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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 10-Mar-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18509.024 

Artigos

Poéticas do contingente: alguns ensaios em meio à docência

Poetics of the contingent: some essays about teaching

Poéticas del contingente: algunos ensayos en medio a la docencia

Cintya Regina Ribeiro* 
http://orcid.org/0000-0002-7924-4539

*Docente-pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP), Doutora em Educação pela FE/USP. E-mail: <cintyaribeiro@usp.br>.


Resumo:

Este estudo discute um conjunto de pesquisas educacionais dedicadas particularmente à questão da docência e suas práticas afins, no intuito de explorar os modos como esses trabalhos operam a partir do encontro entre o campo das artes e o pensamento filosófico de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para tal, propõe-se uma aliança privilegiada com os pesquisadores David Lapoujade e Anne Sauvagnargues, os quais, ao discutirem temas acerca de anômalo, aberrante e animal no pensamento deleuzo-guattariano, viabilizam uma exploração intensiva das ideias de arte e criação implicadas. Aponta-se para os movimentos de transmutação das artes e da instauração de relações de indissociabilidade entre vida, arte e docência. Concluise demarcando a presença de uma vontade poética como um modo perceptivo necessário a essas pesquisas, a fim de lançar a docência ao risco da experimentação do acaso e aos devires dessa indeterminação.

Palavras-chave: Docência; Poética; Pesquisa educacional

Abstract:

This study discusses a set of educational investigations particularly dedicated to the issue of teaching and its related practices, in order to explore the ways in which these works operate from the encounter between the field of the arts and the philosophical thought of Gilles Deleuze and Félix Guattari. It proposes a privileged alliance with the researchers David Lapoujade and Anne Sauvagnargues, who, by discussing themes about the anomalous, aberrant and animal in Deleuzo-Guattarian thought, enable an intensive exploration of the ideas of art and creation. It points to the transmutation movements of the arts and the establishment of inseparable relationships between life, art and teaching. It concludes by demarcating the presence of a poetic will as a necessary perceptive mode for these pieces of research, in order to throw teaching at the risk of experimenting with chance and the becomings of this indeterminacy.

Keywords: Teaching; Poetics; Educational research

Resumen:

El estudio discute un conjunto de investigaciones educativas dedicadas particularmente a la cuestión de la docencia y sus prácticas afines, con la intención de explorar los modos como esos trabajos operan a partir del encuentro entre el campo de las artes y el pensamiento filosófico de Gilles Deleuze y Félix Guattari. Para ello, se propone una alianza privilegiada con David Lapoujade y Anne Sauvagnargues, quienes, al discutir temas sobre anómalo, aberrante y animal en el pensamiento deleuzo-guattariano, posibilitan una exploración intensiva de las ideas de arte y creación ahí implicadas. Se señalan los movimientos de transmutación de las artes y de la instauración de relaciones de indisociabilidad entre vida, arte y docencia. Se concluye demarcando la presencia de una voluntad poética como un modo perceptivo necesario para estas investigaciones, a fin de lanzar la docencia al riesgo de experimentación del azar y los devenires de esa indeterminación.

Palabras clave: Docencia; Poética; Investigación educativa

A propósito de ambiências...

Então vocês acham que as ciências teriam surgido e progredido, se os feiticeiros, alquimistas, astrólogos e bruxas não as tivessem precedido, como aqueles que tinham antes de criar, com suas promessas e miragens, sede, fome e gosto por potências escondidas e proibidas? Não vêem que foi preciso prometer infinitamente mais do que o que era possível realizar, para que algo se realizasse no âmbito do conhecimento?

Friedrich Wilhelm Nietzsche (2001, p. 203).

Acionar pensadores em um ato de pesquisa implica adentrar certa ambiência de pensamento e sensibilidade; partilhar de certas frequências, ritmos, movimentos, modos. Evocar tais companhias não equivale a sacralizar genialidades, selar pactos ou replicar dogmas, porém é inevitável que, ao convocarmos certas forças, estas respondam aos chamados e se imiscuam às fontes, aos pesquisadores, aos problemas de pesquisa, exercendo-se pela via insurgente dos contágios. É a isso que nos referimos como ambiência, cuja imagem é oportunamente trazida por Deleuze quando convoca um de seus próprios parceiros:

“Espinosa e nós”: esta fórmula pode querer dizer diversas coisas, e, entre outras, “Nós no meio de Espinosa”. Tentar perceber e compreender Espinosa pelo meio. [...]. Então, estar no meio de Espinosa é estar nesse plano modal, ou melhor, instalar-se nesse plano; o que implica um modo de vida, uma maneira de viver. (DELEUZE, 2002, p. 127).

Estar em meio a, estar no meio de – eis uma maneira irretocável de dizer de uma ambiência. Acrescenta ainda o autor que esse plano “[...] é ao mesmo tempo completamente plano de imanência, e todavia deve ser construído” (DELEUZE, 2002, p. 127). Estar em meio ao plano é indissociável do trabalho de sua instauração.

O presente estudo tem o propósito de adentrar uma ambiência de pensamento sensível no campo da pesquisa em educação. Mais especificamente, buscamos explorar a alquimia que se produz quando o campo da pesquisa educacional catalisa encontros com o campo das artes e o pensamento filosófico de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Que sensibilidades de pensamento são criadas quando estamos em meio à educação, às artes e às intensidades deleuzo-guattarianas?

Este trabalho focaliza um conjunto dessa vertente de pesquisas educacionais produzidas por pesquisadores vinculados a um segmento de Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil, no intervalo de uma década.1 Interessa-nos destacar as metamorfoses das artes e da educação quando compartilham da presença rítmica desses pensadores franceses. Neste artigo, privilegiamos uma dessas maquinações, qual seja, a captura e a transmutação de uma espécie de força-arte a qual não remete a uma forma de expressão específica, a um produto, a uma obra exatamente, mas diz respeito ao próprio ato metamórfico de determinado fazer. É como se estivéssemos diante de uma prática teleológica, com um fim endereçado a si mesma, infinitamente. É essa disposição, ao mesmo tempo alquímica e teleológica, aquilo que parece constituir uma frente de pesquisas em educação, que evoca as artes sem localizá-las em uma forma usual de expressão estética.

Uma das manifestações desses encontros metamórficos entre as artes e a educação faz-se por ocasião das discussões acerca da docência, da didática, da aula, das práticas curriculares e de outras searas afins a tais fazeres docentes. É em meio a esse pulsar da produção em pesquisa educacional que buscamos nos mover a fim de explorarmos suas singularidades, de experimentarmos os modos perceptivos que as constituem, compreendendo estes últimos, no horizonte de Friedrich Nietzsche, como modos de pensamento indissociáveis de modos de sensibilidade (DELEUZE, 2001, 2010).

Quando a arte devém verbo

O modo de presença da arte ou das artes nas produções educacionais mencionadas na seção anterior exige que abordemos nossa discussão a partir das ideias de estilização, de estética, mas dessubstancializando-as e tomando-as em suas movências, em suas contingências selvagens de verbos infinitivos – estetizar, estilizar.

É a evanescência de algo usualmente qualificado como uma obra de arte que se presentifica como força e ganha relevo em nossa discussão. É essa força de verbo infinitivo que transtorna as apropriações convencionais daquilo que se delimita, sob forma substantivada, como o artístico, o estético, o estilizado. A condição inapreensível de verbo – estetizar, estilizar, criar – faz romper o mundo substantivado dos objetos e suas naturezas culturalmente pactuadas de obras e de artes. Verbos transbordam seus territórios de origem, escorrendo por terras estrangeiras, contagiando outros mundos e lançando o pensar e o sentir para outras paisagens. Nosso encontro com pesquisas educacionais produzidas por contágios entre esses verbos e o filosofar deleuzo-guattariano dá a ver mutações nos modos como essas forças agem quando convocadas pelo campo da educação.

A dessubstantivação das artes, da estética, da estilística e das demais famílias semânticas libera o criar das criaturas e permite que atos de criação sejam tratados como imanentes a quaisquer fazeres. Importa, sim, o trabalho performativo do criar dobrando-se sobre si mesmo. Os atos de criação são contingenciados por seus próprios problemas, in loco. Estamos em linha com Deleuze (2016, p. 335) quando diz que “[...] um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tenha absoluta necessidade”.

Agora, libertos dos cânones e imersos nos fazeres mundanos, os verbos de criação são acionados no campo das práticas educacionais e/ou pedagógicas, contagiando a ambas e instigando os fazeres da pesquisa educacional a experimentar conexões improváveis e bancar suas variações. No entanto, é preciso interrogar: Que efeitos esses encontros metamórficos produzem no campo educacional? Como esses modos procedimentais produzidos em zonas de fronteiras lidam com a tensão entre demandas educacionais que reivindicam certeza, e outras, que clamam por indiscernibilidade, incerteza, risco? Como esses verbos oriundos de territórios distintos se agenciam em novas ambientações, combinando forças de ensinar, estetizar, professorar, poetizar, lecionar, estilizar, didatizar, criar, enfim, pesquisar?

Este estudo propõe-se a discutir os modos perceptivos constitutivos de certas pesquisas educacionais; em outras palavras, pretende explorar os modos de pensar e sentir que vivem em uma pesquisa, os quais resultam das próprias contingências e demandas do problema investigativo que ali se impõe. No intuito de acompanharmos as modulações desses estudos, focalizamos produções voltadas aos temas de docência, de didática, de aula, de práticas curriculares e de outros fazeres afins, produções estas que, em razão das problemáticas de pesquisa que movem, fazem das forças das artes uma plataforma necessária para ancorar suas discussões.

Para empreendermos tal discussão, faz-se necessário perseguir as sutilezas nos modos de abordagem da arte no pensamento deleuziano e deleuzo-guattariano. Em sua derradeira obra O que é a filosofia?, os autores afastam-se de uma abordagem fenomenológica da arte, por meio da qual ela se fundaria nas prerrogativas do vivido, do percebido, enfim, da condição do sujeito da experiência. Apostando em uma outra via, Deleuze e Guattari (1992) propõem que a arte seria da ordem da criação de sensações, as quais, por sua vez, não se articulariam a uma suposta condição subjetiva, mas remeteriam radicalmente à dinâmica mesma de composição estética entre os materiais. Com isso, disparam-se possibilidades inusitadas para considerar-se as sensações não como efeitos de rebatimentos subjetivos, mas como criações impessoais nas quais mundos díspares se encontram, daí fabulando outros mundos.

É precisamente tal prerrogativa de disparidade que nos interessa dar relevo; essa abertura aos encontros disjuntivos nos permite abrir passagens para o motor da maquinaria de guerra deleuzo-guattariana, a nosso ver: a indissociabilidade do pensar e do sentir, agora tomados em uma só vibração, como afectos de alianças insuspeitas entre forças em relação. Espreitar os modos como essa maquinaria opera quando do encontro da educação com a(s) arte(s) constitui nossos próximos movimentos.

Pesquisas em busca de disrupção

Nas pesquisas deleuzo-guattarianas em foco, o ponto de contato entre arte e educação, no que tange às pesquisas sobre as artes dos fazeres educacionais ou a um pensamento estético das práticas educacionais, desloca a arte e a estética de seus lugares historicamente sacralizados. Esse convite à profanação é trazido pela própria ambiência deleuzo-guattariana a partir de sua peculiar construção da relação entre arte e filosofia. Conforme sintetiza John Rajchman (2004, p. 111), “[…] la perspectiva de Deleuze sobre esa relación se parece más a la de Nietzsche que a la de Kant. Su estética no adopta la forma de un juicio sino de una experimentación y creación que desafían al juicio”.

Por essa razão, em Deleuze, a estética poderia ser pensada como aísthesis, como sensação, o que nos levaria ao deslocamento de uma estética a uma estesia e é tal deslocamento que interessaria a Deleuze como ponto de contágio com a filosofia. Como nos esclarece Arnaud Villani (2007, p. 97), “[…] desde el principio, Deleuze encontró a los artistas. En los artistas, el cuerpo es primero. […]. Una estésica deleuziana se llevará consigo el destino de la filosofía forzándonos a redefinirlo”. Essa corporalidade, essa mundanidade que retira a arte e a estética do plano contemplativo, do sublime, bem como do imperativo de valoração transcendental, arremessando-as à superfície de imanência, imiscuindo-as aos fazeres da vida via experimentação, como sensação, como sensibilidade pensante ou como pensamento sensível, delineia-se como presença rítmica no conjunto dos estudos educacionais aqui tratados.

Deflagra-se que o âmbito das práticas educacionais, quando tomadas a partir da ação de seus agentes docentes, é um dos mais afeitos à evocação da criação, com privilégio para o campo da didática. A docência, o professor, o currículo, a aula etc. emergem como linhas de forças para se abordar os fazeres educacionais em uma dimensão artística, estilística, estética.

Nesse diapasão, os estudos de Sandra Corazza (2011, 2013a, 2016, 2017a, 2017b) irrompem a partir de uma demanda de conexão entre as práticas docentes e curriculares e a tarefa de criação experimentada no campo da tradução literária. Criam-se termos próprios para esse contágio de forças, construindo-se ideias como “didática da tradução” (CORAZZA, 2016, 2017a), “didática artista” (CORAZZA, 2017b) ou, ainda, “didática artista da tradução” (CORAZZA, 2013a), a fim de produzir-se um encontro disjuntivo entre criação tradutória e criação didática. “Artistar a educação” ou “criar uma artistagem docente” (CORAZZA, 2013c, p. 119) ou evocar o “professor-artistador” (CORAZZA, 2017a), o “professor pesquisador” (CORAZZA, 2011) ou, ainda, o “docente da diferença” (CORAZZA, 2013b) são movimentos disruptivos de linguagem trazidos pela pesquisadora no intuito de fazer a prática docente contagiar-se das forças insuspeitas da arte, sem que esta última seja tomada a partir de uma forma expressiva ou linguagem específicas. Nesses estudos, mobiliza-se a criação a partir de uma ambiência de transcriação em uma rede de afecções e não como obra autônoma de um gênio subjetivado ou inscrito em um campo autorizado para proceder ao ato criador.

Outro modo de evocar as forças da arte em relação à docência diz respeito à articulação entre os trabalhos de criação e de poética. A ideia de “poética de arquivo-mar” (CORAZZA, 2017a), instaurada pela autora como título de uma de suas obras, congrega um conjunto de pesquisas que articulam docência e pesquisa no horizonte de uma filosofia da diferença. Docência e pesquisa são abordadas como atos de criação, considerados em termos de uma ação poética. Entretanto, para a autora, essa poética da docência, da aula, é indissociável dos procedimentos de escrita e leitura, condição que instaura a ideia de “escrileitura” como a superfície mesma desses atos de criação (AQUINO; CORAZZA; ADÓ, 2018; CORAZZA; OLEGÁRIO; CAMPOS, 2018; HEUSER; AQUINO; CORAZZA, 2018; RODRIGUES et al., 2018). Produzindo outras dobras, a pesquisadora faz alianças entre o trabalho de criação, via tradução transcriadora, e as forças insondáveis do universo dos sonhos, em seus movimentos de fabulação, construindo, assim, outros agenciamentos para discutir poeticamente didática, docência e aula (CORAZZA, 2019; CORAZZA et al., 2019; HEUSER; AQUINO; CORAZZA, 2018).

A aliança da pesquisa acerca da docência, do ensino com outras forças intempestivas de criação é explorada também nos estudos de Paola Zordan (ZORDAN, 2014, 2019; ZORDAN; HOFFMANN, 2019). Em um de seus trabalhos, o dandismo e suas práticas correlatas no século XIX são tomados como pontos de contágio para pensar-se o magistério como uma arte de si, forjando-se assim uma discussão de docência e poética a partir da ideia de um dândi educador (ZORDAN; HOFFMANN, 2019). Em outro estudo, a autora estabelece provocativas articulações entre arte, docência e as forças da Terra – das matérias, dos corpos – propondo, na companhia de Nietzsche, uma “gaia educação” (ZORDAN, 2019). Trata-se da afirmação das artes como intercessoras de uma poética do ensinar e aprender, tendo em vista modos ecosóficos de existir, uma vez que “[...] pensar com arte é pensar com as matérias da terra, com suas formas, com modos de expressão que jamais se apartam dos corpos dos instrumentos e elementos dos quais a [...] arte se faz valer em suas mais variadas manifestações” (ZORDAN, 2019, p. 14).

Essa indissociabilidade entre arte e vida, a qual conduz à triangulação entre docência/arte/vida, encontra-se presente também em um conjunto de pesquisas realizadas por Luciana Loponte (2013a, 2013b). Ambos os trabalhos mobilizam a discussão de arte da existência – trazidas por Friedrich Nietzsche e Michel Foucault e retomadas por Deleuze (1992) – tendo em vista pensar a vontade de criação simultaneamente em relação à vida e à docência. Para a pesquisadora, na docência algo se faz continuamente “[...] e é mesmo a partir dessa matéria, flexível e maleável, em contínua criação e recriação, que se constitui uma docência imbuída de uma atitude artista consigo mesma e com o mundo (LOPONTE, 2013a, p. 37). Eis assim a aproximação que a autora produz entre “estéticas da existência” e “estéticas da docência” (LOPONTE, 2013a, p. 36), propondo uma ética docente indissociável de uma atitude estética.

A partir de outra maneira de evocar as artes e colocá-las em conversação com as práticas docentes, a pesquisadora Karyne Coutinho (2018) vale-se do contágio entre práticas do teatro e práticas docentes. A autora evoca o pensamento deleuzo-guattariano para desterritorializar o conceito de improvisação do campo do teatro para o da didática, propondo uma “didática da improvisação” ou, mais precisamente, “a improvisação como forma didática” (COUTINHO, 2018, p. 130). A articulação da ideia de prática docente com criação faz-se na medida em que improvisação é tratada como criação de “entres”, ou seja, de espaços de acontecimentos experimentados na ocasião de uma aula.

Os estudos anteriormente apresentados, a despeito de suas especificidades, lançam mão da arte ou das artes como forças intempestivas que, contagiando o campo educacional particularmente no âmbito dos fazeres docentes, colocam em curso uma vontade de indiscernibilidade em seus modos operativos. Além disso, os contágios artísticos e/ou estéticos suscitam movimentos mais disruptivos do que concêntricos no interior do campo.

A presença marcante dessas linhas de força da indiscernibilidade e da disrupção nessas pesquisas sobre docência faz-nos indagar sobre as condições de necessidade de tais convocações. Além disso, sobre o porquê do acionamento das artes a partir do pensamento de Deleuze e Guattari. Que singularidades se enunciam nessa abordagem estético-filosófica que incitam modos perceptivos outros e que demandam a criação dessas modalidades de pesquisas educacionais?

Para adentrarmos essa discussão, propomos uma aliança privilegiada com dois pesquisadores contemporâneos: David Lapoujade (2015) e Anne Sauvagnargues (2006). O privilégio dessa aliança justifica-se na medida em que tais autores, cada um a seu modo, exploram a força dos movimentos de disparidade na obra deleuzo-guattariana, no intuito de dar ênfase exatamente às condições de criação aí em curso. Ambas as abordagens, aqui, nos são estratégicas, pois dialogar detidamente com esses dois pesquisadores a respeito de modos de criação – no fluxo da discussão singularmente empreendida por Deleuze e Deleuze-Guattari – nos possibilita uma incursão mais intensiva nas próprias singularidades dos modos operativos das forças da(s) arte(s). Assim, lançando mão das discussões de Lapoujade (2015), acerca do aberrante, e de Sauvagnargues (2006), sobre o anômalo e o animal, buscamos focalizar a presença do díspar e sua condição contingente como força de criação, particularmente quando tratamos de arte e, aqui, mais especificamente, quando nos endereçamos às conversações entre a arte e o campo educacional. Acompanhemos esses movimentos.

Sustentar mutações; ponto

Lapoujade (2015) defende a ideia de que Deleuze é um pensador das lógicas: lógica do sentido, lógica da sensação etc. Entretanto, ele alerta:

Em Deleuze, a lógica tem sempre algo de esquizofrênico. [...]. Assim se estabelece uma primeira definição da filosofia de Deleuze: ela se apresenta como uma lógica irracional dos movimentos aberrantes. [...] em determinadas condições, os movimentos aberrantes constituem a mais alta potência de existir, enquanto que as lógicas irracionais constituem a mais alta potência de pensar. (LAPOUJADE, 2015, p. 13, grifos do autor).

O aberrante não seria, portanto, uma figura incidental na produção deleuziana, mas, ao contrário, o vetor mesmo de um modo de pensar e sentir. O jogo contínuo entre forças de disrupção e movimentos de instauração constitui a própria pulsação desse modo de pensamento sensível, com vistas à criação. Trata-se de deter uma atenção àquilo que foge, que escapa às capturas, que faz transbordar o território. Nesse sentido, Lapoujade enfatiza que, em Deleuze, a questão do aberrante é indissociável do problema do limite.

Tal condição nos leva a interrogar acerca do estatuto do limite na perspectiva deleuziana. Ainda na companhia desse pesquisador francês, avancemos: “[...] o limite não é algo que se pensa, mas que se enfrenta, e que só se pensa se se enfrenta. Tal questão atravessa toda a filosofia de Deleuze” (LAPOUJADE, 2015, p. 307). Assim, o limite suscita atos convulsivos, de insurgência, de intensidade, de imprevisibilidade, de criação. O limite não se localiza como fronteira, cindindo topologicamente os territórios, os mundos, mas remete a uma irrupção de movimentos imponderáveis que se agitam nas próprias condições de imanência de encontro entre forças. Como bem resume Lapoujade (2015, p. 311, grifos do autor), “[...] o limite não desaparece, mas muda de natureza. [...]. O limite não é abolido, pois é através da própria distância de sua não relação que os disparates doravante se comunicam. Eles se comunicam pelo limite que os disjunge”.

Ora, essa ideia de mudança de natureza é o ponto nodal que nos interessa aqui. É exatamente essa dobra intempestiva, que se faz em virtude da presença inarredável do limite, aquilo que podemos tomar como um ato de criação, esse efeito dos movimentos aberrantes. Assim, “[...] o limite se torna gerador de potência, se torna um ‘ponto de transmutação’ que nos capacita para a ação = x” (LAPOUJADE, 2015, p. 314). Metamorfose, aberração, transcriação, transmutação, transvaloração. São esses movimentos que respiram nas atmosferas deleuzo-guattarianas, seja nos escritos de filosofia, de artes ou de pesquisas educacionais.

Para a dupla de pensadores franceses, a condição do limite instaura, não uma linha de demarcação entre duas entidades, salvaguardadas em suas supostas naturezas ontológicas; em direção distinta, o limite instauraria, sim, uma zona de indeterminação, tornando indiscerníveis as vibrações que ali se agitam, circunstancialmente. Esse limite, essa zona de indeterminação des-subjetivaria as forças ali agenciadas, fazendo irromper a condição da sensação como algo impessoal. Em outras palavras, a sensação não remeteria a um sujeito da percepção e seu horizonte de vivências, mas diria respeito à experimentação das próprias forças entre si, singularmente agenciadas em uma dada composição estética.

A arte tem por objetivo criar blocos de sensações – defendem Deleuze e Guattari (1992). Ora, sendo a sensação da ordem do impessoal, do assubjetivo, a arte lidaria, portanto, com forças que transbordam uma circunscrição eminentemente subordinada ao mundo dos homens, operando, assim, uma necessária convocação de forças humanas e não-humanas, em copresença. Tratar a sensação como algo impessoal – eis o extraordinário giro teórico-conceitual proposto por esses pensadores, que possibilitará uma abordagem outra daquilo que nomeamos como arte, estilo, artístico etc.

Assim, quando discutimos um trabalho de criação, tomado em termos de uma composição estética, a sensação não se encontraria no ser, como uma suposta competência do sujeito, do homem; inversamente, tratar-se-ia de considerar a própria obra de arte como um ser de sensação, o qual, por sua vez, se definiria como “[...] o composto das forças não-humanas do cosmos, dos devires não humanos do homem” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 236). Com isso, a composição estética é o trabalho mesmo da sensação, isso porque “[...] a própria arte vive dessas zonas de indeterminação, quando o material entra na sensação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 225). Por conseguinte, na perspectiva de imanência proposta por esses autores, tornam-se indissociáveis a sensação, os materiais de criação e o próprio ato de criação.

Esse esforço de des-humanização ou de des-subjetivação da arte ou dos atos de criação, abrindo passagens às múltiplas e díspares conexões entre forças humanas e não-humanas, constitui-se como um dos principais diferenciais de uma discussão estética, no interior dessa filosofia deleuzo-guattariana da arte, a nosso ver. Isso se dá porque a sensação não mais se refere a uma condição de natureza fenomênica, a uma experiência presencial subjetiva, mas, diferentemente, remete aos movimentos dos devires. Além disso, essa abertura aos agenciamentos de forças humanas e não humanas – por ocasião dos atos de criação tomados como composições estéticas – possibilitará a entrada da questão do devir-animal como uma linha de força conceitual estratégica, tanto para se discutir devir quanto para se explorar a presença das forças inomináveis que não se deixam capturar pela condição humana.

Assim, essa filosofia da imanência afirma a sensação como condição de contingência, rechaçando quaisquer variáveis transcendentais, quando enfatiza que “[...] uma sensação existe em seu universo possível” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 230). Ao mesmo tempo, essa filosofia da imanência conecta a sensação a uma condição de devir, e, portanto, coloca em curso a presença inevitável de forças outras em jogo, as quais se afirmam exatamente em razão de sua condição díspar no encontro com as forças do homem. É nesse sentido que os autores imediatamente alertam: “mas o que constitui a sensação é o devir-animal, vegetal, etc.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 231).

Em virtude dessas articulações, a pesquisadora Sauvagnargues (2006, 2007, 2009, 2010) aqui se faz imprescindível, na medida em que ela dedica uma atenção particular, extensa e intensamente, a essa singular ideia de arte nessa ambiência deleuziana e deleuzo-guattariana. Interessa-nos destacar particularmente sua discussão acerca das conexões entre as ideias de anômalo, de animal e de arte.

É pela via do anômalo e, na sequência, do animal que a autora localiza os pontos de contágio com a potência da arte, a partir dos pensadores franceses. A condição de existência do anômalo é força afirmativa que se impõe e ao mesmo tempo perturba a ordenação serial e silenciosa do mundo. É pela presença do anômalo e sua potência de variação que a pesquisadora afirma a conexão com o animal, ou mais precisamente com a ideia de devir-animal, formulado por Deleuze e Guattari. Lembra-nos de que “[…] el animal es una potencia de desterritorialización, no una forma de existencia dada” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 134). E completa: “[...] el animal es um operador determinante en la filosofía de Deleuze” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 163).

Com isso, devir-animal é um horizonte que se insinua virtualmente, guardando sua potência metamórfica. Para a pesquisadora, essa discussão permite flagrar um modo procedimental da arte ou das artes, qual seja, a potência de criação em variação contínua, na medida em que ela se produz necessariamente pela via da experimentação – ou enfrentamento do limite, poderíamos adicionar, com Lapoujade (2015).

A experimentação é o ponto chave que possibilita esse giro. Segundo François Dosse (2010, p. 300), “Anne Sauvagnargues enfatiza sua contribuição [da experimentação] no campo da estética para recuperar a criação artística como captura de forças e recusa do corte clássico entre a arte e a vida”. Assim, a experimentação que se dá na condição-limite do pensável, do sensível, do perceptível etc. constitui-se na própria materialidade desses movimentos aberrantes, da criação, do devir. Nesse sentido, Sauvagnargues (2006) defende que, em Deleuze e Deleuze-Guattari, o animal é o anômalo do homem enquanto a arte é o devir-animal da cultura. No entanto, é preciso atenção a essa forma capciosa de dizer: não se trata de fazer metáfora do animal, mas fazer contágio, contaminação, de operar por uma percepção molecular, que age no limite imperceptível das molecularizações, ali onde se travam as capturas de forças, as capturas de códigos em vias de transmutações (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Essa condição produz um efeito interessante, que muito dialoga com nossas discussões pregressas. Eis o ponto: “El devenir-animal indica, en realidad, que todos los devenires son menores, anómalos, moleculares y en este plano las entidades ‘hombre’, ‘animal’ se vuelven indiscernibles” (SAUVAGNARGUES, 2006, p. 134).

Vê-se, portanto, como toda a abordagem deleuzo-guattariana de arte encontra-se implicada necessariamente à questão dos planos e dos devires, daí a ênfase nas zonas de indiscernibilidade que então se forjam, atiçadas pela presença radical do díspar, do anômalo, do animal, do aberrante etc. bem como dos movimentos de (des)territorialização aí em curso. Essa inusitada articulação assim se faz explícita:

A arte começa talvez com o animal, ao menos com o animal que recorta um território e faz uma casa (os dois são correlativos ou até mesmo se confundem por vezes no que se chama de habitat). [...] o território implica na emergência de qualidades sensíveis puras, sensibilia que deixam de ser unicamente funcionais e se tornam traços de expressão, tornando possível uma transformação das funções. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 237).

Deflagra-se como as ideias de animal, arte, território e devir-animal operam conjuntamente. A questão do animal faz-se nuclear pois, a nosso ver, permitirá tomar a ideia de território em seu caráter, sobretudo vibrátil, rítmico, expressivo. Abordar essa relação animal-território em termos de emergência de qualidades sensíveis, de produção de traços de expressão, de instauração de um habitat – ou seja, um modo de habitar, de instaurar uma existência – possibilitará pensar como se engendra a própria condição de expressividade. Em nosso entendimento, é essa dobra que permitirá, a esse modo filosófico, tratar da arte como devir-animal, ou seja, como expressividade constitutiva de um singular plano de composição traçado em meio à disparidade das forças ali agenciadas. Forjar territórios expressivos, traçar planos de composição, engendrar atos estilísticos de criação com forças materiais improváveis – são esses movimentos em copresença que convocam devires.

Vale lembrar que, para essa filosofia, arte constitui-se como um modo de pensamento e este se define pela disposição de “[...] sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 253). Contudo, enfrentar o caos implica fazer jogo tanto com as forças do infinito quando com as formações da ordem do finito. É o modo específico como se cria essa relação de coexistência entre finito e infinito, aquilo que instaura esse plano e que, enfim, se singulariza como arte. Os autores assim o especificam: “[...] a arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 253).

Encontramo-nos no epicentro de nossas inflexões relativas à arte, flagrando como a instauração de zonas de indiscernibilidade em planos de composição dispara movimentos de molecularização, produzindo transmutações, criações. É preciso enfatizar, porém, que “[...] todo movimento contém assim essa dupla expressão, constituída por sua atualidade e sua virtualidade” (SAUVAGNARGUES, 2009, p. 63).

Assim, as discussões pregressas possibilitam qualificar o modo operativo da(s) arte(s) em razão de dois marcadores principais, que aqui nos são oportunos: o primeiro deles diz respeito à disposição da(s) arte(s) aos insuspeitos encontros moleculares com quaisquer modos de pensarsentir, condição que faz do aberrante, do anômalo, do animal etc. linhas de forças diferenciais quando tratamos de um plano de composição; o segundo elemento, vinculado ao primeiro, remete ao caráter intempestivo desse plano, condição que o lança, em virtude dos ditos encontros aberrantes, a uma dimensão duplamente atual e virtual, possibilitando tomar a arte como deviranômalo do próprio pensar-sentir – poderíamos dizer. Como bem sintetiza Sauvagnargues (2010, p. 33), “[...] tal é a função transductiva da arte: fazer passar a intensidade, perturbar e minorar as estruturas [....] reintroduzir o aleatório nos códigos culturais associando uma linha de fuga virtual, que não preexistia à sua operação”.

É essa força aberrante da arte em suas virtualidades aquilo que parece contagiar certas pesquisas educacionais no enfrentamento de determinadas problemáticas. Nesses movimentos de incitação aos encontros moleculares e de aposta em seus devires, outros mundos se instauram na indiscernibilidade entre animal e homem, entre arte e vida, entre territórios díspares e seus limites, enfim, entre arte, vida e docência. Exploremos.

Em meio a alguns contágios

Essa ambiência filosófico-estética que imanta a obra deleuzo-guattariana se oferece generosamente ao contágio e pulsa com diferentes marcações rítmicas nos estudos educacionais com os quais dialogamos neste trabalho. Há, nas pesquisas analisadas, uma vontade de transmutação da docência que parece se efetivar privilegiadamente quando a arte se presentifica como intercessora para tal acontecimento.

Podemos dizer, assim, que as pesquisas vibram seus próprios modos perceptivos, ou seja, seus modos de pensar compostos com seus modos de sentir. Impossível apartar um pensamento da pesquisa de sua sensibilidade. Uma pesquisa, em seu modo ímpar de agenciar-se, instaura-se como uma espécie de corpo incorpóreo movente, oferecendo-se a múltiplos contágios com outros territórios da educação e além.

As pesquisas aqui focalizadas criam uma ambiência estético-filosófico-educacional própria para dizerem de docência, didática, currículo, aula etc. Tal ambiência traz como marca construtiva uma demanda por indiferenciação das matérias que ali são colocadas em relação. Essa necessidade de indistinção de corpos em favor da atenção às forças que lhes colocam em vibração suscita a emergência de condições indiscerníveis oportunas, profícuas. Em razão disso, podemos afirmar que as pesquisas aqui destacadas são constituídas por e, ao mesmo tempo, colocam em curso modos perceptivos implicados a vontades de indiscernibilidade.

Ocorre que essas pesquisas problematizam as tópicas educacionais citadas de uma maneira singular, fazendo das artes um elemento de contágio tão necessário quanto instigante para se perscrutar determinado horizonte. De que modo, então, as artes comparecem, como força, ou como intercessoras necessárias para se tratar da docência e suas questões afins? Destaquemos alguns fios que conferem relevo a essa modalidade de articulação investigativa.

O primeiro deles diz respeito à necessidade, por parte do campo educacional, de operar uma espécie de desmaterialização ou aposta na capilaridade da(s) arte(s). Isso significa se deslocar forçosamente da colagem entre arte e uma forma estética ou uma forma expressiva em particular. As pesquisas investigadas apontam para esse trabalho de fuga perante uma forma expressiva e apostam na direção de algo que não se dá na remissão ou na imediatez dessa forma, mas se presentifica virtualmente, possuindo a potência de transladar horizontes e transmutar-se. É como se, nos atos de pesquisa, pudéssemos nos lançar aos devires dos movimentos das forças artísticas e/ou estéticas com as quais estabelecemos relações. Por isso, não se trata desta arte ou de outra, desta ou daquela forma de expressão. Trata-se de ativar o inatual daquele modo de criação, como se pudéssemos apostar em “[...] um auto-sentimento da força que conhece a sua própria variação de poder” (SAUVAGNARGUES, 2009, p. 80). Nessas pesquisas aqui tratadas, é esse giro, esse salto, essa transmutação da força artístico-estética aquilo que lhes interessa pinçar, de modo a fazer tal fluxo incidir, como um raio, no campo educacional e mais especificamente, na experimentação docente.

Por essa razão, a atmosfera dos limites, das metamorfoses e dos movimentos aberrantes de Deleuze e Guattari parece ser muito bem vinda para essa modalidade de pesquisa educacional que busca tratar da didática e suas temáticas afins, de tal maneira que o campo se desloque de lógicas que prescrevem mudanças ou transformações de procedimentos, suportando contagiar-se pelas imponderáveis vontades de mutação, de transmutação, de transcriação, emergentes dos encontros inusitados com forças díspares.

O segundo aspecto diz respeito ao modo mesmo como se dá essa transmutação. Essas pesquisas investigadas denotam que o campo educacional insiste na busca incansável de seu próprio “fora” (DELEUZE, 1988). E a didática, a docência e a aula são os territórios canônicos por excelência que instauram os ditos fazeres reconhecidamente pedagógicos. Se a transformação ou a reforma não constituem mais operações que possam responder a certas demandas do campo, é porque há algo desses movimentos que se faz impotente, retornando a um ponto de esgotamento, nesse imiscuir-se ao já pensado.

As discussões de Deleuze e Guattari, particularmente em relação às artes, dá a ver outro modo de abordar o plano das relações bem como de explorar dinâmicas outras de conectividades entre as forças que imantam determinado território. Isso obriga a pensar outra lógica do acontecimento que remete ao nível microfísico das vibrações, ou seja, à ordem da condição de imanência das relações mesmas, permitindo-nos pensar a singularidade das situações de metamorfose, de transmutação, de transcriação.

E quando colocamos em pauta a natureza das relações, é preciso renunciar à lógica de interação entre objetos. Como bem formula Lapoujade (2015, p. 114, grifos do autor), “[...] em Deleuze, não se trata de pensar coisas ou relações entre coisas, mas sempre mundos e comunicações entre mundos divergentes, sobre fundo de caosmos”. Mundos divergentes em comunicação – eis uma ideia que obriga a tratar as relações sempre a partir das forças que as instauram e não dos supostos objetos ontológicos que se definiriam por suas formas estruturais, blindando seus limites.

É essa atmosfera dos mundos divergentes em relação que, aqui, possibilita à pesquisa educacional tomar as artes como forças de mutação e não como território de fronteira em mera interação. Arriscamos a afirmar que essa sensível distinção relativa aos modos de tomar as relações é aquilo que faz toda a diferença para um salto disruptivo do pensamento quando operamos na ambiência desses pensadores.

Esse movimento sutil é elaborado com sagacidade pelo pesquisador Hélio Rebello Cardoso Jr. (2010) quando afirma que

[...] é na instância do problema que filosofia e arte se comunicam e intercambiam em seu autônomo campo de criação, de modo que ou um pensador toma uma sensação da arte e dela extrai seu problema gerador a ser resolvido filosoficamente; ou, em sentido inverso, um artista lança mão de um conceito e resolve seu problema criando novas sensações artísticas. (CARDOSO JR., 2010, p. 51-52).

Acreditamos que é a incursão nesse movimento descrito pelo autor que possibilita ao campo da pesquisa educacional encontrar-se com o mundo das artes em uma lógica aberrante, transmutando seus problemas e recolocando as questões da docência nos termos que acompanhamos até então.

Mundos divergentes em comunicação forçam a experimentação dos limites e a abertura a uma permeabilidade singular, cujos efeitos não obedecem a linearidades ou previsibilidades, mas afirmam uma zona de indiscernibilidade que jamais desaparece, mantendo assim aberta a temporalidade das indeterminações. Para experimentarmos tais movimentos no ato de uma pesquisa, para tocarmos essa natureza singular das relações aberrantes e seus devires, dessa “potência anômala” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 30), faz-se necessário partilhar, da ambiência deleuzo-guattariana, o acontecimento da molecularização.

Só podemos tomar a metamorfose, a transmutação, a criação etc. em uma perspectiva insurgente, anômala, aberrante (ou seja, que não se reduza a mera mudança, mera con/formação a uma nova forma, trans/formada), se adentrarmos à microfísica das vibrações, àquilo que se agita em um plano molecular, no qual são os contágios em errância e risco (e não as filiações e as ordens lineares e derivativas) que dão o tom. “A diferença é que o contágio, a epidemia coloca em jogo termos inteiramente heterogêneos. [...]. O Universo não funciona por filiação” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 23).

Nesses encontros disjuntivos, a comunicação-contágio faz-se forçosamente por outra via, recusando qualquer mediação – daí a evocação de uma natureza molecular, como condição necessária para lidar com o acontecimento da transmutação. Apostando-se em uma zona de “vizinhança extrema, de contiguidade absoluta” (DELEUZE, 1997, p. 90), nesse lócus de indiscernibilidade instaurado nos encontros entre forças e planos díspares, trata-se agora de tomar uma relação qualquer em sua “potência de aliança” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 28). Essa dinâmica molecular das relações, dos contágios, das mutações nos possibilita adentrar um terceiro aspecto presente nas modalidades de pesquisas educacionais focalizadas: trata-se da articulação entre vida e arte e, ato contínuo, da indissociabilidade entre vida, arte e docência.

Notemos que essa articulação prescinde da figura de um suposto sujeito e remete diretamente à condição imanente da vida, exatamente em razão da força assubjetiva, impessoal desta última. Dizer que há uma indissociabilidade entre vida e arte implica considerar que a vida é a matéria-força de um trabalho de estilização, de estetização. Em outras palavras, a vida é a matéria mesma que se encontra em obra, em trabalho de arte, ou seja, é o fazer e o feito de uma tarefa de estilização.

A estilização, portanto, não é prerrogativa do gênio nem acontecimento da ordem do transcendental, mas se faz nos movimentos mundanos, cotidianos, em nossos manejos inventivos com as forças que se presentificam nas contingências do viver. Entendemos que estetizar e estilizar são atos que inventam modos de fazer singulares, nas contingências de um espaço-tempo também singular. Produzir um estilo implica criar procedimentos e conectividades com as forças vivas que estão em jogo naquele aqui e agora, naquela superfície imanente. Assim, pensar a indissociabilidade entre arte e vida pressupõe estilizar essa vida, instaurá-la em seu modo de existência, sempre inacabado. Ecoamos aqui a companhia de Étienne Souriau (2017) a propósito desse jogo aparentemente paradoxal entre instauração e inacabamento. Ele parte de uma observação banal: “[…] esa observación, y es también un gran hecho, es el inacabamiento existencial de toda cosa” (SOURIAU, 2017, p. 228).

Para esse autor, a instauração é sempre ação em devir. Essa ideia é muito potente aqui em nossa discussão, pois nos liberta do imperativo inercial que vincula instauração e fundação ontológica, conferindo agora, ao ato de instaurar, uma plasticidade vital e infinita. Ele prossegue:

[…] la existencia consumada […] responde también a un poder. Exige un hacer, una acción instauradora. Este ser consumado […] es obra por hacer. Y […] no podemos escapar, en los que nos concierne a nosotros mismos, a la necesidad de interrogarnos sobre el modo de existencia de esta obra por hacer. (SOURIAU, 2017, p. 229, grifos nossos).

Assumir que o ser consumado é obra por fazer é bancar que toda instauração é movência, necessariamente marcada pela efemeridade e pela incompletude. Daí que uma obra é sempre obra por fazer, instauração que só se faz por ser infinitamente atiçada por seu próprio inacabamento, ou seja, instauração que se faz sempre como devir. O pensamento de Souriau produz alianças fecundas com as discussões pregressas, pois nos possibilita acompanhar – e participar das – sensíveis vibrações moleculares entre arte e vida, vibrando, também, nos seus movimentos de indeterminação e inacabamento infinito.

Vida e arte, ou melhor, viver e criar, não podem mais ser experimentados como verbos distintos. Trata-se agora da vida “fazer corpo com” (DELEUZE; GUATTARI, 1997) a arte, levando à des-substantivação de ambas. Vida e arte avizinham-se e produzem zonas indiscerníveis, nas quais são incitadas a “extrair partículas” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 64) e “emitir partículas” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 68), instaurando uma ambiência aberrante de copresença dessas partículas. A prerrogativa da molecularização exige que frequentemos a imanência acontecimental do mundo das forças, das vibrações das partículas. Assim, viver e criar imiscuem-se como forças convulsivas de um só ato instaurador, uma só obra por fazer, um só trabalho de estilização.

São essas composições que nos permitem focalizar as singularidades dos modos perceptivos das pesquisas investigadas no presente estudo, as quais remetem, fundamentalmente à docência. A ambiência de pensamento sensível na qual essas pesquisas educacionais se engendram opera como zona de contágio a qual implicará também o modo como a prática da docência será aí explorada como experimentação investigativa.

Se viver e criar se contagiam de modo molecular, suscitando a co-presença de suas partículas, se criar é mover plasticamente as forças díspares, implicando todo o viver, se criar é instaurar atos inacabados ad infinitum em obras sempre por fazer, então esse modo de existir estilizado pela condição de impermanência torna-se vetor de contágio de quaisquer outros gestos, dentre os quais, os docentes. Vê-se, portanto, como em Deleuze e Guattari, a prerrogativa dos contágios se constitui como uma ética, uma política. Eis assim, a nosso ver, a especificidade dos modos perceptivos dessas pesquisas aqui discutidas que se orquestram, em maior ou menor intensidade, a partir da necessidade de tornar indissociável vida, arte e docência.

Daí a presença dessa vontade poética como um modo perceptivo necessário a estas pesquisas, tendo em vista retirar a docência e suas práticas correlatas de suas amarras com a previsibilidade, lançando-as ao risco da experimentação do acaso e aos devires dessa indeterminação. Nesse sentido, práticas de docência e outras afins são abordadas como artes de composição com forças da vida, em sua radical impermanência. Isso implica considerar docência como ato de criação que não se localiza no setting pedagógico, mas que se faz como transmutação de um corpo de forças insuspeitas movidas na extensão e na intensidade de uma vida como obra por fazer, por estilizar. Ressoando Deleuze e Guattari (1997, p. 74), poderíamos afirmar que, para viver, criar, ensinar etc., é preciso “estar na hora do mundo”.

1A pesquisa volta-se à produção intelectual de um conjunto de Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil, os quais foram avaliados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com notas entre 5,0 e 7,0, consideradas as avaliações realizadas no período de uma década (2010-2019), resultando no extrato de 48 programas (CAPES, 2019). Esta pesquisa realizou-se com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) – agência em relação a qual manifestamos nosso reconhecimento e agradecimento – sob o Processo número 2018/14.902-0.

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Recebido: 18 de Agosto de 2021; Revisado: 28 de Janeiro de 2021; Aceito: 30 de Janeiro de 2022; Publicado: 11 de Fevereiro de 2022

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