SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16Paulo Freire y los usos de la esperanza: un relato de experienciaPaulo Freire y Guarulhos: la educación popular como conexión índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 21-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.16952.049 

Dossiê: Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Tecnologias digitais e formação permanente de professores: continuidade ou insurgências?

Digital technologies and ongoing teacher training: continuity or insurgencies?

Tecnologías digitales y formación permanente del profesorado: ¿continuidad o insurgencias?

*Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Paulo *Unifesp). Mestra em Educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Professora Coordenadora do curso de Licenciatura em Sociologia na Universidade Paulista e Professora Tutora na Fundação Getúlio Vargas. E-mail: <maze.dias@terra.com.br>

**Mestre e Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e professora credenciada no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIFESP. E-mail: <lucila.pesce@unifesp.br>


Resumo:

O artigo tem como objetivo discutir a utilização das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC) junto às demandas educacionais contemporâneas. Para tanto, optou-se pelo estudo da educação brasileira a partir da chave analítica proposta por Paulo Freire, em sua defesa dos processos formativos permanentes. Para além das disposições cultivadas pelas referidas tecnologias e seus impactos nas diversas instâncias sociais, o artigo procura investigar a contextualização das estruturas de poder em que tais tecnologias se assentam, de modo a torná-las aptas ao aprimoramento dos processos de ensino e aprendizagem, com vistas à emancipação dos atores escolares.

Palavras-chave: Formação permanente; Tecnologias digitais da informação e comunicação; Educação escolar

Abstract:

This paper aims to discuss the use of Digital Information and Communication Technologies (DICT) related to contemporary educational demands. To do so, the study of Brazilian education was chosen using the analytical key proposed by Paulo Freire in his advocacy of the ongoing formation processes. Apart from the cultivated provisions by the referred technologies and its impact in many social bodies, the article tries to investigate the context of the power structures that these technologies stand with the purpose to make it fit to the improvement of the teaching and learning processes to emancipate the school staff.

Keywords: Ongoing formation; Digital information and communication technologies; School education

Resumen:

El objetivo del artículo es discutir sobre la utilización de las Tecnologías Digitales de Información y Comunicación (TDIC) junto a las demandas educacionales contemporáneas. Para ello se optó por el estudio de la educación brasileña, a partir de la clave analítica propuesta por Paulo Freire, en su defensa de los procesos formativos permanentes. Más allá de las disposiciones cultivadas por las mencionadas tecnologías y su impacto en las diversas instancias sociales, el artículo busca investigar el contexto de las estructuras de poder sobre las cuales dichas tecnologías se asientan, de modo que se tornen aptas al perfeccionamiento de los procesos de enseñanza y aprendizaje con vistas a la emancipación de los actores escolares.

Palabras clave: Formación permanente; Tecnologías digitales de la información y la comunicación; Educación escolar

Introdução

Esse artigo configura-se como um estudo teórico-conceitual, que emana de uma dissertação de mestrado acadêmico desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação de uma universidade federal no estado de São Paulo. A pesquisadora que a desenvolveu e a orientadora assinam o presente trabalho, respectivamente, como primeira e segunda autoras. A aludida pesquisa acadêmica investigou a formação de professores de ciências humanas, como História, Geografia e Sociologia, para integrar a cultura digital às suas práticas professorais.

Na ocasião em que foi escrita, abarcou as questões inauguradas pela adoção de Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação (TDIC), na educação formal contemporânea. Sobre os referidos impasses, a pesquisa deparou-se com dificuldades conceituais e empíricas, no tocante à compreensão das várias dimensões que compõem a problemática anunciada. Isso porque, a investigação contribui para os estudos e pesquisas atinentes às ações de formação permanente do professorado de ciências humanas atuante na educação escolar, com destaque para o exercício docente em uma perspectiva autoral e às contribuições da formação permanente do professor.

O cenário no qual se construiu a argumentação acompanhou o descortinar das emergências que se instauravam com o avanço da sociedade informacional (CASTELLS, 2013). Muito embora tais discussões se fizessem necessárias, pois através delas busca-se dar visibilidade às ausências nas questões estruturais relativas à educação, a reflexão levada a cabo no presente artigo parte das considerações desenvolvidas na aludida pesquisa acadêmica, agora, contemplando as problemáticas surgidas com a crise da pandemia do novo coronavírus, que acelerou a discussão em relação aos condicionantes necessários à sobrevivência digna, em uma sociedade que passa a conviver com o isolamento imposto pela quarentena, como medida protetiva à contenção da covid-19. Desse modo, anseia-se que a presente discussão venha a contribuir para a garantia dos determinantes materiais que favoreçam a emancipação, a autonomia e inserem parte dos grupos sociais mais vulneráveis na recente democracia brasileira, ainda que marcada pela acentuada desigualdade.

Na primeira parte deste artigo pretende-se investigar a relação entre escola e aprendizagem, levando-se em consideração também seus nexos com a irreversibilidade das TDIC nos meios educacionais e as gramáticas de interações sociais resultantes desse processo que, hodiernamente, experimenta a condição de ensino remoto.

O segundo conjunto de questões aqui analisado resulta da ampliação do foco da questão, de maneira a se observar o contexto no qual emergem tais dinâmicas – contexto este, posterior àquilo que se convencionou associar ao momento posterior dos paradigmas modernos. Essa mudança de paradigmas inaugurou novas formas de saberes, distintos daqueles que vigoraram entre os séculos XVIII e XIX. Aventa-se a pós-modernidade, categoria de análise delimitadora de novas ordens de saberes que demandam alternativas igualmente renovadas para os processos formativos.

Na terceira parte do artigo, as questões relacionadas à formação docente são apresentadas, enfatizando-se aquelas que se conectam com as chamadas Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), dos condicionantes materiais e imateriais, explicitando-se os determinantes circunstanciais para a inserção dos dispositivos tecnológicos às práticas pedagógicas hodiernas, que, a depender do enfoque dado, podem propiciar a autonomia e a emancipação dos sujeitos sociais no cotidiano professoral.

Escola, aprendizagem e cultura digital: dilemas contemporâneos

Nas últimas décadas, muitas transformações podem ser analisadas, no que se refere ao uso dos artefatos tecnológicos e da magnitude que assumem quando conectados à internet. Observa-se que os usos de tais tecnologias digitais, pelos grupos societários, afetam de maneira sintomática as interações sociais, modificando as formas de construção dos relacionamentos, abrindo espaços para novas produções culturais, de modo a fomentar maneiras inéditas de organização social e política.

Através das redes sem fio, os atuais sistemas de comunicação transformam a relação tempo e espaço, possibilitando novas formas de construção das narrativas sociais, culturais e políticas vivenciadas pelos diversos atores sociais. De acordo com Lemos (2009), as mídias digitais em conexão com a internet e associadas às redes e equipamentos móveis alteram as formas como as relações de poder estão configuradas e, por sua vez, essas anunciam as possibilidades em que se tecem as tramas societárias, opondo a neutralidade à manifestação de novos poderes sociais, de modo a conferir aos envolvidos a capacidade de autoria, contrariamente à passividade do agente na sociedade de massas. A partir dessas ressalvas é possível compreender a potencialidade das tecnologias digitais móveis, como meios para a constituição de espaços discursivos, integrando diversos aspectos da vida cotidiana.

Ao observar as novas relações que estão sendo constituídas nas teias do ciberespaço, Santaella (2004) caracteriza o perfil cognitivo do leitor da hipermídia. Para a autora, esse leitor difere significativamente do leitor tradicional, uma vez que, nessa forma de consumo de informações que emergem a partir da figura do leitor de perfil imersivo, a necessidade de protagonismo é apoiada pela facilidade de seleção do percurso de navegação.

Os atores desses ambientes suportados pelas mídias digitais – os homo digitalis–, no anonimato das redes sociais, manifestam-se isoladamente em frente à tela do computador ou de qualquer dispositivo com conexão à internet, ocupam esse espaço virtual, onde concorrem por atenção. Essas maneiras como se movimentam nos espaços virtuais permitem configurar elementos que são opostos aos que originam as classificadas sociedades de massas. Desse modo, nas aparições individuais esses atores reforçam escolhas e preferências que evidenciam a perda dos condicionantes que tornam vulnerável o protagonismo social almejado (HAN, 2018).

Também nessa contextualização de elementos que buscam tornar inteligível as possibilidades de uso educativo que são engendradas no ciberespaço, Junqueira e Paz (2016), ao tecerem considerações sobre o ativismo e as práticas ciberativistas, analisam grupos através de canais do YouTube. Esses autores argumentam que essa disposição traz novas potencialidades em sua interface com a escola, pois o acesso ao ciberespaço, a depender das premissas educacionais adotadas, pode potencializar a prática docente na construção de conteúdos próprios, rompendo com o consumo unidirecional de produtos previamente elaborados.

Mesmo com esse movimento que, rapidamente, transformou e transforma as relações dos sujeitos sociais com a informação, a escola ainda carece de estratégias para abarcar essas mudanças socioculturais. A respeito disso, Bonilla e Pretto (2015) defendem um modelo de escola ativista, apresentando como possibilidade para as comunidades escolares o “[...] resgate do papel da escola como líder e articuladora do diálogo livre e aberto entre culturas, saberes e linguagens, entre o local e o não local” (BONILLA e PRETTO, 2015, p. 85). Os autores condicionam esse cenário ao uso pleno das tecnologias digitais, referindo-se à integração das TDIC aos processos escolares, de maneira a indicar mudanças no que se refere à produção e à disponibilização dos conhecimentos escolares. Experiências desenvolvidas por esses autores envolvem os pares produção/coprodução, autoria/coautoria realizadas por professores e outros afiliados, como, no exemplo por eles citado, em escolas da rede pública do município de Salvador. Entretanto, essa proposta continua inédita ou pouco conhecida em muitas realidades escolares do país, onde ainda predominam as práticas pedagógicas forjadas no viés tecnicista (CANDAU, 2020). Nas tramas das questões hodiernas, em função da catástrofe humanitária oriunda da crise sanitária provocada pela covid-19, a solução encontrada para a manutenção das atividades escolares – ainda que passível de todo tipo de crítica e contestação, o ensino remoto – põe luz à importância assumida pelos possíveis usos suportados pelas tecnologias digitais com acesso à internet, em todos os contextos sociais.

Há de se levar em consideração outro aspecto geralmente negligenciado. É possível que o internauta incauto não se atente a isso durante sua interação com os conteúdos disponíveis nas mídias digitais, porque as tecnologias de comunicação não são neutras. Segundo Freire (1984b), a tecnologia diz respeito ao avanço do próprio homem na expressão de sua criatividade, sendo ela um processo de evolução das estruturas sociais já existentes. Com isso, tais tecnologias estão expostas aos mesmos problemas que afetam os processos de aprendizagem e a escola. De acordo com o autor:

Para mim, a questão que se coloca é: a serviço de quem as máquinas e a tecnologia avançada estão? Quero saber a favor de quem, ou contra quem as máquinas estão sendo postas em uso. Uma pergunta política, que envolve uma direção ideológica, tem de ser respondida politicamente (FREIRE, 1984b, p. 1).

O ponto fulcral que tanto inquieta Freire (1984b), no seu esforço intelectual de pertencer ao seu tempo histórico, refere-se a uma escola que, em parte, ainda atende aos imperativos neoliberais e que, portanto, insere os conteúdos educacionais e os diversos usos da tecnologia em um âmbito político e pedagógico voltado à otimização de custo.

Salienta-se que toda a discussão referente às práticas pedagógicas e à formação de professores emerge de discursos e políticas públicas originárias do modelo racional técnico, que inunda os currículos escolares e ofertas de cursos, de modo a favorecer a permanência das lógicas capitalistas que não fomentam nem a qualidade de ensino, e muito pouco, a educação humanizadora que leva à transformação social. Nesse movimento, com vistas a alcançar os fins a que se propõem, as políticas públicas educacionais costumam excluir as diversas vozes que compõem a escola, mesmo mediante o discurso afirmativo da relevância do professor na qualidade da educação.

Em uma conversa com Seymour Papert sobre o futuro da escola, ocorrida em 1995, Paulo Freire argumenta:

Eu constato que a escola está péssima [...], mas eu não constato que a escola esteja desaparecendo e vá desaparecer. Por isso eu apelo para que nós, os que escapamos à morte da escola [...] E que estamos sobreviventes aqui, modifiquemos a escola. Para mim a questão não é acabar com ela, mas é mudá-la completamente, é radicalmente fazer que nasça dela um novo corpo que não mais corresponde à verdade tecnológica do mundo, um novo ser tão atual quanto à tecnologia (FREIRE, apudCAMPOS, 2013, p. 111).

Como estudioso do importante papel social da escola, Freire (1969; 1984a; 1984b; 1991; 2004) defende a necessidade de inserção da escola em seu tempo social e histórico como exposto acima. Transpondo essas considerações freirianas para o contexto contemporâneo, caberia à escola e aos sistemas escolares conviverem com as novas formas de construção de subjetividades e outras mediatizadas pelos recursos midiáticos ancorados na análise crítica, necessária ao longo de todo o processo de reconstrução de saberes na ambiência da cibercultura.

As reflexões sobre como e o que ensinar para permitir um aproveitamento pedagógico pleno na incorporação das TDIC, também têm exigido esforços de pesquisadores e estudiosos em diversas áreas. Reconhece-se, dessa maneira, que as mudanças processadas nos ambientes digitais afetam a cultura e, consequentemente, as relações entre os diversos atores sociais.

Nesse sentido, é indispensável ao debate no campo da educação, a retomada de seus temas clássicos – instituição escolar, processos de ensino e aprendizagem, políticas públicas educacionais, formação de professores etc. – para dimensionar corretamente os temas contemporâneos, trazidos no bojo da cultura digital e da sociedade informacional.

A docência e questões hodiernas: circunstâncias e possibilidades na sociedade informacional

A crise de valores e visões de mundo que demarcou o período conhecido como pós-modernidade é analisada em profundidade por autores diversos, dentre os quais se destacam Lyotard (1988), Maffesoli (1998) e Castells (2013). Esses autores, cada qual à sua maneira, contribuíram para o esclarecimento sobre as rupturas que ocorreram no que diz respeito aos saberes que eram legítimos, no período em que a concepção moderna de mundo vigorou. Se tal visão de mundo for considerada um paradigma, logo é possível, para esses autores, identificar novas ordens de saberes que se instituíram de maneira mais ou menos difusa, entre as gramáticas das interações sociais contemporâneas.

Pautando-se no discurso pós-moderno, Lyotard (op. cit.) defende que a legitimidade relacionada com a lógica da ciência moderna se consubstanciou como verdade, passando a enfrentar certo esgarçamento das tramas sociais que se desenharam a partir da adoção das tecnologias contemporâneas e seus artefatos. Desse modo, o aumento da difusão de dados e informação causou impactos na estrutura societária, resultando em uma transformação da cultura material que passou a se organizar com base nas tecnologias de informação. Sobre a sociedade informacional e sua extensão, Castells (2013) afirma que “embora a reestruturação do capitalismo e a difusão do informacionismo fossem processos inseparáveis em escala global, as sociedades agiram/reagiram a esses processos de formas diferentes, conforme a especificidade de sua história, cultura e instituições” (op. cit., p. 56).

Ao reconhecer que as sociedades se organizaram de formas diferentes em torno dos processos informacionais, é relevante destacar o fato de que a vida em sociedade é afetada por eles e condicionada às especificidades históricas, refletidas nas ações dos agentes sociais. De acordo com Castells (op. cit.), a rede pode ser compreendida como “um conjunto de nós interconectados” na interatividade com todas as mensagens comunicacionais e identitárias expressadas.

Lévy afirma que os ambientes virtuais e digitais podem nos levar ao que ele denominou como “inteligência coletiva”. Nessa contextualização, o autor defende que a mídia e a internet propiciaram o lócus virtual no qual as pessoas podem ser mais cooperativas. Em suas palavras, “[...] novas maneiras de pensar e de conviver estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática” (LÉVY, 2010, p. 35).

Todavia, essas formas renovadas de interações sociais não seriam totalmente neófitas, uma vez que modernidade e pós-modernidade coexistem em diversas esferas de sociabilidade, como argumenta Maffesoli (1998). O autor defende a inseparabilidade das manifestações sociais e culturais da pós-modernidade e da modernidade. No que concerne à epistemologia da ciência moderna racional, deve-se observar sua obsolescência dentre as produções sociais, pois tende a ser obliterada pelas alternativas gnosiológicas pós-modernas: enquanto as primeiras estariam embasadas nos metarrelatos, as últimas seriam pautadas pelo uso de verdades não absolutas, ostentadas por práticas do cotidiano e marcadas pela adoção de narrativas.

Tomando-se a escola como instituição tradicionalmente detentora da função de transmissão dos saberes socialmente legitimados, é preciso questionar até que ponto é possível associá-la a outras formas de tratamento dos conhecimentos provenientes da emergência de interações próprias à utilização de tecnologias digitais em conexão com a internet. Em função do exposto, caberia também uma série de perguntas correlatas, que demandam pesquisas em profundidade para seu esclarecimento, as quais convêm apresentar. A escola deve confrontar a cultura científica e a local, assumindo-se como espaço apto a lidar com informações e conhecimentos nas diversas formas em que são apresentados, situando criticamente o educando na problemática apresentada no mundo pós-moderno? Em que medida o professor está preparado para lidar com as ideias de legitimação de saber, diferentemente daquelas em que ele foi formado, isto é, nos pressupostos da modernidade? As novas configurações de acesso à informação podem ser incorporadas pelo campo do saber escolar, de maneira a permitir maior interesse do aluno pela aprendizagem? As mídias podem oportunizar a incorporação de outras formas de manuseio de dados e informações, mais ágeis e mais apropriadas para a realidade dos estudantes da educação básica? Haveria como o professor fazer um aproveitamento dos percursos dos alunos e incorporá-los à sua prática com outros grupos?

Como se pode observar, são vastos os desdobramentos promovidos pela inserção de tecnologias digitais no âmbito educacional, cuja problemática é ampliada com a implantação do ensino remoto em quase todos os países, em face do impositivo, amparado pelas normativas legais, que originou o, FIQUE EM CASA! Ocorre que, para parte da população brasileira que frequenta a escola pública, esse determinante suscitou muitas exigências que as políticas públicas não foram capazes de alcançar, como na maioria das vezes, porque a representatividade das necessidades dos grupos vulneráveis ainda não são interpretadas de maneira mais assertiva, restando uma lacuna a ser preenchida por outros setores e atores sociais; não obstante, no atual cenário social e educacional, as TDIC e questões a elas imbricadas ganham centralidade.

Retomando a mudança nas tratativas da aprendizagem e a transversalidade tratada por Gallo (1997) como possibilidades para o conhecimento escolar nas sociedades pós-modernas, o pesquisador brasileiro adverte para a formação estanque dos professores como elemento impeditivo para lidar com as demais áreas do saber de forma transversal.

Ordenadas as perguntas e contextualizados os processos, pode-se elaborar reflexões com base na interface entre educação escolar, formação de professores e Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC). Paradoxalmente, nota-se que a escola é marcada tanto pelas práticas pedagógicas tradicionais, quanto também pelas práticas afeitas à pedagogia progressista. Contudo, ambas atuam, de certa forma, como mantenedoras de um projeto educacional que atende às propostas emanadas da reforma do ensino, relacionadas com a racionalidade mercadológica e empresarial da educação. Trata-se de um mercado voltado ao atendimento de necessidades educacionais de grupos particulares, criado no sentido de oferecer respostas aos problemas da educação sob certa visão de mundo.

Nóvoa (1999) discorre acerca das vozes de especialistas que inundaram os processos educativos, esvaziando o discurso dos saberes dos professores em circunstâncias internacionais, e que se aplica também ao caso brasileiro. Para ele, a questão pode ser sintetizada da seguinte maneira:

A luta por este mercado tem trazido para a formação de professores um conjunto de instituições e de grupos científicos que nunca tinham demonstrado grande interesse por este campo. Infelizmente, os benefícios desta aproximação não são muito visíveis. E o resultado é a pobreza atual da maioria dos programas de formação de professores nos países europeus (NÓVOA, 1999, p. 14).

Apesar disso, a discussão acerca da formação de professores ocupa espaço profícuo nos ambientes acadêmicos que têm permitido desnaturalizar a predominância de elementos de cunho tecnicista e a marcada presença de especialistas nos programas formativos institucionalizados. Tome-se por base a atual situação pandêmica e a aceleração de mudanças relativas às políticas públicas de inclusão digital, até mesmo aquelas voltadas à formação docente.

As ações que foram adotadas no Brasil, em quase todos os estados, abarcaram parte das recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), preventivas ao contágio pelo novo coronavírus, incluindo o distanciamento social. A área educacional em pouco tempo precisou aderir ao imperativo “fique em casa”.

Curiosamente, no caso da educação paulista, a suspensão das aulas nas instituições públicas de ensino do Estado de São Paulo, decretada pelo então governador, publicada no Diário Oficial, no dia 14 de março de 2020, sob o decreto de número 64.862/10, foi uma das primeiras medidas adotadas pelo governo do Estado de São Paulo para enfrentar a covid-19. A Secretaria Estadual da Educação (SEE-SP), com astúcia política, responde com rapidez e apresenta como solução, o ensino remoto. Criou-se o Centro de Mídias da Educação de São Paulo (CMSP) “[...] para contribuir com a formação dos profissionais da Rede e ampliar a oferta aos alunos de uma educação mediada por tecnologia, de forma inovadora, com qualidade e alinhada às demandas do século XXI”, conforme o divulgado no site institucional da SEE - SP. A formação é defendida no discurso que emana da Pasta. No entanto, é importante indagar criticamente a respeito do papel destinado ao professor na nova forma de ensino implantada. A necessária fluência digital requerida no novo processo educacional foi contemplada nas ações de formação propostas? Até que ponto pode-se afirmar que os condicionantes materiais tecnológicos necessários para comportar os aplicativos e acesso às plataformas digitais foram disponibilizados aos professores e alunos? Em que medida a aprendizagem que passa a ser efetivada e tantos outros elementos que impactam o fazer docente na situação emergencial, imposta pela pandemia da covid-19, contemplaram as vozes dos professores, cujo protagonismo vem sendo desconsiderado exponencialmente nas últimas décadas?

O fato é que as implicações que decorrem desse modo emergencial de ensino – o remoto – são muitas. Os professores assumiram tantas novas tarefas, a maioria dependente dos recursos tecnológicos e suportadas em plataformas digitais em tempos e espaços inéditos que passaram a exigir rotinas bem diferentes daquelas que realizavam na escola de modo presencial. Aos estudantes e pais, que dependem da escola pública, cuja maioria dos alunos se encontra em situação de vulnerabilidade, na ausência das aulas presenciais o acesso à educação foi muito prejudicado. Apesar de algumas políticas terem tentado amenizar algumas carências, ainda assim, não alcançaram as reais dificuldades enfrentadas e provocadas pela brutal desigualdade social brasileira. Em relatório da UNESCO (2020) salientam-se algumas repercussões da crise, dentre as quais:

[...] sobre a nutrição e proteção dos alunos que dependem da escola para tal e o despreparo de pais para dar o suporte necessário à educação a distância no lar, além de lacunas nos cuidados com as crianças, quando faltam alternativas aos pais durante o horário de seu trabalho, e que antes recorriam ao ambiente escolar (ONU Brasil,1 2020 op. cit. BASTOS; BOSCARIOLI).

O Sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2020), referindo-se a uma epistemologia do sul e suas imbricações, argumenta acerca da incapacidade de alguns governos, entre eles o brasileiro, para lidar com a saúde e a educação de toda a população. Em meio às contradições dos governos federais, estaduais e municipais, a quarentena foi iniciada por meio de decreto e, do mesmo modo impositivo, interrompida. Em outros termos, a gestão da crise sanitária não foi abarcada pelo Estado com medidas eficazes, que comportassem também ações efetivas de apoio social e econômico à população mais carente.

Como responderia Freire, renomado autor e patrono da educação brasileira, em tal situação, os processos pedagógicos devem ser entendidos contextualmente (1984a; 2004). Assim, qualquer tentativa de estabelecer um programa de ensino deve envolver minucioso exame da cultura da região na qual os educadores e educandos se inserem. Os processos educativos jamais serão bem-sucedidos, afirma Freire, a menos que sejam reconhecidas as estruturas sociais que, em grande parte, determinam os limites dos processos educacionais:

O sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a coparticipação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. Não há um penso, e sim, um pensamos. É o pensamos que estabelece o penso, e não o contrário. Esta coparticipação dos sujeitos no ato de pensar se dá na comunicação. O objeto, por isto mesmo, não é a incidência terminativa do pensamento de um sujeito, mas o mediatizador da comunicação. Daí que, como conteúdo da comunicação, não possa ser comunicado de um sujeito a outro. (FREIRE, 2006, p .66)

As políticas públicas lançadas para a educação básica enfrentar a atual crise pandêmica, erguem-se em meio ao pragmatismo tecnicista, uma vez que as ações implantadas para o isolamento social contrariam o que preconiza a principal categoria da teoria freiriana – o diálogo – pois os professores e toda a rede de ensino não foram consultados sobre como enfrentar tal situação. Com isso, mitigou-se a possibilidade de se promover ações colaborativas que poderiam ser incorporadas à medida contingencial.

É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação. O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da liberdade. É o momento em que se realiza a investigação do que chamamos Universo Temático do povo ou o conjunto de seus temas geradores. (FREIRE, 2005, p. 101).

Uma importante ponte entre as formas existentes e novas formas de conhecimento e experiência em qualquer empreendimento educacional (por exemplo: um programa educativo), é o diálogo. O diálogo proporciona um caminho para se aproximar do mundo de qualquer estudante em situação educativa, para professores, coordenadores, gestores, pais e alunos. Não há outra maneira de alcançar adequadamente o mundo único do conhecimento e da experiência de cada ator escolar, senão por meio do diálogo. Igualmente, e este ponto é muitas vezes esquecido, o diálogo é o meio através do qual os estudantes podem participar do mundo de modo mais autoral. O propósito do diálogo em um programa educacional não é apenas facilitar a aquisição de habilidades de leitura e escrita. É, também, promover compreensão crítica e transformação dos participantes no mundo social. Como Freire anunciou em suas muitas obras, o diálogo é intrínseco ao processo pedagógico. E, no caso da inédita crise pandêmica e seus impactos na educação, as ações dialógicas seriam importantes para entender e acolher os estudantes, com vistas à inclusão das necessidades desses atores sociais, bem como seria a categoria fundante para a sustentação de ações formativas docentes.

Apesar disso, as opções escolhidas pelas políticas reinantes não acolhem e nem incorporam as demandas dos atores sociais das escolas públicas paulistas; apenas fortalecem a naturalização de ações e estratégias que não afirmam o protagonismo docente, sendo, portanto, impeditivos a um caminho para a autonomia e consequente empoderamento (na acepção freiriana do termo) de estudantes e professores.

Porém existem concepções pedagógicas que se opõem vigorosamente a tais noções. Saul (2015), em sua tese de doutorado desenvolve um curso para os professores de um Centro de Integração de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA), utilizando o aporte teórico e metodológico de Paulo Freire, com vistas a romper com as tendências hegemônicas em processos formativos continuados. Preocupa-se o autor com a consubstanciação da pesquisa-ação, de modo a desvelar a possibilidade de um modelo alternativo capaz de enfrentamento à hegemonia reinante nos processos de formação continuada, de maneira a defender a formação permanente2. Na mesma direção contra-hegemônica, discorre sobre os programas de formação de educadores desenvolvidos na modalidade de educação a distância e/ou na modalidade híbrida, proposições supostamente voltadas a forjar a emancipação de professores, com desdobramentos nas práticas educativas de qualidade. De modo convergente, Pesce (2010) defende que programas formativos docentes sejam erguidos numa abordagem dialógica, ancoradas tanto no agir comunicativo de Habermas, quanto na interação dialógica de Freire.

Com base nessas proposições, é possível repensar as estruturas de formação, com vistas a qualificar a educação para uma ação inclusiva e democrática, amparada em dispositivos tecnológicos com potencial de desenvolvimento permanente dos professores e alunos. Incluem-se, desse modo, todos os condicionantes necessários para forjar os processos educacionais que qualifiquem a formação docente e promovam seu desenvolvimento profissional, qualificando a integração das TDIC aos processos educativos, sob perspectiva autoral e emancipadora (PESCE, 2010).

Processos formativos e tecnologias digitais de informação e comunicação: tendências e insurgências

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), bem como as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) e as possíveis formas de inserção de ambas, foram tratadas no âmbito das políticas públicas e amplamente discutidas nos meios acadêmicos, principalmente a partir do Programa Nacional de Tecnologia Educacional (ProInfo). Tal Programa foi criado pela Portaria nº 522/MEC, de 9 de abril de 1997, com o intuito de promover o uso pedagógico das TIC na rede pública de ensino fundamental e médio.

Segundo pesquisas do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC), realizadas em 20193, o uso de celulares, notebooks e tablets conectados à rede demonstra uma demanda em ascensão por acesso à internet. O crescimento da banda larga móvel é notável: três em cada quatro brasileiros já utilizam a Internet, com maior expressão entre os domicílios das classes menos favorecidas e em regiões onde o acesso à internet é mais restrito. O documento também aponta o inédito aumento de usuários de internet nas áreas rurais. A pesquisa revela, ainda, que o celular é o principal dispositivo que os brasileiros usam para acessar a rede mundial de computadores interligados e que desses, 85% são brasileiros das classes D e E. O uso exclusivo do celular no acesso à internet também predomina entre a população preta (65%) e parda (61%). Pelo quarto ano consecutivo verificou-se uma redução da presença de computadores nos domicílios, que passou de 50% (2016) para 39% (2019). Desse modo, pautando-se no viés socioeconômico:

Tabela 1 Domicílios com computadores por classe econômica 

Classe % de domicílios com computadores
A 95%
C 44%
D e E 14%

Fonte: elaborado pelas autoras.

Com base nesses dados, associados às recém-criadas necessidades impostas pelo isolamento social, a prestação de serviços e as atividades culturais e educacionais passam a ser realizadas por meio das plataformas digitais e aplicativos. Nesse sentido, constata-se que as classes mais fragilizadas da população estão sendo duramente penalizadas, visto que o celular é o principal dispositivo. De acordo com Barbosa (CETIC, 2019):

De maneira geral, a pesquisa mostra que atividades culturais, escolares, de trabalho e de serviços públicos na Internet ocorrem em menor proporção entre quem usa a Internet apenas pelo celular e entre aqueles que não possuem banda larga fixa no domicílio. Apesar de os dados terem sido coletados num período prévio à disseminação da pandemia, eles revelam como limitações de acesso podem afetar os estratos mais vulneráveis da população4.

As políticas públicas brasileiras e principalmente as voltadas à inclusão digital, ainda não abarcam todas as questões dessa parte da população, que é afetada pela extrema desigualdade econômica, com reflexos nefastos no acesso à infraestrutura tecnológica (hardware, software e conexão à internet). Adiciona-se a esse quadro de carências, o custo elevado de internet de qualidade e a habilidade necessária para o acesso aos sites e plataformas e às novas relações educacionais que, paulatinamente, vão sendo forjadas nessa trama social. Dessa maneira, os processos de aprendizagem de famílias que “ficam em casa” são prejudicados pois, não raras vezes, essas famílias contam apenas com um celular para comportar as demandas escolares, de trabalho e de serviços de todos os seus membros. As formas desumanizantes denunciadas por Freire perduram e parecem se asseverar ainda mais agora, no contexto da pandemia da covid-19.

Em passado recente, já havia sido apontado que os elaboradores de políticas públicas, os administradores dos sistemas escolares e os professores enfrentam novos desafios diante do avanço das tecnologias em rede, principalmente, com o crescente uso dos dispositivos móveis. Para Oliveira (2015), questões ligadas ao uso intenso das tecnologias móveis, como tablets e celulares, em locais com acesso à internet interferem diretamente na maneira como os estudantes traçam seus percursos de aprendizagem. A autora constata também a desterritorialização e mudanças em temporalidades tradicionalmente destinadas ao contato com informações e conhecimentos. Na contextualização, há um afastamento do modelo racional tecnicista proposto nas estruturas curriculares, sobre as quais as maneiras de conceber e promover o processo de aprendizagem têm sido historicamente assentadas. Observa-se que, apesar de tais estruturas insistirem em perdurar, a atual crise sanitária impulsiona a mudança desse paradigma, ainda que as questões imbricadas sejam muitas e cujo êxito dependerá, essencialmente, de serem tratadas em bases novas, de preferência nas que permitam incorporar as demandas ampliadas de bens culturais digitais.

Contudo, muitas são as preocupações relativas aos usos sociais de tais tecnologias. O fato de o ter aumentado por conta da pandemia da covid-19, e das alternativas encontradas para manter as atividades operantes, ainda que em quarentena, não as reduz; muito pelo contrário. Dessa forma, à guisa de denunciar as seduções imediatas do uso instrumental das TDIC, Pesce (2010) argumenta favoravelmente à proposta freiriana, pautada no diálogo, que tem como objetivo a autonomia dos integrantes do processo educativo e a construção de saberes. A autora defende a importante categoria freiriana – diálogo – como um movimento primordial, se o que se pretende é subverter o uso das TDIC em prol do capital e, ao contrário, situá-las como “instrumento capital à conscientização e à emancipação”. (op.cit., p. 6), servindo ao empoderamento das classes sociais desfavorecidas.

Em percurso semelhante, seguem as reflexões de Gomes (2016), sobre a construção de conhecimentos nas redes sociais e as formas de consolidação dos saberes escolares. O autor aponta a necessidade de mudanças na escola, de maneira a se realizar a construção de sociabilidades mediadas pelas tecnologias, alertando para os modos de expressão ainda poucos valorizados pelas instituições educativas.

A seu turno, Candau (2020) adverte para o fato de a educação secundarizar o papel das mídias sociais nas práticas pedagógicas. Para a pesquisadora, “Não se trata simplesmente de mudanças de caráter operacional. As mídias afetam nossos modos de aceder e construir conhecimentos, nossas formas de relacionamento, nossas subjetividades, atitudes e comportamentos”. (2020, p. 41)

Com base nesses autores é possível observar que a apropriação das tecnologias no ambiente educacional requer mudanças nas estruturas escolares e nas propostas formativas do professor. Os processos formativos, desse modo, demandariam um movimento oposto aos dos modelos hegemônicos vigentes, salientando-se a autonomia do professor, tal como defendem Giroux (1997) – ao situar os professores como intelectuais – e Imbernón (2014) – a respeito da formação do professorado diante dos cenários contemporâneos de mudanças e incertezas. De acordo com os argumentos deste último (op. cit.), é possível observar a relevância do papel do docente, no que concerne ao processo de emancipação das pessoas, sendo o exercício profissional docente – distante da neutralidade aparentemente difundida – intimamente articulado ao fomento à transformação educativa, com vistas a propiciar a consolidação da democracia econômica, política e social. Essas competências, segundo o autor, só seriam possíveis como resultados de processos formativos continuados.

Na esteira de estudos da temática relativa à formação de professores e práticas ancoradas nas mídias digitais, tem sido possível desnaturalizar a predominância de elementos de cunho tecnicista e a marcada presença de especialistas nos programas institucionalizados. Quanto à incorporação das mídias digitais em formações de professores para enfrentamento do modelo racional técnico, acerca de limites e possibilidades, Marfim e Pesce (2019) tecem consideração sobre o seu caráter ambíguo, mas mediante os impasses apresentados, anunciam como possibilidade o empoderamento de grupos sociais por intermédio de seus usos.

Na seara formativa voltada à inserção dos recursos tecnológicos às práticas pedagógicas, referindo-se especificamente aos professores de Língua Inglesa, Santos, Costa e Santos (2020) apontam que parte da rejeição encontrada nos professores do estado do Pará, em ancorar suas práticas docentes nos recursos tecnológicos, guarda relação com de ausência de letramento digital. Achados que denotam as fragilidades dos programas formativos e que impedem aos docentes de atender às expectativas e necessidades educacionais dos educandos dessa nova geração.

Dentro dos princípios teóricos e metodológicos de Freire (1969, 1984a, 1984b, 1991, 2004) é possível pensar na inserção das mídias digitais para a transformação das pessoas e da aprendizagem, de forma que possa servir ao empoderamento e à participação dos sujeitos na tomada de consciência em sua própria construção como ser. Em vista disso, a disseminação do conhecimento para o domínio das TDIC possibilitaria compor práticas pedagógicas capazes de auxiliar professores e estudantes, como sujeitos crítico-reflexivos. A formação continuada, de acordo com as análises de Gatti e Barreto (2009), tem sido utilizada de maneira a compensar as limitações dos processos formativos iniciais. Nas acepções de Freire (1969), a formação para o professor deve se pautar em critérios humanos, tendo como premissa o ser inconcluso e inacabado, cuja demanda formativa o acompanharia para a vida toda. Tal perspectiva é muito diferente das premissas da racionalidade técnica, subjacentes aos modelos formativos hegemônicos (PESCE, 2003).

É fato que as formações oferecidas para os professores que se pautam no paradigma racional técnico vão de encontro às premissas educacionais humanas freirianas e são impeditivos à educação emancipadora (1969, 1984a, 1984b, 1991, 2004). No que diz respeito aos discursos sobre formação docente é necessário indagar o quanto eles contribuem para que os professores integrem as TDIC ao cotidiano professoral de maneira crítica e reflexiva. As formas engendradas na pandemia, ainda que não investigadas nesse artigo, indicam que foram fundamentadas nos mesmos pressupostos tecnicistas.

Quanto ao que a pandemia da covid-19 vai deixar de lições para a área educativa, a crise sanitária e educacional oriunda da supracitada pandemia revelou a interdependência de diversas áreas e a necessidade dos esforços de setores da vida pública. Embora um pouco imprecisa a emissão de opiniões que apontam os limites e as possibilidades futuras, ousa-se elucubrar que soluções devem emanar da articulação, sobretudo, de determinantes estruturais e conjunturais.

No que se refere às estruturas sociais, Santos (2020) aponta que a pandemia explicitou a naturalização das formas degradantes de viver em sociedade, para boa parte da população. Ao desvelar a insustentabilidade das políticas neoliberais, a atual crise sanitária revela ao mundo a necessidade de se criar alternativas, de modo a sobrelevar suas mazelas. Nas acepções do autor:

[...] A atual pandemia não é uma situação de crise claramente contraposta a uma situação de normalidade. Desde a década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do setor financeiro –, o mundo tem vivido em permanente estado de crise. [...]a crise é, por natureza, excepcional e passageira e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. (SANTOS, 2020, p. 7)

Contudo, arrisca-se opinar sobre a permanência do descompasso entre as ações propiciadas e as reais necessidades das ações formativas, cuja superação é anunciada somente com base na dialogia (FREIRE, 1969; 1984a; 1984b; 1991; 2004). Evidenciando-se os malefícios da não incorporação das vozes de todos os atores sociais envolvidos nos processos educacionais, indaga-se sobre o que é possível conceber, quando o discurso das políticas elaboradas em bases tecnicistas e neotecnicistas mantém o padrão excludente dos atores da área educativa, evitando-se a busca de soluções conjuntas.

Pretto (2012), ao discorrer sobre o papel do professor no campo da cibercultura, afirma que essas formas contemporâneas de socialização são responsáveis pela imposição de desafios aos processos escolares e ao seu conjunto de sujeitos. Nesse contexto histórico e social, o autor mencionado defende um modelo de formação profissional capaz de se metamorfosear junto ao campo de ação do professor, no planejamento de suas práticas, por meio da inserção de elementos que permitam facilitar a aprendizagem, provocando a cooperação e instigando a participação. Pretto (op. cit.) ainda sustenta que a escola não deve consolidar seus processos separadamente desses contextos em que as informações fluem, nem se distanciar das formas inovadoras e até inéditas de se lidar com os conhecimentos produzidos, assim como com os novos recursos que permitem criação e cocriação. Para o pesquisador, há necessidade de infraestrutura que garanta também a participação [...] “professores e estudantes em seus processos formativos, sejam eles formais, não-formais ou informais – com vistas à produção de culturas e conhecimentos”. (PRETTO, 2012, p. 94).

Considerando-se que a maior parte dos processos formativos atuais é proposta em bases tecnicistas, pode-se notar que as demandas contemporâneas não se coadunam com a proposta de educação permanente de Freire, cujo aporte teórico estabelece: “[...] na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”. (FREIRE, 1996, p. 39). Depreende-se, a partir do debate aqui mencionado, que se faz necessária a possibilidade da utilização e reinvenção do pensamento freiriano para o permanente questionamento dos modelos educacionais hegemônicos. Somente por meio do diálogo constante com formadores e formandos é que se poderá propor ações formativas voltadas a uma práxis libertadora fundamentada na busca da autonomia e da consciência dos sujeitos sociais, inclusive, incorporando os diversos dispositivos tecnológicos no cotidiano professoral.

Entre denúncias e anúncios (à guisa de considerações finais)

A partir dessas questões apresentadas, colhidas junto à bibliografia sobre o tema, algumas considerações são necessárias.

Na sociedade contemporânea, valores modernos e pós-modernos coexistem e, em alguns momentos, contradizem-se (MAFFESOLI, 1998). O objetivo deste artigo foi apresentar elementos sobre a interação entre tecnologia, ciberespaço e dinâmicas sociais, culturais e políticas e contempla, ainda que de maneira parcial, o cenário de crise emanada da pandemia do novo coronavírus e seus impactos na educação escolar. Como foi observado, a formação de professores e as práticas na instituição educativa são elementos carentes de ações específicas, que possam fazer frente a processos pedagógicos tecnicistas e neotecnicistas. Apesar das vertiginosas mudanças na produção social, política e cultural, as tecnologias digitais e toda a complexidade proveniente das interações e formas de articulação com informação e conhecimento por elas mediadas, ainda não foram inseridas nos processos educativos de maneira igualitária e, tampouco, sob a égide das premissas educacionais freirianas.

A permanente herança do modelo baseado no racionalismo técnico permeia os processos formativos e a maioria das propostas pedagógicas que emanam do Estado. Nesse cenário, faz-se imperioso o enfrentamento desse modelo, para que ocorram mudanças nas práticas educativas, tornando-as mais afeitas à docência autoral e à emancipação dos sujeitos sociais. Assim, ancoradas na formação docente permanente, almejada e sustentada nas premissas teóricas e metodológicas de Freire (1969; 1984a; 1984b; 1991; 2004), que pensa a formação dos atores escolares em devir, as autoras do presente artigo defendem a elaboração de programas educacionais institucionais mais autônomos, contextualizados e capazes de incorporar a categoria diálogo, ao considerar as demandas de educadores e de educandos.

Se o que se pretende é uma formação voltada ao exercício pleno da cidadania, com base em valores humanos emancipatórios e inclusivos junto às dinâmicas educacionais e sociais, as tecnologias digitais não podem ser integradas aos processos educativos sob a égide neotecnicista. A formação dos diversos atores sociais envolvidos nos processos de ensino e aprendizagem demanda o fortalecimento de acesso aos saberes socialmente legitimados e aos condicionantes materiais que possibilitem o desenvolvimento de práticas pedagógicas autorais e emancipadoras. Afirma-se que o enfrentamento aos modelos hegemônicos formativos e pouco efetivos ora denunciados, viabilizar-se-á se ancorado em bases teóricas e metodológicas mais humanizantes.

Por último, salienta-se que as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) incluindo-se os dispositivos móveis conectados à internet, devem ser incorporados aos processos educativos com a intencionalidade de forjar a “leitura de mundo”, pelos sujeitos sociais em formação, se o que se pretende é que os processos formativos contribuam para o empoderamento (FREIRE; SHOR, 1997) e a consequente intervenção desses sujeitos na realidade que os entorna.

1Relatório da UNESCO. Disponível em: http://data.uis.unesco.org. Acesso em: 21/04/2020.

2Essa concepção é resumida da seguinte maneira por Paulo Freire: “Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática” (FREIRE, 1991, p. 58).

3TIC DOMICÍLIOS 2019 – Pesquisa sobe o número de domicílios conectado por meio de Banda Larga no Brasil. CETIC 2019. Comitê Gestor da Internet no Brasil. Disponível em: https://cetic.br/pt/noticia/tres-em-cada-quatro-brasileiros-ja-utilizam-a-internet-aponta-pesquisa-tic-domicilios-2019/

4Por se tratar de consulta telemática, o referido excerto não pôde vir acompanhado de paginação.

Referências

BONILLA, M. H.; PRETTO, N. As tecnologias digitais: construindo uma escola ativista. In: BRAGA, D. B. (org.). Tecnologias digitais da informação e comunicação e participação social. São Paulo: Cortez, 2015. p. 149-166. [ Links ]

CAMPOS, F. R. Paulo Freire e Seymour Papert: educação, tecnologias e análise do discurso. Curitiba: CRV, 2013. [ Links ]

CANDAU, V. Didática novamente em questão: fazeres-saberes pedagógicos em diálogos, insurgências e políticas. In: CANDAU, V; CRUZ, G.; FERNANDES, C. (org.). Didática e fazeres-saberes pedagógicos: diálogos, insurgências e políticas. Petrópolis: Vozes, 2020. p. 33-47. [ Links ]

CASTELLS, M. A Sociedade em rede. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2013. [ Links ]

FREIRE, P. O Papel da Educação na Humanização. Revista Paz e Terra, v. 4, n. 9, out. 1969. [ Links ]

FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984a. [ Links ]

FREIRE, P. A máquina está a serviço de quem? Revista BITS, [s. l.], [s. n.], p. 6, mai. 1984b. [ Links ]

FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 30. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 42. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, [1987] 2005. [ Links ]

FREIRE, P. Extensão ou comunicação. 13. ed. São Paulo: Paz e Terra [1969] 2006. [ Links ]

FREIRE, P.; SHOR, I. O que é “método dialógico” de ensino? O que é uma “pedagogia situada” e o empowerment? In: FREIRE, P. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Trad. A. Lopes. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 121-146. [ Links ]

GALLO, S. Conhecimento, transversalidade e educação: para além da interdisciplinaridade. Revista Impulso, Piracicaba, v. 10, n. 21, 1997. [ Links ]

GATTI, B.; BARRETO, E. S. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO, 2009. [ Links ]

GIROUX. H. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Trad. D. Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. [ Links ]

GOMES, L. F. Redes sociais e escola: o que temos de aprender? In: ARAÚJO, J.; LEFFA, V. (org.). Redes sociais e ensino de línguas: o que temos de aprender? São Paulo: Parábola, 2016. [ Links ]

HAN, B. C. No enxame: perspectivas do digital. Trad. MACHADO, L. Petrópolis: Vozes, 2018. [ Links ]

IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: formar-se para a mudança e a incerteza. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2013. [ Links ]

JUNQUEIRA, E.; PAZ, T. Ativismo e dispositivos móveis em redes: narrativas sobre o cabelo crespo no YouTube. In: COUTO, E.; PORTO, C.; SANTOS, E. (org.). App-learning: experiências de pesquisa e formação. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 51-74. [ Links ]

LEMOS, A. Cultura da mobilidade. Revista Famecos – PUCRS, Porto Alegre: v. 1, n. 40, dez. 2009. DOI: https://doi.org/10.15448/1980-3729.2009.40.6314Links ]

LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora 34. 2010. [ Links ]

LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. [S. l.]: Gradiva. 1989. [ Links ]

LYOTARD, J. F. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olimpo, 1988. [ Links ]

MAFFESOLI, M. Elogio da razão sensível. Petrópolis: Vozes, 1998. [ Links ]

MARFIM, L.; PESCE, L. Racionalidade tecnológica e formação humana em perspectiva: integração das TDIC na educação e o empoderamento Freiriano como possibilidade. Revista Educação & Linguagem, v. 22, n. 01, p. 57-75, jan./jun. 2019. DOI: https://doi.org/10.15603/2176-1043/el.v22n1p57-75Links ]

NÓVOA, A. Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas.Educação e Pesquisa, São Paulo. v. 25, n. 1, p. 11-20, jan./jun. 1999. [ Links ]

OLIVEIRA, D. Dispositivos móveis no contexto escolar da rede pública: o que pensam professores e alunos sobre o uso de tablets? Anais do III Congreso Internacional de investigación educativa, educación y globalización. Universidad de Costa Rica. San José. 2015. Disponível em: https://bit.ly/2QMNxDP. Acesso: 08 ago. 2020. [ Links ]

PESCE, L. Dialogia digital: buscando novos caminhos à formação de educadores em ambientes telemáticos. 2003. 395 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003. [ Links ]

PESCE, L. Formação online de educadores sob enfoque dialógico: da racionalidade instrumental à racionalidade comunicativa. Revista Quaestio, Sorocaba, v. 12, p. 25-61, jul. 2010 [ Links ]

PRETTO, N. Professores-autores em rede. In: SANTANA, B.; ROSSINI, C.; PRETTO, N. (org.). Recursos Educacionais Abertos: práticas colaborativas e políticas públicas. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa da Cultura Digital, 2012. p. 91-108. Disponível em: https://www.aberta.org.br/livrorea/livro/livroREA-1edicao-mai2012.pdf. Acesso em: 08 ago. 2020. [ Links ]

SAUL, A. Para mudar a prática da formação continuada de educadores:uma pesquisa inspirada no referencial teórico – metodológico de Paulo Freire. 2015. Tese (Doutorado em Educação: Currículo) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. [ Links ]

SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulos, 2004. [ Links ]

SANTOS, B. S. A cruel pedagogia do vírus. São Paulo: Boitempo, 2020. [ Links ]

SANTOS, D. M.; COSTA, M. C. F.; SANTOS, D. M. Utilização das tecnologias de informação e comunicação no ensino da língua inglesa e seus desafios na formação docente. Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 16, n. 41, p. 787-801, set. 2020. DOI: https://doi.org/10.22481/praxisedu.v16i41.6483Links ]

Recebido: 30 de Setembro de 2020; Revisado: 29 de Março de 2021; Aceito: 30 de Março de 2021; Publicado: 31 de Março de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.