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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 20-Jan-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.21395.095 

Artigos

O nome da flor: diálogos entre Paulo Freire, Francisco Brennand e as decolonialidades

The name of the flower: dialogues between Paulo Freire, Francisco Brennand and decolonialities

El nombre de la flor: diálogos entre Paulo Freire, Francisco Brennand y decolonialidades

Franciele Clara Peloso* 
http://orcid.org/0000-0002-9647-001X

Paola Andressa Scortegagna** 
http://orcid.org/0000-0002-1243-1989

João Colares da Mota Neto*** 
http://orcid.org/0000-0003-3346-1885

*Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) - campus Pato Branco. Doutora em Educação.

**Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutora em Educação.

***Universidade do Estado do Pará (UEPA). Doutor em Educação.


Resumo

Este artigo resulta de uma investigação no âmbito de Pós-doutorado que objetivou compreender como as artes visuais e as estéticas delas decorrentes contribuem para processos de colonização e/ou decolonização. Trata-se de um ensaio teórico que explora alguns conceitos e categorias presentes nos estudos decoloniais e freirianos como suporte para pensar as artes visuais e as estéticas delas decorrentes a partir de um diálogo com o artista Francisco Brennand e sua obra. Afirma-se a necessidade de compreender a arte e os processos criativos de imagens e de diferentes linguagens como caminhos dialógicos e de reexistência, como possibilidade de enfrentamento e como superação aos ditames coloniais.

Palavras-chave: Arte; Decolonialidade; Francisco Brennand; Paulo Freire.

Abstract

This article results of a postdoctoral investigation that aimed to understand how the visual arts and the aesthetics arising from them contribute to colonization and/or decolonization processes. It is about a theoretical essay that explores some concepts and categories present in decolonial and freirian studies as a support for thinking about the visual arts and the aesthetics arising from them, based on a dialogue with the artist Francisco Brennand and his work. It is affirmed the need to understand art and the creative processes of images and different languages as dialogical paths and re-existence, as a possibility of confronting and overcoming colonial dictates.

Keywords: Art; Decoloniality; Francisco Brennand; Paulo Freire.

Resumen

Este artículo es resultado de una investigación posdoctoral, que tuvo como objetivo comprender cómo las artes visuales y las estéticas resultantes de ellas contribuyen para los procesos de colonización y/o decolonización. Se trata un ensayo teórico que explora algunos conceptos y categorías presentes en los estudios decoloniales y freireanos como soporte para pensar las artes visuales y las estéticas resultantes de ellas a partir de un diálogo con el artista Francisco Brennand y su obra. Se afirma la necesidad de comprender el arte y los procesos creativos de imágenes y de diferentes lenguajes como caminos dialógicos y de reexistencia, como posibilidad de enfrentamiento y como superación a los dictámenes coloniales.

Palabras clave: Arte; Decolonialidad; Francisco Brennand; Paulo Freire.

Corazonamentos iniciais

Este artigo resulta de uma investigação no âmbito de Pós-doutorado que objetivou compreender como as artes visuais e as estéticas delas decorrentes contribuem para processos de colonização e/ou decolonização. O que compartilhamos aqui é a descrição do processo investigativo com a intenção de contribuir para os debates epistêmicos, ontológicos e metodológicos decoloniais. Trata-se de um ensaio teórico que explora alguns conceitos e categorias presentes nos estudos decoloniais e freirianos, sensibilidade teórica que nos move, que nos ajuda a olhar e que sustenta o diálogo a que nos propomos com o artista Francisco Brennand e sua obra.

De acordo com Walter Mignolo (2017), a decolonialidade é uma opção que não consiste em um novo universal ou mesmo supera as demais opções existentes. Trata-se de um opção teórica, epistêmica, ética, estética, política, cultural de cosmopercepção de mundo. Essa opção compreende que a sociedade, como experienciamos, foi moldada e segue se moldando a partir de um padrão hegemônico heteronômico desde o período nominado como colonial.

Na América, compreende-se como período colonial a tomada do território pelos europeus e o processo de dominação exercido sobre os povos originários, a partir do século XVI, bem como dos demais povos escravizados. O conjunto dessas ações chamou-se colonialismo. Em decorrência, deu-se a implantação de um sistema de mundo hierarquizado. As sociedades que invadiram e conquistaram territórios espalharam e legitimaram violentamente suas formas de ler, interpretar, sentir, dizer, cheirar, olhar, ouvir, produzir o mundo como única cultura válida. O que conhecemos por colonialismo como processo formal e político foi finalizado na maioria dos países que passaram por essa experiência. No entanto, as feridas da dominação resultantes desse processo, em suas variadas formas e profundidades, seguem abertas, e, a isso, damos o nome de colonialidade.

Intelectuais como Enrique Dussel (1993), Zulma Palermo (2014), Aníbal Quijano (2002), Walter Mignolo (2017), Ramón Grosfoguel (2008), Catherine Walsh (2005), Edgardo Lander (2000), Nelson Maldonado-Torres (2008), dentre outras e outros, pertencentes ao Sul Global e que se dedicam a estudar os impactos da colonialidade, nos ajudam a compreendê-la como reelaboração do pensamento colonial. Essa reelaboração dá-se em diferentes tempos históricos, de forma a retroalimentar e justificar padrões violentos, excludentes e de exploração, tendo por base argumentos pautados, substancialmente, na raça, no gênero, na religião e na classe.

Walsh (2005) aclara que, mesmo com os processos de independência, países da América Latina, da África e da Ásia ainda se encontram reféns de uma cultura de submissão, de inferiorização, de exploração de recursos naturais, da força de trabalho e de tantas e distintas outras formas de opressão que mantêm os padrões impostos pela colonialidade. Assim, os estudos decoloniais são aqueles que buscam questionar e transformar a cultura padronizada decorrente dos movimentos de colonização e de recolonização imposta aos países da América Latina, África e Ásia, pertencentes ao Sul Global. Carlos Walter Porto-Gonçalves (2010) afirma que a opção decolonial busca superar um entendimento homogêneo do mundo da vida e contribuir para o debate epistêmico, a partir de categorias que objetivam descolonizar o poder, o saber e o ser, e nós acrescentamos, ao debate, o ver.

Para Quijano (2002), a colonialidade do poder caracteriza-se pela distribuição desigual dos direitos de ser, de pensar e de existir baseada, sobretudo, no critério da raça. Joaquín Barriendos (2019) acrescenta que a colonialidade do poder é fortalecida, também, a partir da inferiorização racial e epistêmica decorrentes das maquinarias visuais que acompanharam o processo de invasão, de conquista e de dominação, o que caracteriza a colonialidade do ver. Alex Schlenker (2019) afirma que boa parte da colonialidade do poder ingressou por meio de formas estéticas. Ele cita, como exemplo, a pintura e a arquitetura colonial e a música ocidental como referentes acústico e sonoro. Enfatiza, ainda, que a norma da matriz colonial do poder, visual, sonora e corporalmente descende de um referente branco, eurocêntrico e patriarcal.

Walsh (2005) nos alerta que a colonialidade do poder cria mecanismos de controle e uma estrutura de domínio em relação à produção do conhecimento ao validar saberes de origem branca e europeia que passam a ser disseminados pelas instituições, dentre elas a universidade, como conhecimento científico. Lander (2000) afirma que essa dinâmica caracteriza a colonialidade do saber. Nesse sentido, Walsh (2005) evidencia que a valorização do conhecimento científico, compreendido como leitura universalizante do mundo, silencia sujeitos e saberes constituintes de epistemes outras. Desse movimento, origina-se mais uma forma de dominação, a colonialidade do ser.

Maldonado-Torres (2008) corrobora ao afirmar que a colonialidade classificou as pessoas a partir de graus de humanidade tendo como argumento a raça e que isso atribui à colonialidade do poder uma dimensão ontológica. Essa dimensão pode ser entendida como a experiência vivida no mundo a partir da naturalização da violência simbólica e física que se manifesta na dinâmica social e caracteriza a colonialidade do ser.

As colonialidades anteriormente apresentadas colocam-nos na esteira de macronarrativas padronizadas e cimentadas em um projeto de mundo desumanizador. Conforme nos provoca Mignolo (2017), é necessário desprender-se dessas macronarrativas ocidentais e transformar os termos da conversa e não só seu conteúdo.

Em vista disso, tendo como ponto de partida a sensibilidade de mundo1 como expressão epistêmica, ontológica e metodológica, convidamos ao diálogo o artista pernambucano Francisco de Paula Coimbra de Almeida Brennand ou apenas Francisco Brennand, como assinava suas artes. Ele nasceu em 11 de junho de 1927 e deixou o plano terrestre em 19 de dezembro de 2019. É um artista nordestino, brasileiro e sua obra representa a projeção da arte cerâmica brasileira dentro e fora do Brasil, além de se caracterizar como obra autêntica e carregada de simbologia.

A família Brennand é de origem inglesa e chegou ao Brasil em 1821. Ferreira Gullar (2011) afirma que Francisco nasceu em uma família tradicional que começou plantando cana, produzindo açúcar e se voltou, depois, para a fabricação de cerâmica e que esses elementos constituem fontes de sua arte. Diz, ainda, que Francisco herdou os ecos da aristocracia pernambucana; no entanto, também a recusou nas figuras incomuns que inventava e que, certamente, escandalizariam seus antepassados.

Francisco Brennand registrou 60 anos de sua vida em um diário, no qual ele nos dá muitas pistas sobre a sua formação artística, a constituição de sua obra e sua forma de ler, ver e sentir o mundo. Sua formação artística teve início na adolescência. É uma mistura de influências brasileiras e europeias que começou, no Brasil, por estudos orientados por Abelardo da Hora, Álvaro Amorin, Murilo La Greca e se estendeu pelas experiências que teve na Europa, mais especificamente na França e na Itália (BRENNAND, 2016a).

O artista em questão ficou reconhecido mundialmente pela sua arte cerâmica. Entretanto, dedicou-se, também, à pintura, aos desenhos, à tapeçaria, aos murais, aos painéis, à serigrafia, às esculturas e à escrita de textos. Ele afirma que sua força para produzir as esculturas cerâmicas morava em seu coração de pintor (BRENNAND, 2016a, 2016b, 2016c). Sua obra é extensa, grandiosa e plural. Em seus quadros, sobressaem elementos da natureza e, também, a sua admiração pelo corpo feminino. Sua cerâmica é feita de material brasileiro, das multicoloridas argilas do Nordeste e marcada pela variação das cores decorrentes das diferentes temperaturas que atuam sobre os pigmentos quando entram em contato com o fogo, elemento sagrado para o artista. Os temas que compõem suas inspirações são diversos e se materializam em sua obra em motivos sexuais, mitológicos, religiosos, regionais, históricos, da fauna e da flora brasileiras.

A estética resultante do seu trabalho é singular. Destacam-se as cores em tons terrosos, a forma ou a deformação da forma, da dimensão e da técnica, fruto de sua sensibilidade de mundo. Para compor sua obra, Francisco se relacionou intimamente com o barro, o fogo, a água e o ar, além do mergulho em si, nas suas reminiscências, nos seus desejos, nos seus sonhos, nas suas ansiedades, nas suas tristezas, nas suas alegrias que integram a sua existência, e, ainda, do seu contato com outras artes, como a música, a literatura e o cinema. Na sua obra artística, encontramos uma inteireza (a sua inteireza) materializada.

Francisco Brennand deixou como legado a Oficina Cerâmica Francisco Brennand, um museu a céu aberto (Figura 1), localizado em Recife, Nordeste do Brasil. A oficina nasceu no ano de 1971, nas ruínas da Cerâmica São João da Várzea, uma olaria datada de 1917, de propriedade do pai de Francisco. A antiga fábrica de tijolos e de telhas, herdada pelo artista, está localizada nas terras do Engenho Santos Cosme e Damião, no bairro da Várzea, cercada pela Mata Atlântica e pelo Rio Capibaribe. A mata que circunda a Oficina é conhecida por Mata do Segredo. São 15 km2 de área construída (BRENNAND, 2016a).

Fonte: Imagem extraída de Oficina Francisco Brennand (2021).

Figura 1 Oficina Cerâmica Francisco Brennand 

No ano de 2019, a Oficina tornou-se um instituto sem fins lucrativos. A criação do instituto partiu do desejo de Francisco Brennand que doou as instalações da Oficina e um acervo de mais 2.500 obras, além da área que contempla uma reserva ambiental, com o objetivo de ampliar o acesso e preservar seu caráter público. É conhecida como patrimônio nacional e marco cultural de Recife, em Pernambuco, Brasil.

Nas instalações da Oficina, podemos encontrar um conjunto de obras de Francisco Brennand, distribuídas em espaços expositivos, bem como jardins projetados por Roberto Burle Marx, edificações fabris, ateliês, uma capela e, ainda, instalações de uma loja onde são comercializadas algumas peças do artista e café. O Instituto tem buscado desenvolver projetos para expandir o alcance público, realizando atividades a partir de eixos programáticos denominados Natureza, Território e Cosmologias. Esses eixos foram definidos a partir do estudo da obra de Francisco Brennand pelas curadoras do Instituto. Para além de tornar pública a obra do artista, a Oficina integra projetos e produções de outros artistas, entendendo o instituto como espaço de criação, salvaguarda e difusão de arte e educação no Recife. A programação da Oficina é plural, organizada a partir de exposições, programas de residência artística, ações formativas, pedagógicas e de pesquisa, além de eventos culturais2.

Entendemos que, ao dialogar com esse artista, estamos habitando uma fronteira, sentindo e pensando nela. A fronteira a que nos referimos é a de dialogar com um artista que entendemos ser de origem colonial. Esse movimento dá-nos a oportunidade de desprender e resubjetivar as fronteiras epistêmicas e ontológicas quando buscamos compreender como as artes visuais e as estéticas delas decorrentes contribuem para processos de colonização e/ou decolonização. De acordo com Mignolo (2017), nós que habitamos e pensamos nas fronteiras, estamos no caminho e em processo de desprendimento e, para nos desprender, precisamos ser epistemologicamente desobedientes. Tornamo-nos epistemologicamente desobedientes, pensamos e fazemos descolonialmente quando conseguimos olhar, sentir, pisar, cheirar, experimentar, pensar, dizer as histórias locais em enfrentamento com projetos globais. Essa postura desobediente permite-nos imaginar e construir um mundo outro possível; para isso, é importante dialogar a partir de diferenças.

Paulo Freire (2005) se apresenta a nós como escultor de diferenças. Ele nos oferece, a partir da sua elaboração teórica, que é abundante em experiências e leituras de mundo, possibilidades de compreender a diferença como práxis, como um marcador dialógico que nos potencializa na busca da vocação ontológica do ser mais e de um mundo outro, que acolha e respeite a manifestação da vida, de todas as vidas, em unidade, a partir de suas especificidades. Ele nos permite compreender que é justamente a alternatividade dialógica, evidenciada na diferença, que é capaz de promover a compreensão do que é distinto, abrir espaços de transformação e vivificar libertação.

Assim, Paulo Freire nos ajuda a compreender o ser como um ser de relações inserido em um mundo também de relações, e que é capaz de autoria, de criação, porque traz, em sua constituição humana, uma capacidade curiosa, a de perguntar. Desse modo, a curiosidade vai se tornando epistêmica e promotora de humanidade à medida que o sujeito questiona, conhece e produz conhecimento no e sobre o mundo e não apenas mecanicamente o armazena (FREIRE, 2013). O mundo, por sua vez, é um espaço constituído por uma multiplicidade de linguagens que são experienciadas esteticamente; por isso, é espaço de anúncio, de denúncia, de criação, de liberdade e de escolha. Esse movimento de busca da humanidade, que se dá curiosamente, (conhecer-se, conhecer e relacionar-se) permite inserção crítica na realidade. Esse é o sujeito epistêmico de Paulo Freire, capaz de criação, de saber-se no mundo, com o mundo e as pessoas, interagindo por meio de diferenças, experiente para redizer e resaber-se nesse mundo que, atravessado pela interação distinta das consciências, agora já é outro. Um mundo outro onde é possível ser inteireza.

Um dos aspectos da inteireza freiriana é o reconhecimento de que, para conhecer-se, conhecer e relacionar-se é necessário compreender que, dentro de cada pessoa, mora a unidade dialética subjetividade-objetividade. É a partir dessa unidade que se dá a inserção crítica na realidade. Observamos que um dos mofos coloniais é a separação da razão-emoção ou da subjetividade-objetividade.

Em vista disso, Patrício Guerrero Arias (2010) fortalece essa reflexão quando compartilha que uma das formas mais brutais da colonialidade do poder e do ser tem sido a recusa da afetividade como parte constituinte da concepção de conhecimento ao fragmentar a dimensão do humano em defesa da razão cartesiana ocidental. Arias (2010) expressa que essa negação da afetividade legitima uma ordem monocultural hegemônica, que invisibiliza e recusa as diferenças e as distintas formas de tecer a vida. Nesse sentido, ele nos apresenta o conceito de corazonar, como uma resposta insurgente para a decolonização do mundo da vida e da feitura dos conhecimentos:

Corazonar es una respuesta insurgente para enfrentar las dicotomías excluyentes y dominadoras construidas por Occidente, que separan el sentir del pensar, el corazón de la razón. Implica senti-pensar un modo de romper la fragmentación que de la condición humana hizo la colonialidad. En el razonar, la sola palabra connota la ausencia de lo afectivo, la razón es el centro, y en ella la afectividad no aparece ni siquiera en la periferia. Corazonar busca reintegrar la dimensión de totalidad de la condición humana, pues nuestra humanidad descansa tanto en las dimensiones de afectividad como de razón. (ARIAS, 2010, p. 11).

O autor nos explica que a hegemonia da razão é que opera no centro dessa fragmentação - razão versus emoção, ignorando que não somos só o que pensamos ou que só existimos porque pensamos, mas que o sentido de ser humano se encontra, sobretudo, na afetividade: não somos somente seres racionais, mas também sensíveis e atuamos no mundo por meio dessa sensibilidade. Nossa humanidade dá-se na interrelação entre a afetividade e a razão, que tem como horizonte a existência. Traz os ensinamentos xamânicos - como “[…] somos estrellas con corazón y con conciencia” (ARIAS, 2010, p. 11) -, para nos convidar a refletir sobre nossa participação no todo, como uma inteireza. Nessa perspectiva, ele comunica a urgência em compreendermos o coração como princípio epistêmico e ontológico, como uma das insurgências necessárias para curar a ferida colonial que tem na razão um centro hegemônico de poder.

Admitir o coração como princípio epistêmico e ontológico admite formas outras de (re)conhecer, (re)construir e partilhar conhecimentos. A partir do reconhecimento que nossa inteireza implica subjetividade-objetividade, seria possível reinaugurar o sentipensar. Sentipensar é conceito popularizado por Orlando Fals Borda (2015), que, ao conviver com povos campesinos e ribeirinhos ameríndios, aprende com esses povos o significado do “sentipensante”, que dialoga com o corazonar, em outras palavras, com a subjetividade-objetividade, atuando juntas com o intuito de decolonizar a vida, de libertar nossa experiência e nossa existência de padrões desumanizadores (im)postos.

Assim, afirmarmos o coração como princípio epistêmico e ontológico é também compreender a razão como parte constituinte dos processos, mas que não se sobrepõe à emoção. Da mesma forma que o coração tem um caráter político insurgente, sustenta um corpolítico. Dessa maneira, o conhecimento que nasce do encontro entre existência e experiência, atravessado pela inteireza, constitui o que Arias (2010) denomina de sabedoria dos afetos. Ele afirma que essa sabedoria tem sustentado a existência dos povos submetidos à colonialidade.

Boaventura de Sousa Santos (2021, p. 237) nos ensina que “[…] o conhecimento não é possível sem experiência, e a experiência é inconcebível sem os sentidos e os sentimentos que acordam em nós. É através da experiência que nos abrimos ao mundo, uma ‘abertura’ que é concebida apenas pelos sentidos”. Compreendemos, portanto, que este estudo nos permite colocar em movimento, além do corazonar, o que Santos (2021) chama de imaginação epistemológica, justamente porque nos permitem refundar ideias, perspectivas e nos remetem a movimentos outros do campo explorado.

Esse entendimento dá-se quando observamos o movimento dialógico no processo investigativo, das compreensões sobre o mundo, a arte, as estéticas, as relações dele decorrentes. Dá-se, também, no movimento de aprendizagem das investigadoras e do investigador, na relação subjetividade-objetividade, bem como quando buscam dialogar seus achados com dimensões da imaginação epistemológica proposta por Santos (2021), a saber:

1. Comparar ou contrastar o conhecimento científico artesanal, a fim de imaginar as diferentes preocupações que cada um deles transmite e os diferentes interesses a que cada um deles serve ou pode servir; 2. Imaginar perspectivas surpreendentes; 3. Imaginar, com a possibilidade de verificação posterior, as diferentes formas através das quais diferentes tipos de conhecimento podem contribuir, positiva ou negativamente, para uma dada luta social, a partir do ponto de vista das diferentes partes envolvidas; 4. Imaginar, com base em dados históricos aparentemente não relacionados, diferenças e até contradições entre posições convencionalmente entendidas como estando do mesmo lado numa dada luta social; 5. Imaginar formas de aprendizagem combinadas com formas de desaprendizagem; 6. Imaginar sujeitos onde as epistemologias do Norte apenas veem objetos; 7. Imaginar novas cartografias da linha abissal para identificar metropolitana e a sociabilidade colonial; 8. Imaginar as consequências de não separação entre vida e investigação; 9. Imaginar questões civilizacionais circulando subterraneamente, permanecendo sem resposta e nunca vindo à superfície nos debates sobre questões e opções técnicas dentro dos limites da ciência moderna; 10. Imaginar a busca de posições ecológicas contra as posições monopolistas para além da ecologia de saberes; 11. Imaginar as ausências que não podem ser descritas pela sociologia das ausências, as emergências que nunca são mais do que potenciais ou que nunca deixam de ser ruínas por antecipação. (SANTOS, 2021, p. 189-192).

Entendemos, também, que este estudo se inspira na forma que as mulheres negras têm compartilhado suas experiências, abraçadas no conceito de Escrevivência, de autoria de Conceição Evaristo (2020). Uma forma de escrita que privilegia a subjetividade da narrativa sem deixar de considerar a objetividade como forma de fazer denúncias e anúncios, de conhecer-se, conhecer e relacionar-se no mundo, com o mundo e tudo o que o compõe, de fazer-se inteireza. Contudo, é preciso esclarecermos que esta escrita não se trata de uma Escrevivência propriamente dita, mas se caracteriza como uma narrativa inspirada na forma que as mulheres negras encontraram de expressar o seu corazonar sentipensante.

Compartilhamos, a seguir, uma narrativa sobre os elementos que compuseram a investigação, em formato de carta, tendo a sensibilidade de mundo e o coração como princípio epistêmico, ontológico e metodológico. A carta é endereçada ao artista Francisco Brennand e está escrita em primeira pessoa justamente por tratar-se de uma investigação circunscrita pelo “corazonar sentipensante escrevivente”. Foi necessário estabelecermos uma interação com o sujeito convidado ao diálogo (Francisco Brennand), bem como uma relação entre a pesquisadora principal, o convidado, os supervisores da investigação e ela mesma e, a partir disso, (re)elaborar, (re)elaborar-se e partilhar sentipensamentos, corazonamentos e sensibilidades movimentadas por esse vínculo. A escolha pelo formato de carta tem a ver com uma proposta de escrita utilizada por Paulo Freire, como escolha dialógica, de cunho pedagógico. Quem escreve cartas tem a intenção de estabelecer diálogo. Compartilha intimidades, vida, sonhos, tristezas, encantamentos e, também, desencantos. Comunica o humano de si ao humano do outro, a partir da experiência de ser gente no mundo. É importante esclarecermos que os coautores do texto se entrelaçam à escrita em primeira pessoa na dinâmica do aprofundamento das bases epistêmicas decorrentes da supervisão da investigação realizada e dos diálogos no processo de tessitura da escrita. Entendemos que se trata de uma escrita insurgente e colaborativa. Assim, buscamos colocar em movimento modos outros de se conceber, viver e registrar investigações. As linhas que se seguem se lançam nesse deslocamento.

O que flui nas voltas do coração: uma carta-flor a Francisco Brennand

Estimado Sr. Francisco Brennand,

A função da arte/1

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

Eduardo Galeano (2002, p. 12).

Escrevo para lhe dar notícias de minhas investigações no âmbito de Pós-doutorado e que acabaram envolvendo a sua obra. Penso ser importante dividir contigo como cheguei nessa investigação, da mesma forma meus achados, minhas impressões, expressões, meu sentipensar.

Sou uma professora universitária que se dedica a ler e a desvendar o mundo, que tem em Paulo Freire sua principal referência quando entrecruza as problemáticas sociais e educacionais brasileiras. Nos últimos anos, tenho me dedicado ao estudo das perspectivas decoloniais que, ao encontro da teoria freiriana, buscam questionar e transformar o padrão cultural eurocêntrico imposto pelos movimentos de invasão, conquista, colonização e recolonização dos países do Sul Global, da América Latina, África e Ásia (ao final, no item referências, encaminho a lista das leituras que fiz para sustentar esse diálogo, caso queira conhecer um pouco mais). Mais recentemente, tenho feito estudos sobre cultura e arte e suas interrelações com o mundo da vida, entrelaçadas às sensibilidades teóricas e de mundo que me ajudam a olhar tais temáticas. Essa escolha tem a ver com a força criativa que pulsa em meu peito e se manifesta pela escrita e pela pintura como forma de expressão.

A obra de Paulo Freire era mergulho já experimentado por mim, e esse mergulho me levou ao seu nome. Chamou-me atenção o fato de você ser um artista e ter contribuído com a sua arte para os processos educativos propostos por Freire. Não sabia mais nada sobre você, e, como Diego, me lancei na caminhada rumo ao mar, em direção ao Sul, na busca de saberes outros ao que diz respeito ao aprofundamento das perspectivas decoloniais e sua conexão com as artes e as estéticas.

Primeiro encontrei seu nome no livro Educação como prática da liberdade, na minha edição do ano de 2021. Nesse livro, Freire faz o relato detalhado do seu método de alfabetização, associando com as forças em disputa no território brasileiro e como elas se relacionam com a existência e a experiência humana. Nos apêndices do livro, a título de ilustração e de esclarecimento das afirmações feitas, estão os desenhos chamados de situações existenciais e as palavras geradoras utilizadas para compor o currículo dos Círculos de Cultura dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. Comecei a me perguntar porque não eram os desenhos feitos por ti que ilustravam o livro, mesmo com as explicações dadas no corpo do texto assim dispostas: “Por nos terem tomado os originais do pintor Francisco Brennand […]” (FREIRE, 2021, p. 161).

Minha curiosidade, então, se fez epistemológica e passei a questionar: Que relação vocês tinham? Partilharam momentos e projetos? Quais diálogos poderiam existir entre vocês? Seriam diálogos que se encontram, que se desencontram? Fui buscar em outros livros de Freire por seu nome. Encontrei em Pedagogia dos sonhos possíveis, na minha edição do ano de 2001, também em Pedagogia da indignação, na minha edição do ano 2000. Nesses livros, você, Francisco, é lembrado de maneira afetuosa. Vou colocar, a seguir, as citações do próprio Freire - sei que você é afeito a citações como explicita em seus diários (BRENNAND, 2016a, 2016b, 2016c).

Em Pedagogia dos sonhos possíveis, ao rememorar a sua proposta de alfabetização, Freire (2001) descreve:

Mas o que é que eu propunha, então? Eu propunha que houvesse um período X, que a gente até admitia, na época, de três sessões de discussão, com codificações, como eu chamava, que foram feitas pelo grande artista brasileiro, de Pernambuco, que é o Francisco Brennand. Eu tive uma conversa, promovida por Ariano Suassuna, na casa de Ariano, com um grupo de artistas, entre eles o Brennand, quando eu falava o que me parecia fundamental para começar o processo de alfabetização era a discussão, com os alfabetizandos - uma discussão inicial, nada muito profundo -, mas a discussão da compreensão do fenômeno cultural. (FREIRE, 2001, p. 178).

Ainda:

Quando a gente propôs esta discussão sobre a cultura, Brennand pintou oito ou dez quadros, com figuras muito bonitas, que a gente transformou em slide. Nos debates sobre aquilo que a gente chamou de codificações, que era, no fundo, a leitura do mundo da representação do código que eu havia proposto, evidentemente, portanto, o que saía não eram palavras geradoras, o que saía era a grasse, era o discurso inteiro do camponês. Foi a partir desse discurso que eu captei meia dúzia, dez, doze palavras fundamentais para, pondo-as como centro de outro debate, trazer ao discurso global novamente. (FREIRE, 2001, p. 182).

Em Pedagogia da indignação (FREIRE, 2000, p. 97), há uma nota de rodapé que diz: “Os originais de Brenand3 foram levados do então Serviço de Extensão Cultural da Universidade chamada na época do Recife pelo IV Exército, durante o Golpe Militar de 1 de abril de 1964, como material perigoso e subversivo. Deles não se teve mais notícias”. Freire nos relata que:

Foi Francisco Brenand, o genial artista brasileiro, excelente pintor e não menor ceramista, que as produziu a meu pedido. A bem da verdade, a pedido de Ariano Suassuna, brasileiro que virou gente no mundo a partir de Taperuá, o chão paraibano onde ele nasceu. A par o que eu vinha fazendo e buscando, Ariano me disse num de nossos muitos encontros, então habituais: “Você precisa conversar com Brenand. Já estou vendo a beleza do trabalho dele pintando as diferentes situações de que você necessita para desafiar os alfabetizandos na discussão sobre cultura”. Organizou dias depois uma reunião em sua casa e nos pôs um diante do outro. Foi assim que nasceram os hoje perdidos “desenhos de Brenand”, como chamávamos aqueles quadros na época, e em que se deu, de maneira exemplar, a unidade entre arte e educação. (FREIRE, 2000, p. 97).

Encontrados esses relatos nos livros de Freire, parti em busca de outros relatos que associassem vocês dois. Novamente, muita procura e muita leitura. Encontrei no livro de Ana Maria Araújo Freire, a Nita, intitulado Paulo Freire: uma história de vida, na segunda edição, do ano de 2017, alguns trechos:

O material do Método de Alfabetização foi apreendido nas dependências do SEC dentro do campus universitário pelo Exército Nacional e grande parte dele foi apresentado nas TVs do país como “prova da subversão comunista que inunda o país”, diziam os que estava a favor do golpe civil-militar e contra o povo. A alfabetização do povo era entendida como ato de insanidade dos comunistas às ordens dos governos e dos movimentos autoritários internacionais, absolutamente associada ao perigo ameaçador à segurança nacional, das desordens que levara ao caos do Estado. Os guaches do artista pernambucano Francisco Brennand - este um homem acima de qualquer suspeita -, que representava as situações gnosiológicas, preparadas para as discussões no círculo de cultura, sobre natureza e cultura no momento de apreensão do conceito antropológico de cultura pelos alfabetizandos/as - foram apreendidos por denúncia, quando os soldados e o coronel do Exército já partiam do campus da Universidade do Recife (FREIRE, A. M., 2017, p. 99-100).

A seguir, na Figura 2, eu coloco o diafilme do Programa Nacional de Alfabetização com as imagens criadas por você e utilizadas por Paulo Freire. Esse diafilme foi encontrado após ficar 30 anos guardado em uma geladeira (FÁVERO, 2012).

Fonte: Imagem extraída de Diálogos… (2015).

Figura 2 Dialfime do Programa Nacional de Alfabetização 

No mesmo livro, na nota 35, Nita menciona que você inaugurou um Museu “Accademia” na sua propriedade e, nesse museu, estão presentes os estudos dos desenhos que você havia feito e estão expostos oitos desenhos com o nome “Série Paulo Freire” (FREIRE, A. M., 2017, p. 100). Ainda, no mesmo livro, Nita desenvolve uma reflexão sobre o Movimento de Cultura Popular (MCP). Sobre isso, Paulo Freire, no livro Cartas a Cristina: reflexões sobre minha vida e minha práxis, na minha edição de 2013, explica que a natureza do MPC tinha como premissa a compreensão crítica do papel da cultura em geral e da cultura popular no processo de formação política, libertação social, econômica, cultural e de educação progressista de crianças, de jovens e de pessoas adultas. Freire diz ainda que o MCP se inscrevia entre quem pensava a prática educativo-política e a ação político-educativa como forças capazes de promover a tomada de consciência das classes populares para a transformação da sociedade brasileira a partir delas. Ana Maria Araújo Freire (2017, p. 136) cita que foram 99 sócios fundadores do MCP, e seu nome consta entre eles e traz mais uma citação, em que você é mencionado em um agradecimento junto a outros nomes por constituir um grupo de pessoas especiais a Freire.

Além das explicações dadas pelo próprio Paulo Freire nos apêndices do livro Educação como prática da liberdade, os estudos de Osmar Fávero (2012), de Luciana Dilascio Neves e Aristóteles Berino (2021) me ajudaram a compreender a preocupação estética desses desenhos. Eles destacam o esforço político-criativo ao buscarem retratar a relação humana com a natureza e a cultura. As imagens aparecem como um convite a ler, pensar, sentir e (re)dizer o mundo. Trabalham no âmbito do olhar para problematizar a realidade e transformar a forma de se entender, entender e se relacionar. Um convite à superação da colonialidade do ver que nos acomete, bem como a colonialidade do poder, do saber e do ser ao colocarmos em pauta o contexto a ser (re)conhecido como fundante da vida, a partir de uma estética assentada na coerência entre discurso e realidade, que se tornam imagens nas fichas de leitura, como uma das formas do exercício subjetividade-objetividade.

Carlos Rodrigues Brandão (2005) enfatiza que esses desenhos refletem a compreensão ampla de leitura de mundo proposta por Paulo Freire. Fernando Antônio Gonçalves de Azevedo (2010) diz que seu encontro com Paulo Freire marca a história de arte/educadores, no contexto mais amplo da educação nacional. Ele diz que, a partir da compreensão do processo educativo como o gesto de ler o mundo, construído pela curiosidade, sustentado nas relações dialógicas entre diferentes sujeitos culturais e no posicionamento crítico de desfazer certezas para instaurar processos educativos, se propõe o gesto inventivo de apreender e de (re)construir sabedorias, acrescento, a partir de afetos.

Li esses desenhos como artefatos de estéticas decoloniais. Eles foram pensados na coletividade e no processo da experiência de alfabetização de Paulo Freire e propõem superar a separação mente de corpo, corpo de natureza e arte de outros campos da vida e dos processos de aprendizagem. Percebo que, nos desenhos feitos por você, estão presentes características da arte popular. Traços simples, marcados, frontais e sem escala de profundidade. Motivos como flores, frutas, rendas que remetem à produção artística e à identificação do povo. As cores utilizadas, marcas de sua obra, remetem à terra me levando a pensar que essa é uma metáfora para pensar o território e as gentes, na experiência visual do que compõe a vida e as cores do povo brasileiro. Isso me fala da sua sensibilidade de artista para transpor os objetivos do projeto de Freire em imagens, decolonizando a arte, a estética e o olhar.

Os estudos de Schlenker (2019) evidenciam que decolonizar a arte e a estética implica tomar consciência sensível e sensorial da vida em toda a sua dimensão e juntar as partes que foram desmembradas pela coerção da colonialidade. Ele destaca que, na história colonial, o olhar foi treinado para marcar pessoas e classificá-las ao longo de uma escala social e que esse olhar se configura como dispositivo histórico que intervém e condiciona, em um primeiro momento, a percepção e, na sequência, a consciência. Penso que esse olhar marca, igualmente, as produções artísticas e nosso sentipensar sobre elas.

Mesmo com essa compreensão sobre esses seus desenhos e como poderiam ser abarcados a partir da discussão que me propunha, é importante lhe contar que eu ainda estava caminhando. Não tinha encontrado o mar, uma vez que sua obra não se limita a esses desenhos. Segui caminhando, estava diante das dunas altas. Sabendo como você era citado na obra de Freire e das produções dos mesmos arredores, precisava, agora, saber como você o citava, conhecer e identificar encontros e/ou desencontros entre suas obras.

Nesse momento, estava mobilizada em conhecer a sua obra, partir ao seu encontro. O que sua obra teria para me contar sobre (de)colonialidade? Que outros elementos poderiam estar presentes em sua obra que me oportunizariam dialogar com estéticas coloniais e/ou decoloniais? Passei a buscar informações sobre você. Li trabalhos acadêmicos sobre sua vida e sua obra, como os de Camila da Costa Lima (2009), Alexei Bueno (2011), Rodrigo Lopes de Barros (2016) e tantos outros mais voltados à análise de particularidades em relação à sua obra, como o tema do erótico e da mitologia, por exemplo. Dos trabalhos que encontrei, nenhum trazia essa aproximação com as discussões decoloniais ou mesmo freirianas.

Nessas buscas, encontrei uma notícia de que a professora do Instituto de Ciência Social (ICS) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Ruth Vasconcelos, lançou, no ano de 2019, uma coletânea intitulada Os cadernos verdes de Francisco Brennand, na qual ela faz uma análise da sua vida e obra sob a óptica da psicanálise. Não consegui ter acesso a essa coletânea, mas, por meio dessa notícia, tomei conhecimento de que você havia registrado a sua vida em um diário e que ele tinha quatro volumes, lançados no ano de 2016. O primeiro, de 1949 a 1979, o segundo, de 1980 a 1989, o terceiro, de 1990 a 1999, o quarto e último, de 2000 a 2013. Fiz a encomenda dos seus diários e, enquanto aguardava a chegada dos livros, eu vi filmes sobre você e todos os vídeos em que você aparece no YouTube. Fomos ficando íntimos. Eu fui me encantando com a sua forma de compreender os quatro elementos, com mais força o fogo. Quando os diários chegaram, meu primeiro impulso foi folhear as páginas da década de 1960 quando você conviveu com Paulo Freire, participou do MCP e exerceu a chefia da Casa Civil no primeiro governo de Miguel Arraes. Meu objetivo era saber o que você tinha a relatar sobre a experiência e/ou convivências desse período, para que eu pudesse compreender os encontros e/ou desencontros entre você e Paulo Freire, bem como suas relações com o contexto político da época. Para minha surpresa, as páginas do diário de 1963 a 1968 não constavam. Tomei conhecimento que você as queimou.

Você nomeou os três primeiros volumes do seu diário como “O Nome do Livro” [BRENNAND, 2016a, 2016b, 2016c] e o quarto volume como “O Nome do Outro” [BRENNAND, 2016d). Comecei, então, a leitura do primeiro volume - ao todo, os quatro volumes somam 1.960 páginas (curiosamente igual a década que mais me interessava na leitura). Já no prefácio do Livro I, Alexei Bueno (2016, p. 19) o descreve como um homem profundamente ligado à cultura europeia, como um homem da Renascença. A primeira imagem, também do Livro I, traz seu autorretrato como um cardeal inquisidor, datado de 1948. Ainda que Alexei Bueno tenha escrito no prefácio que o título dos livros “O Nome do Livro” tenha nascido da pergunta repetida de qual seria o nome do livro, fiquei me perguntando se você queria fazer alguma alegoria com “O Nome da Rosa” de Umberto Eco, uma vez que parte dos diários arderam em chamas como leituras proibidas. Enquanto pensava nisso, comecei a pintar uma flor.

Minha relação contigo foi se estabelecendo de forma turbulenta conforme ia avançando as páginas de seus diários. Percebi que estava habitando uma fronteira quando entendi sua origem de família colonial e todo o seu processo de educação. Quando você tece reflexões de ordem machista sobre as mulheres. Quando você se coloca como um desesperançoso da vida. Quando diz ser um homem afastado do social, de direita e que não reconhece mais a sua humanidade. Fiz uma foto (Figura 3) dos seus diários no dia em que tive a consciência de habitar essa fronteira. Lembro-me bem, foi um dia de introspecção.

Fonte: Imagem cedida por Franciele Clara Peloso, 2022.

Figura 3 Diários de Francisco Brennand 

A foto com a sua imagem em cima dos livros me passava mensagem de peso. Era um volume grande de leitura que me aguardava. Eu já sabia que um dos aspectos que buscava não estava em evidência e que nossa sensibilidade de mundo era distinta. No entanto, segui me perguntando: a arte de Francisco Brennand dialoga com as (de)colonialidades? No meio dessas leituras, eu ainda teria uma viagem a Belém do Pará, no Norte do país. Iria passar uma temporada junto ao professor João Colares para aprofundar meus estudos sobre decolonialidade; depois, uma temporada em Ponta Grossa, no Sul do país, para discutir sobre educação permanente com a professora Paola Scortegagna e, ainda, uma visita agendada a sua Oficina em Recife, no Nordeste do país. Tive ansiedade. A foto também me passava a mensagem do esforço para estabelecer uma relação com o diferente e, em alguns momentos, até antagônica, da mesma forma a possibilidade de praticar o diálogo sugerido por Paulo Freire. Entendi que estava estabelecendo um diálogo a partir de diferenças e, aberta a esse diálogo, permiti-me humanizar-me junto a ti.

O peso foi se tornando leveza à medida que fui compreendendo minha sensibilidade de mundo ao adentrar suas reminiscências. De modo igual, li e senti o mundo, colocando meu corpo em movimento em diferentes regiões e espaços de relações, aprofundando minhas sensibilidades teóricas, conhecendo suas obras e entendendo o meu caminhar nessa investigação como possibilidade de invenção epistemológica. Quando pisei no seu chão, na sua Oficina, tudo ficou mais fácil. De repente, o mar estava em frente aos meus olhos, foi tanta imensidão. Entendi que o nosso corpo é parte fundamental na busca da inteireza. Não é possível sentipensar, corazonar distante das sensações, do cheiro, da vista, do sabor, do toque, dos sons.

Estudando Georges Bataille, você concluiu que “[…] toda a história da arte não passa, no fundamental de uma história das possibilidades de olhar” (BRENNAND, 2016a, p. 385). Barriendos (2019) defende que a colonialidade do ver é constitutiva, juntamente às colonialidades do poder, saber e ser, da modernidade e age como padrão heterárquico de dominação. De maneira geral, esse estudioso faz uma crítica à matriz visual da colonialidade e nos possibilita refletir sobre o lugar da enunciação desde o ponto de vista ocidental-colonial e a visualidade (im)posta. Nessa compreensão, comecei a olhar para sua arte e sua história. Não a título de interpretação, mas como possibilidade de olhar com as sensibilidades de mundo que me orientam, as sensibilidades de mundo que o orientaram.

Sua arte traz ao concreto várias temáticas e possibilidades de olhares. Você afirma em seus diários (BRENNAND, 2016b) que seu tema maior é a eternidade, e ela mora na reprodução da vida. Assim, traz o ovo como elemento central da sua criação. Você escreve:

Tenho insistido nos símbolos do amor e da reprodução; ainda mais categórico pareço quando ouso afirmar que a reprodução seria o equivalente à eternidade. Nada mais espiritual do que o próprio fato da reprodução da espécie. [...]. A reprodução, em todas as suas mais variadas formas sexuadas ou assexuadas, se estende a todos os seres vivos e alcança, inclusive, a nossa interpretação do universo: as estrelas também nascem, vivem e morrem. (BRENNAND, 2016b, p. 140).

Encontro nessa sua preocupação com a vida em suas diferentes formas e existências o que me parece ser um diálogo possível com a decolonialidade. Você afirma ser um especialista em ruínas, que enfrenta corajosamente a utopia da obra global, aquele que lentamente reconstrói paredes, enfeitiça muros, jardins e monstros, um apaixonado por irregularidades (BRENNAND, 2016b). Sempre que você traz “as ruínas” ao diálogo se remete ao espaço da Oficina, que foi erguida nas ruínas do engenho de sua família e, também, às ruínas do mundo da vida, causadas pela crise ambiental e pelo disparate do capitalismo. Acrescento que, na minha leitura, vejo também você refletindo as ruínas internas que perpassam a sua inteireza. Entendo, a partir da leitura do seu diário, que faz essa reflexão a partir do que estou compreendendo por corazonar e, para mim, suas obras expressam seus sentipensamentos. Nesse meu corazonamento, dei mais algumas pinceladas em minha flor, ainda não sei qual o nome dela.

Não posso afirmar que você tem uma arte decolonial porque você deixa sempre claro seu lugar social, como já mencionei anteriormente, mas posso afirmar que, em sua arte, encontro um diálogo para uma reflexão decolonial. Faço essa afirmação me baseando em algumas pistas encontradas em seu diário, sobre o meu olhar sobre suas esculturas e pinturas - no que sua obra me faz sentipensar e, também, no seu livro Diálogos do paraíso perdido (BRENNAND, 1990). Nele, parece-me que você tece considerações e uma crítica ao padrão hegemônico que tem orientado a organização social do Brasil, sobretudo uma crítica à destruição das florestas.

Eu fiz a leitura desse livro quando estava em Belém do Pará, que abraça uma parte da Floresta Amazônica. Assim, enquanto lia seu livro, sentia o calor e pisava no chão amazônico, conhecia os cheiros, os sabores e a luta dos povos tradicionais, daqueles corpos-território. No livro, você registra os danos causados pelas questões modernas e evidencia a destruição da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica. Considera a terra como uma divindade e compreende o Brasil como terra mítica e sagrada (o conjunto de quadros da “Série Amazônica” expressa bem essa sua consideração). Lamenta a perda de um paraíso natural e afirma que o “sonho” dos colonizadores se torna uma catástrofe. Lamenta a natureza perdida ao se transformar em terreno de consumo, como proposta de desenvolvimento global. De acordo com Acosta (2016), o desenvolvimento, como proposta global e unificadora, recusa a cultura e desconhece os sonhos e as lutas dos povos dos países chamados periféricos. O mesmo autor afirma, ainda, que, para alcançar um modelo de desenvolvimento, se aceita a destruição humana e ecológica em nome do mercado.

Ainda em Belém, tive a experiência de ter contato com as meninas/mulheres vítimas de escalpelamento por acidente de barco, um dos problemas decorrentes desse modelo de desenvolvimento, enfrentados, sobretudo, pelas comunidades ribeirinhas amazônicas. Fernanda Portugal (2017) explica que esse tipo de acidente consiste na perda total ou parcial do couro cabeludo resultante do contato dos cabelos, geralmente longos, com o motor ou eixo rotativo desprotegido das embarcações fluviais de determinadas regiões da Amazônia, especialmente nos estados do Pará e do Amapá. Mesmo com um esforço para erradicar esse tipo de acidente, as ações promovidas pelo poder público (Lei No 11.970/2009)4 ainda não tiveram sucesso. Erradicar esses acidentes tem a ver com o reconhecimento da subalternização dos povos das águas, marcados por culturas estrangeiras que colocam a dinâmica de suas vidas pautadas em condições que lhes desumanizam e lhes roubam a identidade. Edwana Nauar de Almeida (2016) evidencia que a maioria das vítimas de escalpelamento são meninas e mulheres e que o acidente as torna marcadas em sua natureza física, também em sua integridade psicológica e social. Elas passam a ter uma estética outra, passando a ser vítimas de preconceito.

Junto a essa experiência, estava concluindo a leitura de seus diários em que você detalha o processo de criação de algumas obras que foram chamadas por Olívio Tavares de Araújo, crítico de arte paulista, como “As Degoladas”. Trata-se de um conjunto de cinco esculturas: Galateia, Hália, Antígona e Lara (mitologia grega) e Ofélia (de uma peça de Shakespeare). São cinco cabeças de mulheres, de olhos fechados, apoiadas sobre colunas cilíndricas. As cabeças são curvadas para trás, como se tivessem sido violentamente degoladas (BRENNAND, 2016b, 2016c). Essas suas obras e a experiência que lhe contei me fizeram sensibilizar, com Fábio Abreu dos Passos (2020, p. 9), a necessidade de “[…] constituir novas performatividades, que permitam movimentos e aberturas dos corpos em sua pura existencialidade”. Assim, pintei a tela “A escalpelada”, em tinta acrílica sobre tela, para ilustrar um dos aspectos que caracterizam a desumanização a que os povos ribeirinhos da Amazônia estão subjugados quando desmerecidas suas características culturais e aprisionadas pelo mundo do mercado sua produção da existência, dentre outros elementos.

Quis experimentar seu estilo de pintura. Como eu não tinha domínio sobre o surrealismo, busquei orientação junto ao pintor cubano Juan Ramón Perez Tamoyo. As cores que utilizei foram um misto entre meus tons luminosos e os seus tons terrosos (Figura 4). É importante lhe dizer que, ao pintar essa tela, não quero ser a porta-voz dessas meninas e mulheres, visto que é uma experiência que não atravessa meu corpo. Trata-se da expressão das emoções que me atravessaram ao conhecer essa realidade.

Fonte: Imagem cedida por Franciele Clara Peloso, 2022.

Figura 4 A escalpelada 

Encontrei, em sua obra, várias sensibilidades de mundo, algumas que me ajudaram a tecer reflexões mais próximas do que entendo por decoloniais e outras que o afastavam consideravelmente dessa possibilidade. Você disse: “O que mais me agrada nos meus cadernos, nos quais tenho (talvez por razões obscuras) me empenhado, é a evidente e contínua acumulação de apontamentos contraditórios” (BRENNAND, 2016a, p. 171). Dessa forma, sinto-me mais confortável de aproximar alguns de seus sentipensamentos às ponderações decoloniais.

Olhando algumas de suas peças, eu vejo um encontro com a arte cerâmica indígena, em especial aquelas que trazem animais como tema. De forma mais epistêmica, posso mencionar a sua relação com o fogo por meio do reconhecimento de que os xamãs foram os primeiros senhores desse elemento. Ainda, o mural “Mãe Terra” me conecta aos ensinamentos de Davi Kopenawa (KOPENAWA; ALBERT, 2015), o qual ilustra a sua forma sagrada de se relacionar com o barro e de se entender parte de um todo composto por diversos seres humanos e não humanos, que tem a terra como uma divindade antiga de força vital. Em outras, vejo um encontro com a arte de alguns povos originários, como em “As Degoladas”, que me remetem às máscaras africanas. Ao escolher, como símbolos para representar a Oficina, o arco e a flecha de Oxossí, um orixá africano, penso que coloca como símbolo de sua arte o desejo de proteger as florestas (BRENNAND, 2005), dentre outros aspectos. Além dos desenhos feitos para a Campanha de Alfabetização proposta por Paulo Freire, já dialogados anteriormente, o mural da Batalha dos Guararapes e o figurino pensado para o filme A Compadecida (1969), a primeira versão para o cinema da obra-prima de Ariano Suassuna - O Auto da Compadecida -, também denunciam a sua sensibilidade com os “esfarrapados do mundo”. Não posso esquecer da forma como eternizou os cajus, fruta tipicamente nordestina e parte da alimentação indígena há séculos. Esses últimos carregados de elementos e de significados regionais.

Essas características que identifiquei em sua obra me fazem afirmar que sua arte é arte de quem sentiu o mundo. Um mundo interno e externo imediato, marcado pela colonialidade, mas um sentir atravessado pela força do seu enraizamento no Brasil e aos elementos culturais que o constituem. De alguma forma, esses elementos que citei parecem ser uma reverência aos povos originários (em meu corazonar) e também uma valorização dos povos e dos artefatos do Nordeste do país.

Fica evidente, na leitura de seus diários, a consciência sobre a hegemonia euro-norte-centrada e sua influência cultural. Não posso dizer que os elementos que motivaram a construção de sua arte fazem o enfrentamento ao colonialismo. Antes, são uma leitura dos polos contraditórios que “performam” no Sul. Quando questionado sobre quais eram as características brasileiras de seu trabalho, você respondeu que era a liberdade, que você era um militante da sobrevivência (BRENNAND, 2016c). Desse modo, quando entrei em contato com a obra “Árvore da Vida”, pude visualizar o que compõe sua cosmopercepção sobre natureza. Passei a compreender a sua obra como obra aberta ao diálogo, como obra que tem, em sua gênese, o desejo de preservação da vida de humanos e não humanos. Ainda, uma arte que nos convoca a cuidar da Amazônia como espaço primordial para manutenção da vida e nos avisa que sua destruição é catástrofe anunciada de devastação de toda e qualquer forma de existência. Compartilho contigo um poema que escrevi a partir da sua “Árvore da Vida”.

Feitio

Somos feitos de sol

De lua

De estrelas

De brilho sem fim

Somos feitos de fogo

De água

De ar

De terra e jasmins

Somos feitos de matéria

De carne

De osso

De cérebro e afins

Somos feitos de cor

Preto, branco, amarelo e carmim

Somos feitos de sentidos

De visão

De paladar

De audição

Tato, olfato e coração

Somos feitos de conjugação

Eu

Tu

Ele

Nós, vós, elas

Mas eu pergunto:

Como ser nesse mundo que devasta feitios?

Franciele Clara Peloso, 2022.

Você conciona que a arte tem a função de anunciar a eternidade. Nessa compreensão, compartilho contigo a defesa de que a arte possa se descolonizar e visualmente eternizar que o mundo é maior, muito maior do que nos mostra a tradição euro-norte-centrada. Que corpos subalternizados ganhem as telas, as instalações, as composições, as performances. Que a floresta e todos seus seres encantados sejam eternizados e (re)conhecidos. Que possamos olhar e ver que tudo flui nas diferenças que nos constituem. Que possamos parar de devastar a VIDA em toda a sua inteireza.

Termino essa carta compartilhando a flor (Figura 5) tinta a óleo sobre tela, que comentei pintar enquanto conhecia você.

Fonte: Imagem cedida por Franciele Clara Peloso, 2022.

Figura 5 A flor 

Não sei qual o nome dessa flor, parece-me uma mistura de rosa com íris. Vejo cada uma dessas pétalas como representação das experiências que tive durante essa investigação. Muitos detalhes, muitas nervuras, muitos encontros. Movimento. Interpreto o caule como a sensibilidade teórica que me deu sustentação. Ela carrega em si vários astrais e, sobretudo, é singular. Combinação de nossa sensibilidade. Fiquei na dúvida se pintava espinhos. Decidi não os colocar. Espinhos ferem e aprendi contigo que é possível dialogar com o diferente, sem ferir.

Um abraço fraterno.

Domingo, 6 de novembro de 2022

É primavera e me sinto florir.

F. Clara. P.

Corazonamentos finais

No decorrer deste escrito, buscamos compartilhar a descrição de um processo investigativo insurgente, dialógico e colaborativo com a intenção de contribuir para os debates epistêmicos, ontológicos e metodológicos decoloniais, além de explorar alguns conceitos e categorias teóricas presentes nos estudos decoloniais e freirianos como suporte para pensar as artes visuais e as estéticas delas decorrentes a partir de um diálogo com o artista Francisco Brennand e sua obra.

Encerramos este texto dando as mãos a Adolfo Albán Achinte (2017) e afirmamos que o processo de invasão das Américas foi, também, um evento estético, que operou por meio de imagens construídas e coloridas, tanto gráficas quanto linguísticas. Essas imagens operam no nosso entendimento sobre o que é arte, sobre as formas de representação de ser, estar e dizer o mundo. Nesse sentido, é preciso anunciarmos que, para além da razão, há um mundo de cores, de sensibilidades outras que precisa ser (re)aprendido. Albán Achinte (2017) nos provoca a considerar a arte como ato criador decolonial, como um ato de reflexão permanente e não somente de produzir “objetos”. Essa reflexão artística deve contribuir para discussões em torno do mundo da vida.

Em vista disso, entendemos que, quando nos permitimos uma investigação que admite a sensibilidade de mundo e o coração como princípio epistêmico, ontológico e metodológico, alcançamos formas outras de (re)conhecer, de (re)construir e de partilhar conhecimentos. Compreendemos que, quando nos permitimos investigar, dialogar, escrever e pintar a partir do investigado, estamos atendendo à provocação feita por Adolfo. Ainda, quando compartilhamos a investigação de forma insurgente nos permitindo sentipensar, corazonar e escreviver, estamos nos transformando e transformando as formas hegemônicas que insistem em nos desumanizar nos espaços de construção e de partilha do conhecimento, quando exigem que nossa inteireza seja desintegrada, nos usurpando a emoção - além de buscar praticar o que Santos (2021) defende por invenção epistemológica.

Do que depreendemos de nossa investigação, podemos destacar que as artes visuais podem contribuir no processo de decolonização quando entendidas como ato de reflexão permanente, bem como ato criador de denúncias sobre os processos de violência e da afirmação de estereótipos. Da mesma forma, pode contribuir no processo de colonização quando retroalimentam imagens gráficas ou de linguagem que ferem a existência das e dos que estão fora do padrão determinado que racionaliza suas subjetividades.

Por fim, afirmamos que é importante (re)conhecer quais estruturas simbólicas estão enredadas nos movimentos artísticos, nas estéticas decorrentes e nos processos educativos. Entendemos que, quando estabelecemos esse diálogo com o artista Francisco Brennand, buscamos compreender os movimentos que inspiram a produção artística, materializam estéticas e como atuam nos processos de educação permanente, pois estão ao alcance dos nossos sentidos, nos educando o tempo todo. Ainda, é importante (re)dizer que nossa intenção não está na interpretação da obra de Francisco Brennand, mas na possibilidade de aprendizagem a partir dela.

Visualizamos na arte, bem como na escrita insurgente, um caminho de diálogo e re-existência, como possibilidade de aprendizagem de um mundo mais bonito, mais sensível, onde seja possível ser, estar e sentiviver.

1Sensibilidade de mundo é uma expressão utilizada por Mignolo (2017) no lugar de “visão de mundo”. O autor justifica que o conceito de visão é privilegiado na epistemologia ocidental e, ao sê-lo, ignora os demais campos sensoriais.

2Informações retiradas do sítio eletrônico da Oficina Francisco Brennand. Disponível em: https://www.oficinafranciscobrennand.org.br/. Acesso em: 22 jun. 2022.

3Observei que seu sobrenome está escrito com um “n” só.

4Lei No 11.970, de 6 de julho de 2009, que alterou “[…] a Lei no 9.537, de 11 de dezembro de 1997, para tornar obrigatório o uso de proteção no motor, eixo e partes móveis das embarcações” (BRASIL, 2009, n.p.).

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Recebido: 02 de Dezembro de 2022; Revisado: 04 de Janeiro de 2023; Aceito: 05 de Janeiro de 2023; Publicado: 16 de Janeiro de 2023

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