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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.16  Ponta Grossa  2021  Epub 20-Oct-2021

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.16.17204.010 

Entrevista

Dossiê Paulo Freire (1921-2021): 100 anos de história e esperança

Entrevista com Peter McLaren Discussões radicais e esperançosas sobre tempos de brutal conservadorismo - caminhos de luta e transformação à luz de Paulo Freire

Entrevista con Peter McLaren Discusiones radicales y esperanzas sobre tiempos de brutal conservadorismo - caminos de lucha y transformación a la luz de Paulo Freire

Lucimara Cristina de Paula* 
http://orcid.org/0000-0002-9556-7960

Tradução:

Bhianca Moro Portella** 
http://orcid.org/0000-0003-2521-0197

*Doutora em Educação. Professora Adjunta do Departamento de Pedagogia e docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Paraná. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação em Espaços Escolares e Não Escolares (GEPEDUC). E-mail: <lucrispaula@gmail.com>

**Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da UEPG. E-mail: <bhiancamoro@hotmail.com>


Em uma carta escrita em fevereiro de 1994, Paulo Freire referiu-se amorosamente ao “parentesco intelectual” entre pessoas que são estranhas do ponto de vista do sangue, mas que revelam similitudes na forma de apreciar os fatos, compreendê-los, valorá-los. Esse parentesco é descrito pela sensação maravilhosa que nos invade quando conhecemos uma pessoa e temos a impressão de estarmos ligados a ela por uma velha amizade. É como se o encontro, na verdade, fosse um reencontro esperado há muito tempo, em que a intercomunicação se dá facilmente e os temas abordados são apreendidos por meio de experiências semelhantes de aproximação epistemológica a eles. Grandes amizades enraízam-se e prosperam nesse “parentesco intelectual”, atravessam o tempo e resistem a possíveis mudanças. Nessa carta, Paulo Freire referia-se a Peter McLaren, um “parente intelectual” que descobriu e por quem foi descoberto. Afinal, como afirma Freire (2005, p. 247), “[...] ninguém se torna parente do outro se o outro não o reconhece também como parente”.

Freire já lia McLaren antes de conhecê-lo pessoalmente e logo descobriu que pertenciam a uma mesma “família” intelectual. Entretanto, esclareceu que isso não significava a redução de um no outro, pois a autonomia de ambos é que marca o verdadeiro parentesco.

Ao receber o convite para oferecer essa entrevista, o Professor Peter McLaren rapidamente enviou resposta afirmativa, demonstrando grande interesse em discutir o legado de Paulo Freire em tempos tão difíceis para o Brasil e os Estados Unidos da América (EUA). Peter McLaren, um dos principais representantes da Pedagogia Crítica, foi professor da Universidade da Califórnia (1985-2013) e, atualmente, trabalha na Faculdade de Estudos Educacionais da Universidade Chapman. Atua como diretor do Projeto Democrático Paulo Freire e Embaixador Internacional em Ética Global e Justiça Social e é especialista nos seguintes temas: Teologia da Libertação e Educação em Justiça Social Católica, Pedagogia Crítica Revolucionária, Filosofia da Educação, Sociologia da Educação, Teoria Marxista e Teoria Crítica. É autor e editor de quase 50 livros e seus escritos foram traduzidos para mais de 25 idiomas. O Professor Peter McLaren é um estudioso e ativista, cujo trabalho educacional busca refletir objetivos e práticas desenvolvidos por Paulo Freire.

Nessa entrevista, ele nos conta sobre sua trajetória de vida e profissional, como conheceu Paulo Freire e explica seu “parentesco intelectual” com ele, traz profundas discussões sobre o momento de extremo e violento neoconservadorismo que estamos vivendo e sobre sua Pedagogia Crítica. Ele finaliza essa entrevista apontando caminhos de resistência que precisamos trilhar como educadores e pesquisadores para combater a opressão, superar as desigualdades, democratizando o espaço universitário.

É uma honra para nós contarmos com as ricas discussões do Professor McLaren (Figuras 1 e 2) neste dossiê sobre o centenário de nascimento de Paulo Freire. Agradecemos suas especiais contribuições!

Figura 1 À esquerda: Paulo Freire e Peter McLaren no Rose Theater em Omaha, Nebraska, 1996/À direita: Paulo Freire, Peter McLaren e Augusto Boal em conversa no Rose Theater em Omaha, Nebraska, 1996, na Pedagogy of the Oppressed ConferenceFonte: Arquivo pessoal de Peter McLaren. 

Figura 2 À esquerda: Peter McLaren e estudantes na Chapman University/À direita: o prédio de uma escola (na La Escuela Normal Superior de Neiva) com o nome de Peter McLaren em Neiva, ColômbiaFonte: Arquivo pessoal de Peter McLaren. 

Entrevistadoras (E): Prezado Professor Peter McLaren, é com imensa alegria que recebemos seu aceite em conceder esta entrevista sobre Paulo Freire à nossa revista. Agradecemos sua disponibilidade e generosidade em compartilhar as experiências vividas ao lado dele e as relações de Freire com a Pedagogia Crítica nos Estados Unidos. Para início desta entrevista, gostaríamos que contasse um pouco sobre sua trajetória de vida e de formação e como conheceu Paulo Freire.

Peter McLaren: Eu cresci em uma família de classe trabalhadora em Toronto, Canadá. Minha mãe teve alguns problemas médicos e teve de fazer uma histerectomia quando eu era jovem, então eu era o único filho. Não gostava da escola e, na verdade, mal me lembrava muito da minha vida na escola até ir para a faculdade. Acho que devo ter reprimido muito dessa parte da minha vida por motivos que não consigo compreender totalmente. Minha mãe era uma mulher maravilhosa, muito gentil e generosa, e meu pai era um gigante gentil com 1 metro e 80. Ele não falava muito sobre seus seis anos na Europa lutando contra os nazistas, mas tenho certeza de que muitas de suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial o traumatizaram. Meu tio foi um herói de guerra da Marinha Real, ajudando a afundar o encouraçado alemão Bismarck. Os homens adultos dominantes em minha vida eram muito conservadores politicamente.

Na década de 1960, tudo mudou e me tornei um hippie. Aos 19, peguei carona para os Estados Unidos, para Los Angeles e São Francisco e participei de protestos contra a guerra do Vietnã. Li minha poesia em cafeterias e conheci alguns ícones da cultura da época, como Allen Ginsberg e Timothy Leary. Conheci alguns Panteras Negras em Oakland e participei de algumas manifestações políticas. Quando voltei ao Canadá, estudei Literatura Inglesa na Universidade de Toronto, me graduei em Inglês Antigo (Beowulf) e Inglês Médio (Chaucer) e, depois, fui para a Universidade de Waterloo estudar Drama Elisabetano (Shakespeare). Contudo, durante esses anos, acompanhei o que estava acontecendo politicamente, e alguns de meus professores eram resistentes ao recrutamento estadunidense, os quais haviam deixado os Estados Unidos indo para o Canadá para escapar da Guerra do Vietnã. Muitos de meus amigos estavam usando drogas. Meus dois melhores amigos cometeram suicídio.

Após a formatura, aceitei um emprego como professor da 7ª e 8ª séries em uma vila rica. Depois de um ano, cheguei à conclusão de que esses jovens de famílias ricas iriam entrar na faculdade e na universidade, apesar de terem ou não bons professores, simplesmente devido à sua formação escolar. Procurei outro desafio. Eu consegui um emprego em uma área de Toronto conhecida como Jane Finch Corridor. O bairro tinha a reputação de ser perigoso. Um aglomerado de edifícios subsidiados pelo governo cercava a escola. Os professores não duraram muito nessa escola. No entanto, eu amei os alunos, e o diretor era incrível. Ele quebrou em pedaços a parede de seu escritório com uma marreta para que pudesse ser facilmente acessível a todos os alunos. Ele substituiu sua mesa de aço por uma pequena mesa de madeira e substituiu sua cadeira convencional por uma cadeira de balanço. Durante o dia, alunos vinham vê-lo e abraçá-lo. Ele era conhecido como o diretor que abraça. Segui seu exemplo e joguei fora todas as carteiras e cadeiras da minha sala de aula e enchi a sala com almofadas e móveis confortáveis. Encontrei um par de tambores e por um mês os alunos e eu nos revezamos tocando. As notas dos testes aumentaram. Escrevi um livro sobre minhas experiências, muitas das páginas documentando violência e desespero entre os alunos. O livro tornou-se um best-seller canadense. No entanto, cometi o erro de não analisar minhas experiências no livro. Mais tarde, depois de obter meu diploma de Mestrado em Educação, que eu fazia à noite, fui aceito no Instituto de Estudos em Educação de Ontário da Universidade de Toronto para o Doutorado. Então foi quando eu aprendi sobre Paulo Freire.

Eu tinha ouvido falar que Paulo tinha visitado a universidade, mas tinha perdido sua palestra. E ainda não havia nenhuma menção ao trabalho de Freire nos currículos oficiais dos cursos que eu estava fazendo. Nem menção oficial de outros estudiosos críticos sobre seu trabalho. Descobri quem ele era conversando com alunos de outros programas e estudei seus trabalhos sozinho. Finalmente, consegui um videotape do Paulo sendo entrevistado. O ano era 1980.

Conheci Paulo pessoalmente em 1985, em uma reunião anual da American Educational Research Association. Ele encheu um auditório com 500 pessoas. Claramente, os educadores norte-americanos estavam descobrindo quem ele era. Fui amigo íntimo de Henry Giroux e Donaldo Macedo, que eram próximos de Paulo. Fiquei surpreso ao saber de Paulo que ele conhecia meu trabalho e falava muito bem dele. Não tinha ideia de que ele conhecia meu trabalho. Na verdade, ele escreveu o prefácio de dois dos meus livros. Em um dos prefácios, ele me descreveu como seu “primo intelectual”. Isso me revelou a generosidade de seu espírito. Ele me convidou para ir a Cuba para uma conferência, mas, quando cheguei em Havana, ele já tinha saído. Entretanto, eu iria encontrar muitos educadores do Brasil, México e outros países latino-americanos, que me convidaram para dar palestras em seus países de origem.

Paulo Freire me convidou para sua casa no Brasil e até ajudou a traduzir uma de minhas palestras em São Paulo. Outros educadores me convidaram inúmeras vezes para ir ao Brasil, a cidades como Porto Alegre, Florianópolis, Santos, Rio de Janeiro, Santa Clara, Santa Maria (Rio Grande do Sul), Uberlândia, Salvador, na Bahia, e Cachoeira. Participei de cerimônias de umbanda e candomblé. Graças aos membros afro-brasileiros do Partido dos Trabalhadores, pude visitar muitas favelas diferentes, e até fui presenteado com uma placa por ajudar a defender a religião afro-brasileira. Inclusive assisti a um jogo de futebol ao vivo entre Brasil e Argentina. O Brasil capturou meu coração desde o início. Paulo abriu a porta e tornou tudo isso possível.

E: Seu relato parece indicar que sua aproximação com Freire ocorreu desde os tempos de trabalho na escola do Jane Finch Corridor. Seu compromisso político e amoroso com a transformação dos alunos dessa escola já anunciava o seu “parentesco intelectual” com Freire, como ele mesmo afirma no prefácio do livro que você escreveu: Critical Pedagogy and Predatory Culture (Pedagogia Crítica e Cultura Predatória). Como você explica esse “parentesco” e o que mudou em sua pedagogia, sua produção intelectual e suas lutas a partir da aproximação com Paulo Freire?

Peter McLaren: Sim, correto. Eu deixei de lecionar na escola Jane Finch Corridor em 1979. Eu ouvi falar sobre o Paulo pela primeira vez em 1980. Eu por acaso conheci Paulo Freire cinco anos depois, em 1985. Sim, eu compartilhava algumas das ideias sobre pedagogia e alguns valores sobre emancipação, liberdade e política de libertação antes de ler o trabalho do Paulo. E sim, eu concordaria que eu tinha uma afinidade natural com o trabalho do Paulo. Quando eu comecei a me engajar no trabalho do Paulo, eu estava determinado a entender as ideias dele o melhor que pudesse. Paulo trouxe uma nova gama de significados para eu considerar, ele abriu portas para o meu entendimento de política e pedagogia de formas que eu nunca tinha me dado conta.

E: O que eu quis dizer é que sua afinidade com ele era natural e existia mesmo antes de vocês dois se conhecerem. Isso já estava expresso por meio do trabalho emancipador e pelos ideais de valores que você tinha. Suas convicções os aproximavam antes de conhecer Freire. Eu tenho seu livro Critical Pedagogy and Predatory Culture traduzido para o português e, no prefácio dele, Paulo Freire menciona o “intellectual kinship” (parentesco intelectual) que sentia por você. Obrigada pelos esclarecimentos!

Peter McLaren: Eu senti uma grande afinidade com Paulo e fiquei impressionado com sua humildade e sua bondade. Sua mente era a mais brilhante que eu já havia encontrado e o mais terno dos corações. E o espírito de um guerreiro! Quando o conheci em um dos grandes hotéis de Chicago, durante uma conferência, ele estava cercado por dezenas de admiradores. Quando ele entrou em uma sala, as pessoas se levantaram e houve fortes aplausos. Isso aconteceu em todos os lugares que ele foi. Acho que o Paulo ficou surpreso com a atenção que recebeu, e sempre respondeu com paciência, cortesia e humildade. Ele, às vezes, se aproximava de mim de maneira paternal e me dava conselhos. Uma vez eu disse a ele que estava discutindo seu trabalho em palestras que ministrava em vários países da América Latina. De maneira amigável, ele me advertiu para não “depositar” ou “importar” suas ideias além das fronteiras nacionais, mas para convidar professores e ativistas de outros países para traduzir suas ideias no contexto de suas próprias lutas específicas [Figura 3].

Figura 3 Do livro Breaking Free: The Life and Times of Peter McLaren1 Fonte: Arquivo pessoal de Peter McLaren. 

O presidente Chávez gostou daqueles de nós que estavam trabalhando na Venezuela com as ideias de Freire e, certa vez, enfatizou para mim que qualquer pedagogia crítica que surgisse da luta das comunidades venezuelanas seria venezuelana. Chávez era um admirador de Freire e sabia o suficiente sobre as ideias de Paulo para entender a importância do que acontece com as teorias quando elas “viajam” de um país a outro. Paulo sempre me lembrava que via o mundo com olhos de brasileiro, e que essa complexa rede de realidade impossibilitava “exportar” sua obra para outros países sem levar em conta a especificidade contextual das comunidades envolvidas - ele entendia que as pessoas iriam retomar seu trabalho em diferentes maneiras e recriar e reinventar suas ideias de acordo com suas próprias culturas e histórias - incluindo seus mitos e as forças que medeiam seus mundos de vida. Ele sempre dizia: “Peter, não me exporte, mas incentive minhas ideias a serem reinventadas” [Figura 4]. Ele sabia como era importante para as comunidades com dificuldades a navegar pelas contradições inerentes aos sistemas políticos assimétricos de poder e privilégio sustentados por um sistema capitalista patriarcal e colonial. Ele incentivava aqueles que assumiram suas ideias a relê-lo e reescrevê-lo à sua maneira, isto é, nos modos como passaram a ler a palavra e o mundo. Freire não queria que seu trabalho fosse imposto a vários grupos por meio de metodologias mecanicistas, tecnocráticas ou instrumentalizadas. Quando dava palestras sobre o trabalho de Paulo, me restringia a discutir como o trabalho de Paulo Freire me influenciou em meus contextos norte-americanos - como as ideias de Paulo me ajudaram a reler a palavra e o mundo de maneiras que nunca havia considerado. Da mesma forma, outras comunidades julgariam a relevância do trabalho de Paulo em relação às suas próprias lutas específicas.

Figura 4 Do livro Breaking Free: The Life and Times of Peter McLaren2 Fonte: Arquivo pessoal de Peter McLaren. 

A ênfase de Paulo na práxis significava que tais lutas poderiam levar a resultados alcançáveis ​​ou potencialmente viáveis. O trabalho de Paulo tornou-se uma base para o meu, embora eu nunca pudesse corresponder às demandas que seu trabalho colocava em mim - como a noção de Paulo de inacabamento e transcendência de nossas situações limites, transformando-as em possibilidades não testadas como parte de nossa vocação ontológica para nos tornarmos mais humanos e criarmos espaços onde a justiça possa ser afirmada. Os ensinamentos de Paulo me enviaram a uma viagem de sonho utópico por um futuro socialista, e sempre tentei ter em mente a distinção feita por Ernst Bloch entre utopias concretas e abstratas e a importância de uma esperança educada emergindo na práxis dos movimentos revolucionários, entre as organizações de base. Paulo me ensinou a focar no pensamento utópico concreto, em vez de em utopias abstratas, que, muitas vezes, são projetos imaginados por intelectuais burgueses para serem colocados em prática em algum ponto distante no futuro. O pensamento utópico abstrato é frequentemente desconectado das lutas dos miseráveis, dos empobrecidos, dos deserdados.

Por volta de 1995, comecei a revisitar os escritos de Marx, e isso me ajudou a aprofundar minha crítica da economia política. Somos todos seres inacabados - e nosso propósito não é uma barganha faustiana com os guardiões do capital, mas, sim, a humanização, que nos aproxima de nosso objetivo de libertação. Para Marx, mudança revolucionária significa deslocar as placas tectônicas da irracionalidade pelo pensamento dialético, movendo, assim, a geografia da razão em direção aos recintos mais hospitaleiros. Uma abordagem histórico-materialista para compreender o papel que o capital desempenha em nosso universo social fornece uma base crucial para derrubar o presente e inaugurar um novo mundo, para lançar um novo presente no qual são plantadas as sementes do socialismo revolucionário.

Como Freire deixou bem claro, precisamos transcender nossas situações limites, pois, além delas, está o que Paulo chamou de viabilidade não testada, modos de ser e tornar-se mais humano, em que as palavras que falamos podem ouvir a elas mesmas sendo ditas. Isso me ajudou a enfocar formas de reprodução de padrões sociais humanos que transcendiam o aumento de valor, a forma de valor do trabalho, formas de existência que iam além das forças e das relações da mercantilização capitalista. Com o tempo, me convenci de que precisamos de uma transição robusta para uma nova civilização ecossocialista. Comecei a considerar a obra de Marx e Freire à luz de pôr um fim na destruição planetária pelo modo de produção capitalista.

Vivemos noCapitalocenoe sob a influência das consequências negativas da revolução pós-digital, às vezes chamada de Quarta Revolução Industrial. Como podemos criar uma alternativa ao capitalismo, combinando as percepções do ecofeminismo e do ecossocialismo - isso ainda é uma das principais direções do meu trabalho. Fiquei muito interessado no trabalho de Raya Dunayevskaya, especialmente em sua noção de negatividade absoluta, a negação da negação e a positividade que pode ser extraída pela negação da negação. Mas não quero ser muito teórico aqui. Realmente acho que precisamos pensar no marxismo menos como uma abordagem mecânica que se move por meio de estágios prescritos, e mais como um mito-guia, como o grande marxista peruano Mariátegui entendeu o significado do termo. Precisamos sentir que fazemos parte de um grande movimento de mudança que se torna mais viável em nossos esforços diários para desafiar o sistema - como nos protestos recentes que vimos nos Estados Unidos e em todo o mundo após o assassinato de George Floyd por um policial de Minnesota.

No entanto, a dor e o sofrimento que os miseráveis, empobrecidos e deserdados espalham por suas narrativas pessoais neste ponto de inflexão histórica contêm exemplos de esperança de que um novo dia nasça. Considere o fato de que esses protestos foram libertados do enraizamento geográfico: as manifestações que eclodiram sobre o assassinato de George Floyd pela polícia geraram eventos multirraciais em 2.000 cidades dos Estados Unidos, dos quais 26 milhões de pessoas participaram. No entanto, os protestos contra o abuso policial, racismo e desigualdade social também eclodiram ao mesmo tempo em quatro dezenas de países europeus e latino-americanos, incluindo vários países africanos. Isso não tem precedentes. Os protestos tornaram-se mais diferenciados e, ao mesmo tempo, mais coletivos, clamando por reforma penitenciária, desapropriação da polícia, justiça para os transgêneros, fim da violência sexual e do racismo sistemático, sexismo e do ciclo escola-para-prisão.

É gratificante ver tais grandes grupos multirraciais se levantando e protestando contra os horrores do crescente declínio para o fascismo que estamos testemunhando em todo o mundo no momento, encabeçado por Trump, e Bolsonaro, que, às vezes, é chamado de Trump dos Trópicos. Acho que devemos levar Trump e Bolsonaro em umterreiro de candomblée alimentar a cada um com uma tigela de Ayahuasca, e deixar Exú levá-los em uma jornada, semelhante à de Dickens emA Christmas Carol, na qual ambos poderiam revisitar seu passado, vislumbrar o futuro do planeta e ser convertido de tiranos amantes do fascismo em campeões da democracia no presente. Tendo testemunhado um planeta devastado que resultou de suas políticas ambientais vergonhosas e sua inação sobre a mudança climática, eles testemunhariam gerações de jovens vivendo vidas descartáveis ​​sem futuro, e eles se submeteriam a um compromisso pessoal com um futuro ecossocialista. Sim, é bom viver em uma fantasia às vezes, para esquecer por um breve momento a dor do presente. Entretanto, é hora de acordarmos e percebermos que a única maneira de nos livrarmos desses brutos é o povo se levantar e expulsá-los do cargo.

E: Professor Peter, suas explanações me fizeram refletir sobre vários temas para dialogarmos. Contudo, preciso escolher um deles para aprofundar. Você afirmou que Paulo Freire sempre dizia: “Peter, don’t export me, but encourage my ideas to be reinvented” [não me exporte, mas encoraje minhas ideias a serem reinventadas]. E você disse também: “When I gave talks about Paulo’s work, I would restrict myself to discussing how Paulo’s work influenced me in my North American contexts – how Paulo’s ideas helped me to re-read the word and the world in ways in which I had never considered” [Quando eu dava palestras sobre o trabalho de Paulo, eu me restringia a discutir como o trabalho de Paulo me influenciou no meu contexto norte-americano – como as ideias de Paulo me ajudaram a reler a palavra e o mundo de maneiras que eu nunca havia considerado].

Essa parte da resposta me trouxe duas curiosidades: Em quais aspectos Paulo Freire influenciou sua leitura de mundo e sua leitura da palavra no contexto Norte Americano? Que leitura você faz do mundo hoje, mundo no qual vemos pessoas como Trump e Bolsonaro chegarem ao poder, e como reinventar o legado de Freire como educadores para buscar a transformação desse mundo, ajudando a construir relações humanas menos injustas e mais respeitosas como ele defendia?

Peter McLaren: Paulo me ensinou a entrar em contato com minhas raízes operárias, que remontam à Irlanda e à Escócia. Ele virou minha vida como professor de cabeça para baixo. Ele me ajudou a entender meu próprio privilégio racial em uma sociedade multirracial e multicultural. Ele me inspirou a visitar a América Latina e a levar as lições que aprendi lá para as ruas dos Estados Unidos - e isso me ajudou a entender o sistema de racismo, sexismo e exploração de classe que estava no coração dos Estados Unidos - o genocídio das populações indígenas, a brutal e desumana escravidão que estava embutida na economia de plantation, os sistemas ideológicos embutidos na mídia de massa, as guerras imperialistas, o papel da CIA3 em todo o mundo, a hipocrisia entrelaçada nos conceitos de excepcionalismo americano e do sonho americano, o papel opressor desempenhado pelos cristãos evangélicos que praticam o “evangelho da prosperidade” que iguala a salvação às riquezas materiais. Paulo me ensinou como ser professor significa envolver-se em um caminho que requer uma vida dedicada à busca implacável da justiça, apesar do fato de que a meta pode nunca ser totalmente conhecida de antemão ou finalmente alcançada.

Paulo me ensinou a ler história, o melhor que pude, do ponto de vista das vítimas, do ponto de vista do povo. Tornei-me um admirador do livro A People’s History of the United States, de Howard Zinn. Paulo me ensinou a substituir a razão instrumental pela racionalidade crítica dialética, a fim de estabelecer uma relação dialógica com os oprimidos e não oprimidos, e a fomentar a dissidência popular no interesse de construir uma sociedade onde a opressão possa ser erradicada, e isso exigia que eu entendesse melhor a importância dos conselhos de trabalhadores e de populares e das estruturas de tomada de decisão da comunidade. Paulo arriscou a vida para ajudar aqueles que sofreram por serem desproporcionalmente afetados pela crueldade das relações sociais de exploração do capitalismo. Paulo me ensinou que a educação é práxis, começando pela ação ética, não pela doutrina correta.

Essa ação tem como premissa a crença na capacidade para a bondade humana e começa com uma ação ética. Os seres humanos revisam seu pensamento devido às várias mudanças em suas circunstâncias, e os próprios educadores devem estar dispostos a ser educados. A prática revolucionária, ou práxis, tem a ver com o que Marx chamou de “a coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou mudança pessoal”. Isso ficou mais claro quando comecei a entender o trabalho de Paulo. Os agentes protagonistas ou revolucionários não nascem, são produzidos pelas circunstâncias. Para revolucionar o pensamento, é preciso revolucionar a sociedade. Todo desenvolvimento humano (incluindo pensamento e fala) é atividade social e tem suas raízes no trabalho coletivo. Paulo me enviou em uma viagem, e ainda não terminei.

Nem sempre pude ser freiriano porque Paulo estabeleceu padrões muito altos. Contudo, a vida e o trabalho de Paulo me ajudaram mais tarde a me conectar com a espiritualidade que informa todas as nossas vidas, quer reconheçamos ou não. Nita Freire também ajudou a me inspirar. Para mim, isso significou me reconectar com minha fé católica e com a teologia da libertação. Isso me fez sentir uma profunda tristeza e raiva pelo que o presidente fascista do Brasil, Jair Bolsonaro, está fazendo ao Brasil. Ele é um homem machista que está em guerra com a esquerda educacional de seu país, a quem ele condena como “marxistas culturais”, e está jogando um jogo político enquanto a floresta amazônica de seu país arde em chamas. Esse é o mesmo homem que tenta substituir Paulo Freire como Patrono da Educação Brasileira por um missionário jesuíta espanhol do século XVI, São José de Anchieta, e que, armado da lógica da razão instrumental e o discernimento e a inteligência de quem sofre de uma letargia após o almoço, recusou 20 milhões de dólares de ajuda financeira oferecido pelos países do G-7 para combater os incêndios que estão causando estragos em uma das maiores fontes de biodiversidade do mundo, uma recusa promovida pelo desprezo de Bolsonaro pelo presidente francês Emmanuel Macron.

Mesmo o espírito de Chico Xavier, evocado dos mortos pelos seguidores de Allen Kardec, não pode deter as forças do desmatamento, assim como não pode refrear o entusiasmo do governo pelos ilegais “acordos de amor” que fez com as indústrias brasileiras de mineração e extração de madeira. Portanto, Bolsonaro não parece se importar em lutar contra a “extinção antropogênica”, o colapso ecológico ou as mudanças climáticas. Como nós podemos escapar da probabilidade de extinção, especialmente quando esta é auxiliada e estimulada pelas políticas dos “novos bárbaros” encabeçados por Bolsonaro e Trump, políticas estas destinadas a reduzir as proteções ambientais e permitir a destruição de quatro milhões de hectares de floresta na América do Sul todo ano?

Estou cansado da encenação juvenil de Trump e Bolsonaro. Ele agora pode se gabar de ter sobrevivido à Covid-19 por causa de seu passado como atleta. Assim, ele vai a supermercados e padarias, aperta as mãos e tira selfies sem luvas ou máscara, enquanto Trump ridiculariza Joe Biden por usar máscara. Trump também sobreviveu ao Covid-19 e se gaba de ter ficado doente por apenas alguns dias por causa de seus genes excelentes. Bolsonaro ameaçou livrar o sistema educacional do Brasil de todo o “lixo marxista” e usar um “lança-chamas” político para apagar a memória histórica de Paulo Freire em todo o Brasil. Trump agora está dizendo que a educação desenvolvida para ajudar os alunos a entender o privilégio dos brancos e o racismo é antiamericana. Ele não quer que os brancos se sintam incomodados por sua cumplicidade na escravidão, pelo racismo sistêmico, por um sistema capitalista movido pelo racismo. Crie um espaço seguro para os brancos, pela sua cumplicidade nas relações sociais racializadas! Aqui Trump está alcovitando com sua “base” de apoiadores e permitindo que mais racismo ocorra. Ele está “normalizando” o racismo. Ele está “transformando” a supremacia branca, e movimentos de milícias brancas armadas com rifles automáticos estão crescendo sob sua liderança. Eles amam Trump por tornar o “racismo” permitido novamente. Vamos manter os negros e latinos(as) longe dos subúrbios! Fazer os subúrbios excelentes novamente para as pessoas brancas! Tanto Trump quanto Bolsonaro precisam fazer um seminário com Leonardo Boff. Talvez Boff possa visitá-los e dar a eles um tutorial sobre a vida de São Francisco quando ambos esses líderes estiverem na prisão.

O que você faz quando seu pai-de-santo, seu babalorishá, manifesta Exú quando você sabe que Exú pode ser caprichoso assim como gentil e amoroso? Certa vez, um advogado do Partido dos Trabalhadores do Brasil me contou que membros de um grupo de umbanda, no qual certa vez nós celebramos juntos uma festa da Pomba Gira, salvaram a vida de sua filha por meio de uma intervenção espiritual quando ela estava passando por uma amigdalectomia. São perguntas que procuro responder desde minha participação nas cerimônias de umbanda, há décadas. Será que uma explicação científica realmente importa para aqueles brasileiros historicamente oprimidos que, durante as celebrações em seus terreiros, são possuídos por seus orixás? Nunca testemunhei nada de odioso no cerne dessa prática religiosa. Ela é repleta de manifestações de amor e dedicação em ajudar os outros. Os umbandistas também adoram Jesus. No entanto, eles estão constantemente sob ataque, sendo falsamente acusados ​​de praticar magia negra. Eu preferiria estar na companhia deles do que com aqueles evangélicos que pregam o evangelho da prosperidade, louvor ao Senhor, fogo e enxofre que recebem apoio financeiro do governo dos Estados Unidos para transmitir suas missões pela América Latina. Ambos os governos brasileiro e americano estão preocupados com a teologia da libertação se enraizando novamente na Igreja Católica; então, eles ficam felizes em apoiar protestantes evangélicos fundamentalistas que pregam o patriotismo, o nacionalismo e são pró-capitalistas.

O governo de Bolsonaro, tenho certeza, não quer que a teologia da libertação crie raízes mais profundas no Brasil. Porque uma das posições fundamentais da teologia da libertação é que a exploração e a alienação dos seres humanos de sua própria “espécie” resultam do pecado da ganância e das relações sociais e das forças da produção capitalista. Os governos que prestam total fidelidade ao deus do capitalismo, cujos líderes se beneficiam do capitalismo neoliberal, e que são liderados por fascistas e populistas autoritários, não querem que o Jesus “pessoal” de seus cidadãos encontre Karl Marx. Eles devem ser mantidos separados por razões ideológicas. A teologia da libertação enfatiza a ação sobre a doutrina - o que aqueles de nós no movimento da pedagogia crítica chamamos de “práxis” - e esse termo está intimamente alinhado a práxis revolucionária de Marx e Freire.

Aprendi isso visitando o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra no Brasil e testemunhando iniciativas comunitárias nas Américas do Norte e do Sul que foram influenciadas pelos ensinamentos de Paulo Freire. Uma Teologia Negra da Libertação tem agora uma forte presença nas comunidades afro-americanas e existem fortes defensores da teologia feminista, da teologia pós-colonial e da teologia da reconciliação. Com Paulo Freire, não mais nessa dimensão terrena da existência, devemos confiar naqueles cujo espírito e intelecto foram tocados por Freire - e eu encontro isso no trabalho daqueles professores, ativistas comunitários e padres que estão vivendo a práxis pedagógica de Freire em seus bairros, favelas, comunidades e, também, em universidades e seminários teológicos.

Eles estão nos ajudando com suas experiências vividas e exemplos para entender melhor a vida e a missão de Freire. Assim vive Freire! Os fascistas podem tentar ignorar Freire ou atacar Freire, mas eles nunca irão matar o espírito de Freire. Paulo Freire vive! Muito depois de Bolsonaro e Trump serem esquecidos, o espírito de Freire será lembrado e reverenciado por seu presente para a humanidade - uma pedagogia do amor!

Segundo Paulo, tornamo-nos conscientes e transcendemos os limites em que nós podemos nos construir exteriorizando, historiando e concretizando a nossa visão de libertação, ao desafiarmos a psicopatologia do quotidiano encarnada na divisão social do trabalho do capitalismo. Paulo nos aconselha a não separar a produção do conhecimento da práxis, de ler dialeticamente a palavra e o mundo. Isso me ensinou que a práxis serve como base definitiva para o avanço e a verificação de teorias, bem como para fornecer garantias para reivindicações de conhecimento. Essas garantias não estão conectadas a alguns princípios fixos que existem fora das próprias afirmações de conhecimento, mas são derivadas da identificação e da revelação das potencialidades ideológicas e éticas de uma dada teoria como forma de prática. Essa é a pedagogia do concreto de Paulo, sua dialética do concreto.

Pegamos nossas relações e práticas sociais cotidianas e tentamos examinar suas contrações quando vistas em relação à totalidade das relações sociais nas quais essas relações e práticas particulares se desenvolvem. Assim, temos um pano de fundo contra o qual podemos ler a palavra e o mundo historicamente. Isso nos permite viver o momento histórico como um sujeito da história e, como o Anjo da História de Walter Benjamin4, ver que o “progresso” humano deixou um mundo devastado pela violência e pela destruição. Ligamos nossa própria história às lutas de grupos oprimidos. Esse processo não é simplesmente um efeito da linguagem, mas diz respeito a formas extralinguísticas de saber, formas de significados corpóreos e praxiológicos que estão todos ligados à produção de ideologia.

O conhecimento significativo não é apenas nem principalmente propriedade das propriedades formais da linguagem, mas é encarnado - é afetivo, é vivido em e por meio de nossos corpos, os aspectos materiais de nosso ser. Não é ultracognitivista nem tradicionalmente intelectualista. O conhecimento, em outras palavras, está corporificado na forma como lemos o mundo e a palavra simultaneamente em nossas ações com, contra e ao lado de outros seres humanos. Não podemos transformar a história apenas em nossas cabeças! Todavia, a linguagem é ao mesmo tempo importante. Como Freire observa: “Dentro da palavra encontramos duas dimensões, reflexão e ação, em uma interação tão radical que se uma é sacrificada - mesmo em parte - a outra sofre imediatamente. Não existe palavra verdadeira que não seja ao mesmo tempo uma práxis. Assim, falar uma palavra verdadeira é transformar o mundo”. Palavras verdadeiras requerem ações.

O mundo em que falamos nossas palavras deve ser mudado para que essas palavras sejam verdadeiras. As palavras só ganham vida quando as usamos para efetuar mudanças. Nossas palavras incentivam o diálogo e o envolvimento com os outros? As palavras de Trump trazem medo, ódio e divisão. Suas palavras não são verdadeiras, são superficiais, vazias. O mesmo com o Bolsonaro. Freire nos ensina a nomear nosso mundo e humanizá-lo. As palavras do Bolsonaro são ditas de cima, dos recintos do poder, são dominadoras, não dialógicas. Eles não encorajam a reflexão, mas apenas a obediência. É o mesmo com Trump.

Paulo não queria simplesmente organizar o poder político para transformar o mundo; ele desejava reinventar o poder como poder com o povo, não como poder sobre o povo. O poder político, é claro, é baseado no poder econômico. Freire acreditava que os recursos para uma sobrevivência digna deveriam estar disponíveis socialmente e não individualmente. A história dos ricos é imortalizada porque suas palavras são usadas para defender os interesses e os privilégios da classe dominante. É uma forma fatalista de pensar sobre os pobres que pensa a pobreza como condição constitutiva de vida em uma sociedade dividida em classes. Tal fatalismo também leva à imobilização política, pois os professores se concentram em “técnicas, em explicações psicológicas e comportamentais, em vez de tentar ou agir, de fazer algo, de compreender a situação globalmente, de pensar dialética, dinamicamente”.

Muitas vezes os ricos são culturalmente progressistas, mas economicamente reacionários. Freire me ensinou que a investigação dialética deve estar no cerne do “ato de conhecer”, que é fundamentalmente um ato de transformação que vai muito além do domínio epistemológico. Deve atingir o mundo real dos outros. A educação dialógica é, para Paulo, um caminho que oferece oportunidades para que os alunos reconheçam a dimensão ideológica tácita de sua compreensão cotidiana e se encorajem a se tornar parte do processo político de transformação das estruturas de opressão em caminhos para a emancipação - isto é, para caminhos para a liberdade. Não podemos escapar da história. Essa é uma lição poderosa que aprendi com Paulo. Paulo escreveu: “Você deve descobrir que não pode parar a história. Você tem que saber que seu país (os EUA) é um dos maiores problemas do mundo. Você tem que descobrir que tem todas essas coisas por causa do resto do mundo. Você deve pensar nessas coisas”.

Uma vez escrevi esta descrição de Paulo para um livro editado por Tom Wilson, Peter Park e Anaida Colón-Muñiz, chamadoMemórias de Paulo:

Ele era um andarilho pedagógico picaresco, um errante atemporal ligado simbolicamente ao Coal Yard Alley, à Cidade de Deus do Rio [de Janeiro], aos projetos de Detroit e a todo e qualquer bairro onde homens e mulheres trabalhadoras trabalharam ao longo dos séculos, um flâner dos bulevares repletos de fruticultores e vendedores de peixe e barracas de tabaco e doces, as calçadas difíceis cheias de trabalhadores migrantes e os becos steampunk de sonhos distópicos.

Esse homem do povo se sentia tão à vontade nas favelas quanto nas mangueiras, um maestro que remendaria a palavra e o mundo com os escombros da vida cotidiana, com sua fúria de deslocamento, com a velha insensatez de sua crueldade, de seu belo e congelado vazio e a fúria de sua violência. E no meio de tudo isso ele foi capaz de moldar a esperança revolucionária dos farrapos da graça caída da humanidade. Este era Paulo Freire.

Paulo Freire encontrou um lugar em nossos corações e, como lutador, ele encontrou um lugar em nossa luta protagóstica pela construção de um mundo melhor.

E: Sua resposta deixa explícita a profunda influência de Paulo Freire em sua Pedagogia Crítica, a pedagogia crítica, revolucionária, radical de Peter McLaren. Portanto, gostaria que nos falasse a respeito dela (Figura 5).

Iniciamos esta entrevista buscando conhecer a trajetória pessoal e profissional de Peter McLaren, conversamos sobre Paulo Freire e descobrimos o que Peter aprendeu com Paulo. Agora retornamos a Peter e ao seu trabalho na segunda década do século XXI. Portanto, conte-nos um pouco sobre como você coloca em prática sua pedagogia crítica na universidade e em outros espaços nos EUA. Quais resultados você tem alcançado com seu trabalho?

Figura 5 À esquerda: livros sobre Paulo Freire. À direita: romance gráfico sobre Peter McLarenFonte: Arquivo pessoal de Peter McLaren. 

Peter McLaren: Em 1995, meu trabalho tornou-se fundamentalmente de orientação marxista humanista e, pedagogicamente, sempre fui aluno de Freire. E sou um grande admirador de Nita Freire, cujo trabalho tem sido útil para muitos de nós na pedagogia crítica. O trabalho de Donaldo Macedo com Freire foi muito importante para minha compreensão e apreciação do trabalho de Paulo. Tive muita sorte de ingressar no The Paulo Freire Democratic Project na Chapman University [Figura 6] depois de ser professor da University of California, em Los Angeles. Os professores do Projeto Democrático Paulo Freire são colegas maravilhosos que me ensinaram como interagir com as comunidades ao redor da universidade - Lilia Monzo, Suzanne SooHoo, Anaida Colon-Muniz, Jorge Rodriguez, Catherey Yeh, Kevin Stockbridge, Gregory Warren e Gerri McNenny. Acreditamos que a pedagogia crítica tem o potencial de reumanizar nosso futuro se pudermos desafiar nossa cultura material (mercadoria/commodity) desumanizada por uma pedagogia orientada para a práxis e formos capazes de revolucionar as instituições políticas e econômicas para o interesse público, em vez de para ganho privado. Isso significa construir para um futuro socialista. Toda a educação hoje precisa se concentrar na construção de um futuro socialista. Nosso planeta está queimando! Precisamos recuperar nossa humanidade e o poder da crítica. Alguns estão olhando para o comunismo como uma nova fronteira, repensando muitos de seus principais conceitos, outros estão empregando uma ofensiva socialista estratégica.

Figura 6 À Esquerda: Peter McLaren ao lado da escultura de Paulo Freire na Chapman University, California, USA/À direita: Peter McLaren no Instituto McLaren em Ensenada, MéxicoFonte: Arquivo pessoal de Peter McLaren. 

Agora, quando você me pergunta que progresso eu fiz, é difícil avaliar, porque é muito difícil fazer progresso quando você é um marxista revolucionário e trabalhador da justiça social católico que segue o caminho da teologia da libertação e é um grande crítico da ala conservadora da Igreja Católica - e morar nos Estados Unidos! Meu trabalho parece estar mais engajado fora dos Estados Unidos. Aqui, em meu país de adoção, minhas ideias são vistas pela maioria da população como radicalmente extremista. Isso porque o anticomunismo e o socialismo foram transformados em armas pelos republicanos e por muitos democratas como a maior ameaça à democracia. Na verdade, o socialismo na realidade é a única esperança de que a democracia prevaleça. Não sou a pessoa para se perguntar o quão bem-sucedido tenho sido. Essa é uma tarefa para os outros julgarem.

Trabalhei como parte de uma comunidade maior de educadores críticos e juntos ajudamos a construir o campo da pedagogia crítica - existem cursos de pedagogia crítica na educação, no campo do direito, na psicologia, na sociologia, no curso de escrita em língua inglesa. O trabalho de Paulo envolve todos esses campos. Ele abriu o caminho para todos nós. É claro que, no campo acadêmico, a pedagogia crítica tem sido bem-sucedida, já que o tema “educação para a justiça social” agora é muito comum na formação de professores e nas aulas de pós-graduação em educação. Entretanto, ainda existem poucos marxistas nas escolas de pós-graduação em educação, assim como em outros campos. O marxismo e o socialismo continuam a ser atacados continuamente na grande mídia.

Fui acusado de ser “o professor mais perigoso da UCLA” em 2005-2006 por causa do meu apoio a Cuba e Hugo Chávez na Venezuela, e esse ataque a mim e a outros professores da UCLA se tornou uma história internacional. E agora é pior neste país, enquanto testemunhamos forças militarizadas atacando civis estadunidenses. Donald Trump é psicótico, obviamente. Recentemente, ele criticou o importante e esclarecedor historiador revolucionário Howard Zinn, atacou os teóricos raciais críticos e descreveu os manifestantes Black Lives Matter como “terroristas”. Nesse aspecto, Trump é tão desprezível quanto Bolsonaro, embora Trump tenha o poder de levar o mundo à ruína. Quase metade do país apoia um presidente que é racista, sexista, misógino, nacionalista branco e apoiador da supremacia branca e que transformou o país em um estado pária. Ele é um narcisista maligno, está infectado com misologia, é um mentiroso em série e não tem empatia pelos pobres. Todas as suas decisões são baseadas no que fará com que ele seja reeleito. Ele é basicamente um líder da máfia, um criminoso, um homem infantil que dividiu o país a ponto de quase destruí-lo. Ele demitiu vários inspetores gerais quando estavam começando a investigá-lo. Então, o procurador federal do Distrito Sul de Nova York começou a investigar as atividades de Trump, e este o demitiu. As políticas climáticas e nucleares de Trump podem virtualmente desgraçar o planeta. Ele abandonou o controle de armas, e a indústria de armas está muito satisfeita com Trump.

Trump acaba de mencionar que criará uma comissão sobre patriotismo educacional e insiste que os professores devem ensinar a grandeza dos Estados Unidos. Eu tenho clamado por um “patriotismo crítico” que insiste que os Estados Unidos devem reconhecer seus muitos crimes como país, tanto por meio de sua política externa quanto interna. Nós fazemos isso por meio de uma abordagem materialista histórica para compreender e interpretar eventos históricos, por meio de um engajamento dialético com o que aconteceu como resultado de nossas atividades no relacionamento com outros países. Claro que podemos celebrar as coisas boas deste país - não sou contra isso - mas não deixando de reconhecer os crimes históricos que o país muitas vezes cometeu nas costas de um colonialismo de colonos, de um nacionalismo militar, da noção do excepcionalismo americano e da crença de que Deus ordenou aos Estados Unidos que exerçam seu poder da maneira que quiser, a fim de proteger sua prosperidade material e seu modo de vida.

A pedagogia crítica sempre foi uma exceção no que diz respeito à educação. Tem sido um “modo de vida” de oposição que desafia o anti-reino daqueles que adoram o dinheiro e seguem o Deus do lucro. Faz isso da perspectiva dos mais vulneráveis, dos pobres, dos impotentes, a quem Frantz Fanon se referiu como “os miseráveis ​​da terra”. Tentei trabalhar com muitos outros como educador internacionalista a fim de construir alianças em todo o mundo, sempre que possível. Na minha juventude, pude visitar vários países e ver como o capital domina o trabalho de forma tão poderosa. Acho que os protestos recentes nos Estados Unidos nos dão uma oportunidade poderosa de fazer mudanças. Bernie Sanders, um socialista, era um político muito popular antes de ser traído pelo Comitê Nacional Democrata, e acredito que estamos mais perto de educar os cidadãos americanos sobre o socialismo, embora ainda tenhamos um longo caminho a percorrer. A divisão social do trabalho, ou a esfera da necessidade, deve deixar de ser uma commodity, e livre de exploração. Estamos um pouco mais perto de desenvolver uma contra-consciência de um lado, mas, do outro lado, enfrentamos um crescimento do ódio pelo outro.

Fiquei absolutamente impressionado e enojado com o racismo difuso e tóxico que existe nos Estados Unidos e como esses grandes setores da população foram vítimas da ideologia neonazista e da supremacia branca. O Partido Republicano é o partido político mais perigoso do mundo neste momento. O povo foi vítima de um ditador que eles realmente acreditam que se preocupa com eles. Isso para mim é uma revelação assustadora. Herbert Marcuse perguntou se o estado corporativo pode ser impedido de se tornar um estado fascista. Com Trump, é claro que não, não é possível prevenir a tirania. Na verdade, isso aconteceu em muitos aspectos. Temos superacumulação capitalista e falha na reprodução de nossa força de trabalho - então, sim, o capitalismo está falhando, falhou! Nossa democracia tem apenas um batimento cardíaco fraco, mal respira. Precisamos ressuscitá-la por meio da educação - por meio da pedagogia crítica revolucionária. Por meio de uma pedagogia crítica que se beneficia dos insights de Marx e Freire.

E é claro, Enrique Dussel argumenta que a violência moderna do colonialismo é legitimada pela filosofia europeia centrada no ego. É por isso que devemos entender a realidade não a partir do centro da visão de mundo sócio-econômico-político-etno-militarista europeia, mas a partir da exterioridade das margens, dos oprimidos, da periferia que é exigida da práxis revolucionária. Somente por meio da conscientização, da desnaturalização, da desideologização, da desalienação podemos apreciar as práxis dos oprimidos, dos povos da periferia, quando se revelam a nós por meio de uma experiência epifânica de autodesdobramento, que inclui uma relativização do eu e do outro. Refletir sobre a alteridade periférica dos pobres, dos “miseráveis da terra” relativiza a colonialidade do poder (Quijano) exercido por aqueles que mais se beneficiam da cultura da dominação e revela que tal cultura é contingente e suscetível de mudança por intermédio da práxis fora da lei dos marginalizados, dos oprimidos.

Freire se posiciona como aliado dessa lógica descolonial e da práxis fora da lei que se dá, em termos teológicos, no chão sob a cruz. Aqui, a questão da “proximidade” (Dussel) torna-se importante. Aqui, a questão ética tem prioridade sobre a epistemológica. Quando uma voz clama por ajuda do deserto, a pergunta “onde está você, onde você está?” tem precedência sobre a questão epistemológica, “quem sou eu?”. Você é solidário com os oprimidos? Você tem respeito pelos mundos de vida deles? Ou você considera o “outro” apenas como uma extensão de si mesmo e do seu próprio ego cartesiano? Claramente, a questão ética para Freire é a questão central. O colonialismo colonizador europeu justifica seu genocídio, seu ecocídio, seu epistemicídio com base em seu papel superior no plano providencial de Deus para civilizar o mundo. E agora sua política nuclear pode nos levar no caminho do omnicídio. Embora nunca possa conhecer plenamente a experiência do outro, posso permanecer solidário e me comprometer a lutar para criar as condições de possibilidade de um universo social em que a humanização para a libertação seja possível.

Agora estamos enfrentando nosso momento de Gólgota, quando estamos prestes a crucificar Jesus com pregos de teflon, transferindo sua graça salvadora para as máquinas caça-níqueis de Lady Luck, todas enfileiradas como soldadinhos de chumbo em algum cassino reluzente de Las Vegas. Aceitamos um modelo de negócios neoliberal para administrar nossas escolas. As universidades devem ser locais onde possamos efetivar nosso potencial como agentes protagonistas de mudança pessoal e social. O capitalismo se tornou uma crença ideológica profundamente impregnada em torno da qual organizamos nossas vidas. Trump está exigindo que sacrifiquemos nossas vidas abrindo escolas e empresas sem fornecer os recursos necessários para proteger alunos e professores do coronavírus. Alguns políticos fizeram comentários darwinistas sociais, argumentando que o vírus está limpando a madeira morta da floresta, o que significa que os idosos devem ser descartáveis ​​para que Trump possa recuperar a economia antes das eleições. A crescente concentração de riqueza nas mãos de elites globais está arraigada no sistema e não deveria surpreender qualquer um que venha estudando a cooptação do governo por interesses comerciais e medidas de austeridade. O que deve nos preocupar é o aumento maciço da vigilância panóptica de cidadãos privados sob o disfarce de ameaças terroristas, e o que Trump chama de “zonas de anarquia” em algumas cidades como Portland e Seattle. Não podemos voltar ao neo-keynesianismo, mas devemos avançar para o socialismo. Isso significa negar as barreiras ao socialismo.

O automovimento é possível por meio do ato de negação, ao negar as barreiras ao autodesenvolvimento. No entanto, negação é sempre dependente do objeto de sua crítica. Qualquer coisa que você negar ainda carrega a marca do que foi negado - isto é, ainda carrega a marca do objeto da negação. Vimos, por exemplo, no passado, que as formas opressivas que foram negadas ainda impactam as ideias que temos de libertação. É por isso que Hegel argumentou que precisamos de uma negação autorreferencial - uma negação da negação. Por meio da negação da negação, a negação estabelece uma relação consigo mesma, libertando-se do objeto externo que tenta negar. Por isso, existir sem relação com o outro fora de si mesmo, isso é considerado absoluto - está livre da dependência do outro. Isso nega sua dependência por meio de um ato autorreferencial de negação. Por exemplo, a abolição da propriedade privada e sua substituição pela propriedade coletiva não garante a libertação; isso é apenas uma negação abstrata que deve ser negada a fim de alcançar a liberação. Isso ainda está infectado com seu oposto, que se concentra exclusivamente na propriedade. Isso simplesmente substitui a propriedade privada pela propriedade coletiva e ainda sofre o impacto da ideia de propriedade ou de ter algo.

Claro, Marx pensa que é necessário negar a propriedade privada, mas essa negação, ele insiste, deve ela mesma ser negada. Só então overdadeiramente positivo- uma sociedade totalmente nova - pode emergir. No entanto, como Peter Hudis argumenta, para abolir o capital, a própria negação da propriedade privada deve ser negada, o que seria a conquista de uma positividade - um humanismo positivo - a partir de si mesma. Embora seja necessário negar a propriedade privada, essa negação deve ela mesma ser negada. Se você parar antes dessa segunda negação, então você estará pressupondo que ter é mais importante do que ser.

Dizer “não” ao capital, por exemplo, constitui uma primeira negação. Quando o sujeito se torna autoconsciente em relação a essa negação - isto é, quando o sujeito compreendendo o significado dessa negação reconhece o conteúdo positivo dessa negação – então ele chega à negação da negação. Em outras palavras, quando um sujeito passa a reconhecer que é a fonte do negativo, isso se torna uma segunda negação, um alcance da consciência de classe. Como Anne Fairchild Pomeroy observa, quando um sujeito reconhece a positividade do próprio ato de negação como negatividade, então ele se conhece como uma fonte do movimento do real. Isso ocorre quando seres humanos, como agente da autodeterminação, se ouvem falar e são capazes tanto de denunciar a opressão e quanto os males do mundo e anunciar, nos termos de Freire, uma alternativa libertadora.

Freire era profundamente religioso. Freire criticou fortemente o papel dos teólogos e da Igreja - seu formalismo, suposta neutralidade e permanência em uma complexa teia de ritos burocráticos que fingem servir aos oprimidos, mas na verdade apoia a elite do poder - da perspectiva da filosofia da práxis que ele desenvolveu ao longo de sua vida. Para Freire, a consciência crítica (conscientização) não pode ser separada da consciência cristã. Falar uma palavra verdadeira, segundo Freire, é transformar o mundo. A classe dominante, da perspectiva de Freire, vê a consciência como algo que pode ser transformado por “lições, palestras e sermões eloquentes”. Mas essa forma de consciência deve ser rejeitada porque é essencialmente estática, necrofílica (amante da morte) e não biofílica (amante da vida) e transforma as pessoas em bajuladores da elite governante. Isso está vazio de práxis. Em outras palavras, não há dialética, pois a conscientização é esvaziada de seu conteúdo dialético.

Freire defende uma espécie de suicídio de classe em que a burguesia assume um novo aprendizado de morrer para seus próprios interesses de classe e vivenciar seu próprio momento pascal por meio de uma forma de compreensão mútua e transcendência. Freire argumenta que os teólogos da América Latina devem avançar e transformar os interesses da classe dominante no interesse dos pobres sofredores “se eles quiserem experimentar a ‘morte’ como uma classe oprimida e renascer para a libertação”. Freire emprestou o conceito de suicídio de classe de Amílcar Cabral, o líder revolucionário e político guineense e cabo-verdiano assassinado em 1973.

Para Freire, a compreensão das condições de injustiça social neste mundo estipula que os privilegiados devem cometer uma espécie de suicídio de classe onde eles conscientemente tentam se despojar de seu poder e privilégio e se comprometem voluntariamente a desaprender seu apego a seus próprios interesses. Essencialmente, esse foi um tipo de experiência de Páscoa em que uma pessoa voluntariamente sacrifica seus interesses de classe média ou dominante para renascer por meio de um compromisso pessoal com o sofrimento ao lado dos pobres. Isso significa examinar a pobreza como um pecado social. Isso significa examinar como o sistema capitalista falhou com os pobres e não como os pobres falharam com o sistema capitalista. Se uma pessoa se compromete realmente a ajudar os pobres e os oprimidos, então isso é equivalente a derrubar todas as vítimas da cruz.

E: Suas discussões trazem questões complexas de nosso tempo, que nos conduzem a inúmeras reflexões sobre como chegamos a esse contexto político, econômico e social que vivemos no Brasil e nos USA, marcado pela ascensão ao poder de pessoas desumanas, necrófilas, autoritárias, insensíveis, violentas em diversos países. Uma das consequências desse contexto no Brasil é o desmonte e a desvalorização das universidades públicas, tanto pelo Governo Federal como pelos governos estaduais, que objetivam a privatização dessas universidades. Então, pergunto a você: quais caminhos podem ser trilhados para que possamos resistir enquanto educadores e pesquisadores, combatendo a opressão e atuando no sentido de superar as desigualdades democratizando o espaço universitário?

Freire, entre outros anúncios, indicava o caminho da unidade na diversidade – a união dos diferentes para a luta contra o antagônico, que não é uma tarefa fácil, mas é possível. O que você pensa sobre isso?

Peter McLaren: Esta é uma importante questão. Precisamos saber onde nossos líderes estão hoje, como eles fabricam a realidade e como incentivam o público a ver o mundo como eles o veem. Mesmo sem Trump e Bolsonaro, as universidades públicas estavam sob ataque de administradores universitários e conselhos de governadores nas garras dos modelos de negócios neoliberais. Quase toda vida do planeta foi colonizada pelo capitalismo neoliberal. Bolsonaro e Trump não querem que as universidades públicas tenham sucesso, pois podem manter melhor o controle das universidades e da produção de conhecimento se as universidades forem instituições privadas e com fins lucrativos dirigidas por empresários ricos que buscam a estabilidade da economia de mercado e ligações privadas para o partido político no poder. Contudo, primeiro, precisamos entender as mudanças políticas na arena política mais ampla.

A presidência do tabloide de Trump pode parecer cômica para alguns de seus críticos, que muitas vezes a comparam a um ato de palhaço de circo, mas uma leitura mais atenta deveria dar a qualquer estudante do fascismo uma séria pausa. Precisamos voltar os holofotes para o fascínio de Trump em ser o übermensch5, o homem forte, um demagogo de vontade de poder nietzschiano , o Mestre do Caos. Trump removeu de sua administração da Casa Branca os não-legalistas, ele colocou membros da família em posições de importância, baseando-se em uma mentalidade nós-contra-eles; ele criou uma realidade alternativa em que os Estados Unidos estão sob cerco da Antifa e de anarquistas empenhados na morte e na destruição; ele misturou manifestantes pacíficos com manifestantes violentos, rotulando-os de terroristas; ele usou sua posição política para acumular ganhos financeiros pessoais; ele se retirou dos tratados internacionais e se engajou em uma política isolacionista; ele intimida brutalmente seus oponentes políticos; ele atacou o sistema educacional por doutrinar estudantes com propaganda esquerdista odiosa; ele define a nação em torno de raça, fé e etno-nacionalismo branco, diferentemente de uma nação humanitária definida por direitos e responsabilidades coletivas; ele apoiou estátuas confederadas e bases militares com nomes de líderes confederados.

Chegar a um consenso com a esquerda é considerado fraco, enquanto a política de brutalidade, força e linguagem da violência é defendida. O tema “lei e ordem” (law and order) é frequentemente invocado como meio de reprimir sentimentos de insegurança em massa em tempos de crise econômica ou política. Os líderes fascistas são adeptos da criação de comunidades imaginárias de amigos e de inimigos. Os jornalistas são descritos como “inimigos do povo”, e os intelectuais de esquerda são declarados traidores, sabotando o país. Os fascistas gostam de pintar o país como alvo de humilhação por parte de outros países, reforçando a ideia de o país ser vitimado por outros, tanto por inimigos internos como externos. Os fascistas costumam desacreditar o sistema eleitoral e encontrar maneiras de ganhar o voto de forma fraudulenta.

Nesse clima, a mensagem de Freire de unidade na diversidade aparece para o líder fascista como uma política de apaziguamento à esquerda. Os fascistas não querem apaziguamento ou diversidade, eles querem unidade racial, unidade de sangue branco europeu. Consequentemente, eles frequentemente alertam que a raça branca está sendo dominada em números por raças não-brancas, o que eles argumentam que causará o declínio da civilização. Os líderes fascistas adotam uma abordagem machistas da política, muitas vezes tomando emprestados antigos arquétipos do herói, a figura paterna, o cavaleiro de armadura brilhante, o protetor do povo (ou seja, os brancos). Trump se resume à atmosfera - sua presidência é sobre intimidação, energia belicosa, energia bárbara, energia demagógica, retórica incendiária, energia propagandística, energia caótica. Tudo isso é adequado para a “logorréia” de Trump.

Trump se recusou a denunciar a supremacia branca em termos claros. Trump e Bolsonaro são incendiários sociais - eles destroem e fragmentam a coesão social necessária para qualquer democracia em funcionamento. A democracia é sua inimiga. É por isso que Trump, o racista-chefe, está atacando manifestantes pacíficos e chamando-os de terroristas. Houve mais de 7.750 manifestações Black Lives Matter realizadas em todo o país nos últimos meses. Dessas manifestações, 93% foram pacíficas, de acordo com vários relatórios da Iniciativa Bridging Divides da Universidade de Princeton, publicada em setembro. Trump “de língua de trombeta” 6, “O Demônio da Perversidade”7, espreita da escuridão de um pesadelo de Edgar Allan Poe, deliciando-se com a delícia da destruição. Trump é o Senhor do Caos, deleitando-se com a morte que cometeu, boquiaberto ao pensar em corpos se contorcendo em poças de devastação sangrenta. Ele tem fulminado contra o bom senso, criando uma narrativa apocalíptica de cortar o mundo que ele está protegendo os Estados Unidos dos males da imigração e do socialismo.

Nossas universidades foram colonizadas pela lógica do capitalismo neoliberal. Em grande medida, a experiência da pandemia descarrilou a busca da academia por certezas. Neste momento, a incerteza e seu gêmeo - o medo do desconhecido - dominam a narrativa popular. Toda a nossa forma de estar no mundo mudou dramaticamente. Ficamos mais vulneráveis ​​à persuasão de demagogos de direita para continuar a definir nosso próprio ser pelo prisma do homo economicus, a predominância da sucessão linear, da racionalidade tecnocrática. Nossas ideias de ensino estão mudando à medida que enfrentamos o trabalho apenas por meio de nossos computadores. É verdade que existem algumas vantagens na escolarização mediada digitalmente, uma vez que somos capazes de superar o fosso digital e fornecer banda larga de alta qualidade a todos os alunos ao redor do mundo. Entretanto, digitalizar a pedagogia também é como pendurar a espada de Damocles sobre a cabeça. Será a pedagogia escolhida por muitos alunos após a pandemia, por aqueles que viajam longas distâncias para chegar ao campus? É o futuro do ensino de modelos hiper-flex que são parcialmente online e parcialmente presenciais?

Precisamos ser críticos em como entendemos a relação entre epistemologia e ética. Precisamos nos preparar para interrupções mais caóticas, antecipá-las e estudar maneiras de evitá-las. Haverá mais crises. Haverá mais desastres econômicos. Haverá aumento dos preços dos alimentos e mais fome em partes do mundo, haverá lutas geopolíticas pela água. Haverá invasões militares. Haverá questões existenciais que exigem respostas. As universidades precisam começar a focar seus currículos em tentar antecipar quais serão essas crises, lidar com essas questões usando as melhores informações e análises possíveis, a fim de prevenir mais crises. Felizmente, temos muitos freireanos fortes trabalhando em nossa luta para ajudar a defender a democracia e o socialismo, como Juha Suoranta, Peter Mayo, Antonia Darder, James Kirylo, Henry Giroux, Donaldo Macedo, Petar Jandric, Ana Cruz, Sheila Macrine, Sonia Nieto, membros do Projeto Democrático Paulo Freire - e muitos outros numerosos demais para serem mencionados.

Portanto, precisamos repensar os fundamentos epistemológicos e éticos da educação. Precisamos repensar como utilizamos os recursos do planeta e apoiar a saúde pública, como podemos abordar seriamente as mudanças climáticas. O propósito da educação deve ser remodelado para lidar com essas questões. Podemos imaginar um universo social fora da forma de valor do capital que é aumento de valor ou criação de lucro? Podemos tirar proveito do novo anormal? Como podemos despir as maquinações de um capitalismo que falhou absolutamente para a humanidade neste tempo de pandemia? Podemos nos afastar de nosso foco-laser na tecnocracia pós-digital, interesses comerciais e esquemas de medição e responsabilização e dar mais valor ao raciocínio dialético, ao diálogo freireano e à práxis revolucionária? Podemos mudar da marca competitiva e do marketing de nossas universidades para a busca da verdade e da justiça? Podemos levar a sério o apelo de Freire para fazer da educação nossa vocação ontológica para nos tornarmos mais plenamente humanos? A digitalização pode nos aproximar para nos tornarmos cidadãos globais e, em caso afirmativo, a que custo? O que significa desempenho de acordo com o padrão em relação às aulas online? Pode ter um efeito democratizante? Ou as regras e as plataformas digitais interativas estabelecidas podem favorecer o opressor sobre o oprimido?

Como estudante de graduação, tive uma aula com Michel Foucault. Foram as interações que tive com ele quando o levei para visitar várias livrarias de Toronto que aproveitei mais do que as aulas propriamente ditas. Para mim, foi a brisa fria de caminhar pelas ruas, observar o lenço de Foucault ondulando ao vento, os comentários que ele fez sobre a cidade e seu senso de humor que teria se perdido se a aula fosse uma experiência online. Foi o cheiro da fumaça do tabaco de conhaque de pêssego que pairava no escritório durante minhas discussões com outro professor que mais me marcou. Na verdade, me tornei colecionador de cachimbos depois que a aula acabou. Estar na presença física de Paulo foi uma experiência a que a comunicação online não faria justiça. Ensinar em tempo e espaço real é importante. Reunião no ciberespaço permite apenas uma pequena gama de pistas de comunicação. Todavia, para aqueles que não têm a oportunidade de ter um mentor presencial, as aulas online costumam ser a única opção. Os debates continuarão sobre se o conhecimento corporificado é, em última análise, mais preferível do que espaços e culturas de raciocínio virtualmente mediados por longos períodos de tempo.

O que precisa ser feito

Vejamos o currículo. Em primeiro lugar, a educação deve ser focada na compreensão da economia política do capitalismo - desde os tempos pós-feudais até as instâncias atuais da financeirização. A sociedade, a cultura e as relações sociais de produção devem ser vistas como interligadas. O racismo sistêmico deve ser entendido como indissociavelmente ligado ao sistema legal e ao sistema de justiça criminal. O colonialismo dos colonos perpetuados pelo capital, o sexismo, o racismo, a homofobia e a misoginia, a misantropia e a misologia devem ser examinados em sua inter-relação, incluindo os mitos gerados historicamente que serviram para legitimá-los. As aulas devem lidar com a questão das mudanças climáticas e escassez e extração de recursos naturais viabilizada pela tecnologia.

Eu poderia continuar, mas o que quero dizer é que a questão principal que impulsiona o currículo para a libertação deve se concentrar nos vários sistemas de mediação que nos produziram como seres humanos do século 21 complacentes e autocensuradores que parecem indefesos na face de apelos nacionalistas à guerra, ao chauvinismo étnico, às narrativas que defendem o imperialismo e a colonialidade do poder. Deve haver um estudo dos movimentos sociais revolucionários que desafiaram esses sistemas de mediação e porque alguns grupos tiveram sucesso e porque muitos deles falharam.

Eu apenas arranhei a superfície aqui. Claramente, precisamos de um sistema educacional que possa mover grupos de uma classe-em-si para uma classe-para-si – isto é, para uma classe que busque ativamente seus próprios interesses. Certamente, precisamos de um movimento de massa vindo de baixo para combater a digitalização muito mais avançada de toda a economia e sociedade global de hoje, que utilizou a aplicação das tecnologias da quarta revolução industrial lideradas pela inteligência artificial (IA) e a análise de “big data”, aprendizado de máquina, automação e robótica, nano e biotecnologia, computação quântica e em nuvem, impressão 3D, realidade virtual, novas formas de armazenamento de energia etc. Isso não será uma tarefa fácil, mas é necessária, já que lutaremos contra a formação de um estado policial global.

O sociólogo William Robinson alertou que, no tempo da pandemia, somos capazes de ver a aceleração da reestruturação digital “o que pode ser esperado que resulte em uma vasta expansão dos serviços digitais reduced-labor oulaborless, incluindo todos os tipos de novos acordos de teletrabalho, entrega drone, comércio sem dinheiro, fintech (finanças digitalizadas), rastreamento e outras formas de vigilância, serviços médicos e jurídicos automatizados e ensino remoto envolvendo instrução pré-gravada”. Consequentemente, as gigantescas empresas de tecnologia e seus agentes políticos são capazes de converter grandes setores da economia nesses novos domínios digitais.

Robinson também observa que a “economia global pós-pandemia envolverá agora uma aplicação mais rápida e expansiva da digitalização em todos os aspectos da sociedade global, incluindo guerra e repressão”. Temos uma tarefa enorme pela frente. Se pudermos fazer a ciência pós-digital funcionar no interesse dos oprimidos, em vez da elite corporativa, então seríamos tolos se não tentássemos fortalecer nosso sistema imunológico comunitário. Temos o legado de Paulo que nos dará força, tanto moral quanto intelectual. A força necessária para lutar contra a repressão nesta época de restauração fascista.

Notes

1Autores: Peter McLaren e Miles Wilson. New York: Myers Education Press.

2Autores: Peter McLaren e Miles Wilson. New York: Myers Education Press.

3Central Intelligence Agency.

4Nessa passagem, o entrevistado se refere a nona tese do seu ensaio “Sobre o Conceito de História”, do filósofo e crítico literário Walter Benjamin, que adquiriu, em 1921, o desenho Angelus Novus (que é o título latino de um desenho a nanquim, giz pastel e aquarela sobre papel) feito por Paul Klee (em 1920), na qual ele escreveu: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso” (BENJAMIN, 1987, p. 226).

5Übermensch, descrito no livro Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra), do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, em que explica os passos por meio dos quais o homem pode se tornar um “além-homem”(homos superior, como no inglês Beyond-Human ou Superman a tradução também pode ser compreendida como “Além-do-humano”, “Sobre-Humano ou “Super-homem”).

6Expressão idiomática informal do inglês que significa: 1. ter uma voz ou discurso poderoso e de longo alcance; 2. ter uma língua vociferante como uma trombeta.

7“O Demônio da Perversidade” (The Imp of the Perverse) é um conto de Edgar Allan Poe. Ele discute impulsos autodestrutivos do narrador, incorporados como o Demônio da Perversidade. O narrador descreve esse espírito como o agente que tenta a pessoa a fazer as coisas “simplesmente porque sentimos que não devemos”.

Referências

BENJAMIN, W. Sobre o Conceito de História. In: BENJAMIN, W.Obras Escolhidas. v. I. Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 222-232. [ Links ]

FREIRE, P. Parentesco intelectual. In: FREIRE, A. M. A. (org.). Pedagogia da tolerância. São Paulo: Editora UNESP, 2005. p. 245-247. [ Links ]

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