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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19349.038 

Artigos

Existencialidades na roça instituídas pela ruralidade da presença

Existentialities in the countryside established by the rurality of the presence

Existencialidades en el campo instituidas por la ruralidad de la presencia

Charles Maycon de Almeida Mota* 
http://orcid.org/0000-0001-5927-3466

Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios** 
http://orcid.org/0000-0003-1827-3966

*Doutor em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor lotado no Centro de Referência ao Apoio Pedagógico (CRAP) – Secretaria Municipal de Educação de Várzea do Poço, Bahia. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). E-mail: <charlesmaycon22@hotmail.com>.

**Pós-doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular Plena da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGEDUC). Líder do Grupo de Pesquisa DIVERSO/Rede FORMAD. E-mail: <jhanrios1@yahoo.com.br>.


Resumo:

Neste estudo, busca-se compreender como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência a partir da ruralidade da presença. Utiliza-se como método a Pesquisa Narrativa, com ênfase no movimento biográfico-narrativo, associada à abordagem qualitativa e ancorada nas bases da fenomenologia e da hermenêutica. Os dispositivos de pesquisa tomados como possibilidade de recolha e de produção de dados se configuram em torno das entrevistas narrativas e das etnografias na roça. Conclui-se que a ruralidade da presença se mostrou como possibilidade de tradução de sentidos do viver a roça e de reunir condições de desver a roça que cada pessoa produz, se colocando como assenhoramento de ruralidades diversas que cada pessoa que mora na roça toma para representar e significar seus modos de existir no rural e produzir a vida e suas experiências com e na roça.

Palavras-chave: Ruralidade da presença; Pesquisa Narrativa; Docência na roça

Abstract:

In this study, it was sought to understand how teachers who work in rural schools constitute the presentification of the be-in-the-countryside to signify their existence from the rurality of their presence. The Narrative Research is used as a method, with emphasis on the biographical-narrative movement, associated with the qualitative approach and anchored in the bases of phenomenology and hermeneutics. The research devices taken as a possibility for data collection and production are configured around narrative interviews and ethnographies in the countryside. It is concluded that the rurality of presence proved to be a possibility of translating the meanings of living on the countryside and gathering conditions to review the countryside that each person produces, placing themselves as masteries of the diverse ruralities that each person living in the countryside takes to represent and signify their ways of existing in the rural and producing life and their experiences with and in the countryside.

Keywords: Rurality of presence; Narrative Research; Teaching in the countryside

Resumen:

En este estudio se busca comprender cómo docentes que trabajan en las escuelas del campo constituyen la presentificación del ser-en-el-campo para significar su existencia a partir de la ruralidad de la presencia. Se utiliza como método la Investigación Narrativa, con énfasis en el movimiento biográfico-narrativo asociado al enfoque cualitativo, y se ancla en las bases de la fenomenología y de la hermenéutica. Los dispositivos de investigación tomados como posibilidad de recolección y producción de datos se configuran en torno de las entrevistas narrativas y etnografías en el campo. Se concluye que la ruralidad de la presencia resultó ser una posibilidad de traducción de los sentidos del vivir el campo y de reunir condiciones de des-ver el campo que produce cada persona, colocándose como señorío de las diversas ruralidades que cada persona que vive en el campo toma para representar y significar sus modos de existir en lo rural y producir la vida y sus vivencias con y en el campo.

Palabras clave: Ruralidad de la presencia; Investigación Narrativa; Docencia en el campo

Introdução

Considerando a escola como espaço da diferença, sendo um lugar potente para a produção das relações baseadas em proposições políticas e sociais, temos percebido que as diferentes maneiras de ser e de viver a roça naquele espaço se colocam como um complicador para aqueles/as que não conseguem compreender os sujeitos a partir das experiências que produzem, por terem configurações outras e destoarem daquilo que a mesmidade toma como padrão em uma lógica hegemônica e urbanocêntrica. Assim sendo, o presente estudo insurge desse contexto anunciado por docentes da Educação Básica nas escolas rurais, motivado pela história de vida-formação-profissão de um dos pesquisadores por compreender a diversidade como um princípio que tem atravessado suas experiências com variados sentidos, podendo desencadear um movimento formativo a partir da proposição de uma ruralidade da presença1 que se coloca por meio da presentificação do ser-na-roça2, em que a autobioformação3 se apresenta como espaço fecundo para (re)pensar a formação que valorize as pessoas e as experiências que lhe constituem.

É importante ressaltarmos que Heidegger (2015) utiliza o termo “Dasein”, que significa existência e, em uma tradução literal para o português, temos “Ser-aí”, para fazer referência à existencialidade do ser. A primeira tradutora da obra Ser e Tempo para o português achou, por bem, traduzir Dasein por “presença”. Assim sendo, entendemos que ruralidade da presença, neste estudo, representa bem uma ruralidade do “Ser-aí”. Esse “ser-aí” é abertura de um ser-sendo, que traz possibilidade de existir de forma autêntica ou inautêntica, e Desain é um movimento, um transcender como a possibilidade de um ser que se lança no mundo a partir de si mesmo, uma abertura para outros horizontes possíveis.

A proposição de construir um conceito para a ruralidade da presença que institui a categoria ser-na-roça tem uma forte relação com os estudos das ruralidades contemporâneas que têm considerado os sujeitos que habitam os territórios rurais e os modos de ser, de viver e de fazer que vão sendo constituídos nesses espaços. Nesse sentido, é relevante pensar em uma categoria ou dimensão que se encontre à altura dos sentidos e dos significados que são produzidos pelas pessoas que vivem na roça4, mantendo viva suas tradições, as quais vão sendo representadas em uma dinâmica da tradução, difundindo elementos do passado e do presente, (re)significando os processos culturais e sociais a partir da construção simbólica que fazem ao habitar a roça.

É importante ressaltarmos que utilizamos o vocábulo “roça” ao longo deste texto como uma ruralidade específica no âmbito das ruralidades contemporâneas, por ser defendida como termo ainda presente nos contextos linguísticos das pessoas de algumas regiões do Nordeste, principalmente das localidades rurais situadas no interior dos estados, com sentidos e significados produzidos pelos povos que habitam os espaços rurais em que a pesquisa foi desenvolvida (MOTA; SILVA; RIOS, 2021a). Desse modo, a ruralidade da presença insurge aqui como uma condição para pensar-se a existência do ente evocada pelo ser-sendo, o qual habita os espaços rurais como forma de compreensão dos modos de ser e de viver nesses espaços, a partir da interpretação que esse ser realiza por si próprio.

A ruralidade da presença coloca-se como uma condicionalidade para que as pessoas que vivem em territórios rurais possam constituir-se como ser-na-roça a partir da produção de sentidos outros que tenham significância do real vivido. Assim, a categoria ser-na-roça compõe a dimensão da ruralidade da presença por abarcar dois sentidos: um está no âmbito do que o sujeito está envolvido coletivamente e de maneira mais global, desencadeando processos intersubjetivos; o outro se encontra no campo do individual e de cunho da interioridade desse sujeito, insurgindo de sua subjetividade. Dessa maneira, tomamos a história de vida de um dos pesquisadores como possibilidade inicial para pensarmos os caminhos desta pesquisa, por compreendermos que a centralidade deste trabalho está nos modos de viver a roça e de habitar a profissão docente em contextos rurais, para entendermos como as experiências da docência acontecem nas escolas rurais.

Cabe mencionarmos que o presente texto versa sobre uma pesquisa desenvolvida no processo de doutoramento5, tendo sua centralidade nos processos de vida das pessoas que vivem na roça, propondo-se um movimento de compreensão e de interpretação que leve em conta a subjetividade dos sujeitos. Mota (2022) buscou compreender como professores/as que atuam em escolas da roça constituem a presentificação do ser-na-roça para significar sua existência a partir da ruralidade da presença.

O estudo utiliza como método a Pesquisa Narrativa com ênfase no movimento biográfico-narrativo, associada à abordagem qualitativa, estando ancorado nas bases da fenomenologia e da hermenêutica, por buscar interpretar o ser em seu contexto de vida e a partir dos sentidos que atribuem à sua condição de existir em contextos rurais. Os dispositivos utilizados na pesquisa foram as entrevistas narrativas e as etnografias na roça, configuradas por meio de textos de campo. O processo de análise das narrativas deu-se à luz da proposta interpretativo-compreensiva, por trazer possibilidades de interpretação do que narram professores e professoras de escolas da roça, considerando os contextos de vida de quem narra.

Nesse sentido, pensarmos os caminhos percorridos no processo de realização desta pesquisa considerou pensarmos narrativamente o movimento que integra as acontecências da pesquisa narrativa, por evidenciar formas do fazer e do narrar como possibilidade de desvelamento de ser-docente que se presentifica com as relações que produzimos nos contextos das escolas da roça.

Enveredamentos metodológicos: pesquisa narrativa em contextos da roça

A abordagem que compreende a pesquisa narrativa tem se colocado, nas últimas décadas, como um pressuposto potente de pesquisa na área de formação docente. Sobretudo, como um espaço dinâmico de formação de muitos/as professores/as, sejam como pesquisadores/as ou participantes da pesquisa, que se envolveram em estudos cujas bases e princípios epistemológicos estiveram ancorados nas vertentes das narrativas de vida que trazem à baila a experiência como espaço potente significante e de significância da vida. Com tal perspectiva, muitas questões inerentes ao campo educacional que não tinham validade diante de uma lógica cartesiana, tomada por determinados paradigmas científicos, pois estavam associadas e/ou emergiam das subjetividades dos sujeitos, ganham visibilidade e legitimidade científica.

Dessa maneira, as narrativas de vida de professores/as da roça constituem-se como espaço fecundo de reflexividade formativa, promovendo, para além disso, um processo de revisão sobre como habitamos a roça e a profissão docente nesse contexto, compreendendo que a ruralidade da presença representa modos próprios de viver na roça e de produzir experiências que significam existencialidades em contextos rurais. Dessa forma, cabe mencionarmos que este estudo é de cunho qualitativo e toma a Pesquisa Narrativa como método com ênfase no movimento biográfico-narrativo.

A pesquisa narrativa apresenta-se como possibilidade de abertura para o ser-sendo, por congregar valor ao que professores/as da roça narram sobre as experiências logradas na docência em escolas rurais, trazendo à tona seus processos de vida-formação-profissão. Além disso, demarca como compreendem os movimentos de interação com suas comunidades, como pensam a respeito de si, do espaço de vida e das relações que são instituídas nesse envolvimento. Nesse sentido, a pesquisa narrativa coloca-se como potência neste estudo, por oferecer-nos melhores condições para um movimento compreensivo-interpretativo que toma a vida como centralidade para a construção de um posicionamento epistemo-político-metodológico, em que o ser se anuncia por si mesmo em uma proposição heideggeriana. Isso significa dizer que as narrativas do/a pesquisador/a se cruzam com as narrativas de professores/as participantes da pesquisa.

Assim sendo, o que vem à baila são os processos de subjetividade e de intersubjetividade que se constituem do e pelo envolvimento que professores/as da roça realizam a partir das experiências constituídas ao habitar a roça e desenvolver a docência em escolas rurais. Buscamos, por conseguinte, ancoragem na hermenêutica-fenomenológica para considerar não somente as narrativas recolhidas, mas também todo o contexto de vida de quem narra.

Heidegger (2015, p. 77) institui que a “Fenomenologia da presença é hermenêutica no sentido originário da palavra em que designa o ofício de interpretar”. É com essa perspectiva que tomamos as narrativas apresentadas pelos/as professores/as da roça e, também, as narrativas de um dos pesquisadores que apresentamos no decorrer da pesquisa, como modo de desvelamento do ser. Nesse sentido, tal estudo tem base hermenêutica fenomenológica (GADAMER, 2013), por considerarmos a necessidade de buscar elementos que possam apoiar-nos em um trabalho com as subjetividades de sujeitos que têm uma experiência de vida, uma concepção de mundo e um fazer docente permeado de sentidos e de significados. Adotamos, assim, uma centralidade no processo de formação docente calcado na vertente compreensiva-interpretativa (RICOEUR, 2010) como proposta de análise das narrativas recolhidas.

Cabe mencionarmos que a Pesquisa Narrativa que estamos tomando se configurou como campo político e epistemológico, trazendo, para este estudo, possibilidades outras no movimento formativo das pessoas envolvidas na pesquisa. Clandinin e Conelly (2015) apresentam uma caracterização tridimensional que baliza as concepções da pesquisa narrativa no que se refere a termos e a espaços da pesquisa narrativa:

Nossos termos são pessoal e social (interação); passado, presente e futuro (continuidade); combinados à noção de lugar (situação). Este conjunto de termos cria um espaço tridimensional para a investigação narrativa, com a temporalidade ao longo da primeira dimensão, o pessoal e o social ao longo da segunda dimensão e o lugar ao longo da terceira. (CLANDININ; CONELLY 2015, p. 85).

Essa tridimensionalidade da interação, continuidade e situação está em consonância com os princípios que ressoam desse posicionamento epistemo-político que mencionamos anteriormente, fortalecendo o processo de pesquisa que valoriza o sujeito nos aspectos da individuação e da coletividade a partir das temporalidades desses sujeitos e de suas comunidades. Nessa perspectiva, as narrativas de vida têm se colocado como um elemento desencadeador de uma multiplicidade de categorias consonantes ao fazer docente em um contexto da Educação Básica, por amparar e dar sustentabilidade às experiências vividas pelos/as docentes em suas trajetórias de formação-profissão, já que estas são entendidas, por Souza (2006, p. 95), como “[...] experiências formadoras, as quais são perspectivadas a partir daquilo que cada um viveu e vive, das simbolizações e subjetivações construídas ao longo da vida”.

A pesquisa foi desenvolvida em dois momentos. O primeiro momento configurou-se com o mapeamento das pesquisas nos Bancos de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)6 e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), intentando para o movimento de etnografarmos ruralidades por meio das concepções apresentas em cada estudo que compôs o Estado da arte (MOTA; SILVA; RIOS, 2021b). O segundo momento compreende a realização de entrevistas narrativas e etnografias da roça com a pretensão de reflexionarmos sobre o ser-na-roça que cada professor/a constitui a partir de seu habitar a roça e desenvolver a docência no Ensino Fundamental em contextos rurais, para compreender quais as experiências professores/as de escolas rurais produzem na relação de ser-docente com suas formas de habitar a roça.

Cabe enfatizarmos que os dois momentos que mencionamos nos possibilitaram pensar as experiências a partir de uma proposição da autobioformação, como oportunidade de descentralização das narrativas da base do escrito, dando oportunidade para outras maneiras de narrar a vida e considerar as realidades dessa vida. Com isso, utilizamos o dispositivo etnografias da roça que resultou na produção de narrativas sobre a experiência que um dos pesquisadores teve de narrar a roça e os percursos da pesquisa.

Os/as docentes narradores/as desta pesquisa são professores/as de escolas da roça, que desenvolvem a docência na Rede Municipal de Ensino de Várzea do Poço, interior da Bahia. Os critérios utilizados para a seleção de docentes narradores/as da pesquisa foram colocados como: a) ser professor/a do Ensino Fundamental de escolas rurais municipais; b) atuar há mais de três anos em qualquer uma das três escolas rurais existentes no município.

Consideramos que os/as docentes narradores/as da pesquisa ocupam lugares de destaque e de protagonismo no movimento de narratividade que se desenvolve no processo de narrar sobre suas vivências e suas experiências de vida na roça. Assim, cabe mencionarmos que esse protagonismo se organiza em torno de duas situações bem peculiares ao movimento da pesquisa narrativa que caracterizam os/as participantes e seus modos de narrar: ora como parceiros/as do/a pesquisador/a, ao entrarem juntos no campo da pesquisa, ora por formarem-se e formarem todo o grupo envolvido na pesquisa, tomando suas histórias de vida como elemento principal para congregarem o processo de reflexividade formativa que permeia o narrar.

Esse vivenciar narrativamente nossas histórias de vida no campo não fica restrito apenas ao grupo envolvido na pesquisa, pois ele acaba permeando as salas de aula e toda a comunidade desses/as docentes narradores/as. Na pesquisa narrativa, não importa somente as histórias de vida narradas, mas também outros modos de narrar a vida e os espaços de vida na roça. Os contextos em que cada história vai acontecendo, as paisagens desses contextos, as anunciações da natureza, os silêncios da noite, as fases da lua e as estações do ano são, na pesquisa narrativa, modos de narrar e de dizer sobre a vida na roça.

Com isso, somos motivados a pensar como poderíamos trazer uma singularidade para demarcar os processos de subjetividades com a roça pelo lugar que nos afeta e provocar desvelamentos de um ser-na-roça instituído pela ruralidade da presença e da plenitude de escrever uma tese-vida, a qual se inspira na filosofia heideggeriana e na poesia de Manoel de Barros (1999) para produzir as etnografias da roça. Assim sendo, reiteramos que os nomes dos/as docentes narradores/as na pesquisa são fictícios, atendendo às orientações do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP)7. Com isso, ressaltamos que cada docente escolheu o nome do primeiro termo, sendo o segundo termo uma decisão do pesquisador conforme influências da roça e do poema A menina avoada, de Manoel de Barros (1999).

Então, a escolha de “Acauã”8 para compor o segundo termo dos nomes fictícios deu-se pela presencialidade do ser-na-roça que tem encantamento pelos passarinhos do lugar que se fizeram presentes em todos os momentos e movimentos de etnografar a roça. Trouxemos o nome do pássaro Acauã como uma demarcação de tempos na roça, pois esse passarinho sempre anuncia a passagem do dia para a noite. Seu canto alcança um sem-fim pelas matas e caatinga adentro, estourando o crepúsculo, anunciando o tempo de recolhimento, de aquietamento da noite.

[...]

Quis pegar

entre meus dedos

a Manhã.

Peguei o vento.

Ó sua arisca!

Nas ruas do vento

brincavam os passarinhos

perto de meu quarto

junto do pomar.

Esses passarinhos

sempre eram fedidos a árvores com rios

que eles traziam da mata

antes de chover

(BARROS, 1999, p. 15-16).

Como no poema A menina avoada, o pesquisador quis pegar a noite e acompanhar o crepúsculo dos dias sem chuva, no entardecer que dava um intervalo na produção escrita e buscava aquietar pensamentos como modo próprio para continuar pensando sobre a vida e a docência na roça, em uma constância que o etnografar a roça convocava, pois era imperativo pensar na pesquisa quase o tempo inteiro. O vento na roça que trazia o som anunciativo da Acauã se fez presença o tempo inteiro e no mesmo horário durante todo o percurso na jornada da pesquisa narrativa na roça, quando outros passarinhos brincavam, se apresentando como companhias suavizadoras e provocativas para o movimento de trans-ver a roça e a docência pelos processos que se instituíam com a pesquisa.

A condição de des-ver a roça e a realidade de vida a partir das possibilidades de habitar esse lugar se fazem possibilidade de possibilidade para nossas existencialidades na roça e na docência e se coloca como circunstâncias para compreendermos e interpretarmos cada narrativa apresentada pelos/as docentes narradores/as desta pesquisa. Nesse sentido, apresentamos os/as docentes narradores/as por meio dos excertos das narrativas de si que são reveladas nos percursos das entrevistas narrativas:

Di-Acauã Sebastião-Acauã Geni-Acauã
• Morar na roça, para mim, é um privilégio porque eu sempre morei na roça, nasci na roça. [...]. Meu primeiro trabalho também foi na escola da roça. Eu tinha alunos na época [...] que eram quase da minha idade [...]. Sou professora de Ciências do 6º ano até o 9º ano [...]. Estou fazendo a especialização do Ciências 10 pelo IFBA [Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia]. [...]. Fiz esse concurso público mesmo antes de terminar o Ensino Médio, o concurso foi em abril e eu e ia terminar o Ensino Médio em dezembro, então eu não tinha o diploma de Ensino Médio, portanto eu não podia fazer o concurso para professor nível 1, tive que fazer o concurso para Regente auxiliar que me garantia direito a ensinar de primeira a quarta série. • Moro em uma comunidade muito pequena, nosso município também é um dos menores da Bahia. Eu comecei essa luta como professor, [...] era menor de idade ainda, eu tinha 17 anos. Foi desde 1991 que eu comecei a dar aulas como professor leigo, pois eu não tinha o magistério até então, e, depois, continuei estudando e consegui o magistério. Aqui na comunidade nós só temos até o nono ano. Para cursar o Ensino Médio, temos que nos deslocar para a cidade [...]. Comecei [...] como professor de Alfabetização, [...] após o concurso eu fui trabalhar no Fundamental II como professor de Matemática, mas não tinha formação de Matemática não, só depois que fizemos a faculdade. • Sou morador daqui de Nova Esperança desde quando nasci, me criei aqui e estou até hoje com 53 anos junto com minha família. [...]. Quando comecei essa trajetória na Educação, [...] em 1982, mas comecei a trabalhar mesmo em 1984. [...]. Fiz a faculdade de Geografia e a Pós-Graduação em Geografia Física e das Populações e continuei na luta. Em setembro, dia 15, mais ou menos, é final de inverno, início de primavera, estou chegando aos 36 anos nessa trajetória da Educação [...]. Quando entrei para trabalhar na Educação, eu tinha uma certa habilidade com cortes de cabelo, [...] quando entrei na Educação não parei com esta atividade, [...]. Durante a semana [...], a Educação é prioridade. No final de semana, [...] ou feriado [...], atuo aqui num pontinho, faço bico.

Ruralidade da presença

A sobrecarga de sentidos para o termo “ruralidade da presença” que buscamos cunhar aqui traz uma equivalência semântica do ser-aí, em outras palavras, ruralidade da presença se co-forma com ruralidade do ser-aí. Para Heidegger (1991, p. 186), “[...] as palavras existência, ser-aí, atualidade, designam um modo de ser”. Nesse sentido, são os modos de ser das pessoas da roça que têm, nesta pesquisa, maior relevância, visto que podemos dizer que são esses modos de ser que significam o fazer docente de professores e de professoras da roça, determinando a compreensão de mundo de meninos/as, homens, mulheres e idosos/as que moram na roça.

A ruralidade da presença surge para congregar valor à forma que cada morador/a da roça compreende de si mesmo/a e do espaço de vida em que está inserido/a. Em um sentido mais amplo do que significa ruralidade da presença, nós a entendemos como assenhoramento de ruralidades diversas que cada pessoa que habita a roça toma para significar sua forma de viver a roça e produzir a vida nesse lugar. Dessa forma, é essa ruralidade da presença que institui o ser-na-roça a partir da presentificação de um ser que já é e quer ser mais, revelando compreensões de como são ao produzirem as redes de significados que dão sentido às suas vidas, sendo condição própria de entendimento sobre a forma como vivem, pensam e se relacionam com a roça.

A ruralidade da presença não significa apenas a compreensão dos modos de vida das pessoas na roça. Representa de maneira muito bem acentuada acontecimentos que são construídos nas relações com seu lugar de vida da forma que entendem a vida e veem o mundo. Queremos reiterar que o termo “acontecimento” significa um fazer que se per-faz-se naquilo que (acontece) afeta, expõe e toca. Nesse caso, o acontecimento traz para a condição do ser-sendo toda a manifestação desse ser-na-roça reverberado pela ruralidade da presença. Ao viver a roça, cada pessoa vai produzindo sentidos que demarcam quem ela é e o que pretende ser nesse lugar. Isso está muito relacionado aos acontecimentos provocados pelo produzir. Nesse movimento de produção que cada pessoa da roça realiza, vão sendo tecidas inúmeras maneiras que tornam essas pessoas clareiras para o ser.

O professor Sebastião-Acauã demarca o envolvimento com o outro para representar como constrói suas relações com sua comunidade a partir do espaço da escola, dizendo:

Conheço todo mundo aqui, brinco com todo mundo. Eu acho que o colégio é nossa escola, que hoje em tudo que tem a comunidade toda participa. Então o nosso colégio aqui, graças a Deus, é inserido na comunidade e é referência. (Sebastião-Acauã, Entrevista narrativa, 2020).

O ser-na-roça vai sendo desvelado com a maneira que as pessoas da roça se envolvem com seu espaço habitado, permitindo-se a uma produção provocativa da copresença que vai sendo desencadeada da ruralidade da presença como possibilidade de representação do lugar habitado e das relações oriundas do envolvimento com o outro. Com isso, entendemos que a ruralidade da presença abarca toda a significação que as pessoas da roça produzem a partir do afeto com as pessoas de sua comunidade e com a forma como isso vai sendo representado, provocando constantemente um revelamento do ser-na-roça, em uma condição instituída pelos modos de como os acontecimentos envolvem as pessoas com seus espaços de vida, em uma proposição que reúne possibilidades que compõem as existencialidades de professores/as da roça. O professor Geni-Acauã narra:

Nasci e me criei aqui, minha família é totalmente daqui de Várzea do Poço, tanto a família paterna quanto a materna, meus pais são os primeiros moradores da comunidade. O velho Chico e Venância, uma vizinha aqui são os moradores mais velhos daqui e meu pai são os primeiros fundadores daqui que ainda estão vivos. Com isso a gente acaba tendo aquele amor pelo lugar de vivência, a gente criou nossos laços afetivos com amigos e familiares, na escola. Então, vejo a minha comunidade hoje como um lugar muito bom de se viver, acredito que poucos lugares no mundo eu vou trocar por Nova Esperança, São Paulo, Rio de Janeiro, Nova York, Roma, Tóquio, jamais vou querer abandonar Lagoa da Roça. (Geni-Acauã, Entrevista narrativa, 2020).

Compreender e significar as relações com as pessoas da comunidade e situar historicamente os processos e as condições de envolvimento na composição do espaço habitado são decorrências de um processo que se efetiva das possibilidades instituídas no movimento de demorar-se junto às coisas e ao lugar, fazendo-se clareira e morada do ser-na-roça. Esse processo desencadeado do demorar-se juntos às coisas e ao lugar representa, circunstancialmente, o tempo das coisas e dos acontecimentos necessários para a produção de sentidos e de significados existenciais, conforme cada pessoa da roça toma para compreender-se no lugar habitado.

Nesse sentido, são os modos de viver e de relacionar-se com o lugar de vida que fazem emergir as formas de habitar comunidades rurais, em que professores/as trazem à tona como constituem a presentificação do ser-na-roça, evidenciando como produzem suas existencialidades nesse lugar habitado – ruralidade da presença, ruralidade do ser-aí que apresenta e afirma o que é viver nessa comunidade.

Ao viver a roça, meninos/as, homens, mulheres e idosos/as lançam-se como entes nesse lugar, provocando e sendo provocados por um tempo das coisas que se coloca como elemento que acolhe os acontecimentos na roça. Na obra de Heidegger (1991), tomamos como provocação para compreender a roça e o que o tempo das coisas se apresenta como oportunidade de acontecimentos nesse lugar a partir do que estamos chamando de “ruralidade da presença”:

Cada tentativa de pensar satisfatoriamente a relação entre ser e tempo com o auxílio das representações usuais e aproximativas de tempo e ser embaraça-nos imediatamente numa rede inextricável de relações não pensadas em todo o seu alcance. Nomeamos o tempo quando dizemos: “cada coisa no seu tempo”. Isso quer dizer: cada coisa que sempre é a seu tempo, cada ente vem e vai em tempo oportuno e permanece por algum tempo, durante o tempo que lhe é concedido. Cada coisa tem seu próprio tempo. (HEIDEGGER, 1991, p. 206).

Essa relação não pensada que aparece entre ser e tempo pode ser considerada como acontecimento que vai sendo produzido no tempo e com as coisas. Assim, é o tempo de cada coisa que determina os acontecimentos de um processo de vida na roça. Esse tempo das coisas na roça é o tempo que cada ente aparece, é o tempo que institui a abertura para o ser.

Tomando o tempo por essa perspectiva, compreendemos que o ser-na-roça instituído pela ruralidade da presença possibilita a cada pessoa um modo de ver a si mesma e a roça por meio do modo como se interpretam como ser-aí e entendem o movimento que estão produzindo ao construírem as relações simbólicas que carregam os significados de ser quem são.

O lugar de vivência a gente cria uma relação muito forte com ele, é onde a gente cria os laços familiares, com amigos. Então, venho desempenhando esse trabalho aqui e me dando muito bem com isso. Em todo lugar que a gente mora, existem os nossos amigos e inimigos também, mas a amizade que a gente construiu aqui é muito boa dentro desse espaço, tem pessoas que ajudam a comunidade a viver melhor. (Geni-Acauã, Entrevista narrativa, 2020).

Com as narrativas do professor Geni-Acauã, podemos evidenciar que são os acontecimentos de um processo de uma vida na roça que vai se dando na constância conforme cada pessoa se lança, em que o ser-aí, como provocação da abertura para o ser-sendo, se vale desse tempo das coisas para significarem as relações produzidas em seus espaços de vida, seja em uma perspectiva de afetos ou de desafetos. Ambas as perspectivas são produzidas a partir de como o envolvimento de cada pessoa se dá em seu contexto de vida.

Entendemos que o demorar no lugar propõe um movimento convocativo para uma compreensão de si, bem como daquilo que desempenha no demorar-se que se apresenta como fator instituinte de processos intersubjetivos que direcionam as maneiras de ver, de sentir, de fazer e de pensar as coisas da roça. São essas relações dos processos intersubjetivos produzidos no envolvimento com a roça e com quem se vive nesse espaço que a ruralidade da presença se coloca como condição para o desvelamento do ser-na-roça, possibilitando a produção da experiência.

Com os processos de intersubjetividades que professores/as da roça produzem, são potencializadas as condições de ser-sendo, convocando um ser que já é como possibilidade de afirmar uma vida autêntica com todos os significantes que isso inclui, como fica exposto na narrativa da professora Di-Acauã:

Para mim, a roça traz todos os valores. Hoje, sou o que sou e agradeço aos meus pais, meu pai analfabeto faz apenas um nome e minha mãe estudou só até a quarta série, mas me ensinaram os valores que eu precisava, eles transmitiram para mim. Tento a todo momento transmitir esses valores também para todos os meus alunos, como morar na roça e não se envergonhar, porque nós somos da roça, mas somos pessoas, somos profissionais, somos cidadãos. (Di-Acauã, Entrevista narrativa, 2020).

Como podemos notar, a narrativa da professora faz uma apresentação de como ela significou e ressignifica suas compreensões a partir dos vínculos estabelecidos com seu espaço de vida, com sua família e alunos/as. Há uma apropriação da condição e do nível de escolaridade decorrentes da falta de oportunidade em usufruir o direito à educação por habitarem a roça, como possibilidade de insurgência para afirmar processos que representam as existencialidades das pessoas da roça.

Entendemos que os valores mencionados na narrativa da professora se mostram como modos de ser-na-roça. Disso, são tecidos os significados para resistir às situações impostas por um sistema capitalista que subalterniza a roça e quem mora nesse lugar. Na roça, produzimos experiências que são constituídas de um ser-na-roça que nos propõe pensar caminhos e possibilidades de existir nesse lugar, entendendo que a presentificação desse ser que se manifesta em nós-entes nos ajuda a perceber a sobrecarga de simbologias e de sentidos que carregamos como modo de ser-na-roça.

Desver a roça e o mundo das coisas

Narrar sobre a experiência com a lua nos espaços da roça se faz importante para um dos pesquisadores, pois a lua se coloca como elemento místico e simboliza tempo. Tempo das coisas na roça. Tempo de aparecimento e, também, de ocultamento. A lua influencia em tudo que compõe o espaço da roça. Demarca o brotar das plantas, o colher dos frutos, o cio dos animais, a mudança do estado físico das coisas. A lua para as pessoas da roça representa ciclos de vida, determinando cada estação e como cada lavrador e lavradora precisará cuidar da terra. Além de todas essas relações que a lua significa em sua vida e na vida das outras pessoas da roça, ela traz consigo o mistério da noite e o misticismo que alimentamos a partir das narrativas das pessoas mais velhas de nossa comunidade.

Isso significa dizer que, em noite de lua, podemos sair até determinado horário sem nos preocupar com o perigo que a escuridão pode reservar, pois, sem lua clara no céu, fica difícil ver o mundo e as coisas. Por não conseguirmos ver com nitidez as coisas físicas da roça à noite, criamos lendas e histórias para explicar algumas coisas quando não as entendemos.

A noite na roça propõe recolhimento, aquietamento, solidão na roça e no coração do pesquisador. Isso significa a proposição de isolar-se, abrir distância como possibilidade de produzir arte, escrever (FOGEL, 2012). Assim sendo, a lua tem grande influência em sua vida na roça, por colocar-se como elemento de um tempo que permite recolhimento para escrever e sentir seu ser-na-roça em uma outra dimensão.

Tomamos essa narrativa para buscar compreender que cada coisa é de um tempo e o ser que se manifesta em seu ente e nos provoca a pensar o movimento de desver a roça e o mundo das coisas como proposição de uma compreensão outra da vida e dos modos de perceber as relações que são construídas nos contextos desse espaço. Desver para ver as coisas da roça está ancorado, aqui, pelo movimento de deslocamento que somos provocados a fazer a partir de seu processo de distanciamento daquilo que, durante muito tempo, se colocou como conhecido e familiar, e não mais possibilita desafio para entender a vida na roça por outros modos de olhar, de ouvir e de sentir.

Então, apoiamo-nos na poesia de Manoel de Barros (2015) para explicar o que significa desver a roça, de maneira a compreender o movimento de vida nesse lugar, entendendo que cada pessoa significa para si seu lugar de vida a partir da forma como vê a roça e sua vida na roça. Isso tem a ver com aquilo que vive e já viveu, com aquilo que se tornou experiência constituída pelo que nos afetou, nos tocou, nos provocou exposição.

Ali a gente brincava de brincar com palavras

tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra!

A mãe que ouvira a brincadeira falou:

já vem você com suas visões!

Porque formiga nem tem joelhos ajoelháveis

e nem há pedra de sacristias por aqui.

Isso é traquinagem de sua imaginação.

O menino tinha no olhar um silêncio de chão

e na voz uma candura de Fontes.

O pai achava que a gente queria desver o mundo

para encontrar nas palavras novas coisas de ver

assim: eu via a manhã pousada sobre as margens do

rio do mesmo modo que uma garça aberta na solidão

de uma pedra.

Eram novidades que os meninos criavam com as suas palavras.

Então Bernardo emendou nova criação: Eu hoje vi um

sapo com olhar de árvore.

Então era preciso desver o mundo para sair daquele

lugar imensamente e sem lado.

A gente queria encontrar imagens de aves abençoadas

pela inocência.

O que a gente aprendia naquele lugar era só ignorâncias

para a gente bem entender a voz das águas e

dos caracóis.

(BARROS, 2015, p. 141).

São as traquinagens de nossa imaginação que significam a roça e ser-na-roça. Assim, entendemos que, para as outras pessoas que moram nesse lugar, são também suas traquinagens de imaginação que produzem condições para compreenderem seus espaços de vida da maneira como compreendem. Não há, aqui, nenhuma intenção de fazermos avaliação de como cada pessoa da roça se utiliza dessa “traquinagem de imaginação”, como apresenta a poesia de Manoel de Barros (2015), mas o que aparece como entendimento é que essas formas de ver a roça podem ser provocações para que, no acontecimento que cada pessoa desse lugar produz, seja condição de deslocamento.

Essas provocações que estamos fazendo referência são, aqui, o movimento que nos propomos a desenvolver a partir desse deslocamento que institui o desver a roça como possibilidade de valorização dos diferentes jeitos de ser, de viver e de fazer em contextos rurais. Isso desencadeia uma forte relação entre cada pessoa que se propõe a desver a roça com as experiências constituídas nesse lugar. Significa mencionar que cada menino/a, mulher, homem e idoso/a tomará como condição para esse desver maneiras próprias de como se entendem ser-na-roça, contestando-se, coformando-se e reinventando-se em uma proposição de ser-mais por meio de um ser-aí que se coloca como transformador de cada ente que o ser pode se manifestar.

Pensar o ser-aí que se presentifica conforme provocações que fazemos a nós mesmos no envolvimento com a roça e as coisas que significamos para desver a roça é uma possibilidade de ser-mais, desvelada em uma presencialidade de um ser-sendo, que mobiliza suas formas de compreender e habitar sua roça, como a professora Di-Acauã expõe:

A liberdade da roça é uma grande característica. Sinto aqui na minha roça uma liberdade, geralmente a vida no campo estimula uma existência mais saudável, principalmente por conta dessa interação do cotidiano com a natureza, acordar pela manhã respirar um ar puro, ouvir o canto dos pássaros, me traz tranquilidade. Essa é a palavra que melhor define minha vida na roça, tranquilidade. (Di-Acauã, Entrevista narrativa, 2020).

Compreendemos que a liberdade mencionada pela professora Di-Acauã representa a reunião que esta faz com as traquinagens de sua imaginação, sendo uma maneira de atribuir sentidos e significados ao que se apresenta em seu espaço habitado, provocando-a a desver a roça conforme suas interações com as coisas do lugar. As experiências que são constituídas desse movimento de desver a roça que cada pessoa se propõe a fazer tem uma relação de intimidade com os modos de lançar-se na roça para contemplar cada elemento e movimento que se instaura no lugar habitado; para isso, é necessário entender-se abertura e clareira para o ser-na-roça.

Reiteramos que as condições de desver a roça estão vinculadas ao desvelamento do ser-na-roça que cada ente da roça se predispõe como morada do ser. Isso é a convocação de um habitar poeticamente a roça, por mobilizar uma ampliação das condições de ver, sentir, ouvir e pensar o lugar e as coisas do lugar. Essa é uma proposição constituída no processo de coformação que nos propomos fazer fazendo-se roça.

Desver a roça é proposição em que encontramos novas possibilidades de ver. Nessa proposta de desver a roça está a concepção de sentir e auscultar (FOGEL, 2012), duas novas condições para a apreensão daquilo que se manifesta na realidade em que estamos imersos. Entretanto, esse movimento de desver somente pode ser descoberto por quem se propõe a formas outras de compreender seu ser-na-roça. Muitas vezes, serão necessárias criar novidades com palavras, desencadeadas do processo de traquinagem da imaginação. As traquinagens da imaginação dar-nos-ão oportunidade de sair desse lugar de vida para que possamos entender quais os sentidos e os significados ele tem para cada habitante.

Entender o ser-na-roça que é instituído pela ruralidade da presença é um lançar-se no desconhecido, tomar a poesia e a arte como perspectiva do ver, sentir e auscultar (FOGEL, 2012). É, também, fazer da escrita uma arte, pois, com ela, somos mobilizados a desver nossa realidade, buscando encontrar novas palavras de ver a roça. Essa compreensão que buscamos para desver a roça nos provoca a escrever com a mesma intensidade e comprometimento que um pintor pinta sua tela, como um poeta que desnuda realidades com sua poesia e mostra abertura para o ser.

Conforme Fogel (2012), buscamos com essa proposição de desver a roça um movimento de olhar, de sentir e de dizer que se mostre para além do que está sendo mostrado. Um movimento que intenta para o desnudar as formas de olhar a roça que nos ensinaram, em outras palavras, instaurar, nesse movimento, formas de afastamento de um “[...] olhar simples, seco, que vê e se satisfaz com o pouco e o parco do possível tornado necessidade (lei) e que não é, pois o olhar típico, próprio da concupiscência do e no ver, que é justo o ver sem medida, sem contenção, sem forma. Sem pudor” (FOGEL, 2012, p. 184).

A ruralidade da presença é condição e abertura para vermos a roça como potência e um lugar de vida, sobrecarregado de sentidos para os que a vivem e buscam possibilidades de existir e de resistir, na insistência de compreender que são as formas diversas de perceber os significados construídos nas relações que são estabelecidas nesse lugar que promovem modos específicos de vinculação com o espaço e nos provoca a produzir experiências responsáveis por redes de afeto que, simbolicamente, nos mobiliza a ser-mais conduzidos pelo ser-na-roça.

Conclusão

A narrativa colocou-se como a configuração da presença do ser por possibilitar a representação da condição de provocação de como compreendemos as temporalidades do narrar e do narrado, como potência da ruralidade da presença, do ser-aí, que nunca está dado e que vai se fazendo no fazer-se. A partir disso, compreendemos que a narrativa significou uma trama que foi sendo enredada e logrou uma estrutura construída e reconstituída em uma temporalidade própria que insurgiu do movimento significado nas relações subjetivas e intersubjetivas produzidas por professores/as da roça.

É com essas relações que o ser-na-roça se institui em uma significação e simbolização que as pessoas da roça constroem com seus modos próprios de existencialidades no lugar, considerando o que é vivido e se constitui como experiência na e com a roça. Dessa maneira, a roça representa uma presencialidade do ser que vai sendo manifestada nos entes que somos, instituída em uma espacialidade de nosso ser-no-mundo, que também representa nosso espaço de vida.

O ser-na-roça, neste estudo, significa uma construção importante, tendo centralidade no processo de apresentação de nossas ruralidades e das ruralidades de outros/as professores/as da roça, representando como produzimos nossas existências como possibilidade de ser e habitar a roça, convocando as singularidades das relações que produzimos nesse espaço, mostrando como reconfiguramos os modos de ver, de ouvir, de pensar e de sentir como proposição de abertura apresentada por meio das circunstancialidades de um ser que se mostra e é desvelado com os acontecimentos que constituem as experiências das pessoas da roça.

A ruralidade da presença que institui o ser-na-roça é a compreensão que temos, conforme a pesquisa desenvolvida, como assenhoramento de ruralidades diversas que cada pessoa que mora na roça toma para representar e significar seus modos de existir no rural e produzir a vida e suas experiências com e na roça. Isso vai sendo evidenciado a partir das narrativas e das etnografias da roça como elementos relevantes na compreensão do ser-na-roça relacionados ao entendimento de que a ruralidade da presença possibilita deslocamentos provocados por acontecimentos.

A ruralidade da presença mostrou-se como possibilidade de tradução de sentidos do viver a roça e reunir condições do ser-sendo que vai se desvelando conforme as condições de desver a roça que cada pessoa produz. O ser-na-roça é instituído pelo movimento de habitar poeticamente a roça e vai sendo desvelado conforme o ente demora-se junto às coisas e à roça.

1Esse termo está construído com base nas discussões que realizamos sobre os escritos de Heidegger a partir da primeira tradução para o português feita por Marcia Sá Cavalcante (HEIDEGGER, 2015), para pensar como as existencialidades do ente constitui o ser-na-roça, conforme o que vai se dando na vida dos sujeitos que habitam os territórios rurais instituídos nos modos de ser-viver-na-roça.

2Esse termo é apresentado a partir dos modos de ser-viver-na-roça, colocando-se, aqui, como um constructo que tem inspiração na proposta de ser-sendo (HEIDEGGER, 2015).

3O termo “autobioformação” é reorganizado por Pineau (2016), que desmembra a palavra (auto)biográfica, tendo “gráfica” substituída por “formação” e a retirada dos parênteses de (auto), com o intuito de emancipar as narrativas da base do “gráfico” para pensar possibilidades de superação de um grande desafio: pensar a formação docente parametrizada na “formação da vida e de sua própria vida por si mesmo” (PINEAU, 2016, p. 11).

4 Rios (2011, p. 21) concebe a roça como uma ruralidade específica centrada na semiótica da terra, um território configurado por “[...] uma cartografia que passa às margens das roças, que marca passagens, buscas, fronteiras, fazeres de distintas formas”.

5Pesquisa intitulada Ser-na-roça: ruralidade da presença e experiências do ser-docente (MOTA, 2022).

6Esse banco de dados integra os sistemas de informação de teses e de dissertações que existem em muitas instituições de ensino e de pesquisa no país, estimulando a publicação e o registro dessas produções por meio eletrônico. Atualmente, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) tem 15 anos de existência e abriga 348.116 dissertações e 169.522 teses de 119 instituições.

7Parecer Consubstanciado do CEP de nº 3.520.118.

8Pássaro de tamanho médio, sendo do grupo dos falcões. Seu canto é tomado como inspiração para muitas lendas folclóricas de nossa região e de outros lugares do país.

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Recebido: 09 de Agosto de 2021; Revisado: 26 de Fevereiro de 2022; Aceito: 27 de Fevereiro de 2021; Publicado: 14 de Março de 2022

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