essa libertação, segundo a proposta filosófica de Freire, dá-se pela educação dialógica.

A criança/infância: o Outro libertador

Criança é um termo usado psicológica e sociologicamente para se referir a uma fase cronológica da vida humana, também considerada de menor de idade, dentre 0 a 12 anos incompletos. É um ser humano que possui seu lugar na sociedade. Diante de uma sociedade cada vez mais adultizada, o ser da criança vive dependente da tirania dos adultos, privada de vivência de sua infância. Para reagir a isso, surgiram movimentos de defesa da criança. Um importante marco no reconhecimento dos direitos da criança e do adolescente no Brasil é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esse documento entende que a criança não pode ser vista à luz de adulto, isto é, como um pequeno adulto ou adulto em miniatura, mas tem condições e necessidades específicas que requerem tratamento diferenciado. A concepção de outro freiriano como um não-eu e como um tu, que se refere, em termo do novo “homem”, a partir da infância, diz respeito ao Outro que quer assumir sua vocação ontológica no processo de libertação. E esse processo necessita de um agir educativo também libertador e dialógico, que considera a leitura do mundo e da palavra (pronúncia da palavra) das crianças.

O conceito de leitura de mundo

A leitura do mundo é um dos elementos imprescindíveis no processo educativo. É algo comum aos seres humanos pelo fato de serem sujeitos de existência que se relacionam com o mundo e com os outros no processo constante de libertação, pois dialogam com os pares sobre o mundo, criando, recriando e construindo cultura e história pela sua criatividade. A noção da leitura do mundo presente em Freire diz respeito à visão da realidade, à concepção que cada ser humano tem de sua realidade. Segundo Voltas, Saul e Saul (2021, p. 7): “Freire [...] compreende a realidade como uma totalidade constituída por partes em permanente e dinâmica interação”. É uma construção que o Outro faz desde criança. Isso quer dizer que, independentemente de fase da vida, o ser humano possui sua leitura do mundo. Ela não é uma concepção acabada, mas está em constante construção na experiência de vida. E essa construção faz-se no mundo com os pares. Como somos seres existenciais, no espaço e tempo, relacionamo-nos de forma integrada com o mundo e com os outros, criando história e cultura.

Para Freire, a noção de leitura de mundo vem da visão que o Outro tem de seu contexto, de sua realidade, que é resultado de sua experiência no e com o mundo. A leitura de mundo é independente de saber ler (no sentido formal de decodificação da língua escrita) ou não, porque a experiência de vida no mundo é anterior a saber usar a palavra. Por exemplo, nossos pais e avós, que não tiveram oportunidade de estudar, sabiam e sabem refletir e interpretar a realidade social e natural, criando assim os saberes necessários a sua subsistência.

Na filosofia da educação, proposta por Freire, a leitura do mundo, hifenizada com a leitura da palavra, é condição sine qua non para que aconteça com as crianças a práxis pedagógica no processo criativo e construtivo da educação libertadora. Por práxis pedagógica, entende Freire (1987) o resultado de diálogo entre ação-reflexão que, necessariamente, leva à transformação do mundo. Diz Freire (2015a, p. 50-51): “A educação, ‘leitura do mundo’ e ‘leitura da palavra’ se impõe como prática indispensável a essa reinvenção do mundo. A assunção de nós próprios como sujeitos e objetos da História nos torna seres da decisão, da ruptura, da opção. Seres éticos”.

O agir educativo começa com a experiência do mundo que as crianças têm, isto é, seus saberes iniciais sobre o conteúdo. Aliás, Freire (2015b) defende que é a partir desses conhecimentos prévios das crianças, mesmo sendo ingênuas, que deve ser programado o conteúdo da educação. Cabe à escola, pelo processo dialógico, possibilitar aos educandos tornar essa leitura do mundo crítica. Essa é uma das tarefas da educação libertadora. O processo de libertação do Outro começa pelo reconhecimento e pela exposição de sua leitura de mundo. Freire (2011) entende que é papel do(a) educador(a) ler cada vez melhor essa leitura que as crianças (educandos/as) fazem de seu contexto, seja familiar ou social. Segundo o autor, como educador, “[...] não posso de maneira alguma [...] desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo” (FREIRE, 2011, p. 54).

O diagnóstico, para saber a leitura do mundo dos(as) educandos(as), pode ser visto desde a timidez, sorriso, modo de falar, de fazer perguntas, de pensar dos(as) educandos(as). Para Freire (1992), a leitura do mundo é precondição para a leitura e para a escrita das palavras. Diz o autor: “A leitura e a escrita [...] passa pela leitura do mundo. Ler o mundo é um ato anterior à leitura da palavra” (FREIRE, 1992, p. 79). Por isso, Freire sustenta que é necessário que o conteúdo para a prática dialógica da educação seja gerado da leitura do mundo dos educandos. Isso significa que, na prática pedagógica, o(a) educador(a) não deve impor às crianças sua leitura de mundo, sobre a qual se baseia o ensino do conteúdo, como se fosse a única. Pelo contrário, o(a) educador(a) deve mostrar aos(às) estudantes que há diferentes leituras de mundo, que devem estar em diálogo para uma transformação permanente da realidade.

A leitura do mundo, para Freire (2015b), é o saber de senso comum que não pode ser dicotomizado do saber escolar. Isso porque ao encontrar-se com o saber sistemático e crítico escolar, por meio da ação de estudar da criança, a leitura do mundo é relida pela própria criança. Em outras palavras, da leitura do mundo à leitura da palavra resulta-se em reler o mundo. A primeira leitura pode ser ingênua, mas a segunda é crítica devido à criticidade adquirida pela criança no processo crítico-dialógico com o(a) educador(a) e os pares. Isso porque a pronúncia da palavra possibilita à criança a conscientização de sua condição de sujeito transformador e libertador.

A pronúncia da palavra

A pronúncia da palavra aparece para Freire como elemento imprescindível para o diálogo com o Outro. A palavra é em si a comunicação, que, por sua vez, é diálogo. A pronúncia da palavra é o que dá sentido ao Outro libertador no tempo. Na tradição judaico-cristã, a pronúncia da palavra deu sentido ao mundo e à humanidade. No Antigo Testamento, Deus criou o mundo em sete dias e deu-lhe sentido pela pronúncia da Palavra. E no Novo Testamento, a própria Palavra se encarna para resgatar a liberdade e ressignificar o ser humano. O resumo disso se encontra no prólogo de São João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. [...]. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito [...]. E Verbo se fez carne [...]” (Jo 1,1.3.14). A pronúncia da palavra que significou o mundo na sua criação é a mesma que se encarnou para assumir as fraquezas dos seres humanos, incluindo a condição da morte, e assim resgatar a dimensão da vida, libertá-los. Entendemos que a noção de pronúncia da palavra de Freire bebeu dessa tradição judaico-cristã. Segundo Almeida e Streck (2017, p. 299), “[...] a palavra humana, tal qual a palavra divina, é criadora”. Isso equivale a dizer que a ação de pronunciar a palavra inclui a significação temporal ao Outro na sua existência.

A palavra humana imita a palavra divina, por isso que ela é criadora. Quando ela é silenciada, o Outro se torna castrado em seu poder criativo e recreativo e em seu poder de transformar o mundo. Por esse motivo, não permitir a pronúncia da palavra da criança, no agir educativo, é eliminar sua possibilidade libertadora. Pronunciar a palavra é um ato de criação. Ressaltamos que, para Freire, a criação e a transformação do mundo não se dão de forma individual, mas sempre com o Outro. Segundo Fiori (1987):

A palavra viva é diálogo existencial. Expressa e elabora o mundo, em comunicação e colaboração. O diálogo autêntico – reconhecimento do outro e reconhecimento de si, no outro – é decisão e compromisso de colaborar na construção do mundo comum. Não há consciências vazias; por isto os homens não se humanizam, senão humanizando o mundo colaboração. (FIORI, 1987, p. 20).

Freire julga que a pronúncia da palavra é também direito do Outro, e ele fala disso em oposição à situação de silêncio provocada ao Outro. Freire (1987) entende a noção do silêncio como sendo “mutismo”, isto é, falta de compromisso existencial com o mundo do sujeito. Esse não compromisso do outro é resultado de sua situação impositiva e opressora, na qual ele se torna passivo, ouvinte da palavra. Em outras palavras, nessa situação lhe é roubada a palavra. Quando o silêncio é provocado ao outro, para Freire, revela-se a situação opressora, na qual a palavra é dita sempre para o outro e nunca com ele. Pela palavra, o Outro, sendo sujeito ativo, transforma seu mundo, pronunciando-o em relação com o eu. Pela mesma palavra, os dois sujeitos se humanizam e se significam. Isso quer dizer que a palavra deve sempre ser pronunciada com o Outro. De acordo com Freire (1979, p. 41): “Se ao dizer suas palavras, ao chamar ao mundo, os homens o transformam, o diálogo impõe-se como o caminho pelo qual os homens encontram seu significado enquanto homens; o diálogo é, pois, uma necessidade existencial”.

Os seres humanos dizem a palavra, pronunciando o mundo uns com os outros e nunca sozinho e nem para o Outro. Enfatizando a dialética entre as duas dimensões da palavra, reflexão (teoria) e ação (prática), Freire diz:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (FREIRE, 1987, p. 78).

O uso da palavra verdadeira é direito de todos e, por isso, deve ser dita ou pronunciada por todos para que o diálogo seja um encontro dos seres humanos para conquistar o mundo. Na visão de Freire, para saber se a palavra é dita de forma verdadeira, é necessário olhar para sua práxis: se levar à transformação da condição situacional então é verdadeira. Caso contrário, não. A palavra traduz o pensamento e, por sua vez, está ligada a uma realidade. Isso significa que não se pode romper a relação sequencial pensamento-palavra-realidade. A práxis consiste na dinâmica constante de pensar ou refletir, agir e repensar (pensar a realidade, agir sobre ela e repensá-la). Ao expressar o pensamento, a palavra deve cumprir seu efeito para com a realidade, transformando-a. Por isso, Freire considera que a palavra carrega as marcas da realidade. Diz ele:

Nesta comunicação, que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade. Não há pensamento que não esteja referido à realidade, direta ou indiretamente marcado por ela, do que resulta que a linguagem que o exprime não pode estar isenta destas marcas. (FREIRE, 2013b, p. 61).

Na relação eu-Outro, pronunciar a palavra significa também ouvir a palavra, isto é, reconhecer e respeitar o direito do Outro de também pronunciar a palavra. De acordo com Freire (2013b), deve haver comunicação entre eles e não o comunicado. A comunicação só acontece quando os comunicadores se encontram em uma condição horizontal (posição de igualdade), possuidores da linguagem, característica humana. Comunicar exige falar e escutar e escutar e falar com o Outro sobre o assunto. Por isso, Freire entende que “[...] na comunicação, não há sujeitos passivos. Os sujeitos cointencionados ao objeto de seu pensar se comunicam seu conteúdo” (FREIRE, 2013b, p. 58).

Na educação, essa exigência da pronúncia da palavra torna-se ainda mais indispensável para uma práxis pedagógica. O Outro, visto na infância, sendo sujeito ativo, deve ser possibilitado às condições para também expressar sua palavra. Diferentemente da “educação bancária”, em que dizer a palavra é privilégio de alguns, na educação libertadora, esse privilégio é de todos os envolvidos no processo educativo. Freire (2013b) assume que, da mesma forma que os(as) educadores(as) têm muito a dizer sobre o conteúdo e dizem-no, as crianças também o têm e devem dizê-lo em diálogo com os(as) educadores(as) e com os pares.

A infância do diálogo

Entendemos o diálogo como um modo de comunicação que cria significação capaz de transformar o mundo dos falantes. A fala é pronúncia de palavras (significados) que gera a experiência de mudança da condição problemática para uma condição humanizada. O que caracteriza a infância é a capacidade de problematizar o mundo, despertando a busca por significação que implica a dialética reflexão-ação. A problematização é permeada pelos comportamentos de encantamento, maravilhamento, estranhamento, gosto, indignação, dúvida. Assim, a problematização é a força geradora do diálogo, permitindo a relação da infância com o diálogo. A infância é uma condição da fala, é uma posição diante da palavra que não é a de repetição da palavra oca, mas da palavra pensada, experienciada, mundificada.

A infância caracteriza um período de vida marcado pelo mais intenso desenvolvimento psicofísico. Nessa fase, a criança desenvolve suas habilidades motoras por meio dos jogos e do brincar, melhora o uso da linguagem, e, com isso, constrói novos conhecimentos. E a construção desses conhecimentos se dá pelo diálogo, seja com os adultos (educadores/as), seja com os pares. Isso quer dizer que, no processo de desenvolvimento infantil, é imprescindível o diálogo. O diálogo faz parte desse período. Basta lembrar da espontaneidade e da criatividade em mexer em algo e dos questionamentos que elas fazem com o intuito de compreender e construir o conhecimento a seu modo.

Freire entende diálogo como sendo “[...] encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo [...]” (FREIRE, 1987, p. 78). A pronúncia do mundo refere-se a sua transformação, que é sua humanização. E essa humanização do mundo, consequentemente, será para a humanização dos seres humanos. No encontro dialógico, há sempre amor e reciprocidade. Por isso, Freire sustenta que é o diálogo que nos possibilita sermos humanos e estarmos em relação com o mundo. A criança se faz no diálogo, na palavra verdadeira, que, necessariamente, leva à práxis. Dialogar é participar do processo, das políticas como sujeito ativo para a transformação e libertação de todos. E participar é fazer uso da palavra verdadeira. No diálogo, deve haver sempre alternância de palavra, de expressão entre os sujeitos (adultos e crianças). Cada um tem sua “vez” de se expressar na busca do bem comum. Isso exige deles reconhecerem a palavra um do outro como legítima e procurarem compreendê-la à razão de sua existência.

Freire traz algumas características éticas fundamentais, embutidas no diálogo, as quais são originárias do diálogo: amor, humildade, esperança, fé, confiança. Segundo Freire (2006), o diálogo

[n]utre-se do amor, da humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso, só o diálogo comunica. E quando os dois polos do diálogo se ligam assim, com amor, com esperança, com fé um no outro, se fazem críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre ambos. Só aí há comunicação. (FREIRE, 2006, p. 115).

Essas características levam ao diálogo e este as carrega. O diálogo pressupõe, primeiro, ter fé na capacidade criativa e construtiva da criança. A crença na criança é fundamental para que o diálogo aconteça. É acreditar que ela tem possibilidades de integrar-se à sua realidade, de dialogar, de conhecer, de criar, de recriar, de decidir, de construir.

A relação deve basear-se no amor, na humildade, na fé e na esperança. No amor, a criança reconhece-se na interconstituição e na interdependência com o(a) educador(a), sabendo que anular um é anular a si próprio. Tanto a criança quanto o(a) educador(a) são pré-condições para a constituição da existência de um e de outro como sujeitos. O amor e a humildade exigem deles a não se considerarem superiores e nem inferiores um ao outro, mas sim comprometerem-se com a causa da libertação e da humanização de todos. Isso sim é diálogo: amor ao mundo e aos seres humanos. Diz Freire: “Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo” (FREIRE, 1987, p. 80). A humildade requer senso de pertença entre a criança e o(a) educador(a) e que todos(as) conseguem contribuir no encontro dialógico, sendo sujeitos histórico-culturais. Segundo Freire (1987, p. 81): “A autossuficiência é incompatível com o diálogo”.

O amor e a humildade criam clima de confiança entre nós e as crianças e a confiança revela a esperança depositada em um no outro e no mundo. Sem essa fé nas crianças, não há diálogo. Ter fé significa reconhecer o direito à fala da criança e sua potencialidade de decidir, de criar, de fazer, de dialogar com seu mundo e com os pares. E a esperança resgata a noção de nosso inacabamento. Assim diz Freire (1987, p. 82): “A esperança está na própria essência da imperfeição dos homens, levando-os a uma eterna busca. Uma tal busca [...] não se faz no isolamento [...], mas na comunicação entre os homens – o que é impraticável numa situação de agressão”.

O diálogo como comunicação verdadeira não pode ser confundido com qualquer tipo de conversação, porque não é uma simples conversa, na qual as falas são ditas apenas por dizer. Pelo contrário, no diálogo, as falas (as palavras), ditas com o Outro, vão ao encontro do Outro. Há de diferenciar-se, aqui, o diálogo do monólogo, polémica e mera conversa, como formas de comunicação, para a melhor compreensão de diálogo freiriano. Quando pensamos a comunicação, em seu aspecto monológico, estamos nos referindo ao pensar e ao falar desse pensamento de um único indivíduo, isto é, quando o discurso ou a fala é monopolizada por uma única pessoa. Isso equivale dizer que, quando pensamos sobre e para a criança, estamos em uma relação comunicativa monológica. As crianças sofrem com essa forma de comunicação, porque muitos adultos acreditam que elas não sabem o que querem. Portanto, tudo que diz respeito a elas deve ser decidido por adultos, detentores de conhecimento, e cabe às crianças apenas obedecer, cumprir ordens e serem depositários de valores e desse conhecimento. Aqui, não se respeita o direito à fala da criança.

A polêmica, por sua vez, diz respeito ao debate de ideias sobre algum assunto problemático entre as pessoas, sem compromisso de busca do bem comum. Pelo contrário, na polêmica busca-se desqualificar, persuadir, conquistar a fala do Outro. Digamos que, na polêmica, se respeita o direito de fala do Outro, mas Freire (1987) entende que essa fala é conquistada e dominada pelos “mitos” do opressor. Aqui, encaixa-se a situação em que o(a) educador(a) escuta às crianças por formalidade, mas acaba impondo-lhes sua visão de mundo como se fosse a verdadeira. Uma mera conversa refere-se à simples troca de ideias entre as pessoas, na qual as falas não vão além delas mesmas, isto é, sem nenhuma preocupação com uma ação concreta, pois não possui efeito prático. Diferentemente das três formas acima mencionadas, a comunicação dialógica possibilita ao(à) educador(a) comunicar seu pensamento sobre a realidade com, e nunca para, o Outro-infantil e vice-versa em busca comum de algo que, para Freire, é o processo da libertação.

Lipman (1995) suporta essa ideia de diálogo com a infância como processo filosófico. Sua concepção de metodologia do Programa de Filosofia para Crianças tem no diálogo sua base. Isso porque o autor propõe que as salas de aulas se transformem em Comunidade Investigação. Lipman acredita que a filosofia em si é diálogo, pelo qual as crianças aprendem algumas atitudes mentais: escuta, autocorreção, respeito recíproco, interrogação, confiança. Em outras palavras, é no diálogo que as crianças “[...] dividem opiniões com respeito, desenvolvem questões a partir das ideias de outros, desafiam-se entre si para fornecer razões a opiniões até então não apoiadas, auxiliarem uns aos outros ao fazer inferência daquilo que foi afirmado e buscar identificar as suposições de cada um” (LIPMAN, 1995, p. 31).

A criança, desde cedo, pergunta “por quê”? Esse questionar faz parte do comportamento (prática) filosófico. Ela faz isso, igualmente como qualquer adulto, com a intenção de “[...] identificar o que deveria ser explicado por razões e distinguir do âmbito das explicações causais” (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN, 1994, p. 88). Essa prática exige o interesse pelo saber (amor pelo saber) e sua busca constante pelo diálogo com o Outro para uma construção coletiva de conhecimento. Esse interesse é constante na infância.

No diálogo, fazemos uso da palavra verdadeira com o Outro, explicitando nosso pensamento pela linguagem. Com isso, esclarecemos, para nós mesmos, nosso conhecimento inicial. Nesse processo, valorizamos a palavra pronunciada por nós e pelo Outro e, consequentemente, aprendemos com ela. A aprendizagem da criança é o resultado do movimento dialético de ouvir a palavra do(a) educador(a) e dos pares e expressar a sua e, por consequência, reelaborá-la. Esse processo, segundo Freire (2015b), é contínuo e deve ser feito com amor, fé, esperança. Em outras palavras, é uma construção contínua, na qual a criança aprende a criar, construir e experienciar o mundo como intersujeito com os pares e com o(a) educador(a).

A infância e a construção do Outro

A proposta da filosofia da educação de Freire (1987), a partir da noção do outro, é descolonizar a condição opressora rompendo o círculo vicioso da exclusão da dignidade e negação da liberdade do Outro. É uma educação libertadora que Freire sustenta ser um ato criador e construtor pela infância em que a criança dialoga com o(a) professor(a), porque possibilita o domínio de técnicas, em termos conscientes, para ler e reler seu mundo de forma crítica. Por isso, Freire (2013a, p. 63) julga que essa educação “[...] não pode se fazer de cima para baixo, nem de fora para dentro, como uma doação ou uma exposição, mas de dentro para fora pela própria [criança], somente ajustado pelo educador”.

Diferentemente da educação dominadora, na qual a ação pedagógica mira à domesticação, à aprendizagem por repetição, castigo e repreensão, isto é, opressão, de modo que a figura opressora é introjetada na criança ao ponto de ela não ter autonomia para pensar, criar, construir, mas depender dos adultos, o agir educativo da educação libertadora possibilita às crianças, primeiro, a destruição da figura do inner opressor, que as fazem ver a educação como sendo transmissão do saber e preparação para a vida adulta. Segundo, possibilita a elas construir seus saberes e seus conhecimentos. Quem constrói conhecimento, na opinião de Freire (2011), não é o(a) educador(a), mas sim a própria criança, a partir de sua criatividade como sujeito ativo. Essa construção dá-se em diálogo com o(a) educador(a), isto é, é no diálogo que a criança se constrói como o Outro diferente, intersujeito. Em fase diferente, ambos sujeitos “[...] estão em permanente formação nos diferentes espaços da existência em que, mediatizados pelo mundo, colocam-se a construir conhecimento na relação com os outros” (VOLTAS; SAUL; SAUL, 2021, p. 6).

Assim, o papel do(a) educador(a) é ouvir a voz da criança, obedecê-la e confiar nela, pois essa voz pede algo que a criança precisa para sua construção. Segundo Dussel (1980, p. 241): “A voz do outro é exigência, chamamento peremptório a um trabalho libertador. Para poder servir trabalhando, é necessário antes con-viver para poder comunicar”. O diálogo com a criança exige do(a) educador(a), uma vez que se torna modelo para a criança, antes de tudo, a conscientização da situação de educação dominadora, da qual é fruto; viver com as crianças e obedecer a voz delas em termos do agir pedagógico com elas. Aqui, enfatizamos a relevância que Freire (2015b) traz de educador(a) conhecer o contexto das crianças e ouvir e valorizar suas leituras do mundo.

Por ser o Outro libertador, a criança constrói seu meio por meio de sua libertação em permanente relação criativa com o(a) educador(a). Ela é construtora do novo, de sua realidade, reagindo, primeiro, contra a dominação. Essa reação só é possível pela criticidade adquirida na relação dialógica com o(a) educador(a). Em outras palavras, o diálogo possibilita o pensamento crítico. Segundo Muraro (2015), comentando Freire,

[...] o diálogo se constitui como uma base para gerar a consciência crítica na medida em que o conhecimento vai sendo construído pelo processo indagativo e, dialeticamente, a criticidade vai impulsionando a dialogicidade entre os homens. O diálogo implica a reciprocidade que não pode ser rompida no processo gnosiológico. Por isso, a função gnosiológica e a comunicativa são fundamentais ao pensamento crítico. (MURARO, 2015, p. 66).

A criticidade é um elemento importante no agir educativo libertador, pois é o que faz da criança um ser ativo no processo de construção de sua subjetividade. Por isso, o papel do(a) educador(a), sendo crítico e sujeito reflexivo, é de exercitar a criança nessa criticidade, dando-lhe consciência reflexa do recebido (daquilo que recebe). Pela criticidade, o(a) educador(a), sendo colaborador no processo, aponta o caminho (método) e a criança busca resolver problemas de sua realidade ou construindo-a pela problematização. Isso quer dizer que, com a criticidade, a criança realiza sua tarefa criadora, construtora de um mundo novo, a partir de sua situação real.

Sendo período de processo de construção de aprendizagem (período de adquirimento), a infância caracteriza-se como a experiência de construção do Outro que, em sua vocação ontológica de ser mais, ser inacabado e libertador, não se esgota em uma condição existencial construída, porque está em um processo de mudança permanente. A infância coloca-nos o desafio do contínuo questionamento sobre o mundo, para que ele não se torne opressor, mas que se persiga dialogicamente essa prática democrática de humanização do mundo pela pronúncia autêntica, consciente, refletida e libertadora da palavra.

Considerações finais

Diante da problemática sobre identidade e diferença, Freire nos apresenta o outro como um tu e como um não-eu. A visão de Freire é contrária à algumas visões hegemônicas da filosofia moderna, que via o outro como representação egocêntrica, isto é, a extensão do “Eu” (sistema totalizante narcisista). Isso equivale a dizer que é uma reação à proposta dominadora e totalizante e hegemônica sobre a noção de outro. Apesar de sua exterioridade, Freire acredita que o outro se faz constantemente em sua relação dialógica com o eu, porque os dois são sujeitos interdependentes e interconstituídos, pois há uma mutualidade entre eles. Essa mutualidade equivale a dizer que tudo o que acontece com um atinge o outro.

Para levantar a problemática dessa discussão, Freire parte de uma situação concreta de opressão (Recife, Brasil, América-latina). Em outras palavras, o outro se encontra em uma situação opressora, na qual é conquistado, dominado, colonizado, roubado a fala e objetivado, tornando-se assim o oprimido. Essa é a condição hegemônica e totalizante, que não permite o outro ser ele mesmo. E é sustentada por um sistema educacional que Freire denomina de “educação bancária”, que nada mais é do que a manutenção do sistema opressor (contradição opressor-oprimido), porque considera o(a) educador(a) sujeito ativo, livre, criador(a), construtor(a), detentor(a) do conhecimento e o(a) estudante passivo(a), consumidor(a), objeto, tabula rasa. É dentro desse raciocínio que tomamos a realidade de infância como o Outro na sua relação unilateral com a hegemonia de adultos. A situação opressora castra a infância de sua capacidade criadora e construtora, pois esta não se vê livre para desenvolver essas experiências.

Diante da condição opressora, a infância, sendo sujeito libertador, conscientiza-se de sua situação com intuito de libertar-se dela, resgatando assim seu ser mais (livre para criar, construir, dialogar, tornar-se e humanizar-se). E essa conscientização e libertação se dá pela filosofia de educação libertadora, a qual lhe possibilita dialogar com o(a) educador(a) e com os pares no processo de construção de conhecimento. A libertação do Outro da situação opressora implica a libertação também de seu opressor, uma vez que a condição que os mantinha como sujeito e objeto é removida, não existe mais. A partir de Freire, a infância é o Outro livre que cria e constrói seu mundo pela imaginação, questionamento e criatividade, sempre em permanente diálogo com o mundo dos adultos.

A concepção de outro freiriano é muito importante para a prática pedagógica, isto é, para a formação filosófica da infância, porque lhe afasta da totalidade opressora, em termos de identidade, e lhe aproxima da democracia como forma de vida pelo diálogo, impossibilitando que aconteça de novo uma educação colonizadora e dominadora – educação bancária. Sendo diferente, o Outro infantil nos provoca da nossa dialética do mesmo em querer educá-la para se tornar igual a nós, reprodutoras de nosso modo de pensar e de resolver problemas; desperta e liberta o Outro existente em nós. Como querer fazer alguém diferente, que existe fora do sistema e além da razão adulta, se tornar a nossa imagem e semelhança? No processo pedagógico libertador, a infância é um sujeito livre e ativo do processo educativo que habita e move o aprendiz. E, por isso, exige ouvir sua voz (sua leitura do mundo e sua pronúncia da palavra). E, na educação libertadora, essa voz significa sua revelação e é o pressuposto para a ação pedagógica, que permite à infância habitar o mundo e dar respostas aos problemas de seu mundo.

A ética neoliberal, guiada pela ideologia de mercado, denunciada por Freire, tende a manter a criança como objeto passivo, oprimida e ser de “contato”. E essa passividade opressora, com seu fetiche apelativo, aprisiona a criança em uma roda viva de ser transformada à imagem e à semelhança dos adultos. A criança está sujeita ao jogo do opressor que sabe conquistar seu coração. Freire sempre insiste na esperança como virtude capaz de resgatar as demais virtudes da ética universal do ser humano. A infância é essa virtude roubada da criança, e mesmo dos adultos. Entendemos que a infância é a esperança da libertação, portanto o Outro libertador.

Notes

1O outro se trata de um conceito que visa compreender a pessoa humana. No primeiro momento, buscaremos esse conceito na perspectiva de Freire. No texto, usaremos o termo de três formas para evitar confusão: em itálico, quando nos referimos ao conceito; em letras minúsculas (outro), para referirmo-nos ao “homem” denunciado por Freire quanto à contradição oprimido-opressor; com inicial maiúscula (Outro), quando nos referimos ao novo “homem” de Freire, visto na infância neste texto, que busca sua humanização no processo contínuo de libertação, superando a contradição, que não é nem oprimido e nem opressor.

2 Freire (2006) usa o termo “contato”, em oposição à relação, para se referir à forma irreflexiva de estar no mundo. Segundo o autor, contato é típico da esfera animal, pois implica “[...] respostas singulares, reflexas e não reflexivas e culturalmente inconsequente. [Dele] resulta a acomodação [...]” (FREIRE, 2006, p. 51). Contato não proporciona mudança, transformação. A relação, ao contrário, é estar com o mundo, implica estar com a realidade e estar nela, pelo ato de criação e recriação, dinamizando e transformando-a criticamente.

3Voltaremos ao conceito de leitura do mundo de Freire mais adiante.

*A pesquisa contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que é o órgão de fomento, pela bolsa de Mestrado.

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Recebido: 10 de Agosto de 2020; Revisado: 03 de Fevereiro de 2021; Aceito: 03 de Fevereiro de 2021; Publicado: 10 de Fevereiro de 2021

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