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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 23-Fev-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19419.003 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Educação para as Relações Étnico-Raciais nas pesquisas em Educação Física e formação inicial: um estado do conhecimento*

Education for Ethnic-Racial relations in Physical Education research and initial training: a state of knowledge

Educación para las relaciones Étnico-Raciales en la investigación en Educación Física y la formación inicial: un estado de conocimiento

Keylla Amélia Dares Silveira** 
http://orcid.org/0000-0003-3527-3407

Wilson Alviano Júnior*** 
http://orcid.org/0000-0002-5599-9865

**Licenciada em Educação Física pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), especialista em Educação Física Escolar pelo Instituto Federal Sudeste de Minas Gerais e mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFJF. E-mail: <keyllamelia@hotmail.com>.

***Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Docente na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: <wilson.alviano@ufjf.edu.br>.


Resumo:

A Educação Física, como componente curricular obrigatório da Educação Básica, fomentou, por muito tempo, a construção e a manutenção de normas racistas, por meio de preceitos eugênicos, marginalizando e negligenciando os conhecimentos oriundos das populações afro-brasileiras e indígenas. Assim sendo, afirma-se, neste artigo, a necessidade da inserção da Educação para as Relações Étnico-Raciais no contexto desse componente curricular, a começar pela formação inicial de professores. Destarte, este trabalho teve por objetivo compreender como a temática das relações étnico-raciais tem sido introduzida nas pesquisas sobre a Educação Física e a formação inicial de professores. Para tanto, construiu-se um estado do conhecimento a partir de levantamentos, de seleções e de análises de pesquisas disponíveis no Portal de Periódicos e no Catálogo de Teses e Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Notou-se a existência de pesquisas profundamente relevantes na área. Contudo, ao analisar-se o tempo em que as legislações foram criadas, pôde-se inferir que ainda é um trabalho exíguo e que demanda investimentos.

Palavras-chave: Educação para as Relações Étnico-Raciais; Educação Física; Formação inicial de professores

Abstract:

Physical Education as a mandatory curricular component of Basic Education, for a long time fostered the construction and maintenance of racist norms, through eugenic precepts, marginalizing and neglecting the knowledge from the Afro-Brazilian and indigenous populations. Therefore, in this paper, it is affirmed the need for the insertion of Education for Ethnic-Racial Relations in the context of this discipline, starting with the initial training of teachers. Thus, this work aimed to understand how the theme of Ethnic-Racial Relations has been introduced in research on Physical Education and the initial teacher education. To do so, a state of knowledge based on surveys, selections and analysis of research available on the Journal Portal and on the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) Theses and Dissertations Catalog was constructed. It was noted the existence of deeply relevant research in the area. However, when analyzing the time when the legislation was created, it was possible to infer that it is still a meager job and that it demands investments.

Keywords: Education for Ethnic-Racial Relations; Physical Education; Initial teacher education

Resumen:

La Educación Física, como componente curricular obligatorio de la Educación Primaria, fomentó, por mucho tiempo, la construcción y mantenimiento de normas racistas, por medio de preceptos eugenésicos, marginando y negligenciando los conocimientos oriundos de las poblaciones afrobrasileñas e indígenas. Así siendo, se afirma en este artículo la necesidad de la inserción de la Educación para las Relaciones Étnico-Raciales en el contexto de este componente curricular, a comenzar por la formación inicial de profesores. De este modo, este trabajo tuvo como objetivo verificar y comprender cómo la temática de las relaciones étnico-raciales ha sido introducida en las investigaciones sobre Educación Física y la formación inicial de profesores. Para ello, se construyó un estado de conocimiento a partir de encuestas, selecciones y análisis de investigaciones disponibles en el Portal de Revistas y en el Catálogo de Tesis y Disertaciones de la Coordinación de Perfeccionamiento del Personal de Educación Superior (CAPES). Se notó la existencia de investigaciones profundamente relevantes en el área. Sin embargo, al analizar el momento en que las legislaciones fueron creadas, se puede inferir que aún es un trabajo magro y que demanda inversiones.

Palabras clave: Educación para las Relaciones Étnico-Raciales; Educación Física; Formación inicial de profesores

Introdução

A Educação Física, enquanto componente curricular obrigatório da Educação Básica, teve sua função e seu objeto de conhecimento modificados desde sua concepção até os dias atuais. Assim como a escola, essa disciplina escolar esteve, intimamente, imbricada com a formação social do nosso país. Desse modo, vinculou-se, por muito tempo, aos interesses das instituições médicas e militares, lidando com o corpo a partir de uma abordagem estritamente biologicista. Ademais, para cumprir suas funções sociais, a Educação Física empregava, em suas práticas, ideais eugenistas e higienistas, na busca por um corpo sadio, forte, e que mantivesse a “pureza” da raça branca. Nesse cenário, percebemos que as manifestações afro-brasileiras e indígenas eram marginalizadas e negligenciadas (MOREIRA; SILVA, 2016).

A partir da ampliação dos referenciais teóricos na área, com a inclusão de vertentes críticas aos paradigmas até então fixados, a Educação Física modificou seu olhar para o corpo, com uma ampliação de abordagens para além da biológica, e atribuiu a cultura corporal como seu objeto de conhecimento. Dessarte, sublinhamos, aqui, a necessidade e a relevância da inserção da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) no contexto da Educação Física, por meio do conhecimento e da vivência das diversas manifestações culturais afro-brasileiras e indígenas, de forma crítica e criativa (MATTOS, 2007).

Consideramos que, dentre as diversas condições favorecedoras para o trato da ERER no contexto escolar, se destaca a inserção da temática na formação inicial docente. A Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação e do Conselho Pleno – CNE/CP (BRASIL, 2004) indica:

Art. 1º A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores.

§ 1º As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004.

§ 2º O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das instituições de ensino, será considerado na avaliação das condições de funcionamento do estabelecimento. (BRASIL, 2004, p. 1).

Nessa perspectiva, Petit (2020) expõe a urgência para que as universidades introduzam em seus currículos – demasiadamente eurocentrados – conteúdos afro-referenciados em todas as áreas de formação. Para Petit (2020), essa é uma forma de romper com a narrativa única encontrada nesse local e de ampliar sua abrangência para todos os seguimentos e disciplinas escolares, desde a Educação Infantil. Oliveira (2013) expressa que o diálogo entre as diferentes culturas é fundamental para superar as relações de dominação, permitindo uma transformação em nossa educação pela incorporação de saberes afro-brasileiros e indígenas.

Na investida para estabelecer uma educação mais justa, plural e antirracista, algumas medidas legais no âmbito educacional foram elaboradas, sempre alicerçadas pelas lutas dos movimentos sociais negros. Desse modo, propomos, a seguir, discorrer sobre alguns elementos que tangem a história desses movimentos e suas principais ações.

As organizações do movimento negro, em suas conformações atuais, nem sempre se configuraram do mesmo modo. Oliveira (2019) revela que as associações organizadas por populações de origem africana no Brasil existem desde o século XVIII, modificando, ao longo do tempo, seus objetivos, suas características e seus integrantes. No final do século XIX, por exemplo, é possível encontrarmos jornais e sociedades beneficentes que buscavam criar uma rede de solidariedade entre ex-escravizados e descendentes. As irmandades também são exemplos dessas sociedades, as quais criavam salas de aulas, angariavam fundos de auxílio, além de promoverem eventos religiosos. Segundo Oliveira (2019, p. 6): “Mesmo não compreendendo que existia a luta e a identidade racial, essas associações podem ser consideradas como o início do Movimento Negro”. Para Gonçalves (1998), a transição entre as associações do passado e as organizações negras propriamente modernas deu-se por meio dessas irmandades religiosas católicas dirigidas pelos negros. Elas não abandonavam sua missão religiosa e utilizavam uma parte significativa de seus recursos materiais e humanos para concretizar objetivos sociais. Contudo, pelo impacto da modernização, muitas dessas associações não sobreviveram ou acabaram perdendo sua função inicial.

Revelaram-se, também, outras organizações marcadas pela coexistência de valores tradicionais afro-brasileiros e modernos, como os sindicatos, a imprensa negra, os grupos artísticos, os grupos religiosos. Por meio delas, muitos negros e muitas negras buscavam aumentar sua intervenção na sociedade, dando origem a uma nova forma de ator coletivo: o movimento negro (GONÇALVES, 1998). De acordo com Lima (2020), independentemente da estrutura na qual essas lutas se davam, os coletivos pleiteavam a garantia de direitos e de participação de negros e de negras nas esferas políticas, educacionais, associativas, sindicais, territoriais, entre outras. Para Oliveira (2009):

O Movimento Negro então se caracteriza por uma diversidade de entidades: grupos de capoeira; blocos afro de afoxé; a congada; o jongo; o maracatu; o maculelê; o movimento hip-hop (os grupos de rappers e reagge); terreiros de candomblé; as irmandades negras (São Benedito, Santa Efigênia, São Elesbão); as comunidades rurais remanescentes dos quilombos e as entidades sociais (ONGs negras). (OLIVEIRA, 2009, p. 128).

Algumas organizações se destacaram nacionalmente, como, por exemplo, a Frente Negra Brasileira (FNB), que foi considerada como o primeiro movimento racial reivindicativo após a abolição da escravatura. Pereira (2013 apudMEIRA, 2018) afirma que a criação desse movimento político social, em 1931, foi a marca do início do movimento negro no Brasil. No ano de 1936, a FNB transformou-se em partido político e, apenas um ano depois, em 1937, foi extinta pelo golpe do governo Vargas (OLIVEIRA, 2019). Outra organização significante na história do movimento negro foi fundada, em 1944, por Abdias do Nascimento: o Teatro Experimental do Negro (TEN). O TEN realizou a Convenção Nacional do Negro que, em 1945, reuniu diversas organizações e ativistas com o objetivo de apresentar propostas para a Assembleia Nacional Constituinte, responsável pela elaboração do que viria a ser a Constituição de 1946. Alguns pontos apresentados na Convenção reivindicavam que a próxima Constituição tornasse explícita a origem étnica do povo brasileiro, constituído fundamentalmente por indígenas, negros e brancos; que o preconceito de cor e de raça se tornasse crime de lesa-pátria; que os brasileiros negros fossem admitidos em estabelecimentos particulares e oficiais de ensino (secundário e superior), enquanto o ensino em todos os graus não se tornasse gratuito; entre outros. O TEN teve suas atividades restritas na década de 1960 e, devido à repressão política do período da ditadura militar, foi completamente extinto em 1968. Outro movimento de expressão se deu a partir de um ato público contra torturas policiais sofridas pela população negra, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, onde, em 1978, nasceu o “Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial” (MNU), o qual representa um marco na história da luta contra a discriminação racial no país (OLIVEIRA, 2009).

Lima (2020) afirma que a mobilização do movimento negro para participar da constituinte e colocar em pauta suas demandas foi fundamental na construção de espaços para as reparações. Segundo a historiadora, após muitas negociações e resistência, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), além do reconhecimento da cultura como direito, garantiu, em forma de lei, outras duas importantes conquistas: o racismo como crime inafiançável e imprescritível e os direitos da terra quilombola. Ademais, as décadas de 1980 e de 1990 foram marcadas pelo debate por medidas de reparação e de reconhecimento da população negra, tendo como seu principal interlocutor o movimento negro. O alicerce da pauta das reparações é a ideia de que existiram diversos prejuízos (psicológicos, materiais, sociais, políticos, educacionais) aos quais as populações escravizadas e negras foram submetidas e que, consequentemente, seus descendentes herdaram. A tentativa de repará-los seria colocar a história em dia com essa população (LIMA, 2020).

No que tange às lutas das organizações da população negra, notamos que a educação sempre foi uma das grandes ferramentas mobilizadas para sua afirmação no espaço social. Oliveira (2019) percebe o quanto o modelo de educação vigente no Brasil é excludente e reprodutor de desigualdades ao dizer que

[...] homens e mulheres de origem africanas têm suas trajetórias de vida e luta invisibilizadas, estigmatizadas e estereotipadas pelos materiais didáticos, pela formação equivocada destinada aos(às) professores(as) e pelo racismo institucional que opera impedindo e/ou dificultando a valorização e o sucesso escolar de crianças negras. (OLIVEIRA, 2019, p. 296).

Precisamente nesse contexto dos mecanismos de desculturação da população afro-brasileira e dos currículos escolares é que as organizações negras posicionavam – e ainda posicionam – sua luta para a garantia de políticas públicas educacionais, intercedendo não apenas pelo direito ao acesso à educação, ao conhecimento e à escola pública, mas também pela sua permanência e pela qualidade desse conhecimento, inserindo suas histórias e culturas nos diálogos escolares. O propósito não é mudarem o foco etnocêntrico do conhecimento – marcadamente eurocêntrico e estadunidense por um afro-brasileiro – mas, sim, ampliarem os objetos dos currículos escolares, tornando presente os conhecimentos constituídos pelas diversidades culturais, raciais, sociais, econômicas (BRASIL, 2004).

Em direção à construção de termos legais, o governo brasileiro instaurou ampla discussão relativa às demandas educacionais da população negra a partir da III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada no ano de 2001, em Durban, na África do Sul, na qual compareceu com uma numerosa comissão. Com o propósito de cumprir as pautas firmadas na declaração dessa Conferência, o governo apossou alguns compromissos de reparação, por exemplo, a implementação de políticas de ações afirmativas – como as cotas estudantis e as cotas de emprego em segmentos da administração pública, em benefício dos negros, dos indígenas e de outras minorias; a condenação da escravidão como crime contra a humanidade; a condenação do racismo; entre outras. De acordo com Meira (2018, p. 46), a Conferência de Durban “[...] abriu definitivamente as portas para o reconhecimento das demandas urgentes a favor do povo negro no Brasil, entre elas uma educação que representasse de forma real a realidade da população negra”.

Nesse cenário favorável à instituição de políticas educacionais, foi promulgada a Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, tornando obrigatória a inclusão da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Rede de Ensino (BRASIL, 2003). Essa legislação é considerada uma das medidas mais relevantes para o estabelecimento de uma educação antirracista, rumo à reparação humanitária do povo negro brasileiro, pois impulsionou a temática para um novo patamar no contexto da educação brasileira. Ademais, a lei reconhece que, além de assegurar o acesso de negros e de negras aos bancos escolares, é imprescindível valorizar suas histórias e culturas, visando a reparação dos danos relacionados às suas identidades e aos seus direitos, que se repetem há séculos. Vale ressaltarmos que, mesmo a lei tendo sido criada em um cenário político favorável às políticas educacionais, sua sanção foi resultado de longa luta dos movimentos político-sociais da população negra do país.

Para garantir e subsidiar a consolidação da Lei N° 10.639/2003, foram inauguradas, em 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a ERER e para o Ensino de História e da Cultura Afro-Brasileira e Africana. São diretrizes que estabelecem orientações, definições e princípios para a ERER. Sua questão central envolve o currículo, ao orientar e inspirar os sistemas de ensino para a construção de novas bases curriculares. Além disso, as diretrizes analisam, historicamente, as relações étnico-raciais no passado e suas consequências na dinâmica social presente. Segundo Oliveira (2009), as DCN para a ERER se situam

[...] no campo das políticas de reparação, de reconhecimento e valorização dos negros, possibilitando a essa população o ingresso, a permanência e o sucesso na educação escolar. Envolve, portanto, ações afirmativas, no sentido de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisições de competências e conhecimentos tidos como indispensáveis para a atuação participativa na sociedade. (OLIVEIRA, 2009, p. 145).

Mais avanços na esfera educacional decorreram da criação de secretarias que legitimavam o trato com as diferenças, como a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), que foi instaurada em 2003, e a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), criada em 2004 e extinta em 2019 como uma das primeiras ações do Ministério da Educação (MEC) do governo Bolsonaro.

Em 10 de março de 2008, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Nº 9.394/1996 – foi, novamente, alterada com a obrigatoriedade, no currículo oficial da Rede de Ensino, da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, por meio da promulgação da Lei Nº 11.645 (BRASIL, 2008).

Percebemos que hoje, após mais de 18 e 13 anos da promulgação da Lei Nº 10.639/2003 e da Lei Nº 11.645/2008, respectivamente, efetivá-las é, ainda, um desafio para muitos docentes, principalmente na área de Educação Física. Andrade (2017) argumenta que apenas a instauração das leis não é capaz de preencher lacunas abertas em nossa sociedade. É necessário que o professor as conheça, seja responsável quanto ao seu cumprimento e vá além dos limites das leis, propondo não apenas inclusão de conteúdos, mas também mudanças epistemológicas nas formas de ensinar e de ver o mundo.

Reconhecemos que a inserção do trato das histórias e das culturas afro-brasileiras e indígenas é indispensável nas propostas pedagógicas da Educação Física. Assim, compreendemos que essa disciplina teve ação expressiva na constituição de ideias racistas e opressoras, o que deve, portanto, efetivar ações reparatórias, para além do cumprimento das legislações. Uma das condições que favorecem essa inserção é o trato dessa temática ainda na formação inicial docente, fato que justifica nosso estudo, que tem como objetivo compreender como a questão das relações étnico-raciais tem sido inserida nas pesquisas sobre a Educação Física e a formação inicial de professores.

Desenvolvimento metodológico

No intuito de alcançar nossas aspirações com a pesquisa, elaboramos um estado do conhecimento relativo à ERER e ao componente curricular de Educação Física. Iniciamos esse processo com um levantamento sobre as produções acadêmicas, dissertações e teses que abordam nossa temática. Posteriormente, seguimos para a seleção das pesquisas a serem analisadas, e, por fim, para as análises. Para Alves (1992 apudMEIRA, 2018), esse exercício é relevante pois colabora para a definição do nosso objeto, teorias e instrumentos de pesquisa; pela possibilidade de construir um panorama do trajeto já percorrido sobre a questão; e, também, pela importância dessas produções na formação de novas gerações como ferramentas de pesquisa.

Após o delineamento da nossa questão a ser pesquisada – que constitui na compreensão da temática das relações étnico-raciais no âmbito das pesquisas da área de Educação Física e sua formação inicial –, balizamos que nossas ferramentas de pesquisas seriam o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes. Nossas buscas, o levantamento e as análises foram feitos entre janeiro e abril de 2021.

No Portal de Periódicos, que disponibiliza a ferramenta “busca avançada”, utilizamos a combinação dos seguintes descritores: “Educação das Relações Étnico-Raciais AND Educação Física”; “Educação das Relações Étnico-Raciais AND Formação de professores”; “Educação das Relações Étnico-Raciais AND Formação inicial de professores”; “Lei 10.639 AND Formação professores”. Delimitamos as pesquisas publicadas nos últimos 20 anos. Já no Catálogo de Teses e Dissertações não há a opção de busca avançada, o que impossibilitou a combinação de descritores. Desse modo, utilizamos apenas: “Educação das Relações Étnico-Raciais”; “Formação Inicial em Educação Física” e “Lei 10.639”. Todas as buscas se deram dentro da área de conhecimento “Educação”. Delimitamos as teses e dissertações publicadas a partir de 2002.

Inicialmente, a partir dos descritores utilizados, identificamos 290 pesquisas no Portal de Periódicos e 486 no Catálogo de Teses e Dissertações. Na primeira etapa de seleção, analisamos os títulos e pudemos excluir algumas que se associavam aos descritores, mas divergiam, amplamente, da nossa pesquisa. Ao final dessa primeira fase, elegemos 29 pesquisas do Portal e 26 do Catálogo para prosseguirmos para o segundo momento. Nessa etapa, realizamos as análises dos resumos e definimos, enfim, as produções que efetivamente dialogavam com a nossa temática. Estabelecemos, então, a leitura e a análise completa de duas pesquisas oriundas do Portal de Periódicos e seis do Catálogo de Teses e Dissertações (Figura 1).

Fonte: Elaborada pelos autores, 2021.

Figura 1 - Fluxograma de seleção dos estudos 

Resultados e discussão

Estabelecendo as oito produções a serem exploradas, identificamos, inicialmente, que todas foram elaboradas após mais de uma década da promulgação da Lei N° 10.639/2003. A pesquisa mais antiga é datada de 2014, exatamente dez anos após a divulgação das DCN para a ERER.

Notamos, também, que dentre as pesquisas selecionadas, duas foram desenvolvidas em Santa Catarina, região Sul do país; duas no Mato Grosso do Sul, na região Centro-Oeste; duas no Estado de São Paulo, e duas em Minas Gerais, na região Sudeste do país. Constatamos que 50% das pesquisas se encontram na região Sudeste, 25% no Sul e 25% no Centro-Oeste. Apesar de tratar-se de uma amostra pequena, esse dado reflete as informações publicadas na Plataforma Sucupira, que apresenta o Sudeste como a região com maior número total de programas e de cursos de Pós-Graduação, seguido da região Sul.1

Para facilitar a produção e o entendimento das análises, fragmentamos as pesquisas em duas seções: estudos que fazem referência direta à ERER e à Educação Física; e produções sobre a ERER e a formação inicial de professores, abordadas na sequência.

Pesquisas sobre a Educação das Relações Étnico-Raciais e a Educação Física

Na Quadro 1, apresentamos as pesquisas que envolvem os trabalhos que fazem referência direta à ERER e à Educação Física, totalizando cinco trabalhos, sendo dois deles artigos retirados do Portal de Periódicos da Capes e duas dissertações e uma tese do Catálogo de Teses e Dissertações da Capes.

Quadro 1 - Título e autores/as das pesquisas selecionadas da primeira seção 

Título Autores/as
As relações étnico-raciais nos currículos dos cursos de licenciatura em Educação Física das instituições de ensino superior do sistema Acafe Renata Righetto Jung Crocetta
A formação do professor de Educação Física da UFGD e o conhecimento sobre a história e cultura africana e afro-brasileira Leandro de Souza Silva e Eugênia Portela de Siqueira Marques
Ensino da história e cultura afro-brasileira por meio do Atletismo: contribuições de um curso de extensão a distância para professores de Educação Física Eduardo Vinícius Mota e Silva
Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de licenciatura em Educação Física no Mato Grosso do Sul Leandro de Souza Silva
Relações étnico-raciais e Educação Física escolar: uma revisão integrativa de teses e dissertações Giuliano Pablo Almeida Mendonça, Elisabete dos Santos Freire e Maria Luiza de Jesus Miranda

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

No Quadro 2, a seguir, trazemos os/as autores/as e outras informações sobre os estudos, como o ano de publicação, o tipo de pesquisa, as características metodológicas e o local de realização/publicação do trabalho.

Quadro 2 - Autores/as, ano de publicação, tipo de pesquisa, aspectos metodológicos e local da pesquisa da primeira seção 

Autores/as Ano Tipo Aspectos metodológicos Região
Renata Righetto Jung Crocetta 2014 Dissertação Abordagem qualitativa Método documental Coleta de informações Tubarão – SC
Leandro de Souza Silva e Eugênia Portela de Siqueira Marques 2016 Artigo Revisão bibliográfica Dourados – MS
Eduardo Vinícius Mota e Silva 2016 Tese Abordagem qualitativa Revisão bibliográfica Pesquisa de campo Rio Claro – SP
Leandro de Souza Silva 2019 Dissertação Abordagem quantiqualitativo Revisão bibliográfica Levantamento de documentos oficiais Dourados – MS
Giuliano Almeida Mendonça, Elisabete dos Santos Freire e Maria Luiza de Jesus Miranda 2020 Artigo Revisão bibliográfica Florianópolis – SC

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Embora os estudos dessa seção contenham o objeto de pesquisa semelhante, notamos que são distintos quanto às suas orientações metodológicas, variando no tipo de pesquisa, nas abordagens, nos instrumentos, nas amostras e na definição dos sujeitos.

Iniciamos nossas análises seguindo a ordem cronológica crescente de publicação das produções. Desse modo, ocupamo-nos, em um primeiro momento, da pesquisa de Crocetta (2014), intitulada As relações étnico-raciais nos currículos dos cursos de licenciatura em Educação Física das instituições de ensino superior do sistema ACAFE. A autora analisou a forma com que os conteúdos relacionados ao debate étnico-racial se apresentam nas ementas no currículo dos cursos de Licenciatura das Instituições de Ensino Superior (IES) do sistema Acafe. Para a pesquisadora, a formação inicial de professores é primordial na construção das concepções e das visões de mundo sobre a educação, e, por isso, é fundamental que os assuntos relacionados aos diversos conhecimentos culturais sejam abordados e aprofundados nessa fase.

Crocetta (2014) realizou uma revisão bibliográfica a fim de localizar a temática dentro das discussões acadêmicas. Para isso, efetuou um levantamento das produções desde 2003 no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes; nos anais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd); e nos anais do Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (Conbrace). Apesar de encontrar um vasto conteúdo, nenhuma das pesquisas se relacionava à formação de professores em Educação Física e relações étnico-raciais ou à Lei N° 10.639/2003. Desse modo, a pesquisadora recorreu a outros/as autores/as para fundamentar-se teoricamente.

Em seu referencial teórico, a autora apresenta e discute sobre alguns elementos basilares de uma pesquisa que aborda a Educação Física e a ERER, como conceitos de raça e racismo, trazendo definições e reflexões de Kabengele Munanga; educação brasileira e questão étnico-racial; movimento social negro e políticas públicas na educação; histórico da organização curricular na Educação Física e questões étnico-raciais, abordando definições de currículos; currículo de Licenciatura em Educação Física, apresentando suas transições; eugenismo presente na concepção higienista e militarista de currículo de Educação Física; entre outros.

A partir de uma abordagem qualitativa e do instrumento metodológico de análise documental e de coleta de informações, por meio de entrevistas com as coordenações dos cursos, Crocetta (2014) analisou as matrizes curriculares e as ementas dos cursos de Licenciatura de Educação Física. Entre os 12 cursos analisados, a pesquisadora verificou a ocorrência do debate étnico-racial em quatro matrizes curriculares analisadas, sendo seis disciplinas que, direta ou indiretamente, continham nas ementas algo relacionado à temática. Dentre as disciplinas, nenhuma continha, em seu nome, a temática étnico-racial, a qual apareceu somente em suas ementas. A pesquisadora considerou ser um número muito reduzido, pois as matrizes foram reformuladas depois da Lei N° 10.639/2003, o que contrariou suas expectativas de encontrar a temática sendo abordada em todas as IES.

Crocetta (2014) identificou, a partir do destaque feito pelos coordenadores nas entrevistas, a importância da presença de profissionais negros na criação das ementas e da matriz curricular. Os coordenadores das IES em que foram encontradas essas matrizes enfatizaram um protagonismo de professores negros na mobilização para a definição das ementas. A pesquisadora observou, também, uma certa objeção das coordenações ao demonstrarem pouco interesse em aumentar esse debate dentro do currículo. De acordo com Crocetta (2014), a falta de conhecimento e/ou a não importância da temática verificada nos currículos bem como nas falas das coordenações geram lacunas na formação inicial dos futuros professores, as quais, consequentemente, refletirão em sua prática pedagógica.

A pesquisadora concluiu que, embora tenha se deparado com seis disciplinas que possuem em sua ementa a temática da ERER, elas ainda se apresentam de forma superficial, pois estão desconectadas com a real função dessa temática, uma vez que estão presentes apenas para cumprirem a função legal e atenderem ao Projeto Político Institucional.

A segunda pesquisa é um artigo de Silva e Marques, publicado em 2016 no volume 4 da Revista Horizontes, intitulado A formação do professor de Educação Física da UFGD e o conhecimento sobre a história e cultura africana e afro-brasileira. O autor e a autora utilizaram revisão bibliográfica e questionário com o objetivo de verificar em que medida os acadêmicos de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) receberam formação sobre preconceito, discriminação racial e conhecimentos sobre as relações étnico-raciais. O questionário foi aplicado com dois grupos: acadêmicos do 2º e do 8º semestre do curso de Licenciatura em Educação Física da UFGD.

No decorrer do artigo, Silva e Marques (2016) abordaram a importância da luta do Movimento Negro em prol da igualdade de direitos e da educação antirracista e decolonial; os caminhos abertos pela Lei N° 10.639/2003 e as possibilidades de um currículo intercultural; e apresentaram os resultados da pesquisa de campo. A partir de análises comparativas, os pesquisadores identificaram que os alunos entram e saem da vida acadêmica sem adquirir uma mudança significativa no que se refere a seu conhecimento da temática étnico-racial. No intuito de elucidar o porquê de resultados tão pessimistas, Silva e Marques (2016) investigaram as disciplinas e as respectivas ementas que compõem a grade curricular do curso de Licenciatura em Educação Física da UFGD.

A partir desse movimento, o autor e a autora constataram que a grade curricular do curso se encontra, aparentemente, completa, pois há a presença de alguns termos como “África”, “História afro-brasileira”, “preconceito étnico-racial”, entre outros. Contudo, dentro das exigências das disciplinas obrigatórias do curso, nenhuma delas possuía relação direta com os conteúdos referentes à ERER. Desse modo, Silva e Marques (2016) associaram os dados obtidos por meio dos questionários com as análises das ementas, identificando íntima relação.

Silva e Marques (2016) concluíram que, apesar de o movimento negro ter reivindicado políticas públicas para a igualdade racial e a inserção da história e cultura afro-brasileira e africana nos currículos, a formação inicial dos professores de Educação Física da UFGD não contempla as exigências previstas na lei, o que demonstra uma realidade preocupante com relação à formação desses professores. Destacam, ainda, a necessidade de novas investigações com a utilização de outros métodos e meios, a fim de aprofundar as análises da relação dos conteúdos étnico-raciais e suas contribuições ao ambiente escolar, para que as lacunas provenientes dessa questão sejam preenchidas.

A tese de Silva (2016), intitulada Ensino da história e cultura afro-brasileira por meio do atletismo: contribuições de um curso de extensão a distância para professores de Educação Física, teve como objetivo central produzir, implementar e avaliar as contribuições de um curso de extensão a distância, desenvolvido na Plataforma Moodle, para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em aulas de Educação Física na Educação Básica e na formação de professores de Educação Física.

Em sua revisão de literatura, o pesquisador argumentou sobre pontos da história e cultura afro-brasileira na escola; legislações sobre a temática; luta e conquistas do movimento negro; Lei N° 10.639/2003 e a formação de professores; relação da Educação Física com a história e a cultura afro-brasileira; entre outros.

O público-alvo do curso de extensão “Introdução ao ensino da História e Cultura Afro-Brasileira em aulas de Educação Física: possibilidades de ensino por meio do Atletismo” foi estudantes e licenciados em Educação Física. Essa escolha deu-se pois o pesquisador considera essencial o tratamento da temática étnico-racial desde a formação inicial, de modo a tornar os futuros professores minimamente preparados e motivados a tratarem do tema em suas práticas pedagógicas.

Os objetivos do curso foram capacitar estudantes e professores de Educação Física na compreensão dos fundamentos e das determinações da Lei N° 10.639/2003 e da Lei N° 11.645/2008 e incluir o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira em aulas de Educação Física por meio da utilização dos aspectos históricos do atletismo. Além disso, o curso foi baseado nos princípios de aprendizagem colaborativa, nas ideias do multiculturalismo crítico e na proposta de utilização da mídia para tratamento dos temas transversais. Ele foi oferecido na modalidade de extensão universitária pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), no município de Rio Claro, em São Paulo, e ocorreu no ano de 2015. Foram disponibilizadas 20 vagas, mas foram ocupadas apenas 18, oito por estudantes da Graduação e dez por licenciados. Nenhum dos estudantes concluiu o curso.

Em seu desenvolvimento, o curso ofereceu os seguintes tópicos: “Conhecimentos sobre África, atletismo e atletas afro-brasileiros”; “Por que ensinar História e Cultura Afro-Brasileira por meio do atletismo?”; “Por que ensinar História e Cultura Afro-Brasileira?”; “História e Cultura Afro-Brasileira nas aulas de Educação Física”; “História e Cultura Afro-Brasileira por meio do atletismo nas aulas de Educação Física”; “Conhecendo a África”; “Avaliação do curso”. Para sua avaliação, foi disponibilizado um questionário no qual os participantes se manifestaram sobre cinco diferentes temas diretamente relacionados aos objetivos da pesquisa: “Educação a Distância”; “Plataforma Moodle”; “Atletismo como ferramenta para o ensino da História e Cultura Afrobrasileira”; “Contribuições à formação”; “Outras considerações”.

Os cursistas avaliaram positivamente as contribuições do curso, tanto para o ensino da história e cultura afro-brasileira nas aulas de Educação Física na Educação Básica – principalmente por apresentarem uma possibilidade inovadora ao associar o atletismo e trazer possibilidades concretas de intervenção – quanto para a formação continuada de professores de Educação Física – não só no aspecto técnico, mas também em relação a sua formação pessoal e cidadã. Além disso, consideraram que o oferecimento de cursos de extensão, a exemplo do desenvolvido, demonstra grande potencialidade para a inclusão do tratamento das relações étnico-raciais e da história e cultura afro-brasileira nas aulas de Educação Física na Educação Básica. Silva (2016) concluiu que a experiência do curso foi revestida de êxito, pois demonstrou que a aplicação dessa temática é importante, necessária e viável. Refletiu, também, sobre a oportunidade aberta pela Lei N° 10.639/2003, que fomentou a criação desse curso e de outras iniciativas.

Sublinhamos, aqui, esse trabalho pois, de acordo com a Resolução CNE/CP Nº 1/2004, que instituiu as DCN para a ERER (BRASIL, 2004), a inclusão da temática das relações étnicoraciais pelas IES na formação de professores poderá ser realizada por meio de conteúdos inseridos nas disciplinas e nas atividades curriculares, não fazendo menção à obrigatoriedade de ser na forma de disciplina específica para o tema. Desse modo, entendemos que a iniciativa de cursos como o desenvolvido por Silva (2016) é uma alternativa eficiente para introduzir essa temática.

A dissertação de Silva (2019) – pesquisador já mencionado anteriormente por seu trabalho em parceria com Marques –, intitulada Educação das Relações Étnico-Raciais nos cursos de licenciatura em Educação Física no Mato Grosso do Sul, foi defendida em 2019, na UFGD, e teve como objetivo analisar a importância da ERER na formação inicial de professores nos cursos de Licenciatura em Educação Física de três IES do Mato Grosso do Sul. Para isso, Silva (2019) aplicou questionário e analisou as respostas de acadêmicos das IES selecionadas, além da análise de ementas das disciplinas que compõem os cursos.

Inicialmente, para a fundamentação teórica de sua pesquisa, Silva (2019) realizou um levantamento bibliográfico. Nessa seção, o pesquisador tratou de temas como a história de resistência e de luta do movimento negro e seus reflexos na educação brasileira; a história local do movimento negro sul-mato-grossense, suas trajetórias e tensões; a identidade negra e os desafios diante da colonialidade; a Educação Física no Brasil e as relações étnico-raciais, trazendo à tona a ideologia do branqueamento presente nessa disciplina escolar pelo movimento higienista e sanitarista; a criação e a repercussão da Lei N° 10.639/2003; a criação da SEPPIR e das DCN para a ERER; a promulgação da “lei de cotas” em 2012; a instituição do Plano Nacional de Educação (2014-2024); entre outros.

Silva (2019) realizou, também, um levantamento de documentos oficiais e analisou os Projetos Pedagógicos dos cursos das 14 IES participantes da pesquisa – com o objetivo de verificar se nesses documentos possuíam disciplinas, ementas ou ações curriculares que contribuíam com a ERER – e o tratamento dado à formação inicial nas DCN das Licenciaturas e nas DCN de Educação Física.

Por fim, para a coleta de dados, aplicou um questionário online com 15 questões para os acadêmicos do 8º semestre do curso, considerando que eles estariam em fase de conclusão do curso e a maioria já teria cursado as disciplinas que podem possibilitar a formação para a ERER. Entre os 34 acadêmicos, 18 autodeclararam-se pretos ou pardos, sendo isso um fator positivo, pois demonstra que as políticas de ações afirmativas para acesso de negros têm se mostrado eficazes nessas instituições.

Como resultado, Silva (2019) encontrou, nos Projetos Pedagógicos, a presença de disciplinas específicas com temas sobre história e cultura afro-brasileira e africana, o que demonstra que as IES buscam atender às normatizações legais, na perspectiva de romper com o currículo eurocêntrico e monocultural. Nas DCN específicas do curso de Educação Física, o pesquisador percebeu a ausência da temática da ERER. Em relação à análise dos questionários, os acadêmicos mostraram que grande parte dos que concluem o curso possui a visão de que a Educação Física deve considerar, além do corpo biológico, o corpo social, a partir de uma perspectiva que contribua com a formação humana que respeita a diversidade, os diferentes corpos e suas manifestações culturais.

Silva (2019) concluiu que os cursos têm avançado na contribuição para a formação inicial de professores no âmbito da ERER. Entretanto, em alguns casos, esses avanços são tímidos, como, por exemplo, em algumas instituições em que havia a simples inclusão de disciplinas para a ERER, desconectadas de suas ementas e bibliografias, de forma a preencher apenas as formalidades legais. Ele ressalta que, ainda que para cumprimento formal, a presença das disciplinas, das ementas e das bibliografias sobre a temática das relações étnico-raciais pode abrir possibilidades de estudos sobre o assunto, pois a ausência delas nos Projetos Pedagógicos das IES pesquisadas poderia se apresentar como um cenário bem pior.

Destacamos, nessa pesquisa, o fato de Silva (2019) defender, veementemente, a descolonização curricular, ao identificar que o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana possibilitará o fortalecimento identitário da criança negra, na perspectiva de uma educação intercultural e antirracista. Outrossim, enfatiza que a maior marca do estereótipo racista é o corpo, daí a importância da formação do professor de Educação Física na perspectiva antirracista, para trabalhar com esse corpo que além de biológico, é social e cultural.

Finalizando a primeira seção, apresentamos o trabalho de Mendonça, Freire e Miranda (2020). Trata-se de um artigo intitulado Relações étnico-raciais e Educação Física escolar: uma revisão integrativa de teses e dissertações, publicado em 2020 no volume 32 da Revista Motrivivência. O objetivo desse estudo foi compreender como a temática das relações étnico-raciais tem sido estudada na Educação Física escolar, por meio de análises de dissertações e teses publicadas nas bases de dados nacionais.

Para a pesquisa, os pesquisadores utilizaram o Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). As buscas aconteceram entre novembro de 2019 e maio de 2020, com os seguintes descritores: “cultura negra”, “cultura afro-brasileira”, “racismo”, “discriminação racial”, “preconceito racial”, “preconceito étnico”, “etnia”, “relações étnico-raciais”, “Lei 10.639/03”, e “Lei 10.639/03” juntamente ao operador “AND” no termo “Educação Física”.

Mendonça, Freire e Miranda (2020) identificaram, inicialmente, 214 estudos e, após a análise de títulos e de resumos, selecionaram 25 deles, sendo 20 dissertações de Mestrado Acadêmico, quatro dissertações de Mestrado Profissional, e uma tese de Doutorado. Entre elas, 22 produções de natureza qualitativa e três qualitativa/quantitativa, com diferentes instrumentos para coleta de dados, sendo os questionários e as entrevistas os mais frequentes, aparecendo em 24 dos estudos. Em relação à amostra, 20 estudos incluíam professores como população a ser pesquisada, oito incluíam estudantes, e cinco em que apareciam outros atores diretamente envolvidos no contexto escolar, como diretores, coordenadores pedagógicos, técnicos, entre outros.

Além disso, os pesquisadores separaram as produções em três categorias: formação – selecionando, aqui, estudos que trataram da formação inicial ou continuada do professor de Educação Física; identificação/investigação – estudos que buscaram identificar como tem acontecido a inserção da temática das relações étnico-raciais na Educação Física; e intervenção/proposição – estudos que procuraram intervir/propor formas de materializar, nas aulas, temáticas das relações étnico-raciais. Na categoria formação, foram identificadas três pesquisas; na identificação/investigação, havia 15 trabalhos; e na intervenção/proposição, tinha sete pesquisas.

Mendonça, Freire e Miranda (2020) identificaram, a partir de suas análises, que, mesmo após mais de 15 anos da promulgação da Lei N° 10.639/2003, ainda há um certo desconhecimento desse dispositivo por parte dos professores. Com isso, os pesquisadores entendem que, para que haja uma mudança que consolide as discussões acerca das questões emergentes das relações étnicoraciais, se deve entender a necessidade de mais investimentos, além de uma insistência de formações específicas.

Em relação aos estudos sobre formação inicial e continuada, os pesquisadores verificaram que ainda há uma carência dessa abordagem, sendo necessário um melhor direcionamento para que essa temática passe a ser abordada de forma mais cotidiana na área da Educação Física. Salientam, também, a necessidade do crescimento de estudos de modo que os professores de Educação Física consigam inserir os conhecimentos advindos das culturas afro-brasileiras e africanas, ampliando os conhecimentos da área para além dos eurocêntricos e norte-americanos, já tão manifestados nessa disciplina escolar.

Inferimos que, a partir dessa pesquisa, Mendonça, Freire e Miranda (2020) sinalizam o quanto os estudos sobre formação de professores e sua relação com a ERER são exíguos, estabelecendo lacunas que precisam ser enxergadas e investigadas. Refletimos que nossa pesquisa, por ocupar-se do campo da formação inicial de professores de Educação Física e de ERER, poderá fortalecer e estimular novas investigações nessa área.

Pesquisas sobre a Educação das Relações Étnico-Raciais e a formação inicial de professores

As produções, a seguir, apresentam a temática da ERER e da formação inicial de professores. São pesquisas que não se vinculam, propriamente, à Educação Física, todavia, apresentam diálogo acentuado com a temática proposta em nossa pesquisa.

Assim como na primeira seção, no Quadro 3, apresentamos o título da pesquisa e seu/sua autor/a, e, no Quadro 4, trazemos, novamente, o nome do autor/a e outras informações sobre os estudos, como o ano de publicação, o tipo de pesquisa, as características metodológicas e o local de realização/publicação do trabalho.

Quadro 3 - Título e autor/a das pesquisas selecionadas da segunda seção 

Título Autor/a
Educação para as Relações Étnico-Raciais e culturais no Ensino Superior Emilio Rodrigues Júnior
Formação de professores e práticas educacionais para a diversidade: o PIBID nas experiências de implementação da Lei 10.639/03 Adriana Gomes Tavares
A Educação das Relações Étnico-Raciais no currículo de um curso de Pedagogia: percursos, contribuições e desafios Flávia Paola Félix Meira

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Quadro 4 - Autor/a, ano de publicação, tipo de pesquisa, aspectos metodológicos e local da pesquisa da segunda seção 

Autor/a Ano Tipo Aspectos metodológicos Região
Emilio Rodrigues Júnior 2016 Dissertação Abordagem quantitativa-qualitativa Pesquisa bibliográfica, documental e de campo Americana – SP
Adriana Gomes Tavares 2017 Dissertação Método qualitativo e pontualmente o método quantitativo Pesquisa bibliográfica Pesquisa documental Observação de campo Belo Horizonte – MG
Flávia Paola Félix Meira 2018 Dissertação Abordagem qualitativa Estudo de caso Análise documental Belo Horizonte – MG

Fonte: Elaborado pelos autores, 2021.

Do mesmo modo que elaboramos a primeira seção, apresentamos, aqui, nossas considerações a partir dos trabalhos em sua ordem cronológica crescente de publicação, iniciando, então, pela dissertação de Rodrigues Júnior (2016).

Intitulada Educação para as Relações Étnico-Raciais e culturais no Ensino Superior, a dissertação de Rodrigues Júnior foi publicada em 2016, no Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), na cidade de Americana, em São Paulo. Essa pesquisa teve como objetivo analisar, no âmbito da Educação Superior privada, a história da cultura afro-brasileira e o estudo das relações étnico-raciais na perspectiva de formação acadêmica, com base em exigências legais apresentadas pelo MEC e a aplicabilidade da Lei N° 10.639/2003.

A princípio, o pesquisador levantou questões teóricas para sustentar suas análises e discussões. Trouxe à tona pontos sobre a educação antirracista; o reconhecimento da diversidade étnico-cultural; a importância do ensino afro-brasileiro e cultura africana no combate ao racismo; a Lei N° 10.639/2003 como uma conquista da luta antirracista e seu percurso histórico; as DCN para a ERER; a formação das principais medidas de ações afirmativas; a universidade como ferramenta de inserção cultural e seu papel na transformação da sociedade; o papel da educação afro-brasileira e da cultura africana no Ensino Superior.

Rodrigues Júnior (2016) optou por uma pesquisa bibliográfica, documental e de campo, com abordagem quantitativa e qualitativa. Ademais, escolheu como campo de investigação duas IES privadas do Estado de São Paulo. As unidades possuíam 25 cursos de Graduação. Para a coleta de dados, foram utilizados questionários semiestruturados e entrevistas. Os sujeitos escolhidos para a pesquisa foram acadêmicos, professores e gestores das duas instituições. Os 64 alunos foram submetidos ao questionário e à entrevista para detalhar sobre a atuação da instituição no que diz respeito à temática da ERER. Já os 14 professores e quatro gestores foram submetidos à aplicação dos questionários. Para o levantamento e a análise documental, Rodrigues Júnior (2016) optou por investigar os Projetos Pedagógicos, o Plano de Desenvolvimento Institucional e os relatórios de avaliação in loco do MEC para autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de curso.

Em relação aos Projetos Pedagógicos, o pesquisador observou a ausência de ações que valorizam a diversidade étnico-racial e que combatam a discriminação e o preconceito. Rodrigues Júnior (2016) admite, ainda, que a ausência ou a inserção parcial de conteúdos referentes às relações étnico-raciais na matriz curricular dos cursos se deve à falta de capacitação de professores para trabalhar essa temática, tornando-se uma das principais dificuldades no processo de implementação da Lei N° 10.639/2003.

O instrumento de avaliação do MEC inseriu, desde o ano de 2012, como requisito legal, a temática da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, obrigando as instituições a atenderem esse quesito com base na exigência da Lei N° 10.639/2003 e das DCN para a ERER. Foram observadas instituições que respondiam a avaliação desse quesito como “atendida”, porém apresentavam a temática em apenas um trecho na ementa de uma disciplina, o que não comprovava ações reais que culminavam em uma formação adequada para as discussões da diversidade étnicoracial e cultural no âmbito dos cursos de Graduação.

Ao analisar os questionários e as entrevistas com os alunos, Rodrigues Júnior (2016) constatou que, para eles, a faculdade não demonstra compromisso com as questões sobre a história do negro no Brasil e de racismo. Os professores, por sua vez, reconheceram a importância de atrelar ao currículo acadêmico os estudos da cultura africana e os assuntos correlatos, como a desigualdade racial, a defesa dos direitos humanos etc. Assim como os estudantes, eles também desconhecem as ações da sua instituição quanto à aplicabilidade da Lei N° 10.639/2003 e muitos desconhecem as DCN para a ERER. O grupo de gestores apresentou uma fala que diverge dos estudantes e dos docentes, pois afirmou que existem, sim, ações que são realizadas nas instituições, além de alegar ter conhecimento sobre as legislações e declarar apoio a essas discussões. De acordo com o pesquisador, ficou evidente que as instituições estão aquém de serem exemplos em ações que atendam a legislação vigente sobre a ERER. Para ele, tão importante quanto a criação de políticas públicas, é a institucionalização delas na educação brasileira, desde a Educação Infantil até a Graduação.

Rodrigues Júnior (2016) concluiu expondo a dificuldade de avaliar se os alunos conseguem sair mais preparados para o embate ao racismo, aos preconceitos e a outras questões oriundas das discussões das relações étnico-raciais, já que não existem ações concretizadoras que institucionalizem as DCN para a ERER nem nas salas de aula e nem no ambiente institucional. Concordamos com Rodrigues Júnior (2016) ao declarar que uma das condições para que as políticas públicas sejam bem-sucedidas é a necessidade de que todo corpo docente e discente se sinta valorizado e apoiado, pois não é suficiente a obrigatoriedade da lei se o Estado e as IES privadas não oferecerem condições de formação profissional àqueles que compõem a comunidade acadêmica.

A segunda pesquisa dessa seção é a dissertação de Tavares, publicada em Belo Horizonte, em Minas Gerias, no ano de 2017, com o título Formação de professores e práticas educacionais para a diversidade: o PIBID nas experiências de implementação da lei 10.639/03. A pesquisa teve por objetivo investigar os processos de formação docente que foram desenvolvidos em subprojetos do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) de três IES: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Universidade Estadual de Minas Gerais (UFMG) e Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop). Os subprojetos abordavam temas relativos à diversidade, com enfoque na cultura africana e afro-brasileira.

Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, documental e de campo, utilizando de entrevistas e questionários. Para os/as 63 bolsistas selecionados/as, os dois instrumentos foram utilizados. Já com os/as coordenadores/as de área e professores/as supervisores/as, a pesquisadora utilizou-se das entrevistas orais individualizadas. Além disso, foram realizadas observações dos encontros formativos e das aulas nas nove escolas da Rede Pública Estadual e Municipal parceiras, envolvendo todos os sujeitos da pesquisa.

Em seu referencial bibliográfico, Tavares (2017) apresentou conceitos e compreensões sobre alguns temas, como história e protagonismo do movimento negro; escravidão, cidadania e exclusão social da população negra; construção histórica do racismo, suas definições e formas de manifestação; apontamentos sobre direitos humanos; luta por igualdade, ampliação de direitos e combate ao racismo no plano legal e institucional; formação de professores para o trabalho com a diversidade; influência do Pibid na formação de professores; saberes e práticas docentes.

Tavares (2017) verificou que a maioria dos/as bolsistas é oriunda de escolas públicas; 59% identificaram-se como negros/as; e parte significativa participava de movimentos sociais de diferentes segmentos. Os sujeitos dessa pesquisa revelaram que a aproximação com a temática racial se deu por diferentes motivos e experiências, como, por exemplo, fatos pessoais em diversas fases da vida; experiência profissional; seu pertencimento étnico-racial, identificando-se como negros/as; e a própria experiência das atividades desenvolvidas no Pibid. Experiência que é vista pelos/as participantes do programa (bolsistas, supervisores/as e coordenadores/as) de forma positiva, pois os saberes docentes construídos e mobilizados nos processos de formação vivenciados nesses subprojetos incorporam uma gama de conhecimentos e diferentes estratégias, além da leitura e das pesquisas de temas diversos, o que revela o aprofundamento de estudos.

Em conclusão, a pesquisa de Tavares (2017) evidenciou que o Pibid tem proporcionado uma formação docente diferenciada e significativa para os sujeitos que dele participam, tanto na formação inicial dos/as licenciandos/as, quanto na formação continuada para os/as docentes das escolas parceiras e para os/as coordenadores/as da área. Destacamos essa produção pois, assim como a de Silva (2016), trata-se de uma iniciativa para o trato da temática das relações étnico-raciais que não compõe o quadro de disciplinas da grade curricular, mas que está de acordo com a Resolução CNE/CP Nº 1/2004, a qual propõe que a temática das relações étnico-raciais pelas IES na formação seja feita por meio de disciplinas e de atividades curriculares (BRASIL, 2004), não fazendo menção sobre a forma correta ou única de inseri-la.

Além disso, compreendemos que, lamentavelmente, o Pibid não é vivenciado por todos os alunos de Licenciatura, tanto pelo limite do número de bolsistas concedido a cada programa quanto pela procura e pelo interesse pessoal de cada estudante. Ainda assim, concebemos como um momento singular na formação inicial de docentes, principalmente com a presença de subprojetos que tratam de temáticas tão necessárias para a formação desses profissionais.

Por fim, trataremos da dissertação de Meira, intitulada A Educação das Relações Étnico-Raciais no currículo de um curso de Pedagogia: percursos, contribuições e desafios, defendida no ano de 2018, na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Introduzimos o diálogo com essa pesquisa trazendo um destaque feito pela autora, posicionando-nos de acordo com o exposto. Baseada em Canen e Xavier (2011 apudMeira, 2018, p. 19), a pesquisadora entende “[...] a formação dos professores, tanto inicial quanto continuada, como o lugar privilegiado para esse movimento e construção de novos caminhos no trato com a diversidade cultural”.

Dessarte, sua pesquisa teve como objetivo compreender como se deu a inserção da ERER no currículo e na formação do curso de Pedagogia da UEMG – campus Belo Horizonte, após a institucionalização das DCN para a ERER, entre os anos de 2005 e 2015. Além disso, buscou investigar sobre quais concepções e contextos foram elaborados os currículos do curso. Para tanto, Meira (2018) recorreu às DCN do curso de Pedagogia, institucionalizadas em 2006, e, para análise do currículo escrito e ativo, realizou uma análise das ementas, dos planos de curso e do Projeto Político Pedagógico do Curso.

Ademais, utilizou-se de entrevistas com acadêmicas do curso de Pedagogia que tiveram a formação baseada no currículo de 1998 e no currículo reformulado em 2007, vigente a partir de 2008; com grupo de professoras que compuseram a comissão de currículo do processo de reformulação; com professoras que, a partir da análise dos planos de ensino, poderiam trabalhar a temática em sala de aula; e com professoras citadas pelas estudantes durante as entrevistas que tivessem trabalhado o tema em algum momento da formação. Ao todo, sete professoras foram entrevistadas. Meira (2018) realizou, também, o levantamento de produções acadêmicas de conclusão de curso que abordavam questões relativas à temática étnico-racial, para identificar se essa demanda tinha alguma relação com a ação de professoras ou com a formação de uma forma geral.

No desdobramento da dissertação, a pesquisadora apresentou um estado de conhecimento realizado para identificar os desafios, os sucessos e as oportunidades no processo de implementação da lei. Posteriormente, abordou questões como os desafios para a implementação da lei; o processo de coleta de dados, de definição dos instrumentos e dos sujeitos da pesquisa; as conjunturas da Lei N° 10.639/2003; as relações Brasil e África; o Movimento Negro no Brasil; o curso de Pedagogia no Brasil e o silêncio quanto à ERER; a conceituação dos termos raça e racismo, atentando para a construção histórica, social e política desses conceitos; o delineamento do percurso da formação docente no Brasil, com foco no curso de Pedagogia; o currículo do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação (FaE) da UEMG; o currículo escrito versus real, suas múltiplas relações e possibilidade de ações.

Após a interlocução com a fase de formulação do currículo, a pesquisadora construiu um diálogo com o currículo escrito e real, sem apresentar uma análise bipartida desse documento. Realizou, inicialmente, uma análise do currículo escrito do curso e, a partir disso, houve a proposta do diálogo com o currículo real por meio de entrevistas com estudantes e professoras. Contudo, segundo Meira (2018), para uma desconstrução do texto racial que compõe os currículos, uma mudança da estrutura curricular deve ser o primeiro caminho a se seguir.

Na análise do currículo escrito, a pesquisadora percebeu que, no Projeto Político Pedagógico do Curso, que estava em vigor no período anterior à sua reformulação, a temática já se fazia presente, sendo ofertada como formação optativa. Quanto às ementas, apenas duas disciplinas faziam uma citação do tema, no entanto, de forma muito vazia e sem profundidade.

No diálogo com as estudantes, Meira (2018) observou diferentes posicionamentos quanto a melhor forma de inserção da temática dentro do currículo. Entre as cinco entrevistadas, três concordavam que a inclusão no currículo deveria ser por disciplina obrigatória, e duas alegavam que deveria ser de forma interdisciplinar ou transversal. Outrossim, as professoras compartilhavam entre si a mesma queixa quanto à precarização do trabalho docente. A pesquisadora percebeu que há esforço por parte de algumas em trazer o debate das relações étnico-raciais para a sala de aula, mesmo que sem o preparo adequado. Meira (2018) notou ainda que, tanto pela fala das professoras, quanto pela insatisfação das estudantes em relação à ausência e ao tratamento superficial do assunto, há um distanciamento das propostas que as DCN para a ERER anunciam.

Quanto aos trabalhos de conclusão de curso elaborados pelas estudantes, Meira (2018) identificou a presença da temática em algumas pesquisas. Foi possível, ainda, dialogar com três estudantes que produziram seus trabalhos tendo como objeto de estudo a ERER na Educação Básica.

Em conclusão, a pesquisadora constatou que, após mais de dez anos da implantação da Lei N° 10.639/2003, ainda é precária sua implementação. Identificou, ainda, o currículo como um espaço de disputa e que há um cenário marcado por vários fatores que dificultam a inserção do tema no curso de Pedagogia da FaE/UEMG. São fatores que não justificam a ausência da implementação, mas que precisam ser problematizados a fim de que sejam encontradas alternativas que viabilizem a implementação das medidas legais. Além disso, a pesquisadora destacou o quanto a gestão do curso pesa na definição do que irá compor o currículo, pois, no caso da FaE/UEMG, as decisões ficaram centralizadas na direção e na coordenação, apontando ser uma gestão verticalizada. As poucas professoras que pautaram a necessidade de inserir o tema não foram ouvidas pela gestão.

Sublinhamos, aqui, um ponto fundamental que nos permitiu selecionar essa pesquisa como essencial em nossa discussão, que é a presença da abordagem de elementos históricos, visto que Meira (2018) tem como formação inicial a Graduação em História. A pesquisadora destaca, baseada em Hobsbawm (2002 apudMeira, 2018), a importância de compreender que a luta pela educação antirracista, no país, é histórica e que acessar essa construção histórica fortalece a inserção do tema no currículo e possibilita sua melhor compreensão.

Considerações

A presente pesquisa teve como objetivo compreender como a temática das relações étnicoraciais tem sido inserida nas pesquisas sobre a Educação Física e sua formação inicial de professores. A partir de levantamento, seleção e análise de produções publicadas no Portal de Periódicos da Capes e no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes, pudemos nos situar e visitar os percursos que vêm sendo trilhados pelos pesquisadores no que concerne essa temática.

Percebemos, por meio de nossas análises, que as pesquisas encontradas são de profunda relevância para a reflexão sobre a ERER e a Educação Física no âmbito da formação inicial de professores, além de fomentar, também, pesquisas futuras na área. No entanto, notamos que, após mais de 18 anos de promulgação da Lei N° 10.639/2003, ainda é exíguo o trabalho com essa temática nas pesquisas em Educação Física.

Desse modo, inferimos que, para a inserção efetiva da ERER no terreno da Educação Física, são necessários maiores investimentos no trato da temática ainda na formação inicial de professores, estendendo-se, também, para a formação continuada e específica. É significativo ressaltarmos, ainda, que não existe uma única figura responsável pelo sucesso ou pelo fracasso da efetivação desse trabalho entre a ERER e a Educação Física. Para que essa prática ocorra efetivamente, dependemos de condições físicas, materiais, intelectuais e até afetivas favoráveis para o ensino. Além disso, é necessário o trabalho coletivo entre os envolvidos nos processos educativos escolares (sejam eles/as professores/as, estudantes; familiares; gestores/as; demais funcionários/as), nas políticas públicas e nos movimentos sociais, considerando que as mudanças étnicas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam à escola.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Brasil – Código de Financiamento 001.

Referências

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Recebido: 11 de Agosto de 2021; Revisado: 29 de Outubro de 2021; Aceito: 01 de Novembro de 2021; Publicado: 19 de Novembro de 2021

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