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Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.20775.086 

Artigos

Wishful thinking: processos de significação no discurso da crise de aprendizagem de organizações multilaterais

Wishful thinking: processes of meaning in the discourse of the learning crisis of multilateral organizations

Wishful thinking: procesos de significación en el discurso de la crisis de aprendizaje de organizaciones multilaterales

Olivia Rochadel* 
http://orcid.org/0000-0001-6501-2852

Regina Célia Linhares Hostins** 
http://orcid.org/0000-0001-8676-2804

*Doutora em Educação. Mestra em Educação. Pedagoga. Professora substituta no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Professora na Univali

**Doutora em Ciências da Educação. Docente e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Líder do Grupo de Pesquisa Observatório de Políticas Educacionais.


Resumo

Neste artigo, analisa-se o discurso da crise de aprendizagem nos documentos publicados por organismos multilaterais: Banco Mundial, Comissão de Educação da ONU, Unesco e Unicef, entre 2013 e 2021. Com fundamento na Teoria de Redes Políticas de Stephen Ball e na Análise Crítica do Discurso de Norman Fairclough, identificou-se que a crise anunciada transita, em perspectiva interescalar, entre a ideia de um fenômeno global, justificado por problemas locais, centrado na agência do professor e do aluno. Trata-se um discurso retórico, impregnado de wishful thinking (falácias de esperança), destacando-se: a escola e os professores são os culpados pela crise; as organizações têm soluções para reduzi-la; o enfrentamento requer parcerias envolvendo governos, comunidade escolar, terceiro setor e setor privado, sob liderança das organizações. Os discursos estruturam-se em um Ciclo Estratégico Persuasivo - comoção, sedução, promessa e venda - para convencer leitores e organizar os atores da política educacional em torno da governança em rede.

Palavras-chave: Política Educacional; Crise de aprendizagem; Análise Crítica do Discurso.

Abstract

In this paper, it is analyzed the discourse of the learning crisis in the documents published by multilateral bodies: World Bank, UN, UNESCO and UNICEF, between 2013 and 2021. Based on Stephen Ball’s Theory of Political Networks and Norman Fairclough’s Critical Discourse Analysis, it was identified that the announced crisis moves in an interstate perspective, from the idea of a global phenomenon, justified by local problems, centered on the teacher’s agency and the student. It is a rhetorical discourse, impregnated with wishful thinking (fallacies of hope), highlighting: the school and the teachers are blamed for the crisis; organizations have solutions to reduce it; the confrontation requires partnerships involving governments, school community, third sector and private sector, under the leadership of organizations. The discourses are structured in a Persuasive Strategic Cycle - commotion, seduction, promise and sale - to convince readers and organize the actors of education policy around the network governance.

Keywords: Education Policy; Learning crisis; Critical Discourse Analysis.

Resumen

En este artículo, se analiza el discurso de la crisis del aprendizaje en los documentos publicados por organismos multilaterales: Banco Mundial, Comisión de Educación de la ONU, Unesco y Unicef, entre 2013 y 2021. Con fundamento en la Teoría de Redes Políticas de Stephen Ball y en el Análisis Crítico del Discurso de Norman Fairclough, se identificó que la crisis anunciada transita en una perspectiva interescalar, a partir de la idea de un fenómeno global, justificado por problemas locales, centrado en la agencia del profesor y del alumno. Se trata de un discurso retórico, impregnado de wishful thinking (falacias de esperanza), destacándose: la escuela y los docentes son los culpables de la crisis; las organizaciones tienen soluciones para reducirla; el enfrentamiento requiere alianzas involucrando a los gobiernos, comunidad escolar, tercer sector y sector privado, bajo el liderazgo de las organizaciones. Los discursos se estructuran en un Ciclo Estratégico Persuasivo - conmoción, seducción, promesa y venta - para convencer a los lectores y organizar a los actores de la política educativa en torno a la gobernanza en red.

Palabras clave: Política Educativa; Crisis de aprendizaje; Análisis Crítico del Discurso.

Introdução

[...] devemos falar a favor da esperança, contanto que isso não signifique a omissão da natureza do perigo. Raymond Williams (2015, p. 475).

Na sociedade contemporânea, as organizações multilaterais Organização das Nações Unidas (ONU), Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância (Unicef) interagem1 no contexto das políticas educacionais por meio de ideias que se interpenetram e se difundem pela mobilização de atores, políticas, projetos, eventos e campanhas. Essa atuação política, não mais restrita ao paradigma “nação-estado” ou “política-como-governo”, configura-se como uma dinâmica cosmopolita que abrange princípios interligados a toda a escala espacial - local, nacional, regional e global (BALL, 2014). Ao acompanhar publicações dessas organizações, debruçamo-nos em uma pesquisa2 que teve como um dos resultados a temática presente neste artigo, instigada pelo seguinte questionamento: Quais significados potenciais o discurso da crise de aprendizagem possibilita a leitores críticos?

O discurso da crise de aprendizagem foi anunciado pela Unesco, em 2013, com o documento publicado em seu site oficial intitulado The global learning crisis: why every child deserves a quality education3 (UNESCO, 2013). A publicação faz comentários sobre o cenário da educação mundial e expõe que a Meta de Educação para Todos (lançada em 1990 para ser cumprida até 2015 pela Unesco e países parceiros) não seria cumprida dentro do prazo estipulado. Em vista disso, o documento lançou estratégias voltadas à administração de sistemas de ensino para superação da crise de aprendizagem. Embora a organização tenha atuado na criação, na divulgação e assumido responsabilidades na execução da Meta de Educação para Todos - por meio de parcerias e de prestação de serviços, por exemplo -, o documento apresenta que as lacunas dos sistemas são de responsabilidades dos governos dos países. Nessa mesma publicação, os professores são nomeados de “a chave para melhorar a aprendizagem” (UNESCO, 2013, p. 7, tradução nossa). Já as ações para enfrentar a crise são tratadas como responsabilidade de países, de organizações e daqueles que as organizações chamam de especialistas, colaboradores ou parceiros para enfrentamento da crise de aprendizagem.

A partir da publicação da Unesco, as organizações parceiras - Grupo Banco Mundial4, Comissão Internacional de Financiamento da Oportunidade Global de Educação (Comissão de Educação da ONU) e Unicef5 - passaram a produzir documentos que reforçam e acrescentam pressupostos à ideia de que o planeta está passando por uma crise de aprendizagem e são necessárias ações políticas internacionais para o enfrentamento dessa crise. Neste artigo, chamamos de crise de aprendizagem o conceito tratado por essas organizações. Realizamos pesquisa documental e Análise Crítica do Discurso (ACD) - na perspectiva socioteórica proposta por Norman Fairclough (2001, 2003, 2012) - de comunicados à imprensa, relatórios e textos de vídeos publicados por essas organizações entre os anos de 2013 e 2021. No Quadro 1, apresentamos os títulos e os propósitos de cada publicação em discussão neste artigo.

Quadro 1 Publicações sobre o discurso da crise de aprendizagem (2013 a 2021) 

Título da publicação Propósito
1 Documento: The global learning crisis: why every child deserves a quality education (UNESCO, 2013). Informar sobre a crise de aprendizagem mundial. Lançar e justificar estratégias para enfrentamento dessa crise.
2 Documento: 11° Relatório de monitoramento global da educação para todos de 2013/4: ensinar e aprender: alcançar a qualidade para todos (UNESCO, 2014a; UNESCO, 2014b). Apresentar dados sobre o desempenho da educação mundial. Divulgar estratégias ao trabalho dos professores para a “superação” da crise de aprendizagem.
3 Vídeo6: The global learning crisis: and what to do about it (KARBOUL, 2017). Apresentar a visão da Comissão de Educação da ONU sobre a crise de aprendizagem e quais estratégias a Organização prevê.
4 Comunicado à imprensa: O Banco Mundial adverte a respeito da “crise de aprendizagem” na educação global (BANCO MUNDIAL, 2017a). Anunciar o Relatório publicado pelo Banco Mundial: World development report: learning to realize education’s promise.
5 Vídeo: Learning to realize education’s promise (BANCO MUNDIAL, 2017b). Informar que há uma crise de aprendizagem mundial.
6 Documento: World development report 2018: learning to realize education’s promise (BANCO MUNDIAL, 2018b).7 Apresentar três dimensões da crise de aprendizagem e três intervenções para enfrentá-la (BANCO MUNDIAL, 2018b).
7 Reportagem8: There is a global learning crisis affecting the lives of millions in developing countries (MONTOYA, 2018). Divulgar a crise de aprendizagem por meio de dados do Instituto de Estatística da Unesco.
8 Notícia: Global education policy dashboard (BANCO MUNDIAL, 2019a). Lançar o Painel de políticas de educação global, do Banco Mundial e seus colaboradores, como uma estratégia para enfrentamento da crise de aprendizagem.
9 Notícia: A crise de aprendizagem: ir à escola não é o mesmo que aprender (BANCO MUNDIAL, 2019b). Lançar premissas políticas para superação da crise de aprendizagem acerca da avaliação, trabalho dos professores, uso das tecnologias, gerenciamento dos sistemas e prosperidade na economia mundial.
10 Postagem no Blog9: A crise de aprendizagem requer uma nova abordagem (MALPASS, 2019). Lançar dados mundiais que justificam a crise de aprendizagem e contextualizar estratégias em que o Banco Mundial é a “principal” organização que atua no enfrentamento da crise de aprendizagem.
11 Documento: Every Child Learns: UNICEF Education Strategy 2019-2030 (UNICEF, 2019a). Apresentar as estratégias do Unicef para o alcance do objetivo de aprendizagem para todos, sendo a crise de aprendizagem a prioridade.
12 Documento: Addressing the learning crisis: an urgent need to better finance education for the poorest children (UNICEF, 2020). Justificar medidas necessárias para o enfrentamento da crise de aprendizagem, como é o caso da alocação de recursos para a educação, por meio de dados do Banco Mundial e da Unesco.

Fonte: Elaborado pelas autoras (2022).

As publicações compiladas totalizaram 858 páginas que revezam análise de dados, conceituações e sugestões de medidas políticas para enfrentamento do que as organizações nomeiam de “crise de aprendizagem”. Com o suporte da concepção tridimensional do discurso da ACD, analisamos significados potenciais dos textos em seu modo de construção, de distribuição e de interpretação. Realizamos, assim, a leitura e a análise crítica de: conceituações; expressões; formas de apresentação (layout de textos e figuras, fotografias, estilo de paragrafação); e as relações das organizações umas com as outras expostas nos textos, a fim de identificarmos o que Fairclough (2012) chama de significados potenciais do discurso.

Nos termos de Fairclough (2001, 2003, 2012), o discurso é uma forma de ação das pessoas entre si e uma forma de ação e de representação sobre o mundo, pois trata-se de um complexo que compreende: 1) o conteúdo; 2) o tipo e a forma de articulação de linguagem no texto; e 3) os significados que produzem - a partir das relações sociais, das orientações culturais e das políticas estabelecidas pelos interlocutores. Nesse sentido, consideramos que o discurso sobre a crise de aprendizagem produzido pelo Banco Mundial, pela ONU, pela Unesco e pelo Unicef é uma conceituação que retrata a visão das organizações sobre a educação mundial.

Posto que “[...] palavras e significados estão envolvidos em processos de contestação e mudança social e cultural” e, sobretudo, que a escolha de palavras gira em torno da “[...] natureza da relação entre significados no interior do significado potencial da palavra” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 231), a análise de significados estudados, neste artigo, é sobre verbetes no dicionário e os significados potenciais que as palavras utilizadas pelas organizações podem provocar e produzir nos leitores. Ao posicionarmo-nos como leitoras críticas desse discurso, identificamos processos de significação que conduzem o leitor a falácias de esperança, que chamamos de wishful thinking10.

Organizamos o artigo em dois grandes eixos de discussão, no intuito de evidenciarmos categorias que se destacaram nas análises dos documentos em debate: 1) Efeitos retóricos do discurso da crise de aprendizagem, no qual discorremos sobre alguns elementos do discurso analisado (máximas, metáforas, posicionalidade estratégica e prescrições); 2) Ciclo da estratégia persuasiva no discurso da aprendizagem, no qual analisamos elementos de comoção, de sedução, de promessa e de venda identificados nas publicações.

Efeitos retóricos do discurso da crise de aprendizagem

A partir da instância de análise proposta na ACD por Fairclough (2001), sobre a relação dos textos entre si, a intertextualidade, identificamos, nas publicações do Banco Mundial, da ONU, da Unesco e do Unicef, expressões e significados iguais ou similares para falar do contexto educacional mundial (exemplificados nas figuras ao longo deste artigo). Observamos, de partida, que o anúncio e o fato de haver uma crise de aprendizagem mundial é consensual entre as quatro organizações. Os textos das publicações que tratam da ideia de que a aprendizagem mundial está em crise são fundamentados por dados emitidos pelo Instituto de Estatística da Unesco (UIS) e pelo Banco de Dados Mundial de Desigualdades na Educação do Grupo Banco Mundial (WIDE).

Outro aspecto de intertextualidade entre as publicações sobre a crise de aprendizagem são consensos que norteiam e roteirizam as publicações - justificados, na grande maioria, por dados da WIDE e da UIS. Identificamos por principais consensos aqueles que problematizam e apontam estratégias para a crise de aprendizagem: 1) a educação de qualidade é um direito e uma responsabilidade de todos; 2) a crise de aprendizagem consiste em uma crise dos sistemas de ensino diretamente ligada aos processos de ensino e de aprendizagem da Educação Básica (ao trabalho do professor) e de ferramentas de gestão (ao trabalho dos gestores); 3) as reformas pautadas nas estratégias defendidas nos documentos são urgentemente necessárias, ou, então, como melhor define o Unicef (2019a, p. 5, tradução nossa), há um “[...] crescente consenso sobre a urgência de ações coordenadas”. Identificamos, pela intertextualidade manifesta nos textos, princípios consensualmente aceitos no contexto educacional mundial (por exemplo: de que a educação é um direito de todos) junto a informações sobre o que, na visão das organizações, gera a crise de aprendizagem e sobre o que precisa ser adotado para resolver essa crise.

Entre os aspectos marcantes da argumentação retórica evidenciada nos documentos destacamos: as máximas; as metáforas; a posicionalidade estratégica; e as prescrições e as falácias de esperança.

Máximas

As publicações apresentam um diagnóstico, prognóstico e prescrições para enfrentamento da crise de aprendizagem. Para isso, as organizações descrevem o cenário da educação mundial por meio de máximas, pois os elementos argumentativos não possibilitam refutação e se sustentam na afirmação de que crianças estão na escola, mas não estão aprendendo a ler, escrever ou fazer cálculos matemáticos (UNESCO, 2013; MONTOYA, 2018; BANCO MUNDIAL, 2018b; UNICEF, 2019b; MALPASS, 2019). Nesse sentido, as publicações informam que o foco da crise de aprendizagem está na escola.

Para a prospecção de crise de aprendizagem, observamos eloquência no discurso pela forma como essa crise é adjetivada nas publicações, conforme exposto nos excertos destacados na Figura 1 que segue.

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 1 Os adjetivos da crise de aprendizagem 

Notamos, a partir dos pressupostos de Fairclough (2001) para análise textual, que os adjetivos, como os destacados na Figura 1, têm o papel de gerar significado e marcar coesão. Ao serem utilizados pelas organizações, busca-se reforçar o significado da palavra “crise” e conduzir o(a) leitor(a) à prospecção de um cenário catastrófico na educação. Além disso, as palavras e as expressões adjetivas da Figura 1 possuem relações funcionais de extensão por fazerem apontamentos sobre características de uma crise, tais como: ela afeta todos os países e suas economias (é global); não gera ruídos e, ao passar despercebida, não recebe tratamento estratégico (é silenciosa e negligenciada).

Como alertam Ball e Mainardes (2011, p. 13, tradução nossa) as políticas “[...] são poderosos instrumentos de retórica”. Elas escolhem formas de falar sobre necessidades. Elas geram, articulam e validam novas narrativas sobre os problemas da educação. Elas empregam formas criativas e emocionais para captar o público. São as novas formas de política em ação.

Metáforas

Outro recurso utilizado nas publicações analisadas, que se entende como efeito de discurso retórico, são metáforas utilizadas pelas organizações para “renomear” e anunciar reformas para os sistemas de ensino - citamos algumas na Figura 2.

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 2 Metáforas presentes no discurso da crise de aprendizagem 

Entendemos o uso de metáforas (tal como as exemplificadas na Figura 2) por estratégia discursiva das organizações no estudo, pois aquelas (e estas) produzem significados ao leitor sobre a posição que as organizações multilaterais ocupam no discurso da crise, frente ao cenário da educação mundial - elas recomendam, informam sobre estratégias e medidas e mostram o caminho a ser trilhado para solucionar os problemas da crise de aprendizagem. Assim, as metáforas são estratégias para reforçar o protagonismo das organizações na tarefa de solucionar a crise de aprendizagem, no discurso salvador a que esses textos se propõem, ao passo em que todas essas orientações e estratégias têm de ponto de partida a atuação das organizações (e seus “parceiros”) para os e nos sistemas de ensino. Além disso, correspondem à frase: veja quais são as reformas que nós (as organizações) entendemos como necessárias.

Posicionalidade estratégica

Entendemos que o uso das metáforas mostra diferentes posições de atores políticos11 no discurso da crise de aprendizagem. E, mais especificamente, ao lançarem estratégias para enfrentamento dos problemas de aprendizagem do globo, identificamos que o papel das organizações - Banco Mundial, ONU, Unesco e Unicef - nas prescrições é de uma posicionalidade estratégica nas redes políticas educacionais. Na Figura 3, listamos os principais serviços prestados pelas organizações para enfrentar a crise que se anuncia nas publicações analisadas e revelam notado protagonismo.

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 3 Estratégias de atuação das organizações multilaterais para enfrentamento da crise de aprendizagem 

Identificamos no discurso da crise de aprendizagem que, na atuação interescalar da rede política, há um nó prevalente orientado aos cuidados das organizações multilaterais, pois são elas que coalizam, mobilizam, fornecem dispositivos e financiam os atores, o dinheiro e as políticas.

Percebemos que os dados da Figura 3 revelam um panorama sobre o que as organizações fazem ou pretendem fazer para superar a crise de aprendizagem e, também, o que Robertson (2013) chama de “interconexão interespacial”, pois constitui-se de estratégias de atuação que possibilitam encontros entre atores que ocupam posições diferentes no contexto da política educacional. Nesse sentido, a atuação da rede política da crise de aprendizagem não é limitada a um tipo de organização espacial linear, em vez disso, acontece de forma interescalar consolidando diferentes espaços de educação (como, por exemplo, o local, o nacional e o global) de forma interligada e interpenetrada.

Sobre a noção de escala no contexto educacional, Robertson (2013) informa que ela se constitui em um espaço relacional (ligado a quem e a como são realizadas as relativizações) que, não necessariamente, segue uma ordem - em alguns casos, o local pode estar recebendo mais influência do global do que do nacional.

Prescrições e falácias de esperança (Wishful thinking)

Observamos que a linguagem utilizada pelas organizações na escrita dos enunciados da crise de aprendizagem é marcadamente a gramática prescritiva. Pelo uso dessa estratégia de linguagem, entendemos que a finalidade principal dos textos é lançar prescrições de reformas aos sistemas de ensino. Na Figura 4, destacamos excertos da análise em que se evidencia o uso da gramática prescritiva por parte das organizações produtoras do discurso analisado:

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 4 Prescrições das organizações para enfrentamento da crise de aprendizagem 

Observamos que a gramática impositiva (pelo uso de palavras como devem e precisam, por exemplo) conduz ao entendimento das estratégias de reforma para a educação como prescrições para enfrentamento da crise, a maioria delas direcionadas a governos de países e seus planos nacionais, currículos e comunidades escolares, em especial, ao trabalho do professor. Esse dado remete-nos ao que Ball (2008, p. 749, tradução nossa) chama de “[...] mudanças no processo de política e novos métodos de governar a sociedade” que acarretam a “[...] mudança do governo para a governança” (BALL, 2008, p. 762 tradução nossa). Nesse sentido, as prescrições, dos textos da análise, possuem direcionamentos sobre a posicionalidade dos atores, em um “[...] processo complexo e híbrido de atuação” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 18) que podem enfrentar a crise de aprendizagem e estratégias de como as redes devem operar para ou dentro dos aparelhos de Estado, no contexto de reformas políticas, impulsionado pelo discurso da crise de aprendizagem.

Agrupamos as prescrições comuns entre as publicações em três eixos: 1) cases de sucesso para enfrentamento da crise de aprendizagem; 2) direcionamentos para o trabalho do professor para resolver a crise; e 3) soluções prontas apoiadas pelas organizações para enfrentamento da crise. Apresentamos alguns excertos de análise desses eixos nas Figuras 5, 6 e 7 deste artigo.

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 5 Cases de sucesso citados no discurso da crise de aprendizagem 

Os cases de sucesso, na grande maioria, são programas, iniciativas, produtos ou serviços adotados e/ou comprados pelos governos dos países em seus sistemas de ensino que possibilitam bons resultados em sistemas de avaliação da aprendizagem e resumem-se em: comparação entre dados de países; comparação de resultados de regiões pobres e ricas; análise do total de gastos com a educação; índices de desempenho; índices de entrada de alfabetizados no mercado de trabalho; métricas sobre o acesso de estudantes ao Ensino Fundamental, ao Ensino Médio e ao Ensino Superior; comentários sobre projetos realizados (ou em andamento) que se apresentam como eficazes para a geração de melhores resultados da aprendizagem vendidos pelos parceiros no enfrentamento da crise de aprendizagem (como é o caso do Teach for all e o One laptop for child); e de análise de resultados de avaliações locais, nacionais e regionais.

Entendemos que a expressão dos cases, centrada na comparação, corresponde ao que Ball (2010) chama de “conhecimentos de políticas”, que representam uma visão de mundo imbricada pela “lógica de competitividade global” (BALL, 2010, p. 131, tradução nossa), sobretudo a comparação entre resultados de métricas sobre a aprendizagem de países “ricos e pobres” e a compreensão de que o sucesso na vida está ligado a valores de salários. Revela, ainda, que o prognóstico da crise de aprendizagem é pautado em provisões macroeconômicas, em uma acepção de que a ascensão social está ligada exclusivamente à atuação no mercado de trabalho.

Analisamos que a exposição dos cases de sucesso, somada à gramática prescritiva utilizada nas publicações, gera o significado potencial de que as organizações são figuras de autoridade e centralizadoras das políticas para o contexto educacional mundial. Nesse sentido, os textos produzem o significado de que junto das organizações é que se pode ter uma visão de conjunto sobre o cenário educacional mundial e emitem a falsa ideia de que a educação mundial pode ser vigiada.

Na análise das publicações, evidenciamos outro significado potencial do discurso da crise de aprendizagem: as medidas de enfrentamento dessa crise estão sendo pensadas a partir dos cases dos países. Todavia, os dados da análise (neste artigo, os excertos apresentados nas Figuras 3, 4, 5, 6 e 7) revelam que as prescrições têm mais a ver com o direcionamento de atores a uma posicionalidade estratégica de atuação na rede política da crise de aprendizagem. Essas evidências apontam que os pressupostos de enfrentamento da crise de aprendizagem nas publicações são muito mais emocionais - como pode ser evidenciado na fala de que é preciso coalizar todos interessados em resolver a crise (BANCO MUNDIAL, 2019b; UNICEF, 2020) - em vez de científicos - com passo a passo de construção de conhecimento pelas vias da observação, da identificação, da pesquisa, da explicação e do planejamento de ação pautado nas necessidades de cada contexto educacional. Nesse sentido, reforçarmos que, comparar dados de países, não é o mesmo que realizar pesquisa científica. Na Figura 6, listamos alguns excertos de soluções propostas pelas organizações para solucionar a crise de aprendizagem.

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 6 Soluções prontas para o enfrentamento da crise de aprendizagem 

Consideramos que

[...] o discurso como prática política é não apenas um local de luta de poder, mas também um marco delimitador na luta de poder: a prática discursiva recorre a convenções que naturalizam relações de poder e ideologias particulares e as próprias convenções, e os modos em que se articulam são um foco de luta. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 94, grifos nossos).

Essas novas formas de política rompem-se com o “paradigma política-como-governo” (BALL, 2014, p.15) para assumir um paradigma multifacetado, dialético e dinâmico de atores em diferentes escalas (governos, investidores e financiadores bi, multilaterais e internacionais, comunidades, atores interessados na educação) que estabelecem coalizões, engajamentos e responsabilidades para o enfrentamento da crise de aprendizagem. Se, nas políticas lançadas entre as décadas de 1940 e 1990, para a crise de educação, o foco do debate eram os insumos, a partir de 2013, nos termos da crise da aprendizagem, o foco da política passou a ser os resultados (ROCHADEL, 2021). Evidenciamos que, as mudanças entre esses discursos (o da crise de educação e o da crise de aprendizagem) implicam novas relações de poder, novos atores, novas estratégias e novos espaços da política com orientações e estratégias (prescrições e estratégias de atuação) voltados aos contextos da interpretação e da prática. Entendemos esse reposicionamento como uma estratégia para que “todos sejam envolvidos no discurso” e a liderança seja “distribuída ou compartilhada” (BALL, 2010, p. 126, tradução nossa). Segundo o autor, esse reposicionamento privilegia a “[...] geração de conhecimento de empresas e consultores para quem a política é uma oportunidade de negócios e de quem os governos estão adquirindo cada vez mais ‘conhecimento sobre políticas’” (BALL, 2010, p. 127, tradução nossa). Assim, nos excertos em que se fazem as prescrições para reformas dos sistemas de ensino, os discursos conferem à comunidade, às organizações multilaterais, ao setor privado, entre outros “parceiros”, uma responsabilidade conjunta com governos, gestores e professores pelo alcance da educação de qualidade.

Outro eixo das prescrições do discurso da crise de aprendizagem refere-se ao trabalho do professor, centrado em estratégias políticas que as organizações entendem como elementares para reformas no trabalho docente (exemplificamos alguns excertos de análise na Figura 7).

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 7 Prescrições ao trabalho do professor para solucionar a crise de aprendizagem 

As recomendações de reformas ao trabalho dos professores estão centradas em estratégias políticas que as organizações entendem como recurso para “avaliar”, “classificar”, “ensinar”, “motivar”, “monitorar”, “penalizar” e “treinar” os professores. Concentram-se, de forma geral, em dois aspectos: 1) gestão: de carreiras competitivas, planos de carreira atrativos, de processos seletivos, de salários, de tecnologias para auxiliar o trabalho do professor; 2) regulação por: inspeção, formação a distância, penalização, treinamento voltado às tarefas do professor em sala de aula e oferta de recompensas ao bom desempenho.

À escolha das organizações pelas recomendações de gestão e de regulação do trabalho de professores, como pressuposto para resolver a crise de aprendizagem, observamos o significado potencial de uma valorização de tecnologias de reformas ligadas ao desenvolvimento de performances - sobretudo, por mencionarem o uso de tecnologias para auxiliar na formação e no trabalho dos professores, para complementar os processos de ensino-aprendizagem, auxiliar no monitoramento da execução de metas de aprendizagem, criar centrais para recepção de feedbacks.

De acordo com as evidências das Figuras 6 e 7, o engajamento de atores pode acontecer pelos meios: 1) econômico: com o fornecimento de empréstimos e de investimentos a sistemas de ensino; 2) gerencial: pela venda de produtos tecnológicos para salas de aula ou para a gestão de sistemas e venda de programas de avaliação; 3) educacional: pela prestação de serviços de formação, de treinamento e de avaliação. Nesse sentido, entendemos que a atuação das redes políticas do discurso da crise de aprendizagem prevê o que Ball chama de um “novo paradigma da gestão pública” (BALL, 2001, p. 103) - tendo em vista que a discussão sobre a qualidade da aprendizagem nos documentos consiste em uma reforma pautada em pressupostos gerenciais para entrega de resultados e “processos de desconcentração dentro dos sistemas educacionais” que fornecem ao Estado “[...] novos modos de governar a sociedade e a economia e moldar e remodelar indivíduos e conduta individual” (BALL, 2010, p. 125, tradução nossa).

Verificamos que as prescrições dos cases de sucesso somadas às prescrições ao trabalho dos professores, em sua maioria, são vinculadas a uma saída pela via das tecnologias, do monitoramento e da capacitação. Entendemos essa saída sendo wishful thinking (falácias de esperança), tendo em vista que anunciam uma estratégia de governança que coloca em foco as redes políticas coalizadas interescalares e concebe a “entrega de serviços”, “conhecimentos transnacionais e convergências de políticas” (BALL, 2010, p. 132, tradução nossa) por soluções prontas para resolver os problemas ocasionados pela crise de aprendizagem. Assim, compreendemos que as soluções estão mais voltadas à inserção das organizações e de seus parceiros dentro do contexto das políticas educacionais globais do que centradas em pressupostos científicos. Além disso, os caminhos de enfrentamento da crise nas publicações direcionam as escolas para os melhores resultados nas avaliações e não necessariamente para a melhora da qualidade dos sistemas de ensino - sendo esse outro elemento falacioso nos discursos, pois a aprovação em rankings não assegura qualidade.

Na busca em saber como se articula a produção de wishful thinking nos textos, evidenciamos um ciclo estratégico persuasivo comum nas publicações analisadas na seção a seguir.

O ciclo da estratégia persuasiva no discurso da crise de aprendizagem

Ao analisarmos os efeitos retóricos no discurso da crise de aprendizagem, observamos que há, nas publicações, um ciclo de estratégia persuasiva, característica marcante dos textos, calculada para envolver e comover o leitor a partir do anúncio da crise de aprendizagem e envolvê-lo com informações que constroem um caminho para enfrentamento dessa crise. Evidenciamos que as estratégias políticas lançadas nas publicações colocam as mesmas organizações que diagnosticam, nomeiam e divulgam a crise de aprendizagem no papel de portadoras das soluções para resolver os problemas diagnosticados. Nesse sentido, percebemos que as máximas, as metáforas, as relações de posicionalidade adotadas nos textos e, sobretudo, as prescrições são princípios ativos de um ciclo que compreende: comoção, sedução, promessa e venda (destacado na Figura 8).

Fonte: Elaborada pelas autoras, 2022.

Figura 8 O ciclo da estratégia persuasiva no discurso da crise de aprendizagem 

Observamos as etapas de comoção e de sedução ao passo em que as publicações impactam o leitor com dados mundiais sobre a educação e lançam o conceito de crise por meio de dados em gráficos, frases enfáticas ou mesmo fotos de situações que provocam no leitor sentimentos sobre a precariedade do ensino (alguns exemplos são destacados na Figura 9).

Fonte: Elaborada pelas autoras com base na capa de Unesco (2013, 2014b) e Unicef (2020).

Figura 9 Imagens com efeito de comoção e sedução no discurso da crise de aprendizagem 

Sendo as imagens recursos para significação de processos (FAIRCLOUGH, 2001), entendemos que as capas de documentos apresentadas na Figura 9 produzem significados potenciais no discurso da crise de aprendizagem que podem comover o leitor sobre as ideias defendidas pelas organizações. Consideramos possibilidades de comoção: significados ocultos gerados pela interpretação das imagens: 1) crianças negras com traje típico de regiões da África, que remetem à escassez associada ao continente; 2) professor e criança sentados no chão sem tapete, remetendo à questão da falta de infraestrutura; 3) a imagem de meninas negras, como é o caso da menina envolta no lenço laranja, que alude a uma vontade de estudar, pois ela está escrevendo mesmo que com poucos recursos, então ela merece mais. Percebemos que um leitor comovido pela leitura das imagens poderia pensar: “Essas crianças precisam estudar para romper um ciclo que marca a nossa história”. Nesse sentido, o uso das imagens, quando embasado nos significados culturais e ideológicos (FAIRCLOUGH, 2003), pode ser utilizado em um discurso eloquente para justificar o cenário de crise (mesmo sem embasamento científico) e comover os leitores pelo viés emocional.

Em relação à etapa do ciclo da estratégia persuasiva, há evidências já na capa de documentos que remetem à promessa de acabar com a crise, como é o caso da logomarca utilizada pelo Grupo Banco Mundial (BANCO MUNDIAL, 2018b). Observamos um design utilizado nas publicações da organização sendo uma logomarca de recurso metafórico visual - que é retomada de diversas formas ao longo das publicações sobre a crise de aprendizagem: quando apontadas soluções, a logomarca é apresentada encaixada; e nos momentos em que são tratados os problemas, as peças aparecem desencaixadas.

Fonte: Elaborada pelas autoras com base na capa e na contracapa de Banco Mundial (2018b).

Figura 10 Estratégia de efeito de comoção e de sedução no discurso da crise de aprendizagem 

Encontramos outras evidências de promessas no discurso em frases que conduzem o leitor a entender que a solução para acabar com a crise de aprendizagem está lançada nos documentos. Destacamos alguns excertos de análise na Figura 11.

Fonte: Elaborada pelas autoras a partir dos dados coligidos.

Figura 11 Excertos que revelam a voz ativa das organizações frente às promessas 

As ações verbais na voz ativa conduzem o leitor ao entendimento das organizações como “facilitadoras” ou “centralizadoras” das mudanças positivas previstas nos discursos para o enfrentamento da crise de aprendizagem. Essas ações, na voz ativa, têm, sobretudo, o significado potencial de que as organizações são possuidoras de conhecimentos e de estratégias para resolver os problemas que ocasionam a crise de aprendizagem, são os agentes das mudanças no contexto educacional.

Sobre a etapa de venda no ciclo estratégico persuasivo, entendemos que há dois vieses: 1º) a venda pode acontecer no sentido de o leitor comprar e aprovar a ideia dos documentos; 2º) a venda propriamente dita de pacotes de reforma a governos ou empresas do ramo educacional. De forma sintética, evidenciamos, na Figura 12, os produtos de maior destaque nas publicações analisadas:

Fonte: Elaborada pelas autoras com base em Banco Mundial (2019a, 2020), Karboul (2017) e Unicef (2019a).

Figura 12 Produtos para enfrentamento da crise 

Os produtos revelam a proximidade que as organizações estabelecem com os governos nas estratégias para superação da crise de aprendizagem: por meio da centralização do fomento de insumos (ONU), pelo fornecimento de informações estratégicas (Banco Mundial) e pela prestação de serviços de uma forma bidirecional (Unicef e Banco Mundial) para reformas de sistemas de ensino. Além disso, são pautados em pressupostos de reformas pela governança heterárquica, pois: tratam a gestão de políticas educacionais em uma lógica de interescalar; criam dependências intersistêmicas entre governos de países e as próprias organizações; colocam a educação como centralizadora de estratégicas econômicas para poder gerar mais trabalhadores e consumidores e poder movimentar a economia global.

Os produtos, em sua característica de independentes e inovadores, intensificam a posicionalidade das organizações na esfera transnacional, ao passo que, como descreve o Banco Mundial (2020), são viabilizados por meio de “noivados” entre governos de países e as organizações. Nesse sentido, os produtos possibilitam a trama de novos nós nas redes políticas em um nível de intensidade e de conexões que não são facilmente dissolvidos e atribuem às organizações multilaterais o significado potencial de uma posição de poder privilegiada, como se elas pudessem dizer: Na posicionalidade das redes políticas sobre a crise de aprendizagem, nós estamos além do Estado, ele depende de nós. Nessa perspectiva, ressalta-se a preocupação de Verger (2019, p. 12) ao dizer que “[...] o ponto principal não é se a política educacional do Estado é influenciada de forma exógena, mas sim o fato de o Estado ser, ele próprio, uma entidade construída exogenamente”.

Na esteira dos entendimentos expostos até aqui, evidenciamos que o discurso da crise de aprendizagem é retórico e persuasivo por sua qualidade de centralizar a resolução da crise de aprendizagem em reformas, apoiadas e mobilizadas por rede política anunciada nos documentos, de sistemas de ensino pautadas na gestão e na regulação do trabalho do professor.

Considerações finais

Identificamos que as publicações das organizações multilaterais Banco Mundial, ONU, Unesco e Unicef sobre a crise de aprendizagem compreendem um discurso convergente por estarem em consenso e compartilharem das mesmas ideias e propostas, tais como: o fato de posicionarem-se como identificadoras e reveladoras da crise de aprendizagem; apresentarem-se como as centralizadoras das medidas de enfrentamento da crise de aprendizagem - por meio da orientação, da criação e da implementação de políticas, estabelecimento de parcerias entre setor público e privado e divulgação de produtos na busca de resolver os problemas da crise de aprendizagem.

Ocupamo-nos, neste texto, em analisar o discurso do Banco Mundial, da ONU, da Unesco e do Unicef sobre a crise de aprendizagem, em seu processo de produção do texto, uso da língua, e sua condição dialética (refletindo sobre como a prática social do discurso pode impactar estruturas sociais). À luz do referencial teórico escolhido, refletimos, na condição de leitoras críticas, sobre como a transmissão de ideias e os caminhos roteirizados nas publicações para anunciar e sanar a crise de aprendizagem podem impactar o contexto da política educacional.

Pela Análise Crítica do Discurso (ACD), analisamos, no discurso da crise de aprendizagem, o significado do potencial impacto gerado pelo diagnóstico e a prospecção de um cenário catastrófico da aprendizagem no contexto educacional atual. Analisamos, também, o ponto estratégico do discurso, qual seja: a apresentação de soluções pensadas pelas organizações para enfrentamento dessa crise de forma contundente e efetiva, lançadas por meio das prescrições e de respostas materialmente definidas como recursos para auxiliar os sistemas de ensino a tornarem-se eficazes e performativos, frente às métricas globais de avaliações de aprendizagem (por meio de um rol de promessas, caminhos, serviços e produtos que compreendem as etapas do ciclo de promessa e venda). Outro significado potencial do discurso analisado é que as lacunas dos sistemas de ensino são tratadas como responsabilidades dos governos dos países e as ações para enfrentamento da crise de aprendizagem são reportadas aos países, às organizações e àqueles atores reportados como especialistas ou parceiros para enfrentamento da crise de aprendizagem. Assim, um jogo político interescalar e multifacetado estabelece-se com a promulgada certeza de que esse conjunto de atores, desde diferentes lugares, posições e tarefas irão resolver os problemas.

Nas publicações analisadas, os agentes explícitos da crise (quem causa) são os governos, os gestores das escolas e os professores; e os agentes explícitos das reformas (quem irá resolver) são os “nós”, em outras palavras, os atores citados, os leitores do discurso e as relações de influências, conflitos e compromissos tramados nas redes políticas de experts mobilizadas e coalizadas pelas organizações. A caracterização desses agentes possibilita conhecer o que Ball (2008, p. 749, tradução nossa) chama de “mudanças no processo de política e novos métodos de governar a sociedade”.

Pela predominância de itens lexicais trazidos - como é o caso dos termos “alocar orçamento”, “aumentar investimento”, “elaborar relatórios”, “contemplar habilidades”, “gerenciar”, “inspecionar” e “treinar” -, identificamos o wishful thinking que constroem nesse discurso significados potenciais de que as soluções das áreas de administração e economia são completamente compatíveis com as soluções para o contexto educacional.

O argumento e a prova que sustenta as soluções para enfrentamento da crise de aprendizagem são medidas já adotadas em alguns países - os cases de sucesso - assim como as soluções apontadas pelas organizações e seus experts. O argumento de destaque nas publicações é a “ação coordenada”, ou seja, a coalizão de grupos para atuar na elaboração e na implementação de políticas de reformas educacionais, tornando o campo da política educacional o próprio mercado.

Nessa perspectiva, as publicações caracterizam-se por manuais prescritivos de enfoque político sobre reformas da educação, em vez de serem textos que discutem sobre educação de qualidade. Nesses manuais, métodos pedagógicos são sobrepujados por estratégias de governança ao lançarem, por recomendação para a resolução da crise de aprendizagem, a mobilização e a coalizão de atores políticos de diferentes esferas e os modos de regulação e controle predominantes no setor privado. Assim, identificamos um discurso retórico com argumentação pautada em pressupostos mercadológicos pela venda de produtos e pelo estabelecimento de parcerias que podem “resolver a crise”.

1A ONU, desde 1940, por meio da Unesco e do Unicef, mobiliza políticas para a educação no contexto educacional. O Grupo Banco Mundial, desde 1960, atua no contexto da política educacional por meio de elaboração, de orientação de políticas e de cooperação técnica para a execução de políticas. O Banco Mundial, a ONU e a Unesco, desde 1990, atuam conjuntamente no cenário da política educacional por cooperação técnica na elaboração e na execução de políticas ao campo educacional (ROCHADEL, 2021).

2Pesquisa que culminou nos estudos doutorais em Educação (ver ROCHADEL, 2021).

3A crise global de aprendizagem: por que toda criança merece uma educação de qualidade (tradução nossa).

4Atualmente, o Grupo Banco Mundial é composto por cinco instituições: Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), Corporação Financeira Internacional (IFC), Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA), Centro Internacional para Resolução de Disputas sobre Investimentos (ICSID) e Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA) (BANCO MUNDIAL, 2022). Neste texto, referimo-nos à organização de duas formas: Grupo Banco Mundial e Banco Mundial.

5Embora o Unicef seja uma organização que está dentro do quadro que compõe a Unesco, neste artigo, fazemos referência diferenciada entre as organizações, pois, nas próprias publicações, o Unicef define-se parceiro da Unesco, e os dados da análise mostram que cada organização ocupa posicionalidade diferente na rede política do discurso da crise de aprendizagem.

6Palestra proferida por Amel Karboul (líder de empresas e integrante da Comissão de Educação da ONU) para o Programa Ted Talks.

7Ver o relatório em português em Banco Mundial (2018a).

8Reportagem de Sílvia Montoya (Diretora do instituto de estatística da Unesco - 2018) concedida ao World Economic Forum.

9Publicação realizada no Blog do Banco Mundial por David Malpass, presidente do Grupo Banco Mundial desde abril de 2019.

10Expressão inglesa utilizada para designar momentos em que desejos são tratados como realidade e verdade, ou seja, argumentos e decisões que tem por base desejos e crenças em vez de evidências científicas e racionalidade (DUNNING; BALCETIS, 2013).

11Emprestamos a significação de policy actors atribuída aos atores que participam, parcial ou integralmente, de processos de políticas educacionais, das mais diversas formas, tais como: docência, apoio, prestação de serviço, liderança de equipes, participantes de reuniões ou tomadas de decisões (BALL et al., 2011).

Referências

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Recebido: 06 de Julho de 2022; Revisado: 05 de Agosto de 2022; Aceito: 06 de Agosto de 2022; Publicado: 20 de Agosto de 2022

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