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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18767.084 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Resenha

O ferrete da “aparência”

Candido Alberto Gomes* 
http://orcid.org/0000-0001-8498-3785

*Professor Catedrático do Instituto de Estudos Superiores de Fafe (Portugal)

LIMA, Denise Maria Soares. Corpos negros, linguagens brancas: o mito da boa-aparência. 2020. Appris, Curitiba: 227p.


No princípio era a escravidão. A escravidão submetia às/aos diferentes, subtraia-lhes a humanidade e as/os tornou, aos olhos jurídicos europeus, similares aos semoventes. Assim, restabeleceu-se uma perversão global, a de um ser humano ser posse de outro ser humano, que, dele, sem direitos, pôde dispor à sua vontade. A escravidão gerou e ainda gera (onde ilegalmente existe) preconceitos e estigmas enraizados na História. Preconceitos e estigmas, por sua vez, abriram caminho para a constituição de castas e para a inferiorização na pirâmide social. Quem nasceu negra/o herdava a condição de escrava/o e, depois de formalmente abolida a escravidão, o de pessoa inferior na estratificação social, a uma longa distância do topo, para que lá chegassem só muito raramente. Com isso, “provariam” que o caminho era “livre” e quem se esforçasse lá chegaria. Esse processo mercantil, sobretudo atlântico, moldou a História, as culturas, os padrões de beleza, de sexualidade, de trabalho, de economia. Do “certo” e do “errado”: uns estavam do lado “certo”, porque eram vistos do centro; os inferiores, sistematicamente do lado “errado”.

A escravidão não era novidade. Campeou na Idade Antiga, quando as guerras tinham as/os escravas/os como fonte de recompensa simbólica e econômica. Depois quase desapareceu na Idade Média europeia, se bem que não fora dela. Reemergiu com o mercantilismo e os padrões de racionalidade da relação custo/benefício. A bem da verdade, em muitas situações, africanos escravizavam-se e escravizavam para europeus. Comprimidos em navios negreiros, os trens de gado nazistas da época, ocupando o menor espaço unitário possível, vinham para o trabalho compulsório nas Américas, embora morressem em alta proporção na viagem. Seu preço, compensador deste lado do Oceano, era determinado por diversas variáveis nos mercados, segundo a oferta e a procura, e, assim, compensava as perdas das longas viagens. Os portugueses, como os demais colonizadores que chegaram depois e deixaram suas marcas no Caribe, nos atuais Estados Unidos e em tantos pontos do mundo, e os espanhóis, que estabeleceram na América as encomendas, muito lucraram e produziram graças ao trabalho gratuito. Um fio bem visível une e transpassa colonização, escravidão e lucro. É bem verdade que a racionalidade econômica se vergava aos padrões de crueldade, de sadismo e de serviço sexual. Conquanto, ao pé da letra, escravas/os fossem bens de capital, o imediatismo levava a sua vida média a durar, em média, no Brasil, cerca de 33 anos (FURTADO, 2007). Ao sabor dos 3Ps - pau, pão e pano - nessa ordem, consumiam-se escravas/os a médio prazo, como “moinhos de gastar gente”, nas palavras de Darcy Ribeiro (1995, p. 96).

A espiral descendente de estigmas, de perseguições e de toda espécie de violências contra grupos étnicos costuma ser toldada pelas lendas de suposto heroísmo de chefes políticos e militares. Bandeirantes são pintados como desbravadores quando apresavam índios para o trabalho escravo. Lutadores contra os quilombos aparecem como cumpridores da lei e da ordem. Os negros, pelas circunstâncias históricas, situaram-se entre os alvos mais numerosos da História e, também, judeus, romanos, protestantes e católicos, muçulmanos e muitos outros grupos étnicos, culturais e nacionais. Em diferentes tempos e lugares, sofreram os horrores dos grupos dominantes. Um denominador comum de muitos deles é o temor da sua ascensão social, chegando ao pânico, como os negros, que, convenientemente aos escravizadores, deveriam permanecer nas camadas mais baixas da sociedade; ou ocupavam posições importantes na estratificação social, pela educação, pela riqueza e por outras características, como os judeus na Europa, desgraçadamente até os dias contemporâneos. Essas manchas ignominiosas derramam-se, alastrando-se por tempos e espaços. Não podemos esquecer também as aparências menosprezadas dos escravos atuais do crime organizado, tais como vestes, tatuagens, linguagens e outras: mais uma vez o ferrete da “aparência”.

No livro Corpos negros, linguagens brancas: o mito da boa-aparência, Denise Maria Soares Lima pesquisa a feminilidade negra e da educadora em dois países: Moçambique e Brasil. Este resenhista teve o privilégio de ouvir a autora narrar o seu “estalo” sobre a condição negra, o etnocentrismo branco e o jugo da internalização de padrões estéticos femininos brancos, na inferiorização sociocultural emanada da escravidão. O “estalo” foi o ponto de partida para investigar o entrecruzamento de três categorias de vulnerabilidade histórico-social: a mulher, a negritude e a educadora. Serviu-lhe de mote uma expressão codificada, constante de anúncios classificados de trabalho, veiculados em jornais e outros veículos, eletrônicos ou não: a “boa-aparência”. Qualquer brasileiro razoavelmente bem-informado percebe que, subjacente à expressão “boa aparência”, está uma recusa: não se aceitam negros, a “boa aparência” é apanágio de brancos a partir de certa classe social. O eufemismo parcialmente encobre a perversidade e a vergonha, bem ao modo do “homem cordial”.

A autora, como Roger Bastide, ainda que em pequena escala, percebeu a necessidade de estudar a África e o Brasil, pela sua interdependência. Como seria Moçambique, mais particularmente Maputo, a capital, tendo como foco uma instituição de Educação Superior para formar educadoras/es, principalmente mulheres? Como o leitor poderá ver, a futura educadora em Maputo se guia por padrões estéticos discretos, mais formais, no país das capulanas, esta marca de identidade. A mulher, todavia, é vista segundo lentes mais ou menos estereotipadas, da beleza, da fortaleza e da sensualidade. Forte porque luta pelo seu espaço. Bela e sensual porque é mulher, na perspectiva masculina. Entretanto, em um país predominantemente negro, constata-se a estratificação social interna pela cor da pele: os negros mais claros são aceitos para ocupações superiores, ao contrário dos negros mais escuros. Um divisor nuançado, tendo como padrão exógeno o branco, em outras palavras, quanto mais próximo do branco, mais alta a posição social. Tudo isso envolto pela supremacia transversal do machismo, que abrange, com suas diferentes facetas, todas as mulheres.

Deste lado do Atlântico, o local escolhido para a investigação foi a Bahia, onde a fornalha da colonização ardeu por séculos - e simbolicamente ainda o arde -, com a produção do açúcar e a onipresente mão de obra africana. Uma instituição superior para formação de educadores é a correspondente na comparação. As jovens são mais descontraídas e informais, embora singrem, como em Maputo, entre a assunção dos padrões negros de beleza e os modelos brancos, entre a identidade - e o reconhecimento da sua própria beleza - e a importação colonial. Os cabelos, tão historicamente significativos para a mulher, tão eroticamente expressivos, constituem um traço característico marcante. Buscar a identidade ou imitar? O nós ou os outros? Interessante que os atributos mais apontados da mulher foram, nesta ordem, a sexualidade, a sensualidade e a feiura, não a fortaleza, como em Maputo. Seria o peso de tradições do uso erótico das escravas pelos senhores, propriedades deles como coisas? Seria resultado das representações da mídia para o mercado, por sua vez, enraizadas na história colonial? Da jovem em emancipação, as características mais salientes referem-se à aparência: sexualidade - sensualidade versus feiura. No entanto, nas duas instituições educacionais, a mulher é alvo dos estigmas de sociedades patriarcais, ao passo que a mulher negra se situa na encruzilhada de culturas plurisseculares que lhe outorgam status inferior. Por isso mesmo, vigoram movimentos emancipadores tanto do racismo como do machismo. Diríamos, é o Zeitgeist, o espírito do tempo que faz as mudanças em meio às contradições, como o vai e vem das ondas, não raro tumultuosas, nos dois locais, os Oceanos Índico e Atlântico.

Denise Lima seguiu um caminho metodológico qualitativo, de dois estudos de caso, que, sem desprezar os números, captou em profundidade modos de pensar, de sentir e de agir. Os números permitem captar a realidade, porém têm suas limitações, não penetram nas tessituras mais sutis e profundas. De igual modo, os métodos qualitativos também apresentam as suas limitações. Por isso, a pesquisa de Denise Lima pode servir de guia para outras incursões na realidade.

Contemplamos, assim, dolorosas contradições dos tempos, frutos do ontem no hoje. O ferrete marcava as/os escravas/os. Tanto tempo depois, persiste, como cicatriz dolorosa, na qualidade de estigma. Mais não devemos revelar sobre o livro, pois subtrairia do leitor o prazer da apreensão de tantos pormenores.

Referências

FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. [ Links ]

RIBEIRO, D. O povo brasileiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. [ Links ]

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