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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 21-Out-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16634.059 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Paulo Freire em Abya Yala: denúncias e anúncios de uma epistemologia decolonial

Paulo Freire en Abya Yala: denuncias y anuncios de una epistemología decolonial

Camila Wolpato Loureiro** 
http://orcid.org/0000-0003-1765-6252

Cheron Zanini Moretti** 
http://orcid.org/0000-0002-6297-3129

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) – Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)/Programa de Excelência Acadêmica (PROEX II). Mestra do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal da Fronteira Sul – campus Erechim (Bolsista CAPES/FAPERGS). Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Indígena pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER). Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: <camilawolpato.l@gmail.com>

**Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Unisinos – Bolsista pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Mestra em Educação (2008) e Licenciada em História (2005) pela Unisinos. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), na linha de pesquisa: Educação, Trabalho e Emancipação, e no Departamento de Ciências, Humanidades e Educação. E-mail: <cheron@unisc.br>


Resumo:

Este artigo tem como ponto de partida a atualidade e a relevância do pensamento epistêmico e pedagógico de Paulo Freire para os Estudos Decoloniais. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico que teve por objetivo compreender a dialética entre denúncia e anúncio na epistemologia de Paulo Freire em Abya Yala. Para tanto, tomou-se como objeto de análise as três principais obras escritas e publicadas no período de seu exílio: Educação como prática da liberdade(1967), Cartas a Guiné Bissau (1978) e Pedagogia do oprimido(1987). Algumas dimensões de análise foram apresentadas: opressor/oprimido, desumanização/humanização e cultura do silêncio/diálogo, conscientização/colonização das mentes, esperança/desesperança e libertação/domesticação, demonstrando que Freire é precursor e testemunho crítico da modernidade-colonialidade.

Palavras-chave: Paulo Freire; Decolonialidade; América Latina

Resumen:

Este artículo tuvo como punto de partida la actualidad y relevancia del pensamiento epistémico y pedagógico de Paulo Freire para los Estudios Decoloniales. Se trata de una investigación cualitativa de carácter bibliográfico que tuvo como objetivo comprender la dialéctica entre denuncia y anuncio en la epistemología de Paulo Freire, en Abya Yala. Para ello, se tomó como objeto de análisis las tres principales obras escritas y publicadas en el período de su exilio: Educación como práctica de la libertad; Pedagogía del oprimido; y Cartas a Guinea Bissau. Se presentaron algunas dimensiones de análisis: opresor/oprimido; deshumanización/humanización y cultura del silencio/diálogo; concienciación/colonización de las mentes, esperanza/desesperanza y liberación /domesticación, demostrando que Freire es un precursor y testigo crítico de la modernidad-colonialidad.

Palabras clave: Paulo Freire; Decolonialidad; América Latina

Abstract:

This article has as starting point the relevance and how updated is Paulo Freire's epistemic and pedagogical thinking for Decolonial Studies. This is a bibliographic qualitative research that aimed to understand the dialectic between denunciation and announcement in the epistemology of Paulo Freire in Abya Yala. For this purpose, the three main works written and published in the period of his exile were taken as an object of analysis: Education: the practice of freedom (1967), Pedagogy in process: the letters to Guinea-Bissau (1978) and Pedagogy of the oppressed (1987). Some analysis dimensions are presented: oppressor / oppressed, dehumanization/humanization and culture of silence/dialogue, awareness/colonization of minds, hope/hopelessness, and liberation/domestication, demonstrating that Freire is a modernity-coloniality precursor and critical witness.

Keywords: Paulo Freire; Decoloniality; Latin America

Introdução

Este artigo tem como ponto de partida a atualidade e a relevância do pensamento epistêmico e pedagógico de Paulo Freire para os Estudos Decoloniais. Um levantamento da produção científica sobre “educação popular” e “de(s)colonialidade” apresentada na 39º Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd)1 no Grupo de Trabalho (GT) 6 aponta que, até aquele momento, cinco dissertações e duas teses relacionavam Paulo Freire e decolonialidade, e uma dissertação e duas teses relacionavam o educador brasileiro à descolonialidade2. Ainda se destacava que 12 dissertações relacionavam Paulo Freire e colonialidade, assim como outras oito teses. Uma busca semelhante àquela realizada no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)3 apontou que até outubro de 2019 pelo menos 133 artigos científicos haviam sido publicados em português em periódicos qualificados, com peer review, e listados no Catálogo de Periódicos da CAPES4, relacionando algum aspecto do pensamento freiriano ao pensamento decolonial5.

No entanto, para podermos dar prosseguimento à nossa proposta, é importante situarmos o/a leitor/a quanto às bases coloniais que sustentam uma pedagogia e uma epistemologia domesticadora. Podemos entender que a colonialidade é constitutiva da modernidade e uma só foi possível a partir da existência da outra. Como afirma Mignolo (2003), tanto a modernidade quanto a colonialidade são duas faces da mesma moeda, em que a segunda se apresenta como o lado “obscuro” da primeira. Nessa óptica, o mito da razão moderna, assim como o mito civilizatório do progresso, que vem acompanhado de todas as formas de violência (DUSSEL, 2005), está alicerçado em uma pretensa universalidade que foi sendo empreendida pelas elites europeias e crioulas. Dito de outra forma, a colonialidade do poder apresenta-o como a única compreensão possível de modernidade.

Desse modo, é essa lógica que estabelece a superioridade dos conhecimentos científicos que a sociedade moderna produz em relação a todos os outros conhecimentos (LANDER, 2005). Assim, conforme Porto-Gonçalves (2005), a relação modernidade-colonialidade deixa-nos um legado, para além das relações capitalistas, imperialistas e colonialistas de poder, que pode ser melhor compreendido como colonialidade do saber, pois trata-se de um “[...] legado epistemológico do eurocentrismo que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio mundo em que vivemos e das epistemes que lhes são próprias” (PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 5). Tal hierarquização funda-se, portanto, em concepções etnocêntricas que sustentam “[...] a imposição de um determinado tipo de classificação social que opera nos planos materiais e subjetivos” (STRECK; MORETTI, 2013, p. 1).

Então, não como “acidente histórico”, faz-se necessário um giro epistêmico para a compreensão do mundo sob as nossas lentes – um giro decolonial. Conforme Streck e Moretti (2013), a América Latina foi capaz de produzir um pensamento emancipador radicalizado como resposta à imposição de experiências de modernidade-colonialidade, tais como: a teoria da dependência, a teologia da libertação e a pedagogia do oprimido. A decolonialidade, como explica Mignolo (2007), pode ser entendida como uma energia de descontentamento, de desconfiança, de desprendimento por parte daqueles/as que vivenciam a violência. E “[…] esa energía se traduce en proyectos decoloniales que, en última instancia, también son constitutivos de la modernidad” (MIGNOLO, 2007, p. 26).

É nesse contexto que interpretamos Paulo Freire como um dos precursores da pedagogia e da epistemologia decolonial, as quais estão imbuídas da denúncia da desumanização e do anúncio da humanização dos oprimidos/as. Em busca de um alinhamento com essa perspectiva, encontramos o termo Abya Yala para fazermos conexões com a perspectiva descolonializada da unidade territorial e cultural, em particular a constituição da latino-americanidade de Paulo Freire no exílio. Assim, trata-se de uma concepção (e opção) política, intelectual e ética. Ainda que reconheçamos os limites e as potenciais contradições quanto ao termo, consideramos importante apresentar uma aposta em sua representatividade dos sujeitos do Sul global.

A partir dessas ideias iniciais, dialogamos com Grazziotin, Klaus e Pereira (2021?) para estabelecermos algumas etapas essenciais para a pesquisa bibliográfica realizada. Segundo as autoras, os/as pesquisadores/as que utilizam tal metodologia precisam: fazer um levantamento das obras que serão utilizadas na investigação; estudar a biografia de cada autor/a e a definição do corpus empírico da pesquisa; construir e analisar cada obra a partir de um roteiro de leitura; construir um quadro analítico para organizar e sistematizar as divergências e singularidades de cada obra e autor/a; estabelecer, por meio das teorias e das hipóteses, as categorias de análise. A partir disso, construímos nossos percursos metodológicos que serão mais bem apresentados como “epistemologia decolonial” no terceiro subitem deste artigo.

Nosso objetivo é, portanto, compreender a dialética entre denúncia e anúncio na epistemologia de Paulo Freire em Abya Yala. A partir disso, em um primeiro momento, apresentamos uma breve biografia do autor, com ênfase no seu “contexto de empréstimo”, qual seja – o exílio, acompanhada de apontamentos sobre a produção bibliográfica selecionada para a análise. Em seguida, apresentamos elementos históricos e epistemológicos para melhor compreensão sobre o “giro decolonial”. Para então, analisarmos a dialética denúncia-anúncio na proposta epistemológica de Paulo Freire, na perspectiva decolonial.

Uma biobibliografia do exílio

A vida e a obra de Paulo Freire foram marcadas por uma profunda sensibilidade com as realidades concretas experienciadas pelos/as “condenados da terra”, como afirma Fanon (2015). Em um sentido freiriano, a experiência é uma categoria que não está relacionada meramente a um praticismo, mas que considera uma leitura profunda dos sujeitos situados em determinado tempo e espaço. Assim, em Freire, a experiência é a dinâmica entre a linguagem e a realidade concreta.

Paulo Freire experimentou a vida em diferentes contextos a tal ponto que se entrecruzam com a sua escrita engajada. Evidentemente, não é nosso objetivo apontar detalhes da vida do autor, uma vez que isso já vem sendo feito suficientemente bem por parte da literatura da área, como: Brandão (2005, 2014, 2017), Ana Maria Araújo Freire (2017), Gadotti (1996), Scoguglia (1999), Souza (2001); além de estudos mais recentes, publicados por Haddad (2019) e Kohan (2019) 6. O amplo debate apresentado pelos/as autores/as provoca-nos a destacar elementos que nos auxiliam a pensar Paulo Freire enquanto autor-educador que pode ser (re)lido e (re)interpretado a partir da chave dos Estudos Decoloniais.

Mota Neto (2015) chama atenção para que Freire, mesmo antes de iniciar sua produção biobibliográfica7 de forma mais sistemática, já evidenciava a necessidade de superação da colonialidade no aprendizado de Língua Portuguesa. Logo, em sua percepção não é preciso negar a gramática, mas transformar as práticas tradicionais de memorização para uma compreensão significativa da realidade por meio da linguagem8 do saber feito pela experiência dos sujeitos.

Tal perspectiva foi experienciada em 1963 na campanha de alfabetização promovida na cidade de Angicos, interior do Rio Grande do Norte. A localidade viu 300 trabalhadores/as rurais serem alfabetizados/as no tempo recorde de apenas 45 dias. O sucesso da campanha gerou o convite do então Ministro da Educação Paulo Tarso Santos, em janeiro de 1964, para que Freire coordenasse o Programa Nacional de Alfabetização (ANDREOLA; RIBEIRO, 2005). A pretensão do Programa era alfabetizar politizando cerca de cinco milhões de adultos no Brasil, aumentando, consequentemente, em pelo menos 50%, o número de eleitores/as. Contudo, em 14 de abril de 1964, após 83 dias do início do Programa, ele foi extinto pelo governo militar.

Com a Ditadura Civil-Militar, dentro de 75 dias, Paulo Freire foi preso duas vezes e, logo em seguida, foi levado ao Rio de Janeiro para novos interrogatórios, momento que ficou sabendo, pela imprensa, que seria preso novamente. Então, tomou a decisão, junto a amigos e familiares, de pedir asilo na embaixada da Bolívia. Entretanto, o novo regime imprimiu desafios importantes em Freire e naqueles/as que compartilhavam dos seus pensamentos. A autora Adriana Puiggrós (1998) interpreta que o golpe refletiu de duas formas nas produções freirianas: por um lado, as ações dos militares o acusaram de subversivo e o colocaram na seara de “traidor da pátria e de Cristo”; por outro, sob tal rótulo, Freire foi jogado para uma esquerda dogmática, que via em sua figura um messias que desenvolveu um método universal. De todas as interpretações possíveis, certamente podemos entender que a Ditadura Civil-Militar provocou mudanças de contexto social, cultural e político9 tanto quanto transformações epistemológicas na forma de ser/estar de Paulo Freire.

O período de exílio começou ainda dentro do Brasil, quando o autor passou pouco mais de um mês na embaixada boliviana no Rio de Janeiro, aguardando a expedição pelo governo brasileiro do seu salvo-conduto para deixar o país. Logo em seguida, encaminhou-se para La Paz, capital da Bolívia, onde permaneceu por mais um mês, até o momento que aconteceu outro golpe de Estado e se viu obrigado a deixar aquele país. Convidado para trabalhar com Jacques Chonchol, então presidente do Instituto de Desenvolvimento Agropecuário (INDAP), Freire exilou-se no Chile, onde permaneceu quatro anos e meio.

No Chile, Freire estabeleceu importante relação com o governo democrata-cristão de Eduardo Frei, atuando na formação de técnicos do setor agrário no Instituto de Capacitação e Investigação em Reforma Agrária. Ao mesmo tempo em que apoiou as mudanças no país, colaborando com o Ministério da Educação chileno para a alfabetização de adultos/as, assessorou como funcionário da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), um órgão misto das Nações Unidas e do governo do Chile.

É nessa capacidade crítica de experienciar a cotidianidade no exílio que fez com que o autor descobrisse a si mesmo como latino-americano, homem terceiro mundista, elemento importante para compreendermos o seu pensamento de forma decolonial. Paulo Freire permaneceu no Chile até 1969, ano de mais um golpe militar no continente. Foi nesse país que Paulo Freire concluiu a escrita de Educação como prática da liberdade (1965) e escreveu a Pedagogia do oprimido (1968)10.

Em Educação como prática da liberdade, Freire já anunciava a sua opção pela educação para a liberdade, o que implicaria uma “sociedade-sujeito” assim como um homem-sujeito e uma mulher-sujeito de “[...] autorreflexão e reflexão de seu tempo e espaço” (FREIRE, 1967, p. 44). Freire fazia uma clara opção por uma educação “inadiável e indispensável para as massas” por intermédio de uma ampla conscientização, muito diferente da educação domesticadora, própria da colonialidade. A sua proposta pedagógica e epistemológica complexifica-se em Pedagogia do oprimido. Nessa obra, Paulo Freire apresenta as suas observações de cinco anos de exílio, juntando as experiências educativas realizadas no Brasil às do Chile. Desse modo, manifesta tanto o medo da liberdade e os riscos do pensamento crítico quanto a esperança da libertação. Também anuncia a essência da Educação como prática da liberdade, presente no diálogo, assim como explicita a teoria da ação antidialógica.

Com a repercussão da obra Pedagogia do oprimido, Freire passou a ser considerado um dos principais formuladores de uma práxis político-pedagógica, intencionalmente contra-hegemônica (SCOGUGLIA, 1999). Ele desenvolveu uma pedagogia crítica como projeto onto-epistêmico de afirmação do mundo do Sul global, convocando conhecimentos em movimento, em luta e/ou em resistência, na busca da (re)existência e humanização de pessoas historicamente relegadas à subordinação.

Ao início do golpe militar no Chile, Freire foi convidado para lecionar na Universidade de Cambridge e, logo em seguida, na Universidade de Harvard, ambas nos Estados Unidos (EUA), para ensinar a sua epistemologia (ANDREOLA; RIBEIRO, 2005). Nesse país, Freire escreveu e dialogou com importantes educadores/as, ou como ele mesmo gostava de explicitar: “Foi muito importante viver quase um ano nos Estados Unidos, porque eu tive a possibilidade de ver de perto o bicho na toca” (FREIRE, 1994, p. 9). O “bicho” ao qual Freire se referia era o racismo segregacionista, o sexismo, o classismo e o autoritarismo, que, em sua concepção, eram incompatíveis com a pretensa democracia globalista estadunidense. De acordo com Mota Neto (2015), a partir de tais perspectivas, podemos demarcar um importante traço da concepção decolonial: o “[...] autor preocupado não apenas com as questões de classe social, mas também de raça e gênero, possibilitando-lhe desenvolver uma visão crítica mais abrangente dos mecanismos de opressão da modernidade/colonialidade” (MOTA NETO, 2015, p. 157).

Nos anos de 1970, Paulo Freire aceitou o convite para trabalhar como consultor principal do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) em Genebra, Suíça, sendo central para o desenvolvimento de campanhas importantes também na África. Foi aí que se doou empaticamente como educador, como demonstra no livro Cartas a Guiné-Bissau (1978). Logo no início de sua chegada, o autor narra como, durante todo período em que esteve no exílio, o único lugar em que se sentiu novamente no seu “contexto de origem” foi na África:

Faço esta referência para sublinhar quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem voltava e não como quem chegava. Na verdade, na medida em que, deixando o aeroporto de Dar es Salaam, há cinco anos passados, em direção ao “campus” da universidade, atravessava a cidade, ela ia se desdobrando ante mim como algo que eu revia e em que me reencontrava. Daquele momento em diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de mim. A cor do céu, o verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o cheiro da terra; as bananas, entre elas a minha bem amada banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos pulando na grama rasteira; o gingar do corpo das gentes andando nas ruas, seu sorriso disponível à vida; os tambores soando no fundo das noites; os corpos bailando e, ao fazê-la, “desenhando o mundo”, a presença, entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo, tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era mais africano do que pensava. (FREIRE, 1978, p. 9, grifo nosso).

Grifamos as últimas frases do relato da chegada de Freire na Tanzânia a fim de evidenciar um importante traço de uma concepção de práxis decolonial. Nessa passagem, podemos perceber um autor intimamente conectado com aqueles sujeitos subalternizados. Mais do que isso, um autor que percebeu a manutenção rebelde de hábitos e formas de vida firmemente ligados à terra e à cultura local. Como entende Streck (2005, p. 9): “Freire emerge como importante elo [...] entre dois continentes tragicamente ligados pela exploração imperialista e pelo transplante de enormes contingentes da população africana como escravos na América”. E justamente nesse mesmo livro, Cartas a Guiné Bissau, Freire aprofunda ainda mais a sua crítica à imposição colonialista pela cultura do invasor.

Freire optou politicamente por passar dez anos trabalhando no CMI, espaço que lhe proporcionou manter íntima relação com vários países da África. Juntamente à sua primeira esposa – Elza Freire, Miguel e Rosiska Darcy de Oliveira, Claudius Ceccon e Marcos Arruda, Paulo Freire fundou o Instituto de Ação Cultural (IDAC). Tal parceria foi fundamental para o auxiliar quando foi chamado a dar sua contribuição nas campanhas de alfabetização na Tanzânia, na Guiné-Bissau, no Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe e em Angola. Os trabalhos pedagógicos tinham por um dos objetivos principais quebrar com a educação colonial que buscou por centenas de anos “desafricanizar” aquelas pessoas, ou melhor, retirar autoritariamente a sua palavra autêntica, os seus saberes e as suas formas de ser e estar no e com o mundo. É presente nos trabalhos de Freire e do IDAC uma forte concepção decolonial – ainda que não tenha sido pensada nesse termo – em busca de libertação da mentalidade colonial.

Com a crescente possibilidade de anistia política nos anos finais da Ditadura Civil-Militar, Paulo Freire voltou ao Brasil em 1980, após quase 16 anos no exílio. Sem nunca esquecer do seu contexto de origem, Freire entendeu o período vivido em outros países, de forma profundamente pedagógica, como um momento de compreensão de si e do Brasil. Ainda que difícil, o seu período de exílio representou uma ode ao respeito às diferenças culturais e, por isso, tomamos tal momento como parte central de articulação e radicalização do seu pensamento profundamente engajado nas lutas dos/as oprimidos/as. Para ele, “[...] a cultura antes invadida passa a ser a principal referência no processo de libertação cuja feitura deve partir das margens” (LOUREIRO et al., 2020, p. 37).

A atualidade e a relevância do pensamento epistêmico e pedagógico de Paulo Freire encontra-se também no fato de o educador brasileiro posicionar-se no/com o mundo (especialmente com as pessoas oprimidas) a andarilhar e a aprender com os diferentes contextos – de origem e/ou de empréstimo, como o do exílio.

Estudos decoloniais: uma perspectiva de análise desde Abya Yala

Muito embora tenhamos cotejado algumas palavras introdutórias sobre a crítica à modernidade inerente aos Estudos Decoloniais, buscamos adensar essa abordagem com elementos históricos e epistemológicos. É igualmente relevante mencionarmos que não temos interesse em tratar das polêmicas existentes no interior da rede modernidade/colonialidade, bastando destacarmos que, este artigo, para melhor compreensão da discussão apresentada, deve ser entendido em sua pluralidade11. Outro esclarecimento a ser feito é quanto à opção pelo termo Abya Yala no lugar de América Latina quando nos referimos à perspectiva descolonializada da unidade territorial e cultural a que os/as oprimidos/as se encontram, conforme mencionamos anteriormente. De acordo com Porto-Gonçalves (2006, n.p.), “[...] Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do continente como contraponto a América Latina [...] objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento”. A partir dos Estudos Decoloniais da rede modernidade/colonialidade e algumas discussões não-coloniais, entendemos que o uso do termo Abya Yala denota uma epistemologia que pensa a América Latina a partir de si e para si12.

Assim sendo, a modernidade tem origens históricas delimitadas temporal e espacialmente na Europa no século XVII – principalmente nos territórios atualmente conhecidos como Alemanha, França e Inglaterra. Segundo Escobar (2003), alguns processos foram fundamentais para a construção da modernidade, tais como: a Reforma Protestante, a Revolução Francesa, o Iluminismo e a Revolução Industrial na Inglaterra. Dessa forma, a partir da expansão do projeto moderno, foram introduzidas as concepções de razão, indivíduo e conhecimento. Culturalmente, esse empreendimento estava fundamentado na racionalização do mundo e da vida, ou, como diz Escobar (2003, p. 56), “[...] ordem e razão são vistas como o fundamento para a igualdade e liberdade, possibilitando assim uma linguagem dos direitos”. Nesse sentido, a noção filosófica de “homem”, branco, moderno e europeu foi transformada em referência e medida para todas as coisas e pessoas ao redor do Globo.

Para Dussel (2005), o discurso mítico moderno justificou uma práxis irracional de violência (aberta e simbólica), alicerçada em mecanismos de dominação, tais como: a autopercepção de superioridade europeia; a autoexigência moral do europeu de desenvolver as sociedades consideradas “primitivas”; os padrões de desenvolvimento pautados na Europa; a construção de uma guerra “justa” colonial; a produção de vítimas locais representadas por violência quase inevitável. É nesse cenário que são construídas as concepções do índio colonizado, o escravo africano, a mulher subalternizada, a destruição da natureza, entre outras, proporcionando às sociedades não-europeias, no imaginário do progresso racional, que sejam transformadas em “diferentes”, “arcaicas”, “primitivas” e “pré-modernas”.

Ao final do século XIX, o desprendimento do subcontinente latino-americano, frente aos impérios decadentes da Espanha e de Portugal, implicou o estabelecimento de laços econômicos e culturais com os impérios emergentes da França e Inglaterra. Logo, o fim da dominação jurídica colonial não significou mudanças na razão moderna dualista que negou múltiplas formas de viver, ser e saber. A cosmovisão moderna mobilizou a perspectiva universal da história ligada à ideia de progresso, de naturalização das relações a partir da sociedade liberal-capitalista e de superioridade da produção de conhecimento científico em relação a outras formas de conhecer e produzir saberes (LANDER, 2005).

Neste artigo, assumimos o pensamento decolonial como parte elementar, por tratar-se de um conjunto de práticas epistêmicas que investigam e agem para superar diferentes opressões, muitas delas interrelacionadas. Anteriormente, apresentamos que Mignolo (2003) entende a colonialidade como sendo parte constitutiva da própria modernidade que, no entanto, tem no pensamento decolonial uma consequência indissociável do projeto moderno (MIGNOLO, 2007). Assim, o autor desafia-nos a compreender justamente a potencialidade de histórias e culturas de populações colonizadas ao traçar uma genealogia do pensamento decolonial e elucidar os diferentes conhecimentos e as formas de conhecer que tecem paradigmas-outros de resistência à imposição colonial.

De forma ampla, Mignolo (2007) apresenta que a práxis do pensamento decolonial comporta nomes e grupos com ênfases variadas, como: Mahatma Gandhi; W. E. B. Du Bois; Juan Carlos Mariátegui; Amílcar Cabral; Aimé Césaire; Frantz Fanon; Fausto Reinaga; Vine Deloria Jr.; Rigoberta Menchú; Gloria Anzaldúa; além do Movimento Sem-Terra, no Brasil; os zapatistas, no México; os movimentos indígenas e afros na Bolívia, no Equador e na Colômbia; o Fórum Social Mundial e o Fórum Social das Américas. A partir desse panorama, podemos inferir que a perspectiva decolonial não entende a Abya Yala apenas como um espaço geográfico, mas como uma concepção (e opção) política, intelectual e ética.

Nesse sentido, trata-se de agir, pensar e propor meios de insubmissão decolonial. Por isso, Abya Yala passa a ser entendida como mais uma perspectiva ético-política, pedagógica e epistemológica do que uma região. Para Ribeiro (2016), o pensamento decolonial latino-americano, ainda que se distancie, não nega ou se confunde com as epistemologias da África e da Ásia. O pensamento decolonial desprende-se e abre-se às formas outras de conhecer e saber dos sujeitos colonizados, tornando-se um projeto de transformação sistemática da modernidade e assumindo a possibilidade de interlocutores/as em diferentes espaços e tempos.

Se, por um lado, o giro decolonial implica compreender os diferentes momentos do processo de descolonialização13, culminando no movimento de ressignificação de longo prazo, o qual não pode se limitar aos acontecimentos jurídico-políticos; por outro, esse giro intelectual deve ser acompanhado de um movimento complexo que envolve o poder, o ser e o saber. De acordo com Catherine Walsh (2013), a pedagogia decolonial começa com as resistências à invasão colonial, uma vez que deve ser compreendida em um contexto das lutas decoloniais que pretendem viabilizar a humanidade contra a matriz colonial e o seu padrão de racialização-desumanização, que há mais de 500 anos vêm oprimindo e vitimando homens e mulheres.

É nesse sentido que identificamos a decolonialidade na pedagogia e na epistemologia de Paulo Freire, pois ela se realiza em comunhão com os/as subalternizados/as, racializados/as e oprimidos/as. Conforme Maldonado-Torres (2007), o giro decolonial implica,

[...] en primer lugar, un cambio de perspectiva y actitud que se encuentra en las prácticas y formas de conocimiento de sujetos colonizados, desde los inicios mismos de la colonización, y, en segundo lugar, un proyecto de transformación sistemática y global de las presuposiciones e implicaciones de modernidad, asumido por una variedad de sujetos en diálogo. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 160).

Nos espaços político-educacionais que participou em todo o mundo (América, Europa e África), Paulo Freire experienciou, tanto no plano teórico quanto geopolítico, a subalternidade e “[...] isso marca fundamentalmente sua obra como um testemunho crítico da modernidade/colonialidade, logo, como um pensador decolonial” (MOTA NETO, 2015, p. 149, grifos do autor), visto que experienciou a insubmissão decolonial.

Uma epistemologia decolonial: denúncias e anúncios em Paulo Freire

Como já mencionamos, levamos em consideração o movimento da biobibliografia de Paulo Freire para destacar a transformação da sua forma de compreender/agir no e com o mundo, em especial no seu período de exílio. Para Paulo Freire, não há denúncia sem anúncio/não há anúncio sem denúncia, uma vez que essa conjunção designa não apenas uma correlação de forças, mas um exercício político de dizer a palavra expressando o compromisso com a transformação. Em síntese, significa não apenas falar sobre o que poderá vir a ser, mas falar de como está sendo a realidade, denuncia-a, para anunciar um mundo melhor (FREIRE, 2000).

Retomamos, aqui, nosso percurso metodológico, para explicitar as escolhas realizadas e as compreensões analíticas alcançadas da obra do autor, conforme os diálogos realizados por meio da leitura e da interpretação da proposta de pesquisa bibliográfica em Grazziotin, Klaus e Pereira (2021?). Dessa forma, nosso percurso constitui-se a partir dos seguintes momentos:

  • a) Levantamento das obras investigadas: a obra de Paulo Freire pode ser organizada por períodos, os quais podem ser delimitados por diferentes critérios, além da natureza literária, a depender dos objetivos de cada pesquisador/a que se dedica a compreendê-la. Aqui, buscamos como referências os livros publicados em português. Assim como Pitano, Streck e Moretti (2020, p. 110), organizamos o levantamento em cinco períodos: “1) até 1964, antes do Golpe Civil Militar; 2) até 1980, no período de exílio; 3) pós-1980, retorno do exílio-obras dialogadas; 4) escritos após experiência de gestão na Secretaria Municipal de Educação, em São Paulo (SME-SP); e, por fim, 5) obras organizadas, póstumas”.

  • b) Definição do corpus empírico da pesquisa: após a periodização da obra de Paulo Freire, delimitamos o corpus daquelas que entendemos ser as três principais obras publicadas no exílio: Educação como prática da liberdade (1967), Cartas a Guiné Bissau (1978) e Pedagogia do oprimido (1987). Uma vez que se pode identificar uma crítica direta ao processo histórico da colonização dos “países terceiro-mundistas”, para usarmos o termo do próprio Freire, consideramos as heranças tanto de dominação como de libertação nos processos educacionais e políticos experienciados por Freire.

  • c) Estudo da biografia do autor: já no trabalho de periodização das obras e de definição de critérios para a seleção das leituras sistematizadas, consideramos a articulação entre o contexto de sua produção e a biografia do autor. Assim, trabalhamos com a ideia de “biobibliografia”. Na obra Paulo Freire: uma biobibliografia, organizada por Moacir Gadotti (1996), o conceito de biobibliografia é apresentado como uma interpretação sobre como a produção intelectual do autor está intimamente imbricada em sua própria história de vida. Assim, tal conceito afirma a impossibilidade de dicotomizarmos em Freire a sua biografia da sua bibliografia.

  • d) Construção e análise de cada obra a partir de um roteiro de leitura: nas três obras estudadas, levamos em consideração o movimento dinâmico entre a denúncia e o anúncio, como principais categorias de leitura e interpretação, identificando as suas diferentes dimensões.

  • e) Construção de um quadro analítico para organizar e sistematizar as divergências e as singularidades do corpus empírico. A partir da compreensão dialética de Freire, acreditamos ser importante destacar a relação indissociável entre a denúncia e o anúncio, conforme pode ser observado no Quadro 1 a seguir.

Tabela 1 Categorias de análise 

Categoria de denúncia Categoria de anúncio

Dimensões

Denúncia/Anúncio

Dimensões

Anúncio/Denúncia

Opressor/a/oprimido/a Conscientização/Colonização das Mentes
Desumanização/Humanização Esperança/Desesperança
Cultura do Silêncio/Diálogo Libertação/Domesticação

Fonte: Elaborado pelas autoras (2020).

Assim, passamos a enfocar na análise dos conceitos (dimensões) específicos de cada uma das categorias, assim como na existência dos seus contrários: toda denúncia possui um anúncio a ela inerente; todo anúncio possui uma denúncia correspondente.

Desse modo, a primeira dimensão diz respeito ao par “opressor/a – oprimido/a”. Em Pedagogia do oprimido, Freire (1987) apresenta a compreensão de oprimidos/as/opressores/as como classes sociais antagônicas e em constante luta. Fica evidenciada uma importante influência do materialismo histórico e dialético, pois na análise percebemos oprimidos/as e opressores/as como classes e indivíduos impedidos/as de serem plenamente humanos na vocação ontológica de “ser mais”. Nessas relações, violência, dominação e opressão andam lado a lado, no processo de desumanização tanto do/a dominador/a quanto do/a dominado/a. O primeiro por excesso de poder e o segundo pela falta dele. Assim, transformam-se em “quase-coisas”.

Na consciência opressora, “[...] o sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida” (FREIRE, 1987, p. 26). Então, a violência é instrumento de dominação, na qual quem estabelece os parâmetros sobre ela são os/as próprios/as opressores/as:

De modo geral, porém, quando o oprimido legitimamente se levanta contra o opressor, em quem identifica a opressão, é a ele que se chama de violento, de bárbaro, de desumano, de frio. É que, entre os incontáveis direitos que se admite a si a consciência dominadora tem mais estes: o de definir a violência. O de caracterizá-la. O de localizá-la. E se este direito lhe assiste, com exclusividade, não será nela mesma que irá encontrar a violência. Não será a si própria que chamará de violenta. Na verdade, a violência do oprimido, ademais de ser mera resposta em que revela o intento de recuperar sua humanidade, é, no fundo, ainda, a lição que recebeu do opressor. Com ele, desde cedo, como salienta Fanon, é que o oprimido aprende a torturar. Com uma sutil diferença neste aprendizado – o opressor aprende a torturar, torturando o oprimido. O oprimido, sendo torturado pelo opressor. (FREIRE, 1967, p. 50, grifo nosso).

Destacamos a última sentença da citação anterior, uma vez que ela indica que opressor/a e oprimido/a aprendem juntos/as o que é violência e tortura. Entretanto, a principal diferença é que o/a primeiro/a aprende torturando, e o/a segundo/a, sendo torturado/a. Essa passagem demonstra a complexidade das relações sociais entre esses atores e essas atrizes, por meio da qual podemos inferir que, se os/as oprimidos/as aprendem a torturar (ainda que a partir de sua própria opressão), significa que esses/as serão capazes de reproduzir tais denominações. Assim, ao compreendermos que a dimensão da opressão está intimamente conectada à violência colonial, torna-se indispensável identificarmos as estruturas que a compõem.

Partimos, portanto, para nossa segunda dimensão de análise, que diz respeito à dimensão da “desumanização”. Toda a biobibliografia de Freire é atravessada pela crítica à desumanização, referindo-se a ela em diferentes momentos como massificação, coisificação, alienação, reificação, entre outros. Para o autor, somente após a constatação de sua desumanização é que os sujeitos se perguntam sobre outra possibilidade de existência: a humanização. Isso nos leva a entender que humanização e desumanização são possibilidades históricas (FREIRE, 1987).

Assim, para Freire, a desumanização não é destino pré-determinado, mas fato na história dos sujeitos condicionados à essa condição por meio das engrenagens injustas e violentas que os levam a “ser menos”. No prefácio de Educação como prática da liberdade, Weffort (1967) desafia-nos a entender como a educação possui papel destacado na construção de homens (e mulheres) sujeitos de sua própria história. Nesse sentido, apresenta-se a necessidade de uma educação como força de mudança e libertação da desumanização: “A opção, por isso, teria de ser também, entre uma ‘educação’ para a ‘domesticação’, para a alienação, e uma educação para a liberdade. ‘Educação’ para o homem-objeto ou educação para o homem-sujeito” (WEFFORT, 1967, p. 42).

Se invasão e subjugação são partes constitutivas da lógica colonialista, esses processos provocam a morte da capacidade de problematização crítica do mundo dos/as conquistados/as. Nesse viés, a libertação de tal situação só se torna possível por meio de uma razão libertadora que problematize a razão eurocentrada (STRECK; MORETTI; PITANO, 2018). Por conseguinte, a busca de um homem e de uma mulher sujeitos implica necessariamente em uma sociedade-sujeito. Ambas só são possíveis a partir de uma autorreflexão crítica sobre si no tempo e no espaço em que estão inseridos/as.

Mota Neto (2015) cruza as abordagens dos Estudos Decoloniais e dos debates freirianos, compreendendo que, quando Freire aponta a educação tradicional como um espaço que desumaniza e aliena os sujeitos, ele está inaugurando a problematização hoje conhecida por “colonialidade do ser”. Nessa perspectiva, concordamos com Mota Neto (2015), pois, como vimos, a coisificação dos seres humanos consiste na negação da vocação ontológica de “ser mais”, expressos no silenciamento colonial, na alienação do povo e no autoritarismo político por parte das elites.

Na compreensão antropológica de Freire, a desumanização passa pela dimensão da “cultura do silêncio”, terceiro aspecto analisado aqui. Podemos interpretar que o “silêncio” é um exemplo fundamental da complexidade das relações coloniais, pois, por ser um exercício autoritário do poder, demonstra a introjeção da colonialidade em todas as formas de dominação. Dessa forma, o processo de humanização implica a capacidade de dizer a “sua” palavra e não a de outrem, ou melhor, não a palavra do/a colonizador/a.

Destacamos a contribuição de Freire quanto ao papel político da Linguística. Como apontam Andreola e Ribeiro (2005), na epistemologia freiriana, a linguística é instrumento utilizado para justificar ideologicamente o processo de morte das formas de pensar e expressar-se pelo/a colonizado/a. Os autores entendem que na “cultura do silêncio” a utilização da linguagem do/a opressor/a, em detrimento da linguagem do/a colonizado/a, significa a destituição de sua própria palavra. Assim, a ausência da palavra a qual Freire se refere não diz respeito apenas ao ato físico de fala, mas, principalmente, à impossibilidade de pensar e agir a partir de suas próprias formas de enunciação do mundo.

Para Freire (1987), a existência humana não pode ser mudada ou nutrir-se de falsas palavras. Logo, viver (e não somente existir) é poder pronunciar e transformar o (seu) mundo (LOUREIRO, 2020). Nesse sentido, o direito à palavra verdadeira – aquela que é produzida na práxis – pertence a todos, homens e mulheres.

Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. (FREIRE, 1987, p. 44).

No prefácio da obra Pedagogia do oprimido, Ernani Maria Fiori (1987), propõe que, somente ao assumir a responsabilidade de “dizer a sua palavra”, os homens e as mulheres são capazes de humanizar-se e humanizar o mundo em que estão inseridos/as. Nessa “cultura do silêncio”, os sujeitos são impedidos de significarem a sua própria existência, levando-os a tornarem-se “quase-coisas”. Segundo Freire: “Descobrem que, como homens, já, não podem continuar sendo ‘quase-coisas’ possuídas e, da consciência de si como homens oprimidos, vão à consciência de classe oprimida” (FREIRE, 1987, p. 101).

Assim, a quebra com a “cultura do silêncio” passa pelo diálogo, que é o contrário do ato de depósito de ideias e de concepções de um sujeito sobre o outro, e pela troca simples de informações. O diálogo é, sobretudo, o encontro de homens e de mulheres que pronunciam o seu mundo em pé de igualdade e, por isso, criam e transformam sua situação de subalternização/opressão/racialização.

No livro-relatório Cartas às Guiné Bissau, Freire (1978) explicita sua profunda preocupação com a tentativa de “desafricanização” dos sujeitos subalternizados pelas elites europeias. A partir disso, o autor aponta a necessidade da formação do homem e da mulher novo/a, que se recriam na percepção da sua situação, se libertando do colonialismo e recusando o neo-colonialismo: “E neste esforço de re-criação da sociedade a reconquista pelo Povo de sua Palavra é um dado fundamental” (FREIRE, 1978, p. 161). Entretanto, compreendendo a importância da língua e da palavra, Freire (1978) constatou um importante desafio: como seria possível “reafricanizar” o povo, utilizando a língua que os havia tentado “desafricanizar”?

A experiência na Guiné-Bissau tensionou a compreensão do autor sobre a libertação, a qual está vinculada com a capacidade de enunciar o seu mundo e a sua palavra em sua própria língua: “Um dos legados do colonialismo, depois de cinco séculos de ‘trabalhos profícuos’ na Guiné, foi deixar 90 a 95% de sua população iletrada” (FREIRE, 1978, p. 72). O fato era que não se poderia escolher entre as mais de 30 línguas das diversas etnias guineenses, ou pela língua mais popular (falada por quase 45% da população), que era o crioulo, uma vez que essa língua era exclusivamente oral. Contudo, a partir da sua leitura de Amílcar Cabral, Freire leva em consideração a necessidade de não isolar internacionalmente o país; assim, desde os anos de 1960, o país já alfabetizava os/as militantes em Língua Portuguesa.

Em diálogo intelectual com Amílcar Cabral, desenvolvido no livro relatório “Cartas à Guiné-Bissau” (FREIRE, 1978), Freire compreendeu que o processo de “reafricanização” exigia um reconhecimento dos/as intelectuais alfabetizadores/as como sujeitos historicamente situados/as em seu tempo. A atividade não se findaria na repetição mecanicista e na memorização de palavras. O conhecimento dos livros daria espaço ao conhecimento que nasce da práxis crítica de homens e de mulheres sobre sua prática concreta de trabalho: “Daí a insistência, também, com que sempre falo da relação dialética entre o contexto concreto em que tal prática se dá e o contexto teórico, em que a reflexão crítica sobre aquele se faz” (FREIRE, 1978, p. 111). Nesse sentido, a delimitação sobre o que conhecer, como conhecer, para que conhecer, em favor (e contra) de que e de quem conhecer, não pode ser pensado fora da proposta de uma educação como prática dessa liberdade.

Como podemos observar, mesmo as dimensões de denúncia vêm acompanhadas de anúncios. Assim, passamos a apresentar aquelas relacionadas aos anúncios, sendo a primeira delas a conscientização. Em Educação como prática da liberdade, em clara perspectiva fenomenológica, Paulo Freire (1967) discorreu sobre as três dimensões da consciência: 1- a intransitiva, como aquela que aborda todos os seres humanos que, em situação de imersão em suas realidades, não conseguem refletir sobre elas; 2- a transitiva ingênua, como sendo o momento em que o sujeito percebe as contradições sociais e adota explicações irreais/ilusórias para aqueles fenômenos; e, por fim, 3- a transitiva crítica, caracterizada pelo pensamento autônomo que leva o sujeito ao engajamento político para a transformação das situações opressivas.

É importante frisarmos que na “transitividade ingênua”, homens e mulheres encontram-se incapacitados/as de compreender as regras de dominação, nas quais estão submetidos/as, interpretando de forma simplificadora os problemas e as estruturas das opressões. Já na “transitividade crítica” (ou consciência crítica), compreendem para além dos fatos imediatamente apreensíveis, ou melhor, desenvolvem uma reflexão sobre as intersubjetividades que o compõem. Nessa perspectiva, se a realidade concreta está limitada por situações determinadas, a consciência crítica precisa compreender esses limites (PUIGGRÓS, 1998).

Assumimos, portanto, que o processo de comprometimento político (conscientização), diante do contexto histórico, só é possível por meio da consciência crítica. Atento para a diversidade de interpretações possíveis, com diferentes interesses, nos anos de 1970, Freire alertou quanto aos riscos de apropriação da “palavra-emblema” por grupos conservadores e, depois, por neoliberais da educação bancária.

Paulo Freire criticou o “colonialismo das mentes” dos/as intelectuais brasileiros/as, pois introjetam visões europeias (e atualmente estadunidenses) sobre o Brasil como país atrasado. Em Cartas à Guiné-Bissau (1978), o autor passou a compreender que o poder possui amarras não somente na economia, mas também na racialização e na colonização. Por isso, em Pedagogia da esperança (1992), o educador dialoga sobre a revolução como práxis político-pedagógica de existência e luta contra a desumanização da subalternização/racialização/opressão. Podemos ver nessas obras uma clara conexão e radicalização de sua oposição à subjugação intelectual promovida na modernidade/colonialidade.

Podemos perceber que a consciência dos/as opressores/as vive dentro da consciência dos/as oprimidos/as. Por isso, na educação como prática da liberdade, a consciência crítica possui papel destacado por ser um instrumento de organização e apreensão da realidade pelos/as oprimidos/as, exigindo o posicionamento crítico de compreender a realidade como objeto de conhecimento (TORRES, 1996).

Dessa forma, avancemos para nossa segunda dimensão de investigação – o espaço da esperança. Na epistemologia de Freire, a esperança é a necessidade ontológica na luta por fazer melhor a própria existência humana. Segundo o autor, se a esperança é parte da construção humana na busca por “ser mais”, a desesperança é a esperança que perdeu o rumo dessa necessidade ontológica, tornando-se imobilizante e fatalista. Certamente a esperança sozinha não possui poder de transformar as situações opressoras, uma vez que sem a práxis concreta, ela se torna apenas espera vã:

Não sou esperançoso por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico. Não quero dizer, porém, que, porque esperançoso, atribuo à minha esperança o poder de transformar a realidade e, assim convencido, parto para o embate sem levar em consideração os dados concretos, materiais, afirmando que minha esperança basta. Minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela, só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. (FREIRE, 1992, p. 5).

Nessa perspectiva, a esperança está diretamente ligada à práxis para tornar-se concretude histórica. Por isso, sem a esperança não é viável a luta por transformação social, tamanha sua importância individual e social. Um dos papéis do/a educador/a progressista, por meio da análise política, é compreender as possibilidades de transformar a esperança em inédito-viável, ou, em outras palavras, naquilo ainda não experimentado, mas passível de ser conquistado.

A partir desse contexto, o autor propõe que o Brasil (e a Abya Yala) precisa parar de “importar receitas” para seus problemas sociais, substituindo-as por projetos e planos que reconheçam profundamente a sua realidade e a do seu povo. Impelindo a necessidade de uma esperança mobilizadora e transformadora da realidade, que, ao renunciar às posturas bancárias e alienantes, possibilita que os/as sujeitos desenvolvam uma esperança crítica e responsável frente ao seu futuro. Na perspectiva freiriana, entendemos, por conseguinte, que a opção decolonial de leitura do mundo é, antes de qualquer coisa, uma opção esperançosa.

Assim, a esperança dá impulso a uma consciência crítica de intervenção sobre a desumanização e opressão na colonialidade, referindo-se ao ato de esperançar, um verbo de ação, de indignação e de zelo. Dessa forma, a liberdade como ação de esperança mostra-se como tema frequente nas obras de Freire. Para o autor, a esperança revela o trabalho da consciência crítica para a produção da liberdade individual e coletiva na superação das “situações-limite”. Nesse ponto, chegamos na terceira dimensão de análise: a libertação.

Segundo Mota Neto (2015), a escrita da Pedagogia do oprimido (1987) marcou uma radicalização no pensamento de Freire, uma vez que, nesse livro, o autor demonstra que o problema da liberdade não é apenas ontológico, mas também histórico. É uma conquista dos sujeitos que necessita de organização política e luta transformadora. Para Freire (1987), a libertação é um parto doloroso, que pressupõe engajamento político de superação das contradições nas relações opressores/as e oprimidos/as.

A partir desse aporte teórico, compreendemos que a escolha do termo “libertação” nas obras de Freire não é deliberada, mas aponta uma quebra decolonial com a modernidade. Ao trabalhar junto ao CMI, em colaboração com países da África, Freire analisou o papel da cultura na libertação, entendendo que a sua valorização permanente não significa somente a consolidação da vitória sobre os/as colonizadores/as, mas também a concretização de um projeto de sociedade pautado na não-dominação.

Sem ser apologista da violência – até mesmo por sua formação cristã – Freire diferenciou a violência dos/as opressores/as da violência de reconquista da libertação dos/as oprimidos/as revolucionários/as, uma vez que uma garantiria a manutenção do status quo colonial de exploração e desumanização, já a outra buscaria destacar a própria prática da violência. A força da libertação de opressores/as e oprimidos/as nasce da própria debilidade e dor, suficientemente fortes para libertar ambos. Assim, quando opressores/as pretendem amenizar a violência colonial, expressam-se em falsa generosidade, a qual acaba por perpetuar as estruturas do poder e das injustiças sociais.

Todas as dimensões analisadas até aqui convergem para o seguinte questionamento: Quais mecanismos os/as oprimidos/as (que hospedam a consciência opressora) irão trabalhar para a construção da epistemologia da sua própria libertação? Para Paulo Freire, a pedagogia dos oprimidos/as é instrumento para a sua descoberta crítica e decolonializadora da presença dos/as opressores/as das mentes dos/as oprimidos/as. Dessa maneira, o educador reconhece que uma pedagogia libertadora perpassa pela promoção da libertação da própria pedagogia.

Nessa posição, o autor questiona o positivismo da racionalidade ocidental, na denúncia de uma pretensa universalidade da teoria pedagógica. Assim, assume a pedagogia do opressor como uma possibilidade e não como a única e legítima pedagogia. Um exemplo disso está na valorização constante da práxis na realidade concreta. Por isso, a necessidade de fazermos uma pedagogia no paradigma-outro, uma pedagogia dos/as (e não para os/as) subalternizados/as, racializados/as, oprimidos/as.

Considerações finais

Conforme apresentamos na introdução deste artigo, existe um conjunto de pesquisas e de estudos publicados como teses, dissertações e artigos científicos que demonstram a curiosidade pelos Estudos Decoloniais e a produção de conhecimento, em particular, da sua relação com Paulo Freire.

Muito embora estejam em disputa o lugar e o sentido de vocação política dos Estudos Decoloniais, alguns/algumas dos/das pesquisadores/as e militantes dos movimentos sociais populares perguntariam: É “uma aposta teórica ou uma luta cotidiana?”. Logo, as fontes originárias desse campo parecem consolidadas: nas formas não ocidentais e não eurocêntricas de conhecimento (como nas sabedorias dos povos indígenas, nas memórias coletivas de resistências, nas ancestralidades africanas, nas formas de lutas e de organização coletivas de vários grupos); na teologia e na filosofia da libertação; na teoria da dependência; nas teorias críticas europeias e estadunidenses da modernidade; no grupo sul-asiático dos estudos subalternos; na teoria feminista chicana; na teoria pós-colonial e na filosofia africana, como menciona Escobar (2003); bem como na educação popular latino-americana e na investigação-ação participativa, como aponta Mota Neto (2015).

Como podemos observar, a discussão que apresentamos tem maior vinculação com a educação popular como “um acumulado histórico” (MEJÍA, 2013) e não tem pretensão de aderir à dicotimização entre teoria e prática como “validação” da produção científica e/ou dos saberes populares, visto que nos identificamos com a perspectiva dialética do conhecimento. Interessou-nos, aqui, apresentar a obra de Paulo Freire na perspectiva decolonial ainda que, em seu conjunto, o próprio educador brasileiro possa ser considerado um precursor da crítica da razão moderna hegemônica ao questionar e ao propor uma epistemologia e uma pedagogia politicamente situada. E, ele mesmo, torna-se um proponente da autocrítica como elemento imprescindível do engajamento do educador/a popular com a transformação das situações desumanizantes em diálogo com os sujeitos: ao denunciar, anunciando; ao anunciar, denunciando.

É importante mencionarmos que o pensamento teórico e epistêmico do autor é bastante complexo, não apenas em proposição mas também como em elaboração. As influências são muitas. Conforme estudo coordenado por Pitano, Streck e Moretti (2019), em número de autores/as, experiências, abordagens teóricas e instituições ultrapassam 500 em 32 livros publicados em português por editoras brasileiras. Os autores, porém em outra publicação sobre o tema, chamam atenção para a ampliação de autores/as presentes em Pedagogia do oprimido se comparados/as com a Educação como prática da liberdade, a qual é fortemente influenciada pelo pensamento existencialista e desenvolvimentista brasileiro (PITANO; STRECK; MORETTI, 2018).

Assim, ao observarmos as tendências apontadas nos trabalhos anteriores, em duas das três obras analisadas, destacamos a presença mais acentuada do materialismo histórico e dialético, em especial em Pedagogia do oprimido e em Cartas a Guiné Bissau. Contudo, nas três obras estudadas, encontram-se presentes o movimento dinâmico entre a denúncia e o anúncio, cujas dimensões foram identificadas, como: opressor/a/oprimido/a; desumanização/humanização e cultura do silêncio/diálogo; além de conscientização/colonização das mentes, esperança/desesperança e libertação/domesticação. Nesse sentido, a biobibliografia escolhida para a investigação dialoga com aspectos tanto teóricos quanto geopolíticos dos Estudos Decoloniais. Como aponta Mota Neto (2015), essa relação marca a obra de Paulo Freire como um testemunho crítico da modernidade/colonialidade.

Assim, a contribuição para o entendimento da ação pedagógica “com” o/a outro/a e não “sobre” o/a outro/a abre caminhos para uma epistemologia decolonial. A preocupação com a “colonização das mentes” e o movimento de libertação dos sujeitos é central nas obras e na vida de Freire, bem como na relação entre denúncia-anúncio.

1Informações divulgadas pela professora e pesquisadora Cheron Zanini Moretti (UNISC) e pelos professores e pesquisadores João Colares da Mota Neto da Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Reinaldo Matias Fleuri da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no minicurso intitulado “Educação Popular e Pedagogias De(S)Coloniais: desafios para a pesquisa em contextos de luta, resistência e ação política” durante o evento da ANPEd, em outubro de 2019.

2Esses números podem variar conforme a combinação de operadores boleanos e palavras-chave utilizadas nas buscas nos repositórios mencionados.

3A CAPES é uma fundação voltada à Pós-Graduação stricto sensu, vinculada ao Ministério da Educação (MEC). O catálogo de teses e dissertações pode ser consultado em: https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/

4O catálogo de periódicos pode ser consultado em: https://www-periodicos-capes-gov-br.ezl.periodicos.capes.gov.br/index.php?

5Não é nosso propósito discutir esses números, e/ou tampouco ampliá-los com outras informações que tenhamos avançado no Grupo de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Educação Popular, Metodologias Participativas e Estudos Decoloniais, de modo complementar, ou com análises qualitativas dessa produção. No entanto, esse breve levantamento permite-nos perceber que há espaço para o aprofundamento da compreensão da epistemologia de Paulo Freire a partir da perspectiva decolonial.

6Sobre o estudo de sua bibliografia, recomendamos ver Pitano, Streck e Moretti (2019).

7Para saber mais, ver Gadotti (1996).

8É interessante lembrarmos que, em função do trabalho que exercia como professor do Serviço Social da Indústria (SESI), em Recife, preocupou-se com temas sobre Sintaxe, Linguística, Filologia e Filosofia da Linguagem.

9Em Por uma pedagogia da pergunta (FREIRE; FAUNDEZ, 1985), Freire conta que foi Álvaro Vieira Pinto quem lhe apresentou a expressão “contexto de empréstimo” para designar a realidade do exílio. Assim, para Paulo Freire, o exílio passou a ser “contexto de empréstimo” – referindo-se ao hoje, e o “contexto de origem” – ao ontem, na relação entre “[...] a ocupação indispensável no novo contexto e a pré-ocupação em que o de origem deve lidar” (FREIRE, 1992, p. 34).

10Vale ressaltarmos que as datas mencionadas aqui são das publicações originais. Entretanto, ao longo do artigo, utilizamos as seguintes edições: Educação como prática da liberdade (FREIRE, 1967); Cartas a Guiné Bissau (FREIRE, 1978); e Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1987).

11Como referência ao tema sugerimos a leitura de Grosfoguel (2013, 2019).

12Um debate problematizador sobre a origem e o significado político dos termos foi realizado em Loureiro et al. (2020).

13Em uma passagem bastante difundida de Castro-Gómez e Grosfoguel, podemos identificar esses diferentes momentos do processo de descolonialização: “La primera descolonialización (iniciada en el siglo XIX por las colonias españolas y seguida en el XX por las colonias inglesas y francesas) fue incompleta, ya que se limitó a la independencia jurídico-política de las periferias. En cambio, la segunda descolonialización – a la cual nosotros aludimos con la categoría decolonialidad – tendrá que dirigirse a la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, sexuales, epistémicas, económicas y de género que la primera descolonialización dejó intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una decolonialidad que complemente la descolonización llevada a cabo en los siglos XIX y XX. Al contrario de esa descolonialización, la decolonialidad es un proceso de resignificación a largo plazo, que no se puede reducir a un acontecimiento jurídico-político” (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007, p. 17).

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Recebido: 11 de Agosto de 2020; Revisado: 06 de Maio de 2021; Aceito: 08 de Maio de 2021; Publicado: 27 de Maio de 2021

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