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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 20-Jan-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.20984.091 

Entrevista

Aliança conservadora na educação brasileira: revisitando a obra Educando à Direita: entrevista com Michael W. Apple*

**Professor da University of Wisconsin (Madison).

***Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

****Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Bolsista de Pós-Doutorado Júnior (CNPq).

*****Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

******Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).


Introdução

Em 2021, completaram-se 20 anos da primeira edição do livro Educating the Right Way: Markets, Standards, God, and Inequality nos Estados Unidos da América (EUA). O livro foi traduzido para o português e publicado pela primeira vez no Brasil no ano de 2003, com o título Educando à Direita: mercados, padrões, Deus e desigualdade. Chama atenção que, no prefácio da edição brasileira, os autores registraram que, a partir de “[...] determinado momento da leitura, foi ficando cada vez mais claro que não havia necessidade de notas ‘contextualizadoras’ para o leitor brasileiro” (APPLE, 2003, p. XVI). Era evidente, afinal, naquele momento, que vários dos argumentos e dos conceitos desenvolvidos por Michael W. Apple em relação aos EUA tinham alcance global e, particularmente, uma diversidade de aproximações com a política educacional brasileira.

Ao retomarmos o conteúdo do livro, em 2022, entendemos que o avanço conservador que temos vivido na educação brasileira - aquilo que vários/as autores/as têm denominado como uma “onda conservadora” (por exemplo MIGUEL, 2016; PIAIA, 2019) - pode ser mais complexamente capturado à luz das categorias e das discussões de Apple em Educando à Direita. No atual contexto, queremos argumentar que a obra faz ainda mais sentido na atualidade do que na época de sua publicação. Não é à toa que múltiplos/as pesquisadores/as brasileiros/as (DANTAS, 2018; GANDIN; HYPOLITO, 2003; LIMA; HYPOLITO, 2019) têm feito uso dessa obra para analisar os movimentos conservadores da atualidade, alçando Educando à Direita a uma posição de clássico do campo.

Tendo em conta a atualidade da obra e o diálogo de décadas de Michael W. Apple com educadores/as, ativistas e pesquisadores/as brasileiros, convidamos Michael W. Apple para revisitar argumentos centrais de Educando à Direita, considerando, de forma mais específica, o conservadorismo na educação brasileira contemporânea. Nesta entrevista, Apple retoma o conceito de aliança conservadora, examina os grupos que atualmente a constituem e explora aproximações e diferenças com o conceito de neoconservadorismo, que tem sido amplamente utilizado na pesquisa educacional brasileira (CORSETTI, 2019; LACERDA, 2019; LIMA; HYPOLITO, 2019; SANTOS, 2020). Na entrevista, Michael W. Apple ajuda-nos a pensar e a analisar o que temos vivido, mostrando aproximações e diferenças em relação ao contexto estadunidense. Como de costume, Apple convida-nos a um olhar relacional para os elos entre a educação, a economia, a política e a cultura, provocando instigantes reflexões e oferecendo ferramentas para a análise.

Fonte: Arquivo pessoal.

Foto 1 Michael W. Apple 

Pergunta: No livro Educando à Direita1, publicado em 2001, considerando o contexto estadunidense, você apresenta uma aliança de quatro grupos denominada de Nova Direita: Neoliberais, Neoconservadores, Populistas Autoritários e Nova Classe Média Profissional. Após 20 anos de sua primeira publicação, como você analisa essa aliança hoje? Esses quatro grupos mudaram? Eles ainda influenciam a política educacional dos EUA da mesma maneira?

Michael W. Apple: Em primeiro lugar, devemos lembrar que esses são os tipos ideais. O que significa que não são puros. As fronteiras são fluidas. Há alianças sendo frequentemente feitas, e elas têm também mudado bastante. É preciso recordar que a edição de Educando à Direita, que foi traduzida para o português no Brasil, foi a primeira edição. A segunda edição tem cerca de cem páginas a mais, nas quais muito mais tempo é dedicado ao que podemos chamar não apenas de Neoconservadorismo, mas também de Novo Conservadorismo, e, também, ao modo como os Populistas Autoritários ganharam poder, especialmente nos debates educacionais. Eles são extraordinariamente poderosos atualmente nos EUA. Como exemplo, muitas pessoas que fazem parte do nosso sistema de governança educacional, que chamamos de conselhos escolares eleitos, estão se demitindo, em parte porque houve violência nas reuniões do Conselho Escolar. Houve ameaças contra suas vidas. E é muito difícil estar na educação neste momento, porque ativistas religiosos e pessoas ultraconservadoras, que são um cruzamento entre populistas autoritários e conservadores tradicionais patriarcais e racistas, agora estão exigindo que centenas de livros sejam removidos das bibliotecas escolares. No estado de Wisconsin, por exemplo, o legislativo provavelmente vai aprovar um projeto de lei que recusará aos professores o direito de usar termos como racismo sistêmico, preconceito racial etc.

Dou esse exemplo para dizer que de 2001 a 2006, quando a segunda edição de Educando à Direita foi publicada, já havia mudanças maciças. Houve uma tentativa de golpe nos EUA, houve uma alegação de que os professores são comunistas e marxistas e houve uma defesa de formas religiosas ultratradicionais. E isso atravessa as filiações religiosas - judeus conservadores ortodoxos, alguns muçulmanos conservadores e ortodoxos e uma porção enorme de cristãos conservadores e ortodoxos. Essas filiações são muito parecidas com as mobilizações cristãs que vocês têm no Brasil neste momento. Na verdade, como vocês sabem, esses grupos são financiados pelos EUA. Se você fizer uma análise de redes baseada no trabalho de Stephen Ball, como você, Iana, mostrou em seu próprio trabalho, você descobrirá que as redes são muito, muito claras, não estão escondidas. Tudo isso é para dizer que, assim como o capital está em constante transformação e, atualmente, o capitalismo financeiro está na liderança internacional em geral em oposição ao capital industrial, coisas semelhantes estão acontecendo nessas alianças e nas formas ideológicas que estão sendo mobilizadas. Há também a perda de partes significativas das correntes intelectuais que tornaram o neoconservadorismo poderoso. O neoconservadorismo foi, em muitos aspectos, um movimento intelectual e, também, um movimento político, que defendeu a “tradição ocidental”. Dizia que devemos voltar à Roma e, especialmente, aos gregos, pois foi aí que a verdadeira democracia foi experimentada pela primeira vez. Aqueles conservadores mais tradicionais, que estão em universidades e think tanks, perderam poder. Os grupos que ganharam poder são agora autoritários de direita de um tipo diferente, anti-gay, anti-mulheres, muito religiosos e totalmente racistas.

Contudo, isso significa que, quando estamos tentando pensar sobre essas coisas, temos de lembrar que é preciso muito trabalho ideológico ou blocos hegemônicos a serem formados. Assim como Luís Armando Gandin e eu mostramos em A luta pela Democracia na Educação2, no capítulo sobre Porto Alegre, a Escola Cidadã e o orçamento participativo, foram formas religiosas progressistas e não formas religiosas conservadoras que ajudaram a abrir o espaço para formas educacionais muito mais progressistas. Esse também é, em parte, historicamente, o caso nos EUA.

Curiosamente, atualmente, essas mesmas pessoas nas favelas, que podem ter sido influenciadas por tipos específicos da Teologia da Libertação Cristã no passado, têm sido interpeladas, como diria Althusser, criativamente atraídas pelos grupos de direita. Isso nem sempre tem sido fácil. Isso significa que a direita teve de trabalhar muito, muito duro, criativamente. Paradoxalmente, eles parecem em parte freireanos em alguns de seus movimentos pedagógicos sociais, mas de uma forma ultradireitista, escutando atentamente (e às vezes com bastante cinismo) as preocupações das pessoas. Eles são realmente talentosos e criativos para usar os sentimentos das pessoas (que não estão sendo ouvidas, que as escolas não estão ajudando seus filhos). E não são apenas as escolas e os professores os culpados, mas também a economia. Devemos “libertá-la”. São grupos indiferentes, egoístas e elitistas que não se importam.

A direita redobrou seus esforços para colocar sob seu guarda-chuva grupos de pessoas que foram mobilizados anteriormente pela coalizão política que se formou em torno do PT [Partido dos Trabalhadores]. Muitos desses grupos se movimentam para outro lugar. Eles se movem para o cinismo, para preocupações com seu futuro, com o que está acontecendo com a religião e a “moralidade tradicional”, e se movem ao mesmo tempo para a direita. Então, há uma pedagogia social criativa que está acontecendo. Isso significa que, para eu entender o que está errado ou quais são os limites do meu entendimento original desse bloco hegemônico, eu tenho de olhar para quem está sob o guarda-chuva e como eles chegaram lá. Um dos graves perigos é esquecer que meus livros são declarações de um momento particular em meu entendimento. A verdade é que eu ainda estou sendo ensinado, por vocês quatro e por muitos outros. Quando são traduzidos para uso no Brasil, às vezes pode ficar claro que ainda não aprendi o suficiente, que às vezes ainda não estou pronto para escrever sobre o que está acontecendo no Brasil, e, então, há o risco de tornar-se, paradoxalmente, uma agenda imperialista. Então, quando falo no Brasil e em outros lugares, como muitos de vocês sabem, peço às pessoas que me ensinem. É fundamental que eu entenda o que está acontecendo no Brasil para que minha análise possa ser mais frutífera, não apenas para as pessoas no Brasil, mas para mim e para as pessoas nos EUA. Assim, o Norte precisa ser ensinado pelo Sul constantemente.

Nos EUA e no Brasil, assim como em outras nações, os quatro grupos mudaram, especialmente o poder do populismo autoritário. Uma outra coisa é que muitas partes da nova classe média também foram convencidas, o que significa que alguns de seus membros apoiam pessoas como Bolsonaro. Isso é importante. Não é simplesmente que são as pessoas pobres e as pessoas das favelas que se moveram para a direita. Se você pode criar uma visão de que o mundo está em crise e as escolas estão caindo aos pedaços, então é um pouco mais fácil para muitas pessoas que estão preocupadas com a inflação etc., mas estão dentro da classe média, serem mobilizadas.

Pergunta: Os neoconservadores foram apresentados em seu livro como um grupo importante dentro da aliança, mas, em sua análise, os neoliberais foram o grupo mais influente. Você considera que ainda é assim ou há novas configurações com essas alianças?

Michael W. Apple: Os neoliberais são a facção dominante tanto no capital financeiro quanto no industrial. É crucial, porém, que nos lembremos, embora eu me envolva em uma forma de análise cultural e ideológica crítica, que fui fortemente influenciado por Antonio Gramsci e seus argumentos sobre guerras de posição. Assim, parte do meu argumento sobre a natureza da aliança são as lutas contínuas pelo senso comum, lutas pelo corpo, lutas por epistemologias, lutas por memória e por conhecimento.

Gramsci faz uma distinção entre guerra de movimento e guerra de posição. Guerras de movimento são ataques frontais; então, se você tem uma metralhadora e eu uma metralhadora, nós dois começamos a atirar um no outro e quem sai vivo, com o maior número de pessoas com metralhadoras, vence. Isso está representado na teoria marxista tradicional que diz que os grupos economicamente dominantes têm muito mais metralhadoras e as usam. Essa posição geralmente pressupõe que, quando a classe trabalhadora se tornar cada vez mais miserável, quando se tornar ainda mais trágica do que é na atualidade, ela, de alguma forma, automaticamente, obterá a verdadeira conscientização.

Isso também pressupõe que a formação da verdadeira conscientização não é automática. Precisamos de um partido forte para ser o professor. Esse é o modelo chinês. Era supostamente o modelo da era soviética. Essa posição assume o que se chama de automaticidade, ou seja, acontece automaticamente enquanto houver no poder o grupo economicamente dominante. Isso esquece, porém, o fato de que, mesmo na Rússia e na China, levou um século para que a conscientização das pessoas chegasse ao ponto em que dissessem um basta. No entanto, muitas, muitas pessoas também reconhecem que essa não é uma ideia descontextualizada sobre esse basta. A esquerda não é o único grupo agindo para negar a conscientização, para mudar a conscientização. Gramsci diz que, em uma guerra de posição, tudo e todos os locais contam: conscientização, família, escolas, saúde, índices vergonhosos de pessoas, negros, no Brasil e nos EUA, na prisão, tudo isso conta.

Assim, uma guerra de posição diz que é preciso lutar por todos os lugares onde as pessoas vivem se quisermos vencer a guerra pela conscientização. É uma visão do que eu chamo, seguindo André Gorz, de reformas não-reformistas (isso é discutido com mais detalhes em meus livros Can Education change Society? (A educação pode transformar a sociedade?) e The struggle for Democracy in Education: lessons from social realities (A Luta pela democracia na educação: lições a partir das realidades sociais). Há milhões de coisas que têm de ser feitas. Devemos fazer as coisas que abrem a próxima porta, para que não sejam simples reformismos, porque a visão tradicional da guerra de movimento é paralisante, é a economia o tempo todo. Se eu não posso mudar a economia e estou na educação, não há nada que eu possa fazer. É a pior tradição possível em termos de contra-ataque. Eu trabalhava em fábricas, não trabalho mais. Eu era impressor. Não sou mais um impressor, um operário da classe trabalhadora. Isso significa que não há nada que eu possa fazer?

Uma estratégia contra-hegemônica significa que não devemos limitar nossas análises e ações à economia. Temos de perguntar em que esfera esses vários grupos operam na atualidade. Os neoliberais são extraordinariamente poderosos na economia. E eles focaram seu projeto ideológico em muitas áreas: nas favelas, em grupos da classe média e trabalhadora no Brasil, em favelas nos EUA e, também, em muitas áreas de classe média. Eles disseram que a economia está destruindo sua vida, seu filho não terá futuro. Então, devemos convencê-lo a votar na extrema direita. Mobilizaremos toda a mídia, mobilizaremos ataques às escolas, mobilizaremos ataques à Dilma, mobilizaremos ataques ao Lula e usaremos o Estado como um aparato violento para garantir que você se mobilize por nós, ou você estará na cadeia, ou você perde seu emprego. Essa é uma parte fundamental dessa estratégia.

Observe de que esfera estamos falando. É um aspecto crucial do que Gramsci chamou de guerras de posição, bem como guerras de movimento. Reconhece o papel crucial da esfera cultural e da esfera ideológica. Ao reconhecer isso, os neoliberais não são estúpidos, eles são muito poderosos. A TV Globo, por exemplo, desempenha um grande papel no Brasil. Fox News e seus equivalentes no Brasil e em outros lugares, e salas de bate-papo, todos os tipos de mídia... Todos esses são locais importantes. Assim, os neoliberais atuam em todas as esferas, mas lembremos também que eles não são necessariamente dominantes em todas as esferas. Assim, se fôssemos falar das formas religiosas, hoje, que são extraordinariamente poderosas no Brasil historicamente, veríamos que elas foram, e são, algumas vezes progressistas, mas não tão progressistas como agora. Ou, se fôssemos examinar nos EUA ou na Hungria e na Polônia, atualmente, há essa estranha combinação de neoliberalismo na economia que responde a um sentimento que quer uma “boa” economia conforme definida por grupos dominantes e um conservadorismo ressurgente nas formas religiosas. Como Viktor Orbán diz na Hungria, queremos que esta seja uma “democracia iliberal” (essa é uma citação!), o que significa que queremos que você se lembre que é uma nação cristã conservadora. Ele formou, assim, um guarda-chuva no qual os ativistas religiosos são cada vez mais poderosos.

Nos EUA, há, também, todos os tipos de movimentos que vêm crescendo, e, no momento, são muito poderosos, de cristãos fundamentalistas, dizendo que devemos nos livrar de livros gays, livros feministas, livros antirracistas nas escolas e bibliotecas, e nós devemos controlar a vida dos professores. Vocês têm sua própria versão disso, uma sobre a qual Fernando Penna escreveu com bastante eloquência no volume Disrupting Hate in Education: Teacher Activists, Democracy, and Global Pedagogies of Interruption (Interrompendo o ódio na educação: professores ativistas, democracia e pedagogias globais de interrupção, ainda sem tradução em português) editado por Rita Verma e eu. Ele se concentra em políticas direitistas como o Escola sem Partido, o que significa: não diga a verdade sobre nada ou você está em apuros. É um pouco mais complicado do que isso, mas basicamente essa é a visão.

Entretanto, essa não é uma agenda totalmente neoliberal, mas está intimamente ligada e influenciada por ela, porque eles também estão exigindo coisas sobre a limitação do que conta como conhecimento útil a ser ensinado. A pergunta que norteia grande parte dessa agenda é: Por que você está ensinando todas essas coisas em torno de assuntos que não têm utilidade econômica e destroem a família? Por que você está ensinando antirracismo? O que é isso sobre gays, lésbicas e pessoas trans? Precisamos de empregos para nossos filhos, então ensine coisas que lhes proporcione empregos. Ao mesmo tempo, nos EUA e em tantos outros países, legisladores locais, regionais e nacionais estão cortando orçamentos e fechando departamentos de humanidades. Estão fechando escolas de educação ou privatizando toda a formação de professores. Esses exemplos documentam que, em esferas particulares, os neoliberais são líderes. Eles têm mais poder do que outros, mas nas escolas eles compartilham o poder, de forma poderosa, com populistas autoritários. Está sendo construída uma estranha coalizão que combina populismo de direita com forças neoliberais e privatizadoras. Assim, os neoliberais são antissindicais, e isso significa que os professores são ameaçados por todos os tipos de coisas, salários mais baixos, perda de empregos, e é muito mais difícil de mobilizá-los. O neoliberalismo não é aceito pelos professores, mas está cada vez mais difícil lutar contra os movimentos religiosos autoritários de direita em seus ataques às escolas e aos professores, dado o medo de represálias e a perda do poder coletivo dos professores.

Deixe-me dar um exemplo do estado estadunidense de Wisconsin. Os neoliberais fizeram uma série de coisas aqui que estão se espalhando, atualmente, por todo o país. Em Wisconsin, por exemplo, cada sindicato de funcionários públicos e sindicatos de professores estão entre os maiores, dissolvem-se em 31 de dezembro de cada ano. Assim, se você tem cinquenta mil professores no sindicato, eles não têm sindicato no final do ano. Os professores devem votar novamente para formar o sindicato, e deve ser cinquenta por cento mais um voto a favor de um sindicato. Isso é cinquenta por cento mais um de todos os membros, não de todos os membros que votam. Então, se você está no hospital com Covid, não pode votar para o sindicato. Se seus filhos estiverem doentes, se você não tiver creche e não tiver tempo para votar, sua impossibilidade de votar conta como um voto contra o sindicato. Agora, isso cria algo que torna muito difícil para os professores se defenderem e lutarem contra, não apenas a privatização neoliberal da educação, mas também contra os ataques aos livros didáticos, “escolas sem partidos” etc. Assim, você pode pensar nos neoliberais como estabelecendo os limites, as fronteiras, e cada um dos outros grupos é extraordinariamente poderoso dentro dessas fronteiras.

Pergunta: Você citou a Globo ou a Fox News, por exemplo, mas eu estava pensando nas redes sociais e como o impacto das redes sociais mudou, principalmente quando falamos desse bloco hegemônico. Talvez isso esteja relacionado à sua resposta à primeira questão, sobre como a aliança conservadora mudou porque os grupos autoritários parecem ser mais poderosos do que os neoconservadores intelectuais mais tradicionais. Então, você pode falar mais sobre os discursos desses grupos nas mídias sociais?

Michael W. Apple: Grupos econômicos dominantes estabelecem as fronteiras. Então, vamos pegar o Facebook, Twitter, Tik Tok. Acho fascinante e angustiante e, às vezes, libertador, tudo ao mesmo tempo! Esse modelo de exibição individual tem efeitos psicológicos; então, alguém dirá coisas incrivelmente homofóbicas, sexistas ou racistas na mídia. Eles se sentem protegidos. Muito mais pessoas estão ouvindo, mas há esse tipo de psicologia ideológica, essa visão da identidade neoliberal, o indivíduo como livre para fazer qualquer coisa (e é esse argumento que embasa uma boa parte da rejeição à vacinação contra a Covid). Para eles, “sou livre”, rejeito a intervenção do governo na saúde porque o Estado é autoritário, não pode controlar meu corpo. Então, é sobre a política do corpo e da voz. Isso, então, aumenta o poder das identidades neoliberais: o indivíduo é superior ao grupo. Paradoxalmente, aumenta o poder do coletivo ao formar novos coletivos. Você paradoxalmente se tornou membro de um grupo invisível que, hoje, está cada vez mais visível.

O capital aqui abre espaço para esse paradoxo de dois tipos de identidades, que muitas vezes estão em guerra entre si, no neoliberalismo: individuação, indivíduo possessivo, minha voz deve ser ouvida, me sinto controlado e as pessoas estão me controlando. Para uma pessoa assim, pessoas trans são mulheres que não sabem mais o seu lugar, me deixando - Deus me ajude! - às vezes fazer lição de casa, fazer trabalho doméstico; a perda da minha masculinidade; negros estão tomando conta da esfera pública. Podemos ver isso acontecendo em muitos sites. Ao mesmo tempo, oferece, bizarramente, uma solução para a individualização excessiva, mas são as pessoas de direita, as coletividades de direita, que estão se mobilizando em torno de todos esses indivíduos que não estão se sentindo poderosos: fornece espaço para as pessoas dizerem: “Eu não estou sozinho em dizer coisas racistas”. Assim, é estranhamente uma solução para a identidade neoliberal e uma substituição de coisas como identidades extremistas de direita e até neonazistas. E não tenho certeza se quero dizer que é um exagero. A extrema direita está na liderança em muitos lugares com bastante poder agora.

Pergunta: Considerando o que você escreveu em seu livro, você poderia explicar um pouco mais quem são os conservadores? Ou talvez hoje tenhamos que fazer duas perguntas: Quem eram os conservadores, e eles ainda são os mesmos? Quais são os atributos específicos dos neoconservadores?

Michael W. Apple: É interessante que a história do neoconservadorismo nos EUA é, em muitos aspectos, também a história da esquerda, e não apenas a da direita. Muitos neoconservadores foram antigos trotskistas, e isso pode ser o caso também no Brasil. A visão deles era bastante contraditória e muito complicada. Baseia-se na crença de que devemos restaurar a tradição ocidental, somos os professores do mundo, e isso remonta novamente à questão: De onde vem o individualismo? Para eles, vem da Grécia, passando por John Locke na Inglaterra, e, depois, importado na Constituição dos EUA, que garante direitos individuais. Claramente, há falhas e omissões muito reais em tal crença, pois nunca foram garantidos direitos às mulheres, e os negros eram contados como três quintos de seres humanos; eles eram vistos quase como animais.

Essa posição pode ser vista em partes dos documentos da fundação e das tradições dos EUA. É uma nação construída sobre uma base de escravidão, de remoção dos povos indígenas, de perda de memória de mortes culturais e físicas em larga escala e do trabalho de milhões de pessoas. No entanto, para esses neoconservadores, somos a casa da democracia no mundo, somos os professores do mundo. Falando honestamente, trata-se de um projeto imperial do Ocidente e do Norte. A discussão de Raewyn Connell sobre a Teoria do Sul é muito útil aqui. Embora os neoconservadores tenham um poder decrescente nessa aliança, esse cruzamento entre o conservadorismo e o populismo autoritário já se fundiu parcialmente. Essas fronteiras são, atualmente, muito mais fluidas do que já foram, e, para muitas pessoas, há uma sensação de: “Por que eu deveria me sentir culpado? Eu não era dono de escravos. Eu não sou racista”. Assim que ouço alguém dizer isso eu digo: “Precisamos conversar agora mesmo”. Ou eles dizem: “Eu não sou sexista, mas...”. Ah, é mesmo? Mais uma vez, interromper isso é crucial. Nem sempre é uma boa pedagogia dizer “uau!”, mas algo tem de ser feito.

Neste momento, o que estamos vendo é muitas das formas e dos argumentos ideológicos sendo costurados com as preocupações, com a culpa, preocupações de pessoas que sentem que a tradição que lhes deu poder, que lhes dá o direito de dizer que não podem me tratar dessa maneira, está agora sendo destruída. Cada vez mais, em muitas nações e áreas, para esses grupos, os brancos e os cristãos conservadores são os “novos oprimidos”. É basicamente, em alguns aspectos, a história da Escola sem Partido, que é um tipo similar de mobilização e de movimento. Os grupos que fazem essas reivindicações apoiam o ensino apenas de “fatos neutros”. Para eles, essa é a história “real”. Eles veem os argumentos poderosos sobre tornar o currículo e os valores mais criticamente democráticos e honestos como meramente ideológicos e como uma imposição injustificada, sem o entendimento de que o conhecimento oficial atual apaga as vidas, as culturas e as experiências de imensas partes do Brasil, dos EUA e de outros lugares. Eles perguntam por que esses afro-brasileiros em Recife, Salvador e em outros lugares do Norte (e muitos deles em Porto Alegre) estão dizendo isso? Eles não entendem que, mesmo que tenhamos falhas, ainda somos os donos da verdadeira história e das tradições da nação e do Ocidente? É simplesmente um problema de algumas pessoas ruins, não do racismo sistêmico, ou das estruturas de autoridade patriarcal. Você está apenas causando problemas e se engajando em políticas de identidade.

Isso incorpora algumas das raízes intelectuais da agenda neoconservadora, mas é, atualmente, um movimento e uma agenda muito mais ampla e politizada, mais influenciada pelo populismo de direita e menos ligada às suas raízes acadêmicas e intelectuais originais. Embora os neoconservadores tenham menos poder nesse movimento, os momentos ideológicos, as questões e os compromissos estão, na atualidade, aumentando. Então, quem tomou seu lugar? É esta estranha combinação de elemento residual do neoconservadorismo com uma forma mais agressiva de novo conservadorismo, que é muito mais autoritário do que jamais foi, mais pró-militar, mais disposto a assumir riscos, e a dizer o indizível e a fazer o que-não-deveria-ser-feito. A ela se unem grupos políticos e cada vez mais representantes eleitos no Congresso do Brasil ou no Congresso dos EUA, que agora estão tão assustados com as mobilizações que estão acontecendo por essa estranha coalizão, que se juntaram a esse movimento complicado, mas dinâmico.

Parte da nova classe média se alia a esses movimentos sem dizer nada contra os impulsos populistas de direita. É aqui que a presença ausente se torna crucial. Não dizer e fazer nada para criticar ou agir de forma organizada contra a combinação populista conservadora tem efeitos muito reais. As pessoas estão, hoje, dispostas a considerar a possibilidade de um golpe militar nos EUA. No entanto, recentemente, os repórteres de investigação dos jornais acabaram de mostrar que havia um plano para subverter o governo legítimo nos EUA. Eles colocaram isso por escrito. Foi apresentado à pessoa que eu só citarei uma vez, Donald Trump. Portanto, aqui novamente temos a ausência de ação sendo influente. Por que a nova classe média se calaria? Por que muitos membros dessa classe ficariam em silêncio sobre tudo isso? Eu não consigo entender como.

Dependendo de quais pesquisas você lê no Brasil, até quarenta por cento das pessoas ainda vão votar em Bolsonaro. Isso pode ser muito alto, pode até ser muito baixo, já que muitos populistas autoritários, e outros, especialmente pessoas na fronteira entre a classe média e a classe trabalhadora, que temem a mobilidade descendente, não responderão corretamente às pesquisas. Foi assim que Donald Trump foi eleito; as pessoas mentiram. Responderam às pesquisas eleitorais que nunca votariam em Trump e, depois, votaram em Trump. Assim, mais uma vez, a ausência de ação é uma ação. É justificada pelo medo, mas é também justificada pelas mudanças de senso comum trazidas pelas agendas neoliberais, pelas preocupações com seus filhos e pelos elementos de bom senso que são mobilizados pela estranha aliança de populistas autoritários e de novos conservadores. É difícil encontrar uma palavra para descrever o que está acontecendo. Não pode ser compreendido pelo conceito de “neoconservador”, mas, certamente, é uma nova forma de conservadorismo. A isso, precisamos sempre acrescentar elementos do trabalho pedagógico bem-sucedido do neoliberalismo para mudar nossa compreensão da democracia de formas mais coletivas para o que é mais bem pensado como individualismo possessivo. Dado esse sucesso, as agendas neoliberais são mais poderosas em certas partes da vida cotidiana. Contudo, lembremos que, em outras partes, é apenas medo.

Pergunta: Acho importante esclarecer a questão para você, porque às vezes as pessoas dizem que há muitos movimentos neoconservadores no Brasil, e não sabemos se essa é a melhor maneira de caracterizá-lo, porque é algo que foi desenvolvido no contexto estadunidense, foi um movimento intelectual no início, e, então, um movimento político depois, e talvez, no Brasil, seja diferente. Essa é, consequentemente, a lógica por trás da questão; buscamos, aqui, esclarecer essa ideia.

Michael W. Apple: Está bem. Concordo plenamente com você novamente. Como notei, nos EUA, era em grande parte um movimento universitário e de direita, baseado em think tanks. Era um movimento anticomunista, mas era um movimento intelectual anticomunista, não apenas um movimento político. Muitas das pessoas estavam na Filosofia e na História e na Economia. Essa tradição mudou para outras áreas e tradições e para uma política mais influente. Foi, e agora é, usada para justificar a Chicago School Economics, que tinha imenso poder no Chile, na Argentina e, certamente, no Brasil, e faz parte desse movimento. Está comprometida com um entendimento muito estreito de “liberdade”, que está fundamentado na Escola Austríaca de Economia. Para eles, devemos garantir a liberdade, mas o que é liberdade? O direito de contratar; o direito de ser um empresário; privatização; uma guerra epistemológica contra normas éticas coletivas substantivas. Embora tenha sido fundamentalmente um movimento intelectual, ainda assim foi muito influente. Essa tradição ideológica e intelectual é importada e patrocinada por think tanks e outros grupos influentes, e muitas vezes os grupos são financiados por organizações de fora das fronteiras de um país.

No caso de alguns desses think tanks, no Brasil, é possível frequentemente rastrear uma boa parte do financiamento vindo dos EUA, e isso é muito importante de entender. Entretanto, precisamos ter muito cuidado para não reduzirmos o que está acontecendo no Brasil a um simples reflexo de movimentos e de tradições políticas, econômicas e ideológicas importadas. O Brasil tem suas próprias histórias, é claro. Sua realidade atual e seu conjunto histórico de experiências não podem ser totalmente compreendidos simplesmente tomando categorias e teorias desenvolvidas a partir do exterior. Para citar um exemplo, há um mito de que o Brasil não é uma nação sistematicamente racista, mas, na verdade, essa foi a última nação do Ocidente a proibir a escravidão. As lutas afro-brasileiras, para que essa história e sua realidade atual sejam reconhecidas e tratadas, são um desafio constante e necessário ao senso comum de muitas pessoas no Brasil. No entanto, por causa desse mito, as estruturas e as ideologias racializantes que permeiam o Brasil são semelhantes, mas nem sempre as mesmas que, por exemplo, os EUA.

Há também uma narrativa e práticas extraordinariamente sexistas, o que não o torna diferente de muitas outras nações também. Todavia, isso se articula de maneiras muito complexas com outras dinâmicas que também são únicas na dinâmica da masculinidade e da sexualidade no Brasil. Ao mesmo tempo, sua estrutura de classes é histórica e atualmente muito complexa; em parte menos industrial e mais historicamente ligada ao campo, em certas áreas. Sua história destrutiva e colonial de relações com os povos indígenas parece muito próxima daquela dos EUA, com políticas assassinas que ainda estão ocorrendo em ambas as nações. A compreensão de tudo isso exige que os estudiosos e os ativistas críticos sejam bastante cautelosos quanto ao simples emprego de categorias externas para lidar com as especificidades brasileiras. Assim, embora elas possam ser úteis para ver coisas que antes eram, em parte, perdidas, não podemos simplesmente importar análises de posições neoconservadoras, e dizer: aqui está.

O Brasil tem uma longa história própria de momentos ideológicos conservadores, mas eles não são exatamente os mesmos que nos EUA. Eles se sobrepõem, mas não são idênticos. Seus movimentos sindicais são diferentes, sua história de lutas negras é diferente, sua história de gênero, a constituição de seus movimentos de classe é específica das formas em que o capitalismo racializado foi e é constituído. Tudo isso, mais uma vez, se sobrepõe, é claro. Contudo, é preciso ter cuidado. Estou dizendo essas coisas porque concordo muito fortemente com a afirmação feita na pergunta. É muito perigoso apropriar-se de análises de fora, sem, ao mesmo tempo, se engajar em uma tentativa séria de ver a que essas categorias estavam respondendo. Não devemos simplesmente afirmar algo como se usássemos um espelho. Aqui está o espelho nos EUA, é exatamente o mesmo no Brasil. Não, não é. O perigo disso não é, porém, apenas político, em curto prazo. É um perigo intelectual também em longo prazo.

Sejamos, porém, honestos aqui,. Infelizmente, os ataques ideológicos ao ensino crítico nas escolas no Brasil, nos EUA e em lugares como o Japão e outros, podem tornar isso ainda mais difícil. Uma das agendas atuais da direita autoritária, dos novos (não apenas “neo”) conservadores e dos neoliberais, é nos fazer perguntar e responder à pergunta sobre o porquê de estarmos financiando o ensino da história. Afinal de contas, não é realmente “conhecimento útil para a economia e para criar uma sociedade e uma força de trabalho mais eficiente”. Para eles, se realmente estamos ensinando história, não devemos apoiar histórias honestas e críticas sobre a natureza de nossas sociedades. Assim, torna-se ainda mais difícil para os estudiosos críticos no Brasil dizer que não é o mesmo, porque isso exigiria um trabalho histórico crítico sério, e cada vez mais, no Chile, nos EUA, no México, na Polônia, na Hungria, na China e em tantos outros lugares do mundo também, é muito, muito difícil gerar financiamento em longo prazo para a pesquisa histórico-crítica. Os efeitos disso são muito significativos. A consequência é a perda de memória e, em seguida, a perda de legitimidade dos movimentos indígenas e dos movimentos locais em geral.

As realidades complexas podem parecer superficialmente um pouco as mesmas que as retratadas pelos neoconservadores, mas podem ter uma gênese muito diferente. Se o problema é definido como “neoconservadorismo”, então a solução se concentra em um conjunto particular de condições políticas, ideológicas e intelectuais. Todavia, se os impulsos e os movimentos conservadores são mais variados e se baseiam em um amplo conjunto de medos e em uma gama mais ampla de políticas agressivas, então nossas próprias análises e ações de organização devem responder às agendas e às políticas mais complicadas desse “novo” conservadorismo. Isso faz uma diferença em como pensamos sobre o trabalho contra-hegemônico que tenta interromper a direita. Como você convence as pessoas a passar de posições conservadoras para uma aliança mais progressista? Como apoiamos aqueles movimentos populares criticamente democráticos, aqueles que estão construindo um tipo diferente de aliança política, aqueles que estão trabalhando contra Bolsonaro ou trabalhando contra autoritários em todo o mundo? Isso pode ser política e taticamente bem-sucedido se, então, pressupormos sempre que os entendimentos que estamos fazendo política e pedagogicamente nos EUA funcionarão bem com eles aqui?

Arriscamo-nos a entender mal tanto a realidade de grandes grupos de pessoas quanto as especificidades dos movimentos pedagógicos que a aliança conservadora faz socialmente para colocar as pessoas sob sua liderança no Brasil. Isso é ignorar milhões de pessoas e é um erro tático muito grave. Isso não quer dizer, de maneira nenhuma, que devemos abandonar minhas análises em livros como Educando à Direita. É um conjunto importante de análises, que acredito que tenha insights cruciais. Entretanto, as pessoas críticas que empregam essas análises, em cada nação, para compreender suas situações vividas, precisam lê-las e utilizá-las de maneiras que estejam intimamente ligadas às especificidades de suas próprias realidades.

Pergunta: Podemos dizer que os neoconservadores estavam alinhados em torno do anticomunismo, e isso me fez pensar muito sobre a história da Escola sem Partido no Brasil. A ala mais “intelectual” do movimento veio com o discurso sobre macropolítica. Contudo, quando examinamos suas ações nas escolas, ela é claramente rearticulada a uma agenda voltada principalmente à chamada “ideologia de gênero”. No início, a agenda pública estava focada na tentativa de encontrar professores comunistas, mas, depois, na prática, tornou-se muito mais sobre o controle dos corpos, em relação ao gênero, à sexualidade, e, também, uma agenda muito racista, se quisermos considerar as recentes pesquisas sobre esse movimento. E, assim, poderíamos dizer que existe uma convergência desse grupo intelectualmente neoconservador, dos populistas autoritários e dos neoliberais? Poderíamos talvez dizer que eles convergem em torno de uma agenda antiprogresso? Para os neoconservadores e populistas autoritários, há uma agenda baseada no medo, por meio de ameaças ao estilo de vida. E, para os neoliberais, existe a ideia de manter a sociedade liberal como ela é, mantendo, em última instância, a estrutura de classe como ela é. Então, mesmo sendo grupos diferentes, será que eles estão convergindo em torno dessa ideia de antiprogresso?

Michael W. Apple: Não há dúvida de que há uma convergência; por isso, falo das fronteiras entre esses grupos. Mais uma vez, esses são os tipos ideais. Essas caixas têm seus buracos. E as pessoas andam, de alguma forma, para frente e para trás, dependendo das crises. Todavia, algumas delas são antiprogresso, sem dúvida, e não há dúvida de que os mesmos grupos, que estão no momento se mobilizando em muitas nações, estão muito preocupados com uma série de relações de poder. Um exemplo seria que há legislação sendo aprovada nos EUA, em todos os EUA, e em muitas nações, por exemplo, na África, sobre trans, gays e lésbicas. E o ataque contra eles muitas vezes se parece com isto: “como eles vão usar os mesmos banheiros”; “o que acontece com minha filha que é uma atleta jogando basquete, no time de basquete feminino, e agora uma pessoa trans, ‘ele’ vai estar no time?”; “bem, sabemos que os corpos masculinos são diferentes dos corpos femininos, e isso torna injusto para minha filha, que é uma garota de verdade, não alguém que artificialmente se tornou uma garota”. Aqui, temos a linguagem sendo capturada com uma falsa roupagem feminista. “Minha filha trabalhou muito duro, ela deveria ter o direito de jogar basquete, e seu futuro não impedido, não interrompido por todos esses meninos que querem ser meninas”. Portanto, é anti-gay e antitrans, e coberto por formas aparentemente feministas, para defender os direitos das mulheres “reais”.

Isso me lembra que esse processo de desarticulação/rearticulação é exatamente como a palavra “democracia”, que é um significante deslizante, e não tem nenhum significado essencial. Pense nisso como se as palavras-chave fossem como um copo. Aqui está o copo chamado democracia, podemos tê-lo preenchido com formas muito espessas e participativas ou podemos derramar significados que dizem que se trata de uma escolha individual. Aqui temos a esquerda que diz: “Sim, trata-se de escolha individual”. É a respeito dos corpos das pessoas trans, elas podem controlar seus corpos, elas devem ter a escolha, financiada pelo governo e pela assistência médica, de se tornarem mulheres, ou mulheres de se tornarem homens, ou de subverter esse binário. No entanto, essas mesmas palavras são retomadas por pais que dizem “isso não é justo para minha filha”, certo?; além disso, “quando a equipe entra no vestiário, e elas querem se despir, ou entram no banheiro e este homem, que está em transição, entra, isso é repugnante”.

Isso realmente levanta um ponto muito importante sobre a mobilidade de termos progressivos. Eles podem ser usados tanto para coisas progressivas quanto para uma política mais retrógrada. É aqui que a distinção feita por John Locke, entre direitos da pessoa e direitos de propriedade, não é suficientemente sutil. A defesa dos direitos da pessoa, que, ao contrário dos direitos de propriedade, sempre apoiei. Isso normalmente significaria coisas como as seguintes: ninguém deveria viver sem uma casa; o Estado deve proporcionar cuidados de saúde sérios e casas para todos. Contudo, as forças conservadoras tomaram a linguagem dos direitos da pessoa e a usaram para seus próprios fins. Esse mesmo discurso é usado como um martelo. É usado para dizer: “mas você está negando escolha para minha filha, ela é uma garota de verdade”. Torna-se muito difícil lutar contra isso. Está mesclado com objetivos que são antiprogressistas.

É aqui que o neoliberalismo tem uma vantagem porque quer escolha. Ele diz: “Podemos resolver isso”. Ele faz isso, porém, sem realmente desafiar os limites ideológicos dominantes nas formas mais qualificadas e densas de democracia. Desse modo, se Michael é uma pessoa de cor, não temos de mudar um currículo escolar, podemos dar um vale (voucher), que, nos EUA, é como uma “Bolsa Família”, mas para escolas. É um cheque. Você pode escolher sua própria escola; o estado proverá. É claro, entretanto, que, no mundo real da escolaridade, os resultados desta política de vale-educação reproduzem o estado racial. Atualmente, as escolas particulares e as escolas dos vales-educação são muito mais segregadas por raça do que qualquer escola, qualquer outra escola nos EUA. Assim, o neoliberalismo, e sua ênfase na democracia como simples escolha individual, tem levado a uma racialização ainda maior. Todavia, ideologicamente, é muito inteligente. Para eles, isso é progresso. Vamos resolver o problema. O Brasil tem tentado resolver esse problema exatamente da mesma maneira. Então, você quer que as pessoas vejam o governo como legítimo? Qualquer pessoa com dinheiro enviará seus filhos a uma escola particular. Dado o não-financiamento das escolas públicas, é algo que é complexo, pois as famílias precisam decidir o que farão com seus filhos, uma vez que você tem uma responsabilidade ética com eles também. Enfim, eu não acho que possamos nomear esse fenômeno como “antiprogresso”, uma vez que progresso acaba redefinido por meio de um processo de desarticulação e de rearticulação. Não há dúvida de que é complicado e funciona para ajudar a direita.

Pergunta: No contexto brasileiro, é difícil fazer uma distinção clara entre populismo autoritário e neoconservadorismo. Como você já mencionou, alguns atores políticos da direita geralmente integram a habilidade de ambos os grupos. Você disse que os grupos são fluidos, as fronteiras são flexíveis, dependendo das circunstâncias. Por conseguinte, gostaríamos de ouvi-lo a respeito da distinção que faz entre populismo autoritário e neoconservadorismo. Você mencionou que estamos vendo o aumento do populismo ultra-autoritário. Parece que há uma disposição crescente para uma nova versão do populismo autoritário. Você poderia falar um pouco mais sobre isso?

Michael W. Apple: Essas são tendências políticas, com algumas sobreposições. Muito depende do contexto específico e das agendas específicas. Há políticas em torno da raça, em torno da classe, sobre sexualidade e gênero e o corpo, sobre ambientalismo, sobre habilidade, sobre idade. Então, você pode dizer que há múltiplas agendas, algumas delas mais poderosas do que outras. Assim, não quero ser do tipo que diz que a classe explica e engloba tudo, mas também quero que nos lembremos que tudo isso também é sobre classe. O capitalismo é gênero e raça. O capitalismo é uma economia racializante. É fundamentado nas relações de classe, mas é claramente também construído em torno de um projeto imperial racista e do trabalho não remunerado das mulheres. Quero que tenhamos sempre isso em mente, há certas coisas que não desaparecem. Essas ainda são as dinâmicas que são elementos-chave na mobilização da direita. Assim sendo, devemos estar abertos para compreender as especificidades das situações. Há alguns grupos para os quais a motivação mais importante é a religião, de modo que estes estariam mais próximos da esfera do populismo autoritário. Assim, em meu livro Educando à Direita, e na segunda edição ainda mais, foquei bastante atenção na relação do populismo autoritário com formas religiosas ultraconservadoras. Isso está crescendo maciçamente no Brasil. Muitas pessoas vão justificar sua discriminação contra os gays, contra os transexuais e, ocasionalmente, contra pessoas de cor, com base nisso.

Bem, isso é complicado e voltarei a isso num segundo. Com base nessas formas religiosas, eles argumentarão que consta na Bíblia que um homem não deve deitar-se com outro homem. No entanto, a Bíblia também diz que não deveria ser permitido uma mulher que está menstruada sair às ruas; e coisas similares, que nos lembram que a Bíblia é um documento histórico. Esse simples exemplo demonstra a leitura seletiva e as contradições do uso da Bíblia. Contudo, o ponto-chave aqui é que, nesses casos e movimentos, a justificativa da ação política conservadora é bíblica, ou o Alcorão, ou a Torá. O domínio dos textos sagrados significa que você está mais próximo de formas autoritárias populistas. Sua agenda pode estar recebendo mais opções nas escolas, e na educação em geral, e você pode querer livros que você considera “controversos” mantidos fora das escolas. Você pode querer Escola sem Partido. As agendas podem parecer muito, muito semelhantes; há, dessa maneira, sobreposição em alguns aspectos, mas, nesse caso, a justificativa e os argumentos são bíblicos. Agora, para alguns grupos ultrarracistas, a justificativa era, e em alguns casos ainda é, que os brancos são superiores como criações de Deus, e é bíblico que os negros devem ser “menos que” e podem ser escravizados. Nós os cristianizaremos. Essa é a história dos povos indígenas sendo cristianizados no Brasil e nos EUA.

O antissemitismo de ultradireita também está crescendo a passos largos em muitas nações. E isso é angustiante de várias maneiras. Também é muitas vezes justificado de maneiras semelhantes. Entretanto, pode haver alguns movimentos nos quais políticas conservadoras similares não são impulsionadas por sentimentos ideológicos religiosos, mas ainda são bastante sexistas, e bastante racistas. Ou elas podem ser baseadas em classe social, baseadas na suposição de que as pessoas pobres são pobres porque não trabalham duro. Parte disso, é uma agenda neoliberal, mas essas pessoas que estão apoiando essa posição podem ser da classe trabalhadora. Esse é um ponto crucial.

Deixe-me dar um exemplo pessoal que ainda faz parte da minha memória. Aqui eu devo falar muito honestamente. Cresci muito pobre e, por vezes, tudo que tínhamos para comer eram batatas e creme de leite azedo, durante dias. E outras vezes, quando meu pai recebia o pagamento, nós comíamos outras coisas. Um dos meus amigos mais próximos também veio de uma família muito pobre. Eles viviam em moradias muito pobres. Partes de nossas duas famílias não queriam que nós dois brincássemos com as outras crianças ainda mais pobres, porque elas “não eram respeitáveis”. Eles eram pobres porque eram supostamente “preguiçosos”. Contudo, vivíamos em uma cidade industrial moribunda, na qual as fábricas haviam fechado. Havia poucos empregos na cidade onde morávamos, Paterson, Nova Jersey. Paterson era uma antiga cidade têxtil que tinha uma esquerda histórica muito forte. Todavia, dada a globalização emergente da fabricação de roupas, não havia basicamente nenhum emprego, mas a explicação para isso, entre um número de outras pessoas pobres e da classe trabalhadora, era que essas pessoas que não tinham empregos eram sempre preguiçosas. Esse é, claramente, um entendimento neoliberal e uma agenda neoliberal, mas eles eram da classe trabalhadora. Eu digo que, por causa dessas crenças, eles são membros do movimento neoliberal? Não, na verdade não. Preciso entender mais completamente os elementos de bom e mau senso em tensão em suas consciências - de uma forma gramsciana. Eles são membros, às vezes, da classe trabalhadora conservadora, que deve manter seu próprio orgulho por seu trabalho. Assim, em vez de dizer que é o capitalismo que está destruindo meu trabalho constantemente, eu digo que são essas pessoas indisciplinadas da classe trabalhadora que estão recebendo algo por nada.

Podemos ver isso quando algumas pessoas no Brasil, e em outros lugares, dizem coisas como: “Por que essas pessoas estão recebendo o Bolsa Família, enquanto eu, que trabalho muito, muito duro não recebo? Eles não merecem, eu trabalho muito, muito duro”. Portanto, esses são grupos que, mais uma vez, não são necessariamente religiosos. Eles são populistas de direita, o que não significa que serão autoritários e darão suporte a Bolsonaro com tudo. Esse é um tipo de questão muito difícil. Eu tendo a olhar para qual é a lógica da justificativa, mas isso não significa que eles não concordarão com as políticas de direita, mesmo quando suas justificativas são diferentes. No entanto, a solução, para muitas das pessoas que são da classe trabalhadora e não são adeptas de movimentos religiosos conservadores, não é tornar todo mundo cristão conservador, nem restaurar o cristianismo em todas as escolas. Eles querem escolha. Eles podem querer a agenda neoliberal e querem um corpo disciplinado e podem ser bastante patriarcais, mas isso não é necessariamente bíblico. Não sei se já respondi à pergunta, mas você me fez continuar pensando criativamente sobre isso. Para ir mais longe, isso exigiria muito mais do que eu teria a dizer.

Pergunta: Nossas perguntas são muito focadas, como você pode ver, em tentar entender melhor o conservadorismo na educação, e eu acho que isso tem relação com o que você estava dizendo antes, especialmente sobre esses diferentes grupos que fazem essa aliança. No Brasil, os analistas usam o conceito de neoconservadorismo como sinônimo de novo conservadorismo. Isso é uma definição suficiente? Você pode explicar qual é o uso apropriado do neoconservadorismo?

Michael W. Apple: Sim. Antes de mais nada, como tenho enfatizado ao longo desta entrevista, não creio que nos EUA o neoconservadorismo seja sinônimo de novos conservadores. Dada a história desse termo, acho que é confuso chamá-lo de neoconservadorismo. Eu não o chamaria. Entretanto, se não houvesse já o uso de neoconservador, se o termo neoconservadorismo não tivesse uma longa história no Brasil, então, para os brasileiros falarem com os brasileiros, talvez, às vezes, o neoconservadorismo possa ser traduzido como novos conservadores. Todavia, ainda estou muito preocupado com isso porque acho que o termo é poluído por sua história em todo o mundo, e certamente na maioria dos países falantes de língua inglesa. Eu não quero ser imperial aqui, mas a história do termo é específica sobre suas raízes intelectuais. Tenho certeza de que havia algumas pessoas nas universidades e nos think tanks de direita no Brasil que eram e são neoconservadores. Esse é um grupo muito limitado.

Certamente havia pessoas no Chile, sob Pinochet, que eram neoconservadores, e eles foram e são fortemente influenciados por um conjunto particular de princípios econômicos e princípios morais e intelectuais conservadores. E tenho certeza de que existiam alguns no Brasil, mas estamos falando de algo que é muito, muito mais amplo do que isso. Então, todos os neoconservadores de orientação econômica no Chile teriam sido totalmente a favor de Pinochet? Para alguns, talvez, eles possam ter argumentado contra atirar pessoas de helicópteros no oceano. Para alguns, ele foi longe demais (porém, mais uma vez, a presença ausente do silêncio e a aquiescência entre muitos grupos dominantes foi um elemento chave aqui). Contudo, não importa o quê, essa era uma forma particularmente assassina de neoconservadorismo. No Chile, eles combinaram elementos do neoconservadorismo e seu medo do socialismo e do comunismo com um profundo compromisso com os princípios econômicos neoliberais principais, especialmente a privatização e as diversas instituições do capital sendo as principais forças de tudo o que tem importância na sociedade. No entanto, para eles, a fim de restaurar a “verdadeira” democracia, eles começam com um compromisso com a privatização econômica e um individualismo possessivo dessocializador como a única identidade crucial para todas as pessoas. Para eles, isso, e somente isso, é a verdadeira democracia.

Para conseguir isso, eles sentiram que tinham de disciplinar o povo para que entendessem a importância das transformações radicais que estavam implantando; e precisavam acabar com qualquer forma de democracia substantiva por enquanto, para que o povo fosse “disciplinado” e aceitasse a liderança da combinação de neoconservadorismo e de neoliberalismo. É claro que existem algumas pessoas poderosas como essas no Brasil. Elas votariam em Bolsonaro, possivelmente. Entretanto, a justificativa e a motivação de grandes grupos de conservadores para Bolsonaro, ou para Donald Trump, nos EUA, ou para Orbán, na Hungria, ou Erdoğan, na Turquia, neste momento, é muito mais ampla e complicada. Não se trata apenas de neoconservadores, pois estes são um grupo relativamente pequeno. Dado isso, como disse anteriormente, acho que preferiria o termo novos conservadores, porém eu também gostaria de descobrir o quanto é novo.

O Brasil sempre teve movimentos e mobilizações conservadoras; então, um dos perigos do conceito de novo conservadorismo é que ele esquece que sempre houve racismo. De certa forma, o país foi fundado sobre o racismo. Tem havido, e continua havendo, uma opressão muito real e sistemática aos afro-brasileiros e aos povos indígenas. Sempre houve uma forte dinâmica patriarcal e relações de poder, com desrespeito às mulheres e aos seus corpos e à sua autonomia. Sempre houve a destruição do meio ambiente, isto é o Brasil! Isso não é tudo do Brasil. O Brasil também tem sido meu professor sobre o que pode ser feito em termos de mobilização. Por conseguinte, é como dizer que qualquer apoio a Lula agora faz parte do “novo progressivismo”. Desculpe-me! Lula não seria Lula sem centenas de anos de pessoas dizendo “não!”, desde o primeiro navio que desembarcou aqui. Sem a restauração da verdadeira história do Brasil seria como dizer que, como no México, quando os conquistadores e missionários saíram daquela primeira geração de barcos e subiram em seus cavalos e começaram a matar pessoas, todos os povos indígenas disseram: “eles devem ser deuses”. Portanto, eles simplesmente sempre aceitaram a colonização ou simplesmente deram a volta e correram. Isso está muito errado e é uma continuação das narrativas racistas.

As opressões criam resistências constantemente. Recordemos as realidades que tantas pessoas oprimidas experimentaram, pessoas sem as quais não haveria economia nos EUA ou no Brasil ou em tantas outras nações. Recordemos as milhões de pessoas roubadas da África e vendidas como mercadorias descartáveis. Recordemos que centenas de milhares, e talvez milhões, delas morreram na passagem, no meio da viagem, a caminho de lugares como o Brasil. Na verdade, muitos navios já estavam quase vazios quando chegaram ao Brasil. Pessoas morreram. Pensar tacitamente ou abertamente que todas aquelas pessoas, que viviam e saíam daqueles barcos, eram passivas é a versão mais racista da história que eu já vi. É claro, porém, para os conservadores dominantes no poder no Brasil (e cada vez mais nos EUA), qualquer ensino honesto da história dessa realidade e dos séculos de criatividade e de ativismo cultural e social deveria ser expurgado das escolas porque se trata de “partidos”, e isso seria muito político. Essa é a minha resposta para a pergunta.

Pergunta: Por último, no que se refere à ideia de falar de novo conservadorismo ou talvez de um conservadorismo rearticulado, como temos nos referido a esse movimento, temos visto que ele mobiliza princípios conservadores históricos, tais como racismo, militarismo, anticomunismo, ataques ao feminismo e movimentos LGBTQIA+ e atualizações para os tempos atuais. Não visualizamos um grupo organizado neoconservador influente, à maneira dos neoconservadores estadunidenses operando no Brasil, mas, em vez disso, vemos a influência do movimento neoconservador estadunidense no imaginário conservador brasileiro. Na sua opinião, existe uma diferença entre neoconservadores e conservadores?

Michael W. Apple: Acho que já respondi, mas me deixe dizer mais algumas coisas. Acho que, mais uma vez, é aqui que o trabalho de Stuart Hall sobre desarticulação e rearticulação é crucial. Para responder a essa questão, temos de perguntar quais foram as formas pedagógicas criativas, as formas ideológicas criativas, que evoluíram e como elas funcionaram para convencer as pessoas a ficarem sob a liderança de grupos dominantes. Esta é a pergunta de Gramsci: Como se formam novos blocos hegemônicos? E você não consegue entender nenhum dos meus trabalhos, desde os últimos quatro livros, começando por Política cultural e Educação e Educando à Direita3até os últimos, tais como A Educação pode mudar a Sociedade? e A luta pela Democracia na Educação4 a menos que você entenda que há três perguntas: 1) Como funcionaram as mobilizações de direita e como entendemos esse processo?; 2) Quais são os processos de desarticulação e rearticulação?; 3) O que podemos aprender com esses processos?

Eu dei alguns exemplos disso, ao longo das minhas respostas. Um exemplo é quando falamos de sua pergunta sobre a mídia. Aqui temos a demanda por voz, de homens racistas e antifeministas. Está fundamentada na agenda neoliberal e em sua visão dos direitos individuais sem responsabilidades sociais para com os outros. Baseia-se em uma identidade e em um compromisso contraditório com uma posição de que devo ser livre para falar. Isso parece parcialmente progressivo, mas nega os efeitos opressivos e situa o “eu” fora de seu conteúdo social. Basicamente, é associal, mas resolve a contradição ao recriar um novo espaço social que liga a voz conservadora ao grupo social conservador. Assim, ele desarticula o que antes era uma forma progressiva e o reconecta a um movimento fundamentalmente conservador. É exatamente assim que opera o discurso hegemônico. Marx foi muito perspicaz quando disse: veja, o feudalismo era horrível, o capitalismo era um pouco melhor. Assim, o feminismo reformista nunca é suficiente, mas, com toda certeza, é melhor do que o que veio antes, que é vender corpos de mulheres, muitas vezes sob controle patriarcal assassino, a posse sobre os corpos das mulheres (bem-vindo ao retorno do Talibã no Afeganistão).

Temos de perguntar, portanto, qual é a novidade, quais são as novas formas de desarticulação e de rearticulação. Como os grupos dominantes tomam os recursos disponíveis, recursos que podem ter elementos de bom senso parcial, e usam esses recursos para colocar as pessoas sob sua liderança? Lembre-se quando comecei respondendo à primeira pergunta, e eu disse, espere um minuto, isso não é uma guerra de movimento, é uma guerra de posição. Uma guerra de posição requer que pensemos sobre o que é o conjunto cultural no trabalho ideológico. Na verdade, é pedagógica e, muitas vezes, é bastante criativa. Às vezes, paradoxalmente, pode ser vista como uma versão manipuladora e direitista de Paulo Freire. Como as pessoas se convencem a se juntar a novas alianças? Para deixar suas identidades anteriores? Como são construídas as novas identidades? Ou como as identidades antigas são revitalizadas? Como se constrói o discurso racial para que não soe racista, mas do “senso comum”? Como as afirmações sexistas não soam mais sexistas? Como o não-dizível se torna dizível e como tudo isso é justificado e aceito?

Eu dei o exemplo do pai e da mãe que têm uma filha, e a filha é talentosa no basquete. Eles estão usando linguagem e lutas anteriores pelas quais muitas mulheres têm sido perseguidas e às vezes mortas: “Devo ser tratada com respeito. Minha filha é uma talentosa jogadora de basquete. Mas você [a escola pública] vai apoiar a entrada de uma pessoa trans no time e vai negar apoio financeiro à escola se a pessoa trans não entrar no time” (Essas penalidades financeiras se tornaram lei em alguns estados dos EUA). Os pais continuam a dizer que “não se pode deixar de financiar essa equipe, não se pode permitir uma pessoa trans na equipe, porque isso tirará os direitos de nossa filha”. Para eles, os meninos são melhores no esporte. Sua posição é baseada na suposição de que os meninos, por sua própria natureza, serão melhores do que as meninas. Para os pais, você está negando seus direitos de ter uma filha que compete igualmente no basquete.

Há certos elementos parciais de feminismo aí. Como essa visão se transforma pelo neoliberalismo em um forte sentimento anti-gay e antitrans? Para a compreensão de muitas pessoas sobre questões progressistas é uma afirmação progressista: “Eu quero que minha filha seja livre”. Como posições como essa se transformam no apoio a Bolsonaro? Ou Trump ou Erdoğan? Então, essa é para mim a verdadeira questão: Como isso funciona? Claro, muitas coisas que são experimentadas não funcionam. Estas são as coisas que funcionam, mas posso assegurar-lhe que muitos grupos tentaram outras coisas.

Neste momento, por exemplo, há uma grande coisa que me surpreende muito: é o crescimento da antivacina como força mobilizadora, quando o Brasil tem uma história de um dos lugares mais receptivos do mundo para vacinas. Aposto que é uma surpresa para a direita no Brasil, mas eles tentaram e funcionou para muitas pessoas quando uma posição antivacina é tão publicamente apoiada por Bolsonaro. E certamente tem funcionado como uma força mobilizadora ainda mais poderosa nos EUA e em outros lugares, movendo as pessoas para a direita em defesa da “liberdade”. Desse modo, temos de perguntar também: novamente, este é meu argumento sobre as presenças ausentes, o que foi experimentado e não funcionou? Isso nos diria muita coisa.

Uma coisa que foi tentada e que agora teve efeitos contraditórios nos EUA são os movimentos religiosos radicais. É muito interessante que um número cada vez maior de pessoas nos EUA tenha sido afastado pelo fundamentalismo agressivo. Isso não significa que eles sejam pró-aborto, por exemplo, uma vez que o que é chamado de movimento “pró-vida” cresceu muito forte nos EUA. Contudo, para muitas pessoas, a justificativa é, atualmente, diferente. Não se trata de Deus, trata-se de uma posição que argumenta que desde a época da concepção os fetos são verdadeiros seres humanos. Essa crença foi desarticulada dos fundamentalistas que afirmam que “a Bíblia disse, portanto deve ser verdade”, para a agenda neoliberal, que é: todos têm o direito de viver. Agora há, amplamente, parte de uma luta pela personalização. Isso levou a um aumento muito grande no apoio à legislação antiaborto, com até mesmo uma série de progressistas mudando suas posições ao longo do tempo. Esse é um exemplo muito complexo, cheio de elementos contraditórios e discursos contraditórios. Afirma respeitar o direito à vida de todos os seres vivos ao mesmo tempo em que, na realidade, criou as condições nas quais milhares de mulheres, em sua maioria pobres, morrerão. A maior parte da agenda não faz exceções para estupro e incesto. Assim, as questões morais são, no mínimo, muito complexas. Penso que é realmente crucial que perguntemos o que isso significa, qual é o processo criativo?

Deixe-me dizer também isto novamente. Tenho mantido, ao longo desta entrevista, que a política e os processos de articulação/rearticulação são centrais para entender e interromper a direita. Os educadores críticos como nós têm duas tarefas: compreensão e interrupção. Ambas são importantes. Como discuti com muito mais detalhes em outro momento, isso nos leva a uma série de responsabilidades e ações que devemos assumir, mas esse seria o tema de toda uma outra entrevista que talvez queiramos fazer em alguma outra oportunidade. Temos falado sobre os movimentos conservadores e como poderíamos entendê-los e seu sucesso. Como mencionei em minha resposta a uma pergunta anterior: as pessoas não são marionetes. Os processos de desarticulação e de rearticulação também estão ocorrendo profundamente por meio de mobilizações e de grupos progressivos. Assim, todas estas questões de que falamos aqui: racismo, militarismo, anticomunismo, feminismo, movimentos LGBTQIA+, ambientalistas, todas elas têm mobilizações não apenas da direita. Cada uma delas é incorporada em grupos que tentam conscientemente tirar as pessoas do guarda-chuva da modernização conservadora e trazê-las de volta para um conjunto reestruturado de movimentos progressistas. Eles estão construindo tanto alianças tradicionais quanto novas alianças híbridas. Se você quiser ver um pouco disso em ação, há dois livros recentes, nos quais estive envolvido, que podem ser úteis: A luta pela Democracia na Educação5 e o último livro escrito por Rita Verma e eu, Disrupting hate in Education (Interrompendo o ódio na Educação). Ambos se esforçam muito para lidar não apenas com os processos de desarticulação e de rearticulação, mas também como estes estão envolvidos na interrupção da dominação. Acho que essas questões são cruciais e vale a pena continuar a falar sobre elas.

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1Publicado pela Editora Cortez.

2Publicado, no Brasil, em 2020, pela Editora Vozes.

3Ambos publicados pela Editora Cortez.

4Ambos publicados pela Editora Vozes.

5Publicado pela Editora Vozes.

Recebido: 25 de Agosto de 2022; Aceito: 30 de Agosto de 2022; Aceito: 08 de Setembro de 2022

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Tradução de Margarete Belli, com financiamento da FAPERGS.

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