SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17Existencialidades na roça instituídas pela ruralidade da presençaO uso de tecnologias digitais em educação: caminhos de futuro para uma educação digital índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19399.050 

Artigos

Barracão de Alegorias e Etnomatemática: práticas e reflexões pedagógicas no Carnaval de Florianópolis

Carnival shed of floats and Ethnomathematics: pedagogical practices and reflections in the Carnival of Florianópolis

Galpón de Alegorías y Etnomatemática: prácticas y reflexiones pedagógicas en el Carnaval de Florianópolis

Jéssica Lins de Souza Fernandes* 
http://orcid.org/0000-0002-0559-8705

Joana Célia dos Passos** 
http://orcid.org/0000-0001-9946-7900

Rita de Cássia Pacheco Gonçalves*** 
http://orcid.org/0000-0002-1691-5518

*Licenciada em Matemática, Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Integrante do Grupo Alteritas: Diferença, Arte e Educação e do Instituto Estudos de Gênero (IEG). E-mail: <jessicalins.souza@gmail.com>.

**Pedagoga, Mestra e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Estudos Especializados em Educação da UFSC. Pesquisadora do Grupo Alteritas e do IEG. E-mail: <passos.jc@gmail.com>.

***Licenciada em Matemática, em Ciências e Bacharela em Arquitetura e Urbanismo, Mestra e Doutora em Educação. Professora substituta da UFSC. E-mail: <ritacassiagon@gmail.com>.


Resumo:

Este artigo apresenta parte de um estudo que teve como objetivo identificar narrativas e práticas etnomatemáticas produzidas por trabalhadoras/es do Carnaval de Florianópolis, Santa Catarina, de modo a reconhecer escolas de samba como espaços educativos, onde se desenvolvem práticas e aprendizagens (matemáticas). O estudo incluiu pesquisa teórica, histórica e documental, além de um trabalho de campo que teve como foco observar, analisar e descrever criteriosa e respeitosamente a realidade social das/os componentes, fazendo uso de conversas, de entrevistas semiestruturadas e de registros audiovisuais. Neste texto, foi campo de análise o barracão de carros alegóricos da agremiação Os Protegidos da Princesa. Destacam-se processos educativos por meio da curiosidade e da observação, além da produção de materiais e de técnicas para resolver as demandas da construção das alegorias.

Palavras-chave: Etnomatemática; Escolas de Samba; Relações étnico-raciais

Abstract:

This article presents part of a study that aimed to identify ethnomathematic narratives and practices produced by workers from the Carnival of Florianópolis, state of Santa Catarina, Brazil, in order to recognize samba schools as educational spaces, where (mathematical) practices and learning are developed. The study included theoretical, historical and documentary research, as well as fieldwork that focused on observing, analyzing and describing carefully and respectfully the social reality of the components, using conversations, semi-structured interviews and audiovisual recordings. In this text, the carnival shed of floats of the association Os Protegidos da Princesa was analyzed. Educational processes through curiosity and observation are highlighted, in addition to the production of materials and techniques to solve the demands of the construction of Carnival floats.

Keywords: Ethnomathematics; Samba schools; Ethnic-racial relations

Resumen:

Este artículo presenta parte de un estudio que tuvo como objetivo identificar narrativas y prácticas etnomatemáticas producidas por trabajadores/as del Carnaval de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, de manera a reconocer escuelas de samba como espacios educativos donde se desarrollan prácticas y aprendizajes (matemáticos). El estudio incluyó investigación teórica, histórica y documental, además de un trabajo de campo que tuvo como foco observar, analizar y describir criteriosa y respetuosamente la realidad social de los/las componentes, haciendo uso de conversaciones, entrevistas semiestructuradas y de registros audiovisuales. En este texto, fue campo de análisis el galpón de carrozas alegóricas de la asociación Os Protegidos da Princesa. Se destacan procesos educativos por medio de la curiosidad y la observación, además de la producción de materiales y técnicas para resolver las demandas de la construcción de alegorías.

Palabras clave: Etnomatemática; Escuelas de Samba; Relaciones étnico raciale

Samba-escola

Eu fui aprendendo, como se diz, na marra né, na tora. Só de olhar assim.

E também tem as pessoas que são qualificadas, né.

A gente vai olhando, olhando, aí não dá, não demora, a gente tá fazendo.

Tudo que ele faz a gente faz.

Anna Paula, aderecista da Protegidos da Princesa.

As escolas de samba são um espaço educador. Isso pode ser evidenciado não somente na fala de Anna Paula1, que abre este texto, mas também na escolha do termo “escola de samba”, usado como forma de buscar aceitação das camadas mais abastadas da população e como forma de legitimar as atividades realizadas pelas agremiações e os saberes ali produzidos. Criadas em uma região da cidade do Rio de Janeiro, chamada por Heitor dos Prazeresde Pequena África, e em um momento histórico em que a chamada “Lei dos Vadios e Capoeiras” (BRASIL, 1890) perseguia, com aparato do Estado, a população negra e suas manifestações diversas, as agremiações se caracterizam também como um espaço de resistência e reinvenção2.

Na medida em que o samba-escola se estabelece como um movimento que deixa lições para sambistas de todo o país, ele ensina não somente uma maneira diferente de fazer samba, mas também traz possibilidades para pensar a Educação e, ainda, a Educação Matemática. Na década de 1990, a pedagoga Cristiana Tramonte já havia constatado alguns desses processos de aprendizado em uma extensa pesquisa com as escolas de samba florianopolitanas, na qual estudou as ações educativas e o caráter pedagógico das agremiações da cidade, que, segundo a autora, “[...] se desdobra em inúmeros processos nos quais as classes populares educam-se entre si na relação com os outros a exemplo da concepção expressa pelo educador Paulo Freire: Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo3” (TRAMONTE, 1996, p. 209, grifo da autora).

Da mesma forma, Paulo Freire ajuda-nos a pensar também em como a Educação Matemática pode se apresentar nesses espaços. De fato, para Ubiratan D’Ambrosio (2008, p. 14), a partir do momento em que a contribuição de Paulo Freire passou a ser considerada no campo da Educação Matemática, “[...] os educadores matemáticos revelaram uma mudança radical de atitude”. Ainda para o autor, que cunhou o termo “Etnomatemática”, é preciso considerar que há uma forma matemática de estar no mundo, que se traduz em narrativas, códigos de comportamento, práticas sociais e simbologias de um dado grupo. Essa Matemática da criação, do corpo, da convivência, da relação com o mundo foi teorizada e sistematizada com o chamado “Programa Etnomatemática” – um programa de pesquisa em História e Filosofia da Matemática e que inclui os estudos em Etnomatemática e suas implicações políticas e pedagógicas. Para D’Ambrosio (2005, p. 102), embora “[...] este nome sugira ênfase na matemática, ele é um estudo da evolução4 cultural da humanidade no seu sentido amplo, a partir da dinâmica cultural que se nota nas manifestações matemáticas. Mas que não se confunda com a matemática no sentido acadêmico, estruturada como uma disciplina”.

Por sua complexidade e caráter histórico-filosófico, a exemplo do próprio Ubiratan D’Ambrosio, entendemos o termo “Etnomatemática” em uma perspectiva mais ampla, a partir de uma explicação etimológica. Assim, por “etno” entendemos os diferentes contextos culturais, linguagens específicas, códigos de comportamento e práticas sociais; por “mathema” entendemos explicar, conhecer, lidar com, aprender; e, por fim, entendemos “thike” como modos, estilos, artes e técnicas. Sintetizando essas três raízes, temos, portanto, “[...] o conjunto de artes, técnicas de explicar e de entender, de lidar com o ambiente social, cultural e natural, desenvolvido por distintos grupos culturais” (D’AMBROSIO, 2008, p. 8). Dessa forma, a Etnomatemática não pode ser separada da Educação, pois significa conhecer e reconhecer o conjunto de técnicas utilizadas por diferentes grupos culturais para explicar e entender o mundo a sua volta.

É nesse contexto que foi desenvolvida uma pesquisa de Mestrado em Educação (FERNANDES, 2020)5, pela qual foram identificadas as narrativas, os códigos e as práticas etnomatemáticas produzidas por trabalhadoras/es e artistas dos barracões de duas agremiações de Florianópolis, a Protegidos da Princesa e a Embaixada Copa Lord, reconhecendo as escolas de samba como espaços educativos, de resistência e de reinvenção, onde se desenvolvem práticas e aprendizagens, inclusive matemáticas.

Neste artigo, em particular, é cerne de nossa análise parte dos resultados da pesquisa, focando no trabalho realizado junto à equipe de construção de alegorias da Protegidos da Princesa. O objetivo deste texto é, assim, apresentar e discutir as narrativas e as práticas etnomatemáticas observadas durante a pesquisa com a referida agremiação, destacando processos educativos, artes e técnicas de explicar e conhecer desenvolvidos no interior do barracão de carros alegóricos.

A seguir, na seção “O esplendor de um barracão onde o sonho vira realidade”, apresentamos a referida agremiação, situamos o campo de análise e descrevemos os aspectos metodológicos da pesquisa. Em “Barracão, pregos, panos e paetês”, discorremos sobre as narrativas, as artes e as técnicas de explicar e de conhecer identificadas e analisadas durante o trabalho com a escola. Finalmente, concluímos nossa exposição com uma síntese na seção “Vai, barracão, tua voz eu escuto”.

O esplendor de um barracão onde o sonho vira realidade6

Agora você já sabe o caminho e faz parte da equipe.

Pode vir aqui a hora que quiser.

Patrícia, diretora de barracão da Protegidos da Princesa.

A Grêmio Cultural Esportivo e Recreativo Escola de Samba Os Protegidos da Princesa, também conhecida simplesmente como Protegidos, foi a primeira escola de samba de Florianópolis, com sede no Morro do Mocotó, na região central da cidade. A fundação ocorreu em 18 de outubro de 1948, 20 anos após o surgimento da agremiação Deixa Falar – mencionada por muitos (CABRAL, 2016; DINIZ, 2006; NETO, 2017; SODRÉ, 1998; TRAMONTE, 1996) como a primeira escola de samba do Rio de Janeiro e do Brasil.

O nome “Protegidos da Princesa” é emblemático. A princesa a quem se refere é Princesa Isabel, signatária da lei da abolição da escravatura. Diferentes versões se apresentam diante da escolha do nome da agremiação: há quem considere um reflexo da forma falaciosa como a história era (ou é) contada, colocando a princesa branca como salvadora benevolente das/os negras/os escravizadas/os no Brasil; e há quem considere uma estratégia de sobrevivência, uma forma de garantir a organização da população negra, que assim estaria, de certa forma, protegida, de forma semelhante aos pioneiros cariocas, que se protegiam ao usarem a denominação “escola”. Para Cristiana Tramonte (1996),

[...] num ambiente hostil à raça negra, a ‘Protegidos da Princesa’ (cujo símbolo é uma coroa monárquica) foi pioneira, desbravadora e iniciou o processo de ocupação das ruas, rompendo as barreiras do silêncio social dos negros. Para poder exercer sua atividade lúdica tornava-se necessário a ‘proteção da Princesa’ que sugere a condescendência que se esperava das elites de origem européia para esta organização das classes populares de origem negra. (TRAMONTE, 1996, p. 98).

Em outras palavras, a malandragem estaria justamente no fato de se fazer de crédulo e utilizar signos da própria nobreza para abrir caminhos e ocupar espaços. Assim, as escolas de Florianópolis também se originam e se mantém como espaços de resistência e de reinvenção.

Nos espaços de encontro com as/os componentes da escola de samba, a exemplo da postura de pesquisa proposta por Beatriz D’Ambrosio e Celi Lopes (2015, p. 12), questionamos e fugimos de posicionamentos metodológicos rígidos, cujas redes teóricas e metodológicas nos roubam “o prazer de criar e as possibilidades de ousar”. Ao trazerem o conceito de “insubordinação criativa” para a Educação Matemática, as autoras nos convidam a

[...] refletir sobre o papel do pesquisador que também busca uma produção científica ética e comprometida com a qualidade de vida humana e que, portanto, assumirá um modo de investigar em que considere o respeito aos participantes da pesquisa e/ou aos documentos utilizados na investigação; perceba as delimitações da pesquisa realizada, sabendo que ela não se constitui em uma verdade única; e tenha sensibilidade e responsabilidade na utilização do saber produzido pelo outro. (D’AMBROSIO; LOPES, 2015, p. 4).

Para D’Ambrosio (1998), um dos desafios das pesquisas com Etnomatemática é justamente pensar em práticas de pesquisa que, de alguma maneira, dialoguem com a ideia do Programa Etnomatemática, mas que não se limitem às metodologias próprias das pesquisas envolvendo a Matemática acadêmica. Para o autor, a Etnomatemática “[...] é limitada em técnicas, uma vez que se baseia em fontes restritas. Por outro lado, seu componente criativo é alto, uma vez que é livre de regras formais, obedecendo critérios não relacionados com a situação” (D’AMBROSIO, 1998, p. 34). Assim, o autor defende a criatividade científica como alternativa metodológica, indicando um caminho de pesquisa que consiste em “[...] mergulhar na realidade, numa realidade global que compreende o meio sociocultural e natural, refletindo então sobre essa realidade, e questionando o desafio nela compreendido, e finalmente escolhendo um meio de ação entre várias possibilidades” (D’AMBROSIO, 1998, p. 72).

Dessa forma, em diálogo com essas/es autoras/es, optamos por sustentar a teoria como imanente ao método e constituímos em nossa pesquisa o que chamamos de uma insubordinação criativa teórico-metodológica, entendendo o Programa Etnomatemática de fato como um programa de pesquisa7. Para isso, as ferramentas teórico-metodológicas incluíram pesquisa teórica e histórica, além de um trabalho de campo que teve como foco observar, analisar e descrever criteriosa e respeitosamente a realidade social das/os componentes a partir de suas práticas matemáticas, fazendo uso de conversas, entrevistas semiestruturadas, fotografias e gravações audiovisuais8.

Na próxima seção, apresentamos parte dessa descrição, por meio de narrativas, de imagens e de nossas percepções à luz do Programa Etnomatemática.

Barracão, pregos, panos e paetês9

Cada um tem uma técnica, né?

Eu só acho que eles têm uma técnica muito pesada, a nossa é mais leve.

O pessoal pergunta como que eu consigo, eu digo “eu não sei”.

Hudson, aderecista da Protegidos da Princesa.

Para entender o processo de criação das alegorias da Protegidos da Princesa, é preciso conhecer todo o caminho percorrido desde a ideia até sua apresentação na avenida – passando por desenhos, soldas, ferragens, revestimentos, colas, brilhos, paetês. Esse caminho começa com a criação do enredo, na cabeça do carnavalesco Beirão, e passa pela mão de diversas/os profissionais, como serralheiros e aderecistas, pela mão de diretoras/es e voluntárias/os e, também, de amadoras/es que conseguem uma renda extra no período do Carnaval.

No ano em que acompanhamos os trabalhos, o projeto dos carros foi feito no ateliê de Beirão, um homem cis branco e com Ensino Superior. Um aspecto importante que aparece já no momento do projeto e que se repete ao longo de todo o processo diz respeito ao orçamento limitado, muitas vezes sustentado pelo argumento racista e falacioso de que dinheiro público é para investir em Educação – como se Carnaval não fosse também Educação. Assim, desde a concepção do enredo e do desfile, é preciso pensar em sua adequação aos recursos disponíveis e, com base nisso, fazer a escolha dos materiais que serão usados na confecção dos carros e das fantasias. Bete Madruga (2012) chama essa fase de criação do carnavalesco de “percepção e apreensão”, comparando-a a uma das fases do processo de Modelagem Matemática. Em diálogo com Maria Biembengut, ela afirma:

A percepção é a primeira fonte de conhecimento necessária para que se possa fazer uma descrição do meio, uma decodificação e representação, posteriormente, a percepção tem relação com o pensamento, a resolução de problemas e os processos de decisão das pessoas. Trata-se de uma mediação necessária, mesmo que não suficiente de toda objetivação real. (MADRUGA, 2012, p. 37-38).

Para desenvolver o enredo, o carnavalesco desenvolve, portanto, uma série de estratégias de resolução de problemas e tomada de decisões, tendo como foco a materialização da ideia proposta por ele ou pela agremiação. Embora seja ele quem escolha, a princípio, os materiais a utilizar, Beirão conta com o auxílio da diretora de Carnaval Patrícia Gomes para organizar as questões relativas à compra e à quantificação de materiais. Patrícia é uma mulher cis heterossexual branca, que trabalha como bancária e tem formação superior.

À frente das principais tomadas de decisões da escola, temos, então, duas pessoas brancas e com Ensino Superior. Ainda, o presidente da agremiação à época também era um homem branco, assim como os demais membros da diretoria – com exceção de Marcelo Domingos, o único homem negro no comando da escola e quem autorizara nossa pesquisa. Esse quadro repete-se em diversas agremiações, não só de Florianópolis, mas de outras partes do Brasil, o que evidencia como esses espaços são também racializados. No Carnaval de 2019, não havia nenhuma pessoa negra ocupando os cargos de carnavalesca/o ou presidenta/e nas escolas de Florianópolis e, no Rio, o carnavalesco João Vitor Araújo foi o único a assinar sozinho um desfile na cidade, como ele mesmo conta em uma entrevista concedida a Cintia Cruz, publicada no portal Notícia Preta:

Sou o único carnavalesco negro. Não sei quem se considera negro ou não, mas não estou aqui para julgar ninguém. O carnaval é negro, a origem da festa é negra, mas você vê o negro ocupando apenas o espaço de intérprete, de passista. Não que seja menos digno, mas hoje, dificilmente, você vê um presidente negro na escola, uma liderança negra, e isso incomoda a gente um pouco. (CRUZ, 2019, p. 1).

Para o historiador Luiz Antônio Simas (2019), “[...] a grande potência do samba e do carnaval é que eles exacerbam o problema brasileiro”, e, portanto, devem ser entendidos como “elementos que ressaltam as nossas contradições”. Afinal, como parte dela, o mundo do samba traz consigo elementos de uma sociedade que é estruturalmente racista, machista e violenta – e o universo das escolas de samba, infelizmente, não teria como ser diferente disso.

Seguindo na criação do carnavalesco, tendo desenvolvido o enredo10, é preciso criar o projeto dos carros alegóricos, que é composto pela parte estrutural e pela ornamentação. No ano que acompanhamos, a escola optou por usar apenas duas alegorias no desfile – número mínimo definido pela Liga das Escolas de Samba de Florianópolis (LIESF). Outra estratégia de economia adotada pela escola foi a de reutilizar a estrutura dos carros do desfile anterior, de modo que pudessem reaproveitar boa parte do material metálico e investir mais na decoração dos carros.

A primeira alegoria, o Carro Abre-Alas, representava o Panteão Africano, em que se apresentavam 12 Orixás do Candomblé. Na Figura 1, temos a planta baixa do segundo e último carro, representando os Orixás Olorum, Ododua e Oxalá.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 1 Projeto do segundo carro alegórico da Protegidos da Princesa, planta baixa 

Em seu ateliê, Beirão conta com o trabalho de um engenheiro, Edmundo, para desenhar os projetos dos carros. O carnavalesco contou um pouco sobre esse processo:

– Então, nos carros é feito o projeto e é feito o projeto estrutural do carro. Então, tu sabe o quanto que vai de cano, o quanto que vai de material, etc. e tal. Enquanto que, em muitas outras, esse projeto é feito só um desenho, muitas vezes fora da escala, que não tem noção das coisas que vão, de medidas... Então, “faltou uma lata de tinta, faltou 10 latas de tinta, agora falta mais uma”... E a gente consegue fazer essa, esse levantamento pelos projetos. Oh, você já sabe quantas máscaras vão, aí tu faz o custo. Não, tem que reduzir, tem que aumentar, sobrou um dinheirinho... Fazer sempre essa jogada. Mas é bem claro, bem objetivo. Tu sabe quanto que vai, tu sabe a metragem, tu sabe quanto que vai de placa, tu sabe o que vai de tecido, enfim (Beirão, carnavalesco, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Assim, o carnavalesco e o engenheiro responsável pelo projeto fazem juntos uma estimativa do material necessário para a construção dos carros. Por suas formações específicas, Beirão e Edmundo utilizam a Etnomatemática do branco11 para efetuar as projeções e solicitar à diretoria da escola a quantidade de material que consideram adequada. Na hora de efetivamente construir os carros, no entanto, quem comanda as ações são as/os trabalhadoras/es do barracão, que acabam adaptando o projeto para a realidade do trabalho, conforme conta o Mestre Louro:

– O carnavalesco passa uma planta baixa como essa aqui com toda as dimensões do carro. Sugestivas! Só que na hora da execução final, nós vamos dando uma adequada, né. Tipo, ou aumenta ou diminui alguma coisa, ou bota mais afastado. Procura... Procura dimensões que fiquem simetricamente aproximado pra não ficar um maior que o outro, pra não ficar desproporcional. Geralmente, essa aqui é só uma ideia base. No ajuste final mesmo, sempre tem que ter alguma coisa. A gente consegue tirar do computador exato pra... Pro que vai pra realidade. É bem, bem complexo isso aqui mesmo. (Mestre Louro, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Na fala de Louro, ele deixa evidente que faz uso do conceito matemático de proporção, operando com ele a fim de executar seu trabalho da maneira que considera adequada. Assim, lança mão de conhecimentos de geometria para obedecer a um padrão estético que supõe a simetria – que podemos explicar nas palavras de Louro como não deixar que um lado fique maior que o outro. Mestre Louro é um homem cis branco heterossexual, com Ensino Fundamental incompleto.

Ainda, o que Louro chama de tirar do computador pra realidade é exatamente a execução do projeto, isto é, construir os carros da forma mais fiel possível à ideia do carnavalesco, a partir do modelo criado pela equipe de Beirão. Entretanto, essa etapa não se caracteriza apenas como mera reprodução de um modelo prévio, mas, sim, como criação e ressignificação da proposta do carnavalesco, visto que medidas são adaptadas, materiais adicionados e estruturas alteradas de acordo com a experiência das/os trabalhadoras/es. Naquela circunstância, a clareza e a objetividade, demarcadas na fala de Beirão em relação a seu projeto de engenharia, tornam-se insuficientes para atender às demandas do trabalho – revelando a crise do modelo de racionalidade científica denunciado por Boaventura de Sousa Santos e que implica em necessidades distintas:

Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. (SANTOS, 2001, p. 28).

Em vez da objetividade de um projeto de engenharia, a engenhosidade de trabalhadoras/es e artistas.

O projeto elaborado por Beirão e Edmundo é extremamente necessário em um primeiro momento de planejamento da agremiação; no entanto, o projeto sozinho não dá conta de todas as especificidades que o trabalho de construção de alegorias supõe e, para isso, é preciso lançar mão dos saberes e das técnicas desenvolvidas pelas/os próprias/os trabalhadoras/es ao longo de sua trajetória profissional – e que são regidos por uma Matemática própria. Nesse caso, a fórmula utilizada para fazer com que o projeto dos carros de fato se concretize é o uso de duas Etnomatemáticas: a de Beirão e Edmundo e a de Louro.

Kiki e Louro formam a subequipe de serralheria e são responsáveis pela construção da parte estrutural dos carros. Os dois trabalham em atividades semelhantes à exercida na Protegidos durante todo ano em suas cidades e têm bastante tempo de atuação no ramo: Kiki trabalha na área há 18 anos, sendo nove com Louro. Assim como Louro, Kiki é um homem cis branco heterossexual, com Ensino Fundamental incompleto. Juntos, os dois iniciam o processo de tirar do computador para a realidade, que começa a partir do projeto fornecido pelo carnavalesco. Na Figura 2, vemos uma página do projeto dedicada a apresentar uma peça que remete à imagem do Divino Espírito Santo e que compõe o Carro Abre-Alas. A estrutura é formada por uma parte traseira feita em ferro e uma escultura de uma pomba feita em isopor.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 2 Projeto de elemento do carro abre-alas da Protegidos 

Para construir a estrutura metálica, Louro e Kiki começam fazendo desenhos com giz e tinta no chão do barracão, como o da Figura 3, que servirá como guia para os artistas moldarem o ferro. Para isso, antes de tudo, fazem marcações igualmente espaçadas no chão, formando uma grade que auxilia na execução do desenho. As marcações da grade são feitas a partir de medições com o auxílio de uma trena, de modo a formar quadrados cujos lados medem 50 centímetros. A grade pode ser pintada de duas formas: uma riscando à mão com giz, e outra com o auxílio de um barbante embebido em tinta. Na segunda forma, mais utilizada pelos trabalhadores, cada um deles segura uma extremidade do barbante encharcado, esticando-o até atingir o comprimento da linha que desejam pintar no chão do barracão; depois, dão um golpe sutil com o dedo no barbante, de modo que a tinta seja projetada no chão.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 3 Exemplo de desenho-guia feito no chão do barracão da Protegidos 

Para fazerem os desenhos, um escalímetro12 é utilizado a fim de converterem as medidas do desenho do projeto para as medidas reais. O projeto elaborado pelo carnavalesco, no entanto, mostra apenas as dimensões esperadas dos objetos, não indicando a escala em que foram desenhados. Dessa forma, cabe à experiência dos trabalhadores descobrir a régua do escalímetro adequada a ser utilizada – e não se demoram muito nessa tarefa. Ao olhar o projeto, Louro já diz “acho que esse aqui tá em 25”, confere a medida na grade riscada e segue desenhando. Enfim, com trena, escalímetro, giz, tinta e paciência, os artistas vão construindo aos poucos as formas do carro no chão manchado – que ganha desenhos de tamanhos, formas e cores variadas que servirão como modelo para forjar o ferro.

Para desenhar o modelo de peças curvas, como o da Figura 4, os serralheiros fazem um compasso improvisado utilizando barbante e giz. Mais uma vez, é possível ver uma grade desenhada no fundo do desenho, na cor branca. Na imagem, um dos vértices da grade foi usado como centro de uma das circunferências desenhadas, enquanto a medida do raio é igual à medida do lado dos quadrados da grade. Assim, para desenhar a circunferência, eles fixam uma das extremidades do barbante em um dos vértices da grade, esticam o barbante até o vértice seguinte e, com o giz na outra extremidade do barbante, fazem o risco. Nenhum desses conceitos foi nomeado pelos trabalhadores enquanto faziam os desenhos, porém eles foram acionados. Quando Louro foi perguntado sobre como ele sabia o tamanho da barra de ferro que utilizaria para fazer a circunferência, ele respondeu: “É fácil. É só multiplicar esse pedaço aqui [se referindo ao diâmetro] por 314, é sempre por 314”.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 4 Exemplo de desenho-guia feito com giz e barbante no chão do barracão 

Desse modo, Louro realizava uma operação de cálculo do perímetro de uma circunferência, em que se multiplica o seu diâmetro pelo número π (π ≈ 3,14). Além disso, efetua uma conversão de unidades de medida que acaba por reduzir a dificuldade da operação, de modo que não é necessário efetuar uma multiplicação com um número decimal (3,14), mas, sim, com um número inteiro (314). No caso da circunferência maior que aparece na imagem, por exemplo, ele multiplica o diâmetro de 1 metro por 314 e obtém como resultado o número 314 – que Louro sabe não se tratar de 314 metros, mas, sim, de 314 centímetros, isto é, 3,14 metros. Assim, o serralheiro corta uma barra de ferro de aproximadamente 3,14 metros para ser forjada até que tome a forma da circunferência desenhada. Isso acontece porque, para facilitar a operação, o número π fora multiplicado por 100 (3,14 x 100 = 314), mesma operação utilizada para converter metros em centímetros (1 metro equivale a 100 centímetros). Esse jogo de conversão de medidas acontece de maneira intuitiva – mas não impensada – para Louro, que, pelos anos de experiência no labor, têm noção das ordens de grandeza das peças que fabrica.

A etapa seguinte consiste, então, em moldar a estrutura metálica de acordo com os desenhos riscados. Utilizando os guias desenhados no chão, Kiki e Louro iam batendo em barras de ferro até que elas se encaixassem no modelo feito. Nessa etapa, utilizavam marretas, alicates e os próprios braços para fazerem torções e puxões na peça, além de utilizarem a máquina de solda para amolecer o ferro. Na Figura 5, vemos uma peça em formato sinuoso que começa a se aproximar dos riscos no chão.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 5 Peça de ferro sendo moldada de acordo com a imagem desenhada no chão 

Para realizar esse trabalho, os artistas precisavam constantemente comparar a peça que preparavam com os desenhos feitos no chão e, por extensão, com o modelo de projeto. Para D’Ambrosio (2011, p. 33), “[...] avaliar e comparar dimensões é uma das manifestações mais elementares do pensamento matemático”. Assim, uma Etnomatemática é praticada em todo o processo de construção da estrutura dos carros, desde o momento em que visualizam o projeto até aquele em que as peças já estão prontas para serem montadas. Nesse percurso, os artistas põem em prática técnicas para conhecer e lidar com suas demandas de trabalho e, assim, se apropriam do projeto dos carros, decifram sua escala, projetam seu desenho no chão e moldam suas peças – fazendo com que, a cada traçado, medição ou martelada, manifestações matemáticas sejam acionadas.

Depois de dias de trabalho na conformação das peças, elas começam a tomar forma e se assemelhar aos desenhos projetados. A base para a peça que representaria o Divino Espírito Santo pode ser vista, já finalizada, na Figura 6.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 6 Estrutura metálica de peça que representa o Divino Espírito Santo 

Dando sequência ao trabalho, Anna e Hudson formam a subequipe de adereços e são responsáveis pelo revestimento e pela ornamentação dos carros. Ambas são homens gays de origem indígena Tupinambá. Anna completou o Ensino Médio e Hudson não concluiu essa etapa da escolarização.

Logo após finalizadas as estruturas metálicas por Louro e Kiki, chegou a vez das aderecistas fazerem o revestimento de todas as peças, além da aplicação de placas decoradas. Também nessa etapa de adereçagem, havia uma estimativa e escolha dos materiais que seriam utilizados, com base no projeto elaborado pelo carnavalesco. Para a aderecista Hudson, essa forma de trabalho era uma novidade, pois estava acostumada a ela mesma definir os materiais a serem usados e, a partir disso, estipular a quantidade que deveria ser comprada. Na Protegidos, no entanto, embora estivesse no comando da equipe de adereços, a equipe parintinense era subordinada a Louro que, por sua vez, era subordinado a Beirão. Desse modo, Hudson e Anna Paula tinham que se adaptar às materialidades que eram fornecidas pela escola:

E a quantidade de material para os adereços, era você que pedia para a escola, como que fazia? (pesquisadora)

A gente tinha que calcular. É, a parte é minha, né? Mas esse ano eu não fiz uma planilha de material, eu me adequei ao que tinha na escola, entendeu? Eles tinham e eu fui adaptando pra dentro do Carnaval, entendeu? Não tinha uma lista de material específica minha para o carro.

Então, deixa eu ver se eu entendi… Tem duas formas: ou você faz uma lista e a escola dá ou então você tem que se virar com o que a escola dá.

— Isso!

Aí nesse caso aqui você teve que se virar.

É o “vá com deus”! [risos]

Entendi [risos]. É a técnica do “vá com deus”.

— É…

E quando não é o “vá com deus”, você faz uma planilha então?

— Sim, uma lista de material pra eles providenciarem, entendeu?

Entendi. E a quantidade você sabe... tipo vendo o desenho...?

É, pelo desenhoE agora como eu já conheço os carros, né, já fica até melhor, entendeu? Eu já sei que 50 metros de tecido enfestado não dá pra fechar um carro daí, tem que ter mais.

Ah, tá! E como é que você percebeu isso?

Pela quantidade que a gente ia usando

Tipo, tinha 50 e não deu pra fechar?

Não fechava!

Aí para o próximo ano já fica melhor, né? Vai melhorando assim ao longo dos anos.

— Sim.

(Hudson, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

A técnica do vá com deus expressada por Hudson retoma também a ideia de percepção e apreensão, acionada desde a concepção do enredo pelo carnavalesco, de modo que pudesse adaptar seu trabalho e suas criações aos recursos que lhe eram disponíveis. Além disso, demonstra um processo de aprendizado com a circunstância, em um primeiro momento desfavorável, de falta de material para revestimento do carro.

Por serem parceiras de trabalho há anos, Anna Paula credita a Hudson boa parte do que tivera aprendido sobre a arte que criam para o Carnaval:

Como você aprendeu a trabalhar com tecido, costurar e tudo mais? (pesquisadora)

– Eu acho que foi coisas da gente aprender mesmo da vida, entendeu? Porque essas coisas que eu sei fazer agora foi tudo olhando, direitinho, como se fazia, como se cortava, como faz a metragem, entendeu? Eu aprendi muito com o Hudson! Eu não gostava de Carnaval. Eu gostava mesmo era de dançar, sempre gostei de danças folclóricas: Ciranda, Quadrilha, Boi Bumbá... Eu entrei mesmo para o Carnaval depois que eu conheci o Hudson. Aí também eu sempre fui, como é que se diz? Eu esqueci da palavra... Eu fui muito, eu sempre fui curioso. Então sempre tive curiosidade de aprender esse tipo de coisa. Aí foi que eu entrei no ramo. Agora trabalho há mais de 15 anos. Agora eu sei fazer de tudo um pouco: Carnaval, eu faço roupa de Ciranda, roupa de Quadrilha, item de Boi. E foi assim até hoje em dia eu vir para aqui em Florianópolis. Mas eu já fiz muitas coisas já no Carnaval de Manaus.

[...]

E você chegou a fazer tipo algum curso, alguma coisa, ou foi aprendendo?

Eu fui aprendendo, como se diz, na marra né, na tora. Só de olhar assim. E também tem as pessoas que são qualificadas, né. A gente vai olhando, olhando, aí não dá, não demora, a gente tá fazendo. Tudo que ele faz a gente faz. E o Hudson assim também me ensinou muito, que eu aprendi muito com o Hudson.

(Anna Paula, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

A dimensão da curiosidade apresentada na fala de Anna Paula lembra-nos que Paulo Freire a classifica como uma manifestação vital e inerente ao processo de aprendizagem:

A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos. (FREIRE, 2006, p. 32).

As falas de Hudson também se aproximam da dimensão da curiosidade, que é movida por um não saber/fazer. Conforme conta no excerto a seguir, a aderecista começou a trabalhar com fantasias e adereços para fazer suas próprias roupas e desfilar no Carnaval:

[Eu aprendi] por birra, né. Que comecei saindo como destaque. Passei o dia todinho na casa de um amigo pra ele talhar uma roupa pra mim. Ele pegou o jornal, dobrou, fez um buraco no meio e arredondou. Agora eu digo “ah não, agora não vou passar mais por isso”. Aí primeiro ano foi muito feia minha roupa né [risos], que a gente fez. Eu e meu amigo né, como eu te disse, que a gente chegou na avenida... Colei com cola branca em cima de uma napa, quando eu cheguei na avenida não tinha mais uma lantejoula! Aí começou. Eu digo “ah no ano que vem ninguém vai passar por isso não, vamos trabalhar em cima disso”. Aí começamos a trabalhar fazendo a minha própria roupa.As pessoas gostaram, aí depois já começaram a encomendar, entendeu? Comecei com... Fazer destaque, roupa de mulata, rainha, né. Mas minha vontade era porta-bandeira, meu sonho era porta-bandeira, né. Aí conseguimos também, fizemos várias em Manaus. Ganhamos algumas, perdemos outras, né... A trabalho. E montamos um ateliê quando a gente conheceu os meninos [da sua equipe do ateliê], entendeu?

– Os meninos já eram do Boi, do Carnaval, ou não? (pesquisadora)

– Não. Engraçado assim. Eles chegavam lá em casa né, aí ficavam olhando, ficavam abismados, achavam muito bonito e queriam ser como eu... Aí começaram. Pediam pra cortar papelão, pra riscar... Aí ficou aí hoje em dia, a bicha [Anna Paula], ela arrasa. (Hudson, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Tanto na fala de Anna Paula quanto de Hudson fica demarcado o processo de aprendizado por meio da curiosidade, da observação, da imitação, da repetição – de modo que assim se compartilham técnicas e métodos no desejo de aprender a lidar com as suas práticas sociais específicas, ou, com Paulo Freire (2006, p. 25), por intermédio da “[…] força criadora do aprender, de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita”.

A relação de aprendizado estabelecida entre as/os artistas também fica bastante evidente em uma fala de Mestre Louro, que explica por que ele é chamado dessa forma:

– Eu tenho uma história muito boa, cara, no Carnaval aqui. Eu tenho um nome muito conhecido em Florianópolis. Eles costumam me chamar de Mestre Louro, porque eu pego as pessoas assim oh [apontando para mim] e costumo ensinar assim. Aí a gente não tem essa arrogância de ficar com o que a gente aprende pra si mesmo, sabe? É uma coisa que a gente tem que passar pras pessoas. Não adianta você ter um dom ou ter um, sei lá, uma facilidade de trabalhar em qualquer área de trabalho, se você vai morrer e não vai ficar com aquilo, não passa para seus filhos. Não tem humildade de uma pessoa vir perguntar e você explicar como é que funciona, como que faz. Então eu acho legal. E as pessoas começaram a me chamar de Mestre Louro em Florianópolis. (Mestre Louro, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Da mesma forma que seus companheiros de barracão, Mestre Louro dá ênfase ao conhecimento adquirido na prática, durante os muitos anos de sua atuação como serralheiro:

Como você aprendeu a fazer tudo isso? (pesquisadora)

– Olha, fica difícil até explicar, né, porque a maioria das pessoas de Parintins, pelo menos lá da minha cidade, a maioria não tem um professor, não tem um colégio que ensine né. Lá a gente costuma dizer que tem artista por cada metro quadrado, qualquer pessoa de qualquer casa sabe fazer alguma coisa de… Qualquer coisa. De arte, relacionado a arte. Ou um artesanato com cipó, ou com guardanapo, sei lá, com qualquer objeto a gente consegue criar alguma coisa. Então, eu costumo dizer que nós de Parintins somos autodidatas, a gente aprende fazendo, na verdade. A gente vai observando as pessoas ou vai fazendo os trabalhos e vai criando, né. Na hora da execução do serviço que surgem as ideias. Então na minha concepção seria bem isso. Não sei outros artistas, como é que eles enxergam essa parte, mas, no meu ver e na minha experiência de trabalho, eu aprendi tudo assim, foi fazendo. Bem prático, sabe? (Mestre Louro, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Mais uma vez, Paulo Freire ajuda-nos a compreender as relações educativas apontadas pelas/os artistas, as quais podem ser entendidas a partir do conceito de saber da experiência feito, que é o conhecimento desenvolvido a partir da própria experiência e da necessidade do sujeito em lidar com sua vida cotidiana e seu trabalho, de modo a criar e recriar seu próprio mundo. Nessas relações, vemos evidenciada a ideia freireana já observada por Cristiana Tramonte ao estudar, décadas antes, a ação pedagógica das escolas de samba florianopolitanas: Ninguém educa ninguém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens [e as mulheres] se educam entre si, mediatizados[as] pelo mundo, e aqui acrescentamos, do samba. Assim, as/os trabalhadoras/es criam técnicas de fabricação atravessadas por ideias matemáticas que são produzidas no encontro com a realidade imediata do seu trabalho e aprendidas no encontro com o outro.

Hudson também deixa evidente esse aspecto do aprendizado pela prática quando questionado, passado o Carnaval, sobre como ele poderia ensinar a realizar as suas funções na escola:

E se você tivesse que ensinar alguém a fazer tudo que você fez esse ano na Protegidos, se você tivesse que me ensinar, como que você faria? (pesquisadora)

— Se tivesse que pegar umas aulas práticas? [risos]

É! Uma aula.

— Mas… É melhor, é melhor na prática, né! [risos] Como tu viu lá com a gente, que é muito mais detalhado, né… Entendeu? E começaria tudo de novo, com quem quer que seja, entendeu? A paciência eu tenho.

(Hudson, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

A fórmula parece simples: curiosidade e observação para aprender, paciência e humildade para ensinar.

O fato de todas/os intitularem-se artistas traz consigo também a dimensão da criação, que toma particular importância na hora de construir os carros. Ainda que, a princípio, as/os trabalhadoras/es do barracão tenham de limitar-se a executar o projeto desenvolvido pelo carnavalesco, constantemente as/os artistas fazem alterações e, por que não dizer, melhorias nas alegorias. Em uma fala de Anna Paula, a aderecista demarca bem essa criatividade que acompanha o trabalho do grupo:

Eu gosto de expandir a minha arte, sabe? Eu gosto de “viajar”. Eu “viajo” muito, muito, muito, muito muitas nessas coisas assim. Eu gosto de criar. Às vezes eu tô fazendo uma coisa em cima do desenho, mas eu vou além do desenho, entendeu? A gente vai além do desenho. A gente não faz aquela mesma coisa. Fica bem melhor do que o desenho. Vou fazer uma cartola: a gente pega uma cartola, vaza a cartola, entendeu? A gente manda fazer tela de arame, a gente cria em cima do arame. E é assim. (Anna Paula, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Assim, embora tenham um modelo a seguir, nos moldes da Etnomatemática do branco, as/os artistas vão além e usam suas próprias técnicas para criar e recriar suas peças. D’Ambrosio (2008) defende que a Educação Matemática deve ser orientada para a criatividade – e, também, para a curiosidade já tão demarcada nas falas dos sujeitos –, reforçando que “[…] a invenção matemática é acessível a todo indivíduo e a importância dessa invenção depende do contexto social, político, econômico e ideológico” (D’AMBROSIO, 2008, p. 13). Dessa forma, as artes e as técnicas desenvolvidas no contexto específico do barracão de Carnaval configuram uma Matemática inventada fora da academia – não só em termos espaciais, mas também em termos epistemológicos. Uma Matemática acessível e importante àquelas/es que ocupam esse lugar.

Assim como a Matemática acadêmica e a ciência moderna, os métodos desenvolvidos pelas/os artistas também apresentam limitações e contradições. Por um lado, as intervenções feitas pelas/os trabalhadoras/es no projeto inicial fazem com que o resultado fique com detalhes mais bem elaborados e mais atrativos, o que contribui para o sucesso na avaliação das alegorias pelas/os juradas/os. Por outro, constantemente vão surgindo demandas de materiais que não constavam no planejamento inicial, o que faz com que a escola tenha de gastar mais do que o esperado. No entanto, diretoria e trabalhadoras/es do barracão acabam sempre entrando em algum acordo, de modo que os dois lados da situação se equilibrem, buscando, por exemplo, materiais alternativos para a execução das novas ideias propostas pelas/os artistas, pois a questão financeira é uma preocupação permanente no barracão – desde os detalhes do carro até a quantia usada para compra de alimentos.

Ainda no revestimento dos carros, Hudson desenvolvia algumas estratégias para facilitar o seu trabalho. Uma vez que precisava colar quatro diferentes camadas de aviamento na lateral do segundo carro, montou uma espécie de conjunto de desbobinadores, que giravam em torno de eixos criados inserindo pedaços de vergalhão em um bloco de isopor (Figura 7). Quando precisavam fazer colagem de aviamentos apoiados em alguma mesa, Hudson e Anna Paula faziam um procedimento semelhante: colavam um tubo de cola quente perpendicular à mesa, utilizando a própria cola quente já derretida, e o usavam como um eixo para apoiar os rolos de aviamento. Embora os equipamentos construídos demonstrem um grande domínio de tecnologia, as aderecistas lidavam com aquilo de forma muito natural, não se atentando à complexidade do que haviam criado.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 7 Conjunto de desbobinadores criado por Hudson 

Para facilitar certas medições, Hudson utiliza o próprio corpo e algumas aproximações conhecidas:

Pra fazer um metro, é só esticar o braço, entendeu? Sabia que teu isso aqui do braço [apontando para o antebraço] é do tamanho do seu pé? Teu braço aberto é o teu tamanho. E teu pescoço é a tua cintura.

[...]

Cada um tem uma técnica, né? Eu só acho que eles [artistas de Santa Catarina] têm uma técnica muito pesada, a nossa é mais leve. O pessoal pergunta como que eu consigo, eu digo ‘eu não sei’. (Hudson, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Uma das técnicas mais utilizadas por ela é a que aproxima a medida de um metro da distância entre o queixo e a mão, com um dos braços esticados – como aparece na Figura 8, que mostra um dos momentos em que Hudson faz uso da estratégia para medir a quantidade que precisava de tecido.

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 8 Hudson usando o corpo para medir um metro de tecido 

Mesmo não usando um instrumento de medição convencional, como uma trena ou fita métrica, Hudson afirma que não comete grandes erros – e classifica como grandes os erros na faixa dos 4 a 5 metros. Só que, nesse caso, cabe ainda dizermos que essa medida de 4 ou 5 metros é no metro dele, que ele mede com o corpo. Ainda que não haja uma preocupação com a exatidão da medição, Hudson demonstra que, mesmo que o metro medido por ele não valha o mesmo que o metro definido como padrão, o resultado vai acontecer e vai ser bom também para a escola, por não desperdiçar tanto material. Nessa situação, ainda, vemos novamente a dimensão do pensamento matemático elementar, de avaliar e comparar dimensões e, assim, realizar medições, pois medir é comparar.

A não preocupação com a exatidão, demonstrada não somente na fala de Hudson, mas também nas narrativas de Louro e Anna Paula, nos atenta para essa característica das Etnomatemáticas, a qual justamente se contrapõe ao rigor da Matemática acadêmica. Para Boaventura de Sousa Santos (2001), o rigor com as medições é uma das consequências do lugar central que a Matemática ocupa na ciência moderna, fazendo com que conhecer e quantificar tenham o mesmo significado: “O conhecimento científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável não é cientificamente relevante” (SANTOS, 2001, p. 15). Assim, é constituída uma linha radical (SANTOS, 2009) que separa duas formas de praticar Matemática, de modo que somente aquela fundamentada em medições exatas é afirmada como válida.

Louro chamava as invenções e as estratégias de seu grupo, isto é, sua Etnomatemática, de “engenharia da floresta”. Algumas de suas iniciativas eram inclusive um pouco arriscadas, como a máquina (Figura 9) que inventara para fazer as esculturas de isopor. O equipamento consistia em um fio de corte que era aquecido por um conjunto de resistências, de modo a derreter e cortar blocos de isopor – e ele mesmo classificava seu uso como “totalmente perigoso” e “errado”:

Fonte: Acervo da pesquisa.

Figura 9 Equipamento criado por Louro para esculpir isopor 

A gente diminui aqui, põe a resistência mais perto, e ela aumenta a carga de tensão lá no final do fio. Agora isso aqui é totalmente perigoso, isso aqui tá errado. Era pra ter uma tampa aqui e só os fiozinhos de fora. Se pega um aramezinho desse e cai aqui dentro... Isso aqui na verdade é até proibido. (Hudson, aderecista, em conversa com a pesquisadora, grifos nossos).

Mais uma vez, ficam evidentes as invenções das/os artistas. D’Ambrosio (2107) explica que essas invenções são mesmo parte do que se pretende observar em pesquisas no âmbito do Programa Etnomatemática: para solucionar problemas específicos (por exemplo, cortar o isopor), desenvolvem-se métodos (utilizar um fio de corte aquecido), que se desenvolvem em teorias (resistências elétricas produzem calor, que podem aquecer o fio), que, por fim, se desenvolvem em invenções (acoplar resistências a um tijolo e criar um sistema para cortar o isopor). E, assim, “[…] esses grupos desenvolvem seus próprios procedimentos, possuem jargões específicos e teorizam suas próprias práticas, que se desenvolvem em métodos e abrem o caminho para novas e criativas invenções” (D’AMBROSIO, 2017, p. 663, tradução nossa).

As técnicas utilizadas pelas/os trabalhadoras/es podem, ainda, ser entendidas a partir do conceito d’ambrosiano de tecnoracia, que consiste na “[…] capacidade de usar e combinar instrumentos, simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas possibilidades e suas limitações e a sua adequação a necessidades e situações diversas (instrumentos materiais)” (D’AMBROSIO, 2005, p. 119). Assim, Hudson e sua equipe vão além da capacidade de usar equipamentos já existentes, criando e combinando diferentes técnicas e tecnologias, como o corpo e os fragmentos de materiais aparentemente sem utilidade.

Assim, acompanhando o processo de construção dos carros alegóricos no barracão da resistência do samba, vimos de perto múltiplas possibilidades de saber/fazer Matemática, apresentadas na forma de artes e técnicas usadas pelas/os trabalhadoras/es para lidar com as demandas específicas emergidas daquele contexto.

Dentre as Matemáticas acionadas, muito se fez presente também a Matemática acadêmica, principalmente a partir dos desenhos de projeto elaborados no ateliê do carnavalesco Beirão. Assim, naquele espaço, saberes atravessavam-se e davam origem a uma Etnomatemática própria e para aquele fim específico. A esse propósito, D’Ambrosio (2005, p. 117) lembra-nos de que “[…] a etnomatemática do branco serve para outras coisas, igualmente muito importantes, e não há como ignorá-la. Pretender que uma seja mais eficiente, mais rigorosa, enfim, melhor que a outra é, se removida do contexto, uma questão falsa e falsificadora”.

O que nos interessa pontuar com esses encontros com sujeitos e Matemáticas múltiplas no barracão, enfim, é que não só é possível como necessário o atravessamento entre diferentes formas de saber e fazer Matemática, cada qual com seus limites e suas possibilidades. Para isso, é preciso, antes, entender que não há uma forma melhor, certa ou única – e entendida como branca, masculina e do asfalto – de fazer Matemática, mas, sim, uma maneira adequada para determinado fim e determinado contexto histórico, cultural e político.

Vai, barracão, tua voz eu escuto13

Matemática é uma coisa que eu gosto. Eu gosto bastante.

E o tempo também foi dizendo, para fazer metragem nos trabalhos, aí fui gostando mais ainda.

Hudson, aderecista da Protegidos da Princesa.

O campo de estudos da Etnomatemática foi iniciado em 1984 por Ubiratan D’Ambrosio com a criação do “Programa Etnomatemática”, um programa de pesquisa que inclui o estudo das diferenças culturais nas diversas formas de conhecimento, a partir da análise das práticas matemáticas e suas implicações políticas e pedagógicas, com especial interesse em investigar artes e técnicas (tica) de explicar e conhecer (matema) em contextos culturais (etno) que sofrem tentativas de subalternização e de invisibilização – como é o caso de manifestações culturais de matrizes africanas e afro-brasileiras, que são historicamente vítimas de perseguições sustentadas pelo racismo.

Partindo do entendimento de que as agremiações são um espaço educador, de resistência e de reinvenção, atentamo-nos para o fato de que o modo de organização das escolas de samba traz também novos componentes artísticos para o cortejo de Carnaval, como adereços, fantasias e alegorias – cujos modos de apresentação e técnicas de fabricação são também ensinados às demais agremiações. Ainda, no interior dos barracões, a relação de aprendizado estabelecida entre trabalhadoras/es do mundo do samba pôde ser evidenciada a partir das narrativas e práticas etnomatemáticas identificadas durante a pesquisa.

Assim, foram apresentadas formas de saber/fazer Matemática praticadas no Morro do Mocotó, habitado majoritariamente pela população negra e pobre da cidade de Florianópolis14, à qual é negado o direito de reconhecimento na qualidade de sujeitos produtores de conhecimento, considerando as categorias raça, gênero, classe e território como elementos que caracterizam a Matemática acadêmica e que, ainda, compõem a realidade das escolas de samba com as quais a pesquisa se desenvolveu.

Destacaram-se processos educativos por meio da curiosidade, da observação, da imitação, da repetição – de modo que assim se compartilhavam técnicas e métodos no interesse de aprender a lidar com as demandas sociais específicas dos barracões. Ainda, observamos que as/os artistas desenvolvem materiais para resolver as demandas das produções dos carros alegóricos, como desbobinadores e máquinas de corte improvisadas, além de técnicas de desenho, de forjamento, de fabricação e de otimização de recursos.

Durante a pesquisa, procuramos nos distanciar de critérios rígidos enganosos e nos aproximar daquilo que julgamos, tal qual a epistemologia feminista negra apresentada por Patricia Hill Collins (2019), ser mais confiável que a teoria apresentada no campo da Matemática e da própria Educação Matemática: a experiência das pessoas – com corpo e com nome – que sabem e fazem Matemática.

Nessa lógica, na construção da pesquisa, o que buscamos foi apresentar o sentido que demos às narrativas que aconteciam no caminho trilhado junto aos sujeitos. Longe de apontarmos e legitimarmos como Matemática suas narrativas e seus códigos, nosso objetivo, de fato, foi identificar as práticas etnomatemáticas das/os trabalhadoras/es que construíram a pesquisa conosco. Nosso papel, portanto, foi fazer com que as narrativas etnomatemáticas produzidas nos barracões fossem ecoadas, mostrando, também, como esses conhecimentos nos afetavam. Ao ouvirmos as narrativas, aprendemos com as pessoas e com as histórias envolvidas na pesquisa.

Nesse contexto, realizarmos esta pesquisa com samba, Educação, Matemática e Relações Étnico-Raciais significou e significa, sobretudo, fazer uma pesquisa comprometida com a vida e que dá sentido à Educação que se constitui para muitos grupos como forma de re-existir, estabelecendo conexões entre mundos que parecem tão distintos, mas que nos possibilitam pensar em uma Educação Matemática que se dá em diferentes contextos, espaços e tempos.

1Anna Paula e Hudson referem-se a si mesmas e, também, uma à outra de maneira fluida, usando ora o gênero feminino, ora o masculino, sendo Anna Paula nome social. Assim sendo, referimo-nos a elas da mesma forma neste texto.

2A expressão “resistência e reinvenção” foi trazida por Evandro Salles, Marcelo Campos, Clarissa Diniz e Nei Lopes na curadoria da exposição “O Rio do samba: resistência e reinvenção”, exibida no Museu de Arte do Rio (MAR), na cidade do Rio de Janeiro (SALLES et al., 2018).

3Tal citação de Paulo Freire encontra-se em seu livro Pedagogia do Oprimido.

4Não no sentido biológico, mas da dinâmica das diferenças culturais, a partir das práticas matemáticas.

5A pesquisa foi desenvolvida com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, na modalidade de bolsa de Demanda Social (Capes DS) concedida à pesquisadora.

6Trecho do samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba (G.R.E.S.) Acadêmicos do Grande Rio em 2010.

7Ubiratan D’Ambrosio entende “Programa de Pesquisa” a partir do sentido apresentado por Imre Lakatos: “[...] programa consiste em regras metodológicas: algumas nos dizem caminhos de pesquisa que devem ser evitados (heurística negativa), outras nos dizem caminhos que devem ser seguidos (heurística positiva)” (LAKATOS, 1978, p. 47, tradução nossa).

8A proposta de pesquisa in loco passou pela avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina e foi aprovada, estando registrada sob o Número do Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE): 17677019.7.0000.0121. Os nomes das/os participantes foram mantidos, com autorização destas/es.

9Título do samba-enredo da G.R.E.S. Arranco do Engenho de Dentro em 1991.

10O enredo escolhido para o ano de 2019 foi Xirê – a festa dos Orixás, desenvolvido a partir da reedição de um samba-enredo já apresentado pela escola 35 anos antes.

11 D’Ambrosio (2005) utiliza esse termo originalmente para se referir à Matemática imposta pelos europeus à Educação Indígena.

12Escalímetro é um instrumento de desenho e medição que possui réguas em diferentes escalas de comprimento e é utilizado para medir e fazer representações reduzidas ou ampliadas de objetos. No caso do escalímetro utilizado no barracão, o instrumento representava seis diferentes escalas (1:20, 1:25, 1:50, 1:75, 1:100 e 1:125) e era utilizado para converter as dimensões de projeto, em escala reduzida, para dimensões reais.

13Trecho do samba “Barracão de Zinco”, composto por Luiz Antonio e Oldemar Magalhães e eternizado na voz de Elizeth Cardoso.

14Em sua pesquisa sobre os territórios negros de Florianópolis, a geógrafa e professora Azânia Nogueira (2018) elaborou um mapa com base em dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, que mostra que os morros da região central – que inclui o Morro do Mocotó – são a região da cidade mais habitada pela população negra.

Referências

BRASIL. Decreto Nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Codigo Penal. Brasília: Câmara dos Deputados, [1890]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 25 mar. 2022. [ Links ]

CABRAL, S. Escolas de samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli, 2016. [ Links ]

COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. [ Links ]

CRUZ, C. Único carnavalesco negro que assina sozinho um desfile no Grupo Especial fala sobre racismo: ‘Não é mimimi. Só quem passa é que sabe’. Notícia Preta, 18 abr. 2019. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/unico-carnavalesco-negro-que-assina-sozinho-um-desfile-no-grupo-especial-fala-sobre-racismo-nao-e-mimimi-so-quem-passa-e-que-sabe/. Acesso em: 20 mar. 2020. [ Links ]

D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. 4. ed. São Paulo: Afiliada, 1998. [ Links ]

D’AMBROSIO, U. Sociedade, cultura, matemática e seu ensino. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 99-120, jan./abr. 2005. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022005000100008Links ]

D’AMBROSIO, U. O Programa Etnomatemática: uma síntese. Acta Scientiae, Canoas, v. 10, n. 1, p. 7-16, jan./jun. 2008. [ Links ]

D’AMBROSIO, U. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. [ Links ]

D’AMBROSIO, U. Ethnomathematics and the pursuit of peace and social justice. Educação Temática Digital, Campinas, v. 19, n. 3, p. 653-666, 2017. DOI: https://doi.org/10.20396/etd.v19i3.8648367Links ]

D’AMBROSIO, B.; LOPES, C. Insubordinação criativa: um convite à reinvenção do educador matemático. Bolema, Rio Claro, v. 29, n. 51, p. 1-17, 2015. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4415v29n51a01Links ]

DINIZ, A. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. [ Links ]

FERNANDES, J. J. L. S. A voz do morro: narrativas etnomatemáticas produzidas no Carnaval de escolas de samba de Florianópolis. 2020. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 33. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2006. [ Links ]

LAKATOS, I. Falsification and the Methodology of Scientific Research Programmes. In: WORRALL, J.; CURRIE, G. (org.). The Methodology of Scientific Research Programmes. Cambridge: Cambridge University Press, 1978. p. 8-101. (Philosophical Papers, v. 1). [ Links ]

MADRUGA, Z. E. F. A criação de alegorias de carnaval: das relações entre modelagem matemática, etnomatemática e cognição. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Matemática) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. [ Links ]

NETO, L. Uma história do samba: as origens. v. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [ Links ]

NOGUEIRA, A. M. R. Territórios negros em Florianópolis. 2018. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. [ Links ]

SALLES, E. et al. O Rio do samba: resistência e reinvenção. Rio de Janeiro: Instituto Odeon, 2018. [ Links ]

SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. D. S.; MENESES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 23-71. [ Links ]

SANTOS, B. S. Um discurso sobre as ciências. 12. ed. Porto: Edições Afrontamento, 2001. [ Links ]

SIMAS, L. A. O Carnaval e o samba na cultura brasileira. Philos TV, 2019. Disponível em: https://youtu.be/0aJgAortyng. Acesso em: 20 mar. 2020. [ Links ]

SODRÉ, M. Samba, o dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. [ Links ]

TRAMONTE, C. O samba conquista passagem: as estratégias e a ação educativa das escolas de samba de Florianópolis. Florianópolis: Núcleo de Publicações do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, 1996. [ Links ]

Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 24 de Março de 2022; Aceito: 26 de Março de 2022; Publicado: 05 de Abril de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.