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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 23-Fev-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19390.005 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Educação para a superação do racismo no contexto de uma escola pública

Education to overcome racism in a public school context

Educación para la superación del racismo en el contexto de una escuela pública

Branca Jurema Ponce* 
http://orcid.org/0000-0001-9959-2680

Alice Rosa de Sena Ferrari** 
http://orcid.org/0000-0001-9779-3366

*Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da PUC-SP. Líder de Pesquisa no Grupo de Estudos e Pesquisa em Justiça Curricular (GEPEJUC) cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa- CNPq - Nível 2. E-mail: <tresponces@gmail.com>.

**Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora de Arte da Prefeitura Municipal de Ouro Verde, São Paulo. E-mail: <alicedesena@hotmail.com>.


Resumo:

O artigo aborda os resultados de uma pesquisa que envolveu educadores de uma escola pública. O objetivo é apresentar a necessária introdução da Educação para as relações étnico-raciais nos currículos escolares a partir de práticas descolonizadoras e de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos. O texto insere-se na luta contra o silenciamento do racismo e no enfrentamento de violências que naturalizam o preconceito e a discriminação. A pesquisa assume uma abordagem qualitativa, cujos instrumentos foram definidos a partir de Gil (2008) e Brandão (2003), e a análise de conteúdo baseou-se em Bardin (2016). Os preceitos da Justiça Curricular e os princípios da Educação para as relações étnico-raciais formam a base teórica para as abordagens analíticas realizadas. Na conclusão, o artigo destaca a Justiça Curricular e a Educação para as relações-étnico raciais como possibilidades de luta pela superação do racismo.

Palavras-chave: Superação do racismo; Educação para as relações étnico-raciais; Justiça Curricular

Abstract:

The article discusses the results of a research involving educators from a public school. It aims to present the imperative introduction of Education for ethnic-racial relations in the school curricula from the perspective of decolonizing practices, recognition of subjects and sense of belonging. The text is part of the struggles against the silencing of racism and the confrontation of acts of violence that naturalize prejudice and discrimination. The research has a qualitative approach, whose instruments found support in Gil (2008) and Brandão (2003), and the content analysis was based on Bardin (2016). The precepts of Curricular Justice and the principles of Education for ethnic-racial relations form the theoretical framework that supports the analytical approaches here conducted. The article concludes by highlighting Curricular Justice and Education for ethnic-racial relations as feasible struggles to overcome racism.

Keywords: Overcoming racism; Education for ethnic-racial relations; Curricular Justice

Resumen:

El artículo aborda los resultados de una investigación que involucró a educadores de una escuela pública. El objetivo es presentar la necesaria introducción de la Educación para las relaciones étnico-raciales en los currículos escolares desde las prácticas descolonizadoras y del reconocimiento y pertenencia de los sujetos. El texto se inserta en la lucha contra el silenciamiento del racismo y el enfrentamiento a violencias, que naturalizan el prejuicio y la discriminación. La investigación tiene un enfoque cualitativo, cuyos instrumentos de investigación fueron definidos a partir de Gil (2008) y Brandão (2003), y el análisis de contenido se basa en Bardin (2016). Los preceptos de la Justicia Curricular y los principios de la Educación para las relaciones étnico-raciales forman el marco teórico de los enfoques analíticos realizados. En conclusión, el artículo destaca la Justicia Curricular y la Educación para las relaciones étnico-raciales como posibilidades de lucha para la superación del racismo.

Palabras clave: Superación del racismo; Educación para las relaciones étnico-raciales; Justicia Curricular

Introdução

Compreende-se o racismo como uma construção social que estruturalmente atinge a vida da população negra, inclusive por meio do currículo escolar. Salienta-se que as práticas racistas estão presentes na vida de negros e de negras desde a infância, os/as quais, quando chegam à escola, carregam sobre si as marcas impressas pelo racismo provocadas pelas interações sociais. As crianças brancas também adquirem uma percepção sobre ser branco e ser negro, a partir de suas vivências pessoais. A escola é, portanto, o espaço que pode facilitar a desconstrução da percepção negativa da identidade negra, mas também pode ser reprodutora de racismo por meio de ações e de omissões.

As políticas públicas devem cumprir o papel de romper com as desigualdades estruturais que permeiam os sistemas educacionais, porque elas perpassam o currículo escolar desde o seu ordenamento sistêmico formal até a sua vivência subjetiva e social no chão da escola (PONCE, 2018). “Não há como tomar a escola e o currículo, como objetos de estudo, sem estabelecer a sua relação com as políticas emanadas do Estado” (CHIZZOTTI; PONCE, 2012, p. 26). Entendendo que não haja neutralidade na elaboração das políticas públicas, cabe ressaltar que a concepção de sociedade que cada governo assume ao elaborar políticas é o que vai direcionar suas ações.

Acolher os preceitos da busca pela Justiça Social como superação das desigualdades e como respeito às diversidades exigirá do Estado a proposição de políticas públicas democratizantes. As pautas raciais na educação escolar compõem esse território de lutas como possibilidade de emancipação dos sujeitos, por meio da proposta da Justiça Curricular e da Educação para as relações étnico-raciais: “[...] educar, reeducar relações étnico-raciais implica aprender a negociar mudanças, nas relações entre pessoas, na organização da sociedade” (GOMES, 2019, p. 1023).

A Justiça Curricular é uma proposta de concepção e de prática de currículo que busca contemplar os sujeitos em sua integralidade, de modo a respeitar suas necessidades, propor conhecimento que lhes ajudem a transformar seus contextos a partir de um olhar crítico, garantirlhes acesso aos bens culturais (PONCE; NERI, 2017). A proposta, entre outras práticas, busca um currículo que priorize, respeite e atenda às necessidades e às urgências dos grupos sociais (TORRES SANTOMÉ, 2013). A proposta da Justiça Curricular, para efetivar-se, desdobra o currículo em três dimensões a serem consideradas concomitantemente: a dimensão do conhecimento, a do cuidado com todos os sujeitos do currículo e a da necessária convivência democrática em todos os espaços e tempos escolares.

A Educação para as relações étnico-raciais é compreendida como uma política pública curricular que busca a superação do racismo que dialoga com a proposta da Justiça Curricular em suas três dimensões. Assim sendo, nesta investigação, na confluência dos estudos sobre a Justiça Curricular e sobre a Educação para as relações étnico-raciais, se priorizou a identificação de elementos que constituem práticas curriculares descolonizadoras e práticas curriculares de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos.

Na esteira da Educação para as relações étnico-raciais, dois elementos são indispensáveis para a construção de currículos escolares que se pretendam antirracistas: a implementação de políticas públicas adequadas ao seu objetivo e a adoção dos princípios sobre a Educação para as relações étnico-raciais.

As políticas públicas curriculares raciais são fruto das lutas dos movimentos sociais em consonância com a agenda mais progressista do Governo Federal que culminaram na promulgação da Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003), nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), nas Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2006) e no Plano Nacional de Implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2010).

Os princípios da Educação para as relações étnico-raciais foram estabelecidos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), tornando-se norteadores para a construção de currículos antirracistas. São eles: Princípio da consciência política e histórica da diversidade; Princípio do fortalecimento da identidade e de direitos; e Princípio das ações educativas de combate ao racismo e a discriminações.

O referencial teórico que orientou a pesquisa que deu origem a este artigo se ancorou em: Apple (2006, 2017), Torres Santomé (1995, 1997, 2011, 2013), Ponce (2018), Ponce e Araújo (2019), Ponce e Neri (2015, 2017), Neri (2018), Munanga (2005), Gomes (2003, 2005, 2008, 2012, 2019) e Silva, P. B. G. e (2005, 2007).

As investigações empíricas1 ocorreram em uma escola pública localizada na Zona Leste do município de São Paulo. A escola foi escolhida criteriosamente por indicativos de boas práticas emancipatórias em relação ao combate do racismo. Na pesquisa de campo, foi analisado o Projeto Político Pedagógico (PPP), foram observadas as práticas curriculares e realizadas entrevistas com a direção da escola, a coordenação pedagógica e com cinco professoras.2

Na primeira etapa da pesquisa de campo, foi realizada a leitura e a análise do PPP da escola, na qual foi apresentada a concepção pedagógica em que se baseia – a da Pedagogia por Projetos, ancorada em Hernández (1998) –, pressupondo que as atividades curriculares devem partir de um tema ou de um problema negociado com a turma; iniciar um processo de pesquisa, buscar e selecionar fontes de informação; estabelecer critérios de ordenação e de interpretação das fontes; recolher novas dúvidas e perguntas; estabelecer relações com outros problemas; representar o processo de elaboração do conhecimento que foi seguido; recapitular (avaliar) o que se aprendeu; e conectar-se com um novo tema ou problema (HERNÁNDEZ, 1998).

Dentre os projetos desenvolvidos pela escola, três deles dão destaque à Educação para as relações étnico-raciais: Projeto Afroerê, Projeto Afixirê e Projeto História da África, cultura africana e afro-brasileira para a Educação das relações étnico-raciais. Por tratar-se de uma escola que organiza o currículo escolar por meio da Pedagogia por Projetos, a Educação para as relações étnico-raciais está presente tanto em projetos específicos quanto nas práticas curriculares diárias, disputando agenda com outras pautas. No tratamento dos dados obtidos no PPP, foi utilizada a descrição analítica que funciona segundo procedimentos sistêmicos e objetivos, conforme Bardin (2016), traduzindo-se pela análise das mensagens contidas no texto.

Na segunda etapa, ocorreu a observação das práticas pedagógicas, o que permitiu entender a dinâmica da escola, compreender como os sujeitos dialogam para a construção do currículo escolar e qual é o espaço ocupado pela Educação para as relações étnico-raciais na composição curricular. Optou-se pela observação das práticas curriculares dos educadores porque ela auxiliou e ampliou o olhar sobre a temática, possibilitando a construção de novos conhecimentos, além de facilitar a obtenção dos dados (GIL, 2008).

Na terceira etapa, houve a escuta do Diretor da Escola, da Coordenadora Pedagógica e das professoras responsáveis pela inclusão da Educação para as relações étnico-raciais no currículo escolar. A escolha dos sujeitos não se deu aleatoriamente. O Diretor da Escola foi o precursor da organização de um modelo curricular participativo que busca a construção de uma educação na perspectiva integral. A Coordenadora Pedagógica, por ser responsável pela formação pedagógica dentro da escola, pôde contribuir para a identificação de elementos facilitadores para a construção de currículos participativos que priorizam, também, a superação do racismo. Quanto à definição dos professores a serem ouvidos, foram usados dois critérios: professores das disciplinas de Arte, Literatura e História, considerando que, nessas áreas, os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira deveriam ser ministrados, de modo especial, de acordo com a Lei Nº 10.639/2003; e professores que desenvolvem ou desenvolveram projetos específicos sobre a Educação para as relações étnico-raciais citados pelo PPP da escola.

Os sujeitos foram ouvidos por meio de entrevista semiestruturada que abordou: a organização curricular; a participação dos sujeitos na construção do currículo escolar; a percepção dos sujeitos sobre o racismo no currículo escolar, materializado por preconceito e por discriminação racial, bem como por práticas de enfrentamento e de superação; além da abordagem da Lei Nº 10.639/2003, a partir da representatividade negra e da formação dos sujeitos.

Seguem, assim, os resultados considerados mais relevantes desta investigação, pois há de fazer-se opções. Como afirma Brandão, C. R. (2003, p. 142), é preciso, dentre “[...] todas, em meio a tantas, optar por algumas passagens mais fortes, mais marcantes, mais poderosamente descritivas”.

A análise de conteúdo, proposta por Bardin (2016), pressupõe três etapas: a da organização da análise, a da codificação e a da categorização dos dados. A etapa da organização da análise abrangeu três materiais: o PPP da unidade escolar, o diário de observações e a transcrição das entrevistas com os sujeitos da pesquisa. O critério de codificação adotado foi definido por dois temas: práticas curriculares descolonizadoras e práticas de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos. A partir dos códigos estabelecidos, foram definidas categorias pelo critério semântico. No código “práticas curriculares descolonizadoras”, determinaram-se as categorias semânticas: construção coletiva do currículo, formação política dos sujeitos, acolhida das diversidades e promoção de diálogo intercultural. Para o código “práticas curriculares de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos”, foram determinadas as categorias semânticas: proposição de representatividade negra e fortalecimento da identidade negra. O Quadro 1 que segue ilustra o percurso construído para a análise dos dados.

Quadro 1 - Organização da análise de conteúdo 

Definição do aporte teórico Organização da análise Codificação Categorização

Dimensões da Justiça Curricular: cuidado, conhecimento e convivência.

Princípios da Educação para as relações étnicoraciais: Consciência política e histórica da diversidade; fortalecimento da identidade e de direitos; e ações educativas de combate ao racismo e a discriminações.

Diário de observações que registrou os dados da pesquisa de campo.

Transcrição das entrevistas realizadas com os sujeitos da escola.

Projeto Político Pedagógico da unidade escolar.

Práticas curriculares descolonizadoras.

Práticas curriculares de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos.

Construção coletiva do currículo.

Formação política dos sujeitos.

Acolhida das diversidades.

Promoção de diálogo intercultural.

Proposição de representatividade negra.

Fortalecimento da identidade negra.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A seguir, é feita uma abordagem das dimensões da Justiça Curricular alinhadas aos princípios da Educação para as relações étnico-raciais. Apresenta-se a observância dos elementos que constituem as práticas curriculares descolonizadoras e dos elementos que favorecem as práticas curriculares de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos no contexto de uma escola pública. Além disso, discute-se a proposta de construção de currículos intencionalmente antirracistas que poderão ser organizados a partir da consonância da Justiça Curricular e da Educação para as relações étnico-raciais. Por fim, com base na pesquisa realizada em uma escola pública (uma Escola Municipal de Ensino Fundamental – EMEF), busca-se afirmar se é possível a realização de uma prática curricular emancipatória que dê subsídios e produza caminhos para a superação do racismo.

As dimensões da Justiça Curricular e os princípios da educação para as relações étnicoraciais

A Educação para as relações étnico-raciais pode se materializar no currículo escolar sob a égide das dimensões da Justiça Curricular, que compreende esse currículo, ao mesmo tempo como ordenamento sistêmico formal e como vivência subjetiva e social. Desdobra-se, essa proposta de currículo, em três dimensões a serem consideradas concomitantemente: a da escolha do conhecimento a partir do critério que o compreende como estratégia de produção de existência digna; a do cuidado que deve contemplar todos os sujeitos do currículo; e a da convivência escolar que deve ser construída democrática e solidariamente como parte do currículo, sem negar os conflitos e as divergências, já que são compreendidos como integrantes da convivência humana (PONCE, 2018).

A proposta da Justiça Curricular é a de um currículo pautado em direitos e prevê o seu aprimoramento a partir da prática curricular. Desse modo, tem como horizonte uma educação escolar socialmente justa. Na dimensão do conhecimento da proposta da Justiça Curricular, assim como na da Educação para as relações étnico-raciais, a introdução da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares é necessária e urgente. Assim, ela precisa estar presente nas intenções, nos valores, nas concepções, nos objetivos, nos conteúdos, na organização do tempo, no espaço, nas metodologias, nos processos de avaliação e na relação professor-aluno.

O currículo escolar é resultado de escolhas que definem o que deve ser prioritariamente dado a conhecer (APPLE, 2006). A Educação para as relações étnico-raciais tem que habitar “esse território de disputa” (ARROYO, 2011) que é o currículo escolar. De acordo com Apple (2017):

Educadores criticamente democráticos, movimentos progressistas e comunidades não são os únicos indivíduos e grupos que estão atuando neste terreno [...]. [...] neoliberais, neoconservadores, movimentos religiosos reacionários e autoritários, e novos regimes de autoridade administrativa também estão trabalhando muito para mudar a educação para que sirva às necessidades deles. (APPLE, 2017, p. 902).

Na segunda dimensão da proposta da Justiça Curricular, a do cuidado com os sujeitos do currículo, buscam-se as condições materiais e imateriais para que todos e todas tenham acesso ao pleno direito à educação emancipatória pela superação das desigualdades e pela valorização das diferenças. Ponce (2018, p. 794) destaca: “Todo o processo de cuidados com esses sujeitos é fundamental no desenvolvimento curricular. Desde as condições de trabalho dos professores e gestores, sua formação, até a qualidade de vida das crianças, dos adolescentes e dos jovens”.

Na terceira dimensão, a da convivência, contempla-se a democracia participativa para garantir que as demandas silenciadas sejam acolhidas pelo currículo escolar (PONCE; ARAÚJO, 2019). Os currículos democráticos buscam garantir a pluralidade de ideias, de propostas, de saberes, de intenções, com fulcro no bem comum. A convivência democrática pautada no respeito às diversidades garante a construção de novas epistemologias, principalmente as que rompem com as bases eurocêntricas que permeiam os currículos escolares hegemônicos (REGIS, 2012).

Compreendendo a Justiça Curricular como um processo que busca formar sujeitos conscientes de sua dignidade, justos e solidários, por meio do currículo escolar, encontra-se, na proposta de Educação para as relações-étnico-raciais, a possibilidade de formar sujeitos também antirracistas. O conhecimento da história e da cultura afro-brasileira é uma estratégia de emancipação não só para negros e negras, mas para toda a população, uma vez que eleva sua visão crítica sobre a história e a cultura brasileira, possibilitando um posicionamento na direção de uma luta pela garantia das condições de acesso e de permanência de negros e de negras em todos os espaços escolares, nos espaços de produção de conhecimento, nas instâncias de poder e de tomada de decisão, de modo que sejam acolhidas as diversidades e valorizadas as diferenças. Para isso, é necessário, também, considerar, na vivência escolar, as três dimensões da Justiça Curricular: o conhecimento que importa para essa formação, o cuidado com os sujeitos do currículo e a convivência democrática e solidária em todos os espaços e tempos escolares.

Nesse sentido, a Lei Nº 10.639/2003 modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996) –, para incluir o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos da Educação Básica. Constituindo-se como política pública, a Lei Nº 10.639/2003, reeditada pela Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008 (BRASIL, 2008), atribui obrigatoriedade de ruptura das bases epistemológicas dos currículos escolares. Segundo Gomes (2008, p. 99-100), espera-se: “Mudanças de representação e de práticas. Exige questionamento dos lugares de poder. Indaga a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e educacional, em nossas escolas e na própria universidade”.

A Educação para as relações étnico-raciais insere-se em um processo de busca pela superação do racismo protagonizado pelo Movimento Negro e pela postura do Governo Federal, na vigência dos mandatos do Presidente Luís Inácio Lula da Silva e da Presidenta Dilma Rousseff, que propôs ações afirmativas para as mudanças epistemológicas nos currículos escolares, por meio das diretrizes desencadeadas pela promulgação da Lei Nº 10.639/2003 mencionadas anteriormente. No campo das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2010), cumpre conhecer os princípios que balizam a Educação para as relações étnico-raciais: Consciência política e histórica da diversidade; Fortalecimento da identidade e de direitos; e Ações educativas de combate ao racismo e às discriminações.

No Princípio da consciência política e histórica da diversidade, a Educação para as relações étnicoraciais deve promover a acolhida das diversidades a partir da mobilização e da ação política de resistência e de intervenção contra o racismo. Acolher as diversidades exige diálogo entre os pares e requer articulação com um sistema democrático que garanta pluralismo educacional, porque a visão unitária e a desconsideração da heterogeneidade dos sujeitos produzem currículos injustos que não respondem às demandas sociais (TORRES SANTOMÉ, 1997). Nesse sentido, rechaça-se a ideia de unidade cultural, sob o pretexto da mestiçagem biológica (a miscigenação) ou da mestiçagem cultural (o sincretismo). A miscigenação e o sincretismo podem dar razão àqueles favoráveis à cultura única; todavia, esses dois elementos desconsideram as diversidades dos sujeitos e propagam a ideia de igualdade. “O ocultamento da diversidade produz a imagem do brasileiro cordial, que trata a todos com igualdade, ignorando deliberadamente as suas nítidas e contundentes diferenças” (SILVA, P. B. G. e, 2007, p. 498).

Assumir um currículo escolar diverso não pode se reduzir às manifestações comemorativas em datas específicas. É preciso apresentar, cotidianamente, os saberes construídos pela historicidade dos sujeitos e por suas vivências. Para Cunha Júnior (2005, p. 257): “Os seres humanos e suas coletividades participam da construção de conhecimentos materiais e imateriais. [...]. Um legado imenso de expressões materiais e imateriais”.

Reconhecer as diversidades dos sujeitos e saber conviver é uma via de mão dupla, é busca de igualdade de direitos e de respeito às diferenças, as quais implicam a possibilidade da ocorrência de conflitos, comuns na convivência humana. Conforme preconiza Silva, P. B. G. e (2007, p. 501): “[...] ensinar e aprender implica convivência. O que acarreta conflitos e exige confiança, respeito, não confundidos com mera tolerância”.

O currículo escolar, quando se propõe a reconhecer as diversidades, admite que todos os sujeitos são produtores de conhecimento, possibilitando que os saberes sejam construídos por outras fontes, antes silenciadas: “Esse processo de construção depende de uma escuta, de abertura para as demandas e os saberes dos educandos, em um movimento em que todos são sujeitos” (NERI, 2018, p. 71).

O Princípio do fortalecimento da identidade e de direitos diz respeito à construção da identidade, que é decorrente da interação social com elementos dos mais diversos campos, “[...] da história, da geografia, da biologia, das estruturas de produção e reprodução, da memória coletiva e dos fantasmas pessoais, dos aparelhos do poder, das revelações religiosas e das categorias culturais” (MUNANGA, 2005, n.p.). Para favorecer a construção positiva da identidade negra, o currículo escolar precisa assumir uma postura crítica e reflexiva, sob pena de tornar os indivíduos “[...] incapazes de perceber as vozes e imagens ausentes dos currículos escolares: empobrecidos, mulheres, afrodescendentes, africanos, indígenas, idosos, homossexuais, deficientes, entre outros” (SILVA, P. B. G. e, 2007, p. 501). Nessa perspectiva, Torres Santomé (1995) afirma:

Quando se analisam de maneira atenta os conteúdos que são desenvolvidos de forma explícita na maioria das instituições escolares e aquilo que é enfatizado nas propostas curriculares, chama fortemente a atenção a arrasadora presença das culturas que podemos chamar de hegemônicas. As culturas ou vozes dos grupos sociais minoritários e/ou marginalizados que não dispõem de estruturas importantes de poder continuam a ser silenciadas, quando não estereotipadas e deformadas, para anular suas possibilidades de reação. (TORRES SANTOMÉ, 1995, p. 163).

É imprescindível compreender o funcionamento das estruturas de dominação que se perpetuam nos currículos escolares (e, também, na sociedade) para poder questioná-las e combatêlas. O acesso à História e Cultura Afro-brasileira que forma a nação brasileira e a recriação das identidades, provocada por relações étnico-raciais, é essencial para criar referências que emancipem os sujeitos. Cumpre aos educadores conhecer e assumir a formação étnica do povo brasileiro, com o intuito de construir um processo educativo em que os alunos e as alunas desenvolvam uma percepção positiva sobre sua própria identidade (MOURA, 2005). Um novo olhar construído sobre a identidade negra perpassa, certamente, por uma nova abordagem epistêmica em que a História e Cultura Afro-brasileira não sejam contadas apenas pelo viés da escravidão, mas inclua negros e negras como sujeitos históricos que produziram a sua liberdade.

No Princípio das ações educativas de combate ao racismo e às discriminações, o conhecimento sobre a História e Cultura Afro-brasileira deve ser construído no currículo escolar na perspectiva dos afrobrasileiros a fim de refletir sobre suas problemáticas socioeconômicas, seus conflitos étnico-raciais, suas histórias e suas vivências, assim como sobre a participação dos seus antepassados escravizados e seus descendentes (SILVA, P. B. G. e, 2005).

Não basta, portanto, apenas inserir a História e Cultura Afro-brasileira nos currículos escolares se não houver o questionamento do referencial eurocêntrico. A intenção não é a junção de saberes de diferentes procedências. “Não é juntando conhecimento que se completa conhecimento. Juntando conhecimentos apenas contribuímos para aumentar o conhecimento da incompletude dos conhecimentos” (SANTOS, 2018, p. 56). É preciso que ocorra o rompimento das estruturas que produzem/reproduzem o silenciamento e a opressão de alguma cultura para que novas bases epistêmicas e culturais sejam construídas (GOMES, 2012).

O intercâmbio com o Movimento Negro, com grupos culturais negros bem como com a comunidade em que se insere a escola é essencial para a elaboração de projetos políticopedagógicos que contemplem a diversidade étnico-racial. Ao dialogar com espaços onde negros e negras constroem suas identidades, o currículo escolar favorece a ampliação da representatividade negra (GOMES, 2003). Sobre o diálogo com os movimentos sociais: “Pensamos que o diálogo, a discussão, a convivência respeitosa e digna entre os segmentos sociais supracitados, entre outros, são, de um lado, formas de superação do racismo e, de outro lado, formas de construção de uma verdadeira democracia racial. Esta é a meta que desejamos” (GOMES, 2005, p. 60). Assim sendo, o diálogo entre a escola e os grupos identitários amplia as possibilidades de construção de um currículo pautado nas diversidades e no fortalecimento de identidades.

As práticas curriculares

As respostas epistemológicas do campo curricular quanto ao acolhimento das diversidades devem estar alinhadas à superação do racismo, portanto, indaga-se: “Será que elas são tão fortes como a dura realidade dos sujeitos que as demandam? Ou são fracas, burocráticas e com os olhos fixos na relação entre conhecimento e os índices internacionais de desempenho escolar?” (GOMES, 2012, p. 99). Espera-se, assim, que haja uma mudança estrutural nos currículos escolares, conforme pontua a Lei Nº 10.639/2003 (reeditada pela Lei Nº 11.645/2008), que considere as vozes silenciadas, as histórias e as culturas alijadas sistematicamente. Contudo, segundo Gomes (2012, p. 105), “[...] não é qualquer tipo de fala. É a fala pautada no diálogo intercultural. E não é qualquer diálogo intercultural. É aquele que se propõe a ser emancipatório no interior da escola, que pressupõe e considera a existência de um ‘outro’ [...]”. Para Gomes (2012, p. 102): “A força das culturas consideradas negadas e silenciadas nos currículos tende a aumentar cada vez mais nos últimos anos”.

A partir da inserção na escola, que foi o campo da pesquisa, buscou-se identificar a presença ou a ausência de práticas curriculares voltadas à superação do racismo, alinhadas aos princípios da Educação para as relações étnico-raciais, neste estudo compreendidas como práticas curriculares descolonizadoras e práticas curriculares de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos. Dessa maneira, com base nos referenciais teóricos, definem-se os elementos que constituem as práticas curriculares voltadas à Educação para as relações étnico-raciais. As práticas curriculares descolonizadoras compreendem elementos como: construção coletiva do currículo, formação política dos sujeitos, acolhida das diversidades e promoção de diálogo intercultural. Na esteira das práticas curriculares de reconhecimento e pertencimento dos sujeitos, reconhece-se como elementos constitutivos a proposição de representatividade negra e o fortalecimento da identidade negra.

Nas práticas curriculares descolonizadoras importa reconhecer que os currículos escolares precisam ser descolonizados como possibilidade de educar para as relações étnico-raciais e romper com a hegemonia eurocêntrica (GOMES, 2012). A observância dos preceitos da Justiça Curricular e da Educação para as relações étnico-raciais possibilitam a construção de um currículo descolonizado, que privilegia uma leitura crítica das narrativas históricas que inferiorizam a população negra. O colonialismo produz o epistemicídio; sobre isso, Carneiro (2014) afirma:

Alia-se nesse processo de banimento social a exclusão das oportunidades educacionais, o principal ativo para a mobilidade social no país. Nessa dinâmica, o aparelho educacional tem se constituído, de forma quase absoluta, para os racialmente inferiorizados, como fonte de múltiplos processos de aniquilamento da capacidade cognitiva e da confiança intelectual. É fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o racismo e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou ocultamento das contribuições do Continente Africano e da diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar. A esses processos denominamos epistemicídio [...]. (CARNEIRO, 2014, n.p.).

A construção de um currículo participativo que contemple, também, a Educação para as relações étnico raciais, como pressuposto para o reconhecimento, o enfrentamento e a superação do racismo, precisa criar mecanismos de escuta e de acolhimento de todas a vozes. Ao considerar a escuta dos sujeitos, garante-se que as demandas sejam compreendidas como temáticas de estudo e como possibilidade de mudança de postura.

Torres Santomé (2011) preconiza que a Justiça Curricular pressupõe a acolhida de todas as demandas dos sujeitos da escola de modo que tenham a oportunidade de conhecer e de discutir sobre os processos políticos, históricos e culturais que constituem seu pertencimento racial. O currículo escolar que privilegia a busca por Justiça Social deve nos levar “[...] a suprimir qualquer tipo de motivo pelo qual os sujeitos sofram marginalização, sejam desconsiderados ou vejam mutiladas suas possibilidades abertas” (SACRISTÁN, 2002, p. 249). A Justiça Curricular preconiza, portanto, que todos os sujeitos estejam no centro do processo de construção curricular, conforme afirma Neri (2018, p. 95): “Colocar o coletivo no centro do currículo escolar supõe a existência humana do ponto de vista da pluralidade, da interdependência entre os seres”.

A participação dos sujeitos na tessitura curricular deve estar motivada pela busca de autonomia do indivíduo, de modo a instrumentalizá-lo para a construção de uma vida digna, de um conhecimento que preconize uma convivência democrática e solidária, além de sua preparação para a inserção na vida social e no trabalho (CHIZZOTTI; PONCE, 2012).

Observou-se, na escola (campo da pesquisa), a preocupação e uma prática pedagógica que privilegia o espaço de construção coletiva do currículo em que os sujeitos têm a oportunidade de se colocar como produtores de conhecimento. Na análise das práticas coletivas, evidenciou-se que a Educação para as relações étnico-raciais aparece como uma das vertentes abordadas nas áreas do conhecimento. Palavras do Diretor entrevistado fazem menção à prática do que preconiza a Lei Nº 10.639/2003:

A escola é objeto de disputa e várias outras agendas estão colocadas. O princípio da gestão e o meu princípio é que todas essas agendas e que todas essas discussões estejam presentes na escola. Se você me perguntar de zero a dez quanto que a lei está sendo, vamos dizer assim, está sendo cumprida aqui, de zero a dez, eu diria oito e meio. Tá bom né? É uma notona. Por quê? Porque eu consigo enxergar as discussões em várias áreas do conhecimento, em vários ciclos. (Diretor).

A temática racial entra nesse território de disputa na EMEF investigada porque há uma formação política dos sujeitos educadores que garante a densidade das discussões curriculares. Ter consciência política e histórica sobre a importância da temática racial não é algo que se estabelece apenas com a promulgação de uma legislação, mas diz respeito a construir políticas públicas que possibilitem a formação dos sujeitos. A formação dos profissionais da educação pressupõe garantir que os sujeitos adquiram consciência histórica e política sobre a temática racial, de modo a instrumentalizá-los a discutir a História e a Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares. Nem sempre os cursos de Licenciatura abordam a questão racial (GOMES, 2019). Assim, a formação continuada dos profissionais da educação deve assumir o papel de garantir que a pauta racial esteja presente no currículo escolar. As entrevistas apontaram essa necessidade: “Eu lembro que no começo os professores diziam assim: Olha, a gente não vai trabalhar a lei, porque nós não temos formação, a gente nunca viu nada sobre a África, a escola nunca ensinou nada para a gente” (Professora A).

A formação política dos sujeitos busca descolonizar a epistemologia de base eurocêntrica. Para Gomes (2012, p. 107), “[...] a descolonização do currículo implica conflito, confronto, negociações e produz algo novo. Ela se insere em outros processos de descolonização maiores e mais profundos, ou seja, do poder e do saber”.

Uma das falas da Coordenadora Pedagógica entrevistada revela que as formações quanto à Lei Nº 10.639/2003 aconteciam com maior frequência em gestões anteriores, apontando a desarticulação do núcleo de formação étnico-racial da Diretoria de Ensino.

[...] do núcleo étnico-racial, porque praticamente eu estou vendo esse núcleo desmobilizado, a pessoa que cuida disso cuida também daquilo, daquilo outro e daquilo outro, então se isso dentro de um governo do PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira] não é uma tentativa de desmobilização eu não sei mais o que é, né, porque eu lembro de ser chamada na gestão Haddad para vários encontros do núcleo étnico-racial e, nesse ano de 2019, e mesmo agora, no começo, nada. (Coordenadora).

As considerações da Coordenadora Pedagógica são corroboradas pela afirmação da Professora A: “Até a gestão passada nós tínhamos muita formação com a questão étnico-racial, a gente tinha um grupo muito bom, muito bom [...], tanto é que, assim, lá, a gente consegue implementar o mancala3 na Rede Municipal em 2015” (Professora A). A questão das formações, segundo o Diretor: “Não é falta de formação, mas como essas formações são organizadas e como a escola/professores/gestores a utilizam, se dialogam com o que é produzido no interior da escola, se dialogam com os objetivos internos do Projeto Político Pedagógico” (Diretor).

A formação para os alunos e as alunas deve acontecer não só na escolha de conteúdos que contemplem a temática da História e Cultura Afro-Brasileira, mas pressupõe a mudança de práticas, de representações, de espaços, de materiais, de posturas e de discursos que se alinhem com a educação antirracista. Para Brandão, A. P. (2010, p. 5): “É importante, portanto, que o docente, além de dominar os conteúdos, receba também um suporte teórico-metodológico para enfrentar a discussão”.

A formação política dos alunos e das alunas é contemplada nos espaços da EMEF como parte da identidade da escola: “[...] com relação a Educação para relações étnico raciais é algo que está totalmente articulado, não é algo que vamos estudar só sobre o negro, mas, sim, entender que há uma diversidade” (Professora B).

As pautas formativas da EMEF buscam contemplar as diversidades e a multiplicidade de saberes e de fazeres que os diferentes grupos sociais produzem, tendo em vista que a construção do currículo está permeada pela busca da participação dos sujeitos e o acolhimento de suas demandas:

O que acontece do ponto de vista de enfrentamento dessas questões todas? Seja questão étnico racial, seja questão da diversidade sexual, seja a questão da mulher; enfim, como é que a gente enfrenta e vem enfrentando tudo isso? Nossa aposta é no ser humano; eu acho que, é, são duas questões importantes aí. A primeira assim, a escola, logo de início, se abriu a todos os grupos. Então, cabe a nós abrir espaço, garantir agenda para todas essas discussões. Cada setor vai se organizando e fazendo debate, entendeu e, quando faz o debate, você vai ampliando a discussão e vai construindo novos conceitos, seja em relação ao gênero, à questão do racismo, à questão da identidade e por aí vai. Então, você vai criando outras discussões e, ao criar outras discussões, você vai desconstruindo outras, e isso tem que estar presente. Segunda questão: isso tem que estar presente na escola, isso tem que estar presente na sala de aula, porque, senão, não tem sentido. (Diretor).

As práticas da EMEF estudada vêm se consolidando por meio do acolhimento das diversidades, pelas iniciativas formadoras propondo novas leituras da historiografia, pelo rompimento com os modelos tradicionais de ensino e de aprendizagem: “Entendendo que é uma necessidade e não fica só na... como eu te falei, não fica, não permanece só na semana da consciência negra, isso permeia todo o Projeto Político Pedagógico da escola e todos os componentes” (Professora C).

O Projeto História da África, cultura africana e afro-brasileira para a Educação das relações étnico-raciais, coordenado pela Professora A, tem como objetivo a formação de professores e de alunos ao longo do ano letivo e aborda: Documentos Oficiais sobre a Lei Nº 10.639/2003 e contextos da Educação das Relações Étnico-raciais; História da população negra no Brasil (escravização, lutas e resistências, quilombolas, religiões de matrizes africanas, clubes negros); História da África e cultura africana e afro-brasileira; História e Geografia da África antiga, moderna e contemporânea; Arte africana e afro-brasileira; Literatura; Identidade afro-brasileira; Introdução às regras do jogo mancala; Desigualdades sociorraciais no Brasil e desigualdade racial na Educação (indicadores de pobreza e de desigualdade, desigualdades no Ensino Fundamental, no Ensino Médio e no Ensino Superior, ações afirmativas e “políticas de cotas raciais”).

Acolher as diversidades no currículo escolar é compreender a necessidade de construção de novas epistemologias. Santos (2007, p. 94) afirma: “O pensamento pós-abissal parte da ideia de que a diversidade do mundo é inesgotável e continua desprovida de uma epistemologia adequada, de modo que a diversidade epistemológica do mundo está por ser construída”. Conforme explica Silva, P. B. G. e (2005, p. 158), “[...] em se tratando de estudos que se propõem a conhecer e valorizar feições étnico-histórico-culturais, e por isso mesmo socialmente situadas, não há um único estilo de apreender e de significar o mundo”.

A EMEF estudada iniciou os seus primeiros passos para a construção de uma nova epistemologia pautada na acolhida das diversidades, entendendo os desafios que surgiram durante esse processo e compreendendo a importância de um trabalho que busca a proposição de diálogo.

É que essa agenda tem chegado na sala de aula em diversas áreas do conhecimento, né, não só pela História, não só pela Língua Portuguesa, não só pela Arte, mas também tem chegado pela área de Exatas, pela área Integradora, ou seja, a gente consegue atingir. Então penso que esse debate está colocado satisfatoriamente bem dentro da escola. (Diretor).

No processo de diálogo, em especial do diálogo intercultural, os conflitos são inerentes: “Não há nenhuma ‘harmonia’, nem ‘quietude’ e tampouco ‘passividade’ quando encaramos, de fato, que as diferentes culturas e os sujeitos que as produzem devem ter o direito de dialogar e interferir na produção de novos projetos curriculares, educativos e de sociedade” (GOMES, 2012, p. 105). O diálogo intercultural permite vivenciar as diversidades, os modos de ver, de ser e de sentir do outro, mas isso não implica a inexistência de conflitos. “Todas as pessoas, com suas características as mais diversas e contraditórias, têm o direito de viver e conviver na Terra, não sem conflitos, encontros, desencontros, diálogos, afetos e desafetos, movimentos, mas têm direito pleno a desfrutar da beleza da vida” (TRINDADE, 2006, p. 111).

O diálogo intercultural pautado pela construção democrática do currículo pressupõe a superação das desigualdades e a afirmação das diversidades (PONCE; ARAÚJO, 2019). A assunção do diálogo intercultural permite ampliar a representatividade negra nas esferas de poder, de tomada de decisão e de produção do conhecimento, tal qual aponta o Diretor:

E como é que essas pautas, como é que a gente garante essas pautas no interior da escola? É potencializar representantes, entendeu? Como é potencializar representantes? Um grupo de professores que discute gênero, um grupo de professores que discute a questão do meio ambiente, tem um grupo de professores que discute a questão indígena, ter um grupo de pessoas, de professores e de outras pessoas que discute a questão com deficiência e tem um grupo de pessoas que discute a questão étnico-racial. (Diretor).

Que práticas podem contribuir para o processo de descolonização dos currículos escolares e quais as práticas que ainda se valem de epistemologias afetas à dominação e à imposição cultural, ignorando os saberes, as vivências, os modos de organização societária, os processos de produção, os valores e as crenças da população negra? Nas práticas curriculares de reconhecimento de pertencimento dos sujeitos, define-se que o currículo escolar tem o papel de possibilitar a construção de um outro olhar sobre “ser negro e ser negra”. Entretanto, como construir um olhar positivo sobre a identidade negra?

Antes de buscar resposta para essa questão, cumpre reconhecer que as crianças, antes de entrarem na escola, já têm contato com crenças, valores e atitudes que contribuem para a formação de um olhar sobre si e sobre o outro. “Não somos passivos às experiências e, a cada uma aprendida, incorporamos informações, transformamos, acrescentamos parte de nossa ‘herança’ e vamos construindo nosso jeito de nos olhar e de olhar o mundo” (GREGÓRIO FILHO, 2011, p. 93). As interações sociais são importantes para que as crianças se compreendam como pertencentes a um determinado grupo social. A criança negra, quando exposta a experiências que valorizam sua identidade, tende a construir uma percepção positiva sobre seu grupo racial; dessarte, quando ela é submetida a ações racistas, tenderá a negar seu pertencimento: “A criança que internaliza essa representação negativa tende a não gostar de si própria e dos outros que se lhe assemelham” (SILVA, A. C. da, 2005, p. 27).

Na relação com a cor da pele, as crianças negras, quando submetidas a processos discriminatórios, poderão sentir “[...] horror à sua pele negra, procurando várias formas de literalmente se verem livres dela, procurando a ‘salvação’ no branqueamento” (SILVA, A. C. da, 2005, p. 31). O mesmo pode acontecer com a textura do cabelo, definindo como a criança se vê: “Os cabelos crespos das crianças afrodescendentes são identificados como cabelo ‘ruim’, primeiro pelas mães, que internalizaram o estereótipo [...]” (SILVA, A. C. da, 2005, p. 28).

A criança não negra também aprende o que é ser negro e o que é ser branco a partir de suas vivências. O racismo não é inato, ele é construído, portanto pode ser desconstruído. “As atitudes raciais de caráter negativo podem, ainda, ganhar mais força na medida em que a criança vai convivendo em um mundo que a coloca constantemente diante do trato negativo dos negros, dos índios, das mulheres, dos homossexuais, dos idosos e das pessoas de baixa renda” (GOMES, 2005, p. 54-55).

Ao analisar as práticas curriculares da EMEF estudada, verificou-se que o Diretor tem a compreensão de que o currículo é um espaço que deve desconstruir práticas racistas. Ademais, reconhece que o currículo é um território de lutas e que a representatividade negra é fundamental: “Eu tenho a Professora A que é uma militante do Movimento Negro. Qual é a importância dela? A importância dela é fazer a disputa na agenda da escola” (Diretor). A potência de ter representantes negras na escola, como a Professora A citada, é apontada por todos os participantes da pesquisa: “A professora A, por exemplo, não sei se você teve contato com ela, ela está sempre em formação” (Professora C).

Quando a gente trabalhou onde estão os negros, nós chamamos a Professora A para conversar, fazer uma conversa de roda com eles, foi maravilhoso, porque ela explicou a história dela toda, mulher, negra, o preconceito, explicando que fez Mestrado quando chegou aqui, como que foi em São Paulo. Ela faz um trabalho maravilhoso com as bonequinhas né, como que chama, Abayomi. (Professora D).

A representatividade negra no currículo escolar é um dos apontamentos mais recorrentes na fala dos sujeitos desta pesquisa. As professoras que coordenaram os três projetos específicos sobre a temática racial (Projeto 1, Projeto 2 e Projeto 3) se autodeclaram negras. No entanto, a identificação com a temática racial no currículo escolar não pode se restringir apenas aos educadores negros e negras, visto que a pauta é da coletividade. A consciência histórica e política sobre a importância de um trabalho coletivo quanto à questão racial é apontada pela Coordenadora: “Só que não pode ser da Professora A, tem que ser da escola; então, tem que ser minha, tem que ser da gestão, tem que ser do professor de Matemática, de Ciências, de Educação Física, de Artes” (Coordenadora).

Nesse viés, a EMEF vem buscando promover a representatividade negra por meio do acervo da sala de leitura: “A nossa EMEF tem um acervo afro-brasileiro e até de outras etnias, que eu bem venho pesquisando e venho fazendo uso, muito bom, muito grande” (Professora E).

Eu considero o acervo da EMEF bem rico, muitos livros, que dá para gente trabalhar com essa temática e vídeos etc. [...]. Então, a gente vai pegar só esses autores negros aqui e estudar só a vida deles? A gente vai para um viés mais amplo, de um contexto maior. “Então, nessa obra o que vocês conseguem enxergar nessa obra? Onde, onde que vocês conseguem significar essa obra?”. Então, tem um acervo muito interessante que é a Cinderela só que numa versão que a Cinderela é uma menina negra. Quando as crianças veem elas ficam: “como assim?”. (Professora B).

A recomposição de acervos que promovam a História e Cultura Afro-brasileira é importante; todavia, considera-se que, ao inserir um livro sobre a “Cinderela” em uma versão “negra”, se continua tomando a cultura europeia como contraponto. Desse modo, acervo das bibliotecas ou das salas de leitura precisam se preocupar com as diversidades a partir de referências distintas, que contemplem a cultura e a história de diferentes povos.

A EMEF, campo da pesquisa, disponibiliza três projetos específicos sobre a temática racial, o que favorece a proposição de representatividade e o fortalecimento da identidade negra. Os projetos incluem a discussão de histórias, as mobilizações sociais, as manifestações culturais, a produção científica e diversos outros saberes protagonizados por autores negros e autoras negras, valorizando as representatividades negras.

Os projetos têm essa formação e esse objetivo: eles se sentirem representados. É claro que alguns já sabem disso, mas a maioria não compreende né, os elementos que fazem parte da sua cultura, que nasceu do seu povo, que é da sua própria herança, que pertence à vida deles. Então, eu acho meio difícil eu me sentir representada se eu não conheço aquilo como parte da minha vida, da minha história, do meu povo, entende? Então, eles precisam entender primeiro 80% das coisas que a gente vivencia – tem aí, né, um cunho ou uma descendência afro. Então, eles precisam dentro dessa vivência compreender a comida, a música, a dança, as palavras e tudo o que a gente tem, os hábitos, enfim, o que descende desse povo, dessa etnia, para que eles possam se sentir representados, na minha opinião né. Até porque, a única informação concreta e latente que grita 24 horas por dia é sobre a nossa escravização, a escravização preta né. O negro foi escravo, o negro foi chicoteado, fora isso não tem nada né, como se a gente não tivesse tido nada de bom dos nossos antepassados. Então, a gente precisa fortalecer isso, conscientizar eles da sua herança, reativar essa memória, fazer essa reconexão, fazer com que eles se reconectem com seus elementos, aí sim eu acredito que eles vão se sentir, perceber que eles são, que eles estão sendo representados. (Professora E).

Os espaços criados pela EMEF estudada, ainda que precisem ser ampliados, já representam possibilidades curriculares de construção positiva da identidade negra, favorecendo a criticidade dos sujeitos negros e negras e dos não negros e negras para que saibam se posicionar como sujeitos históricos.

Nós discutimos amplamente todas essas questões e os alunos entendem viu, eles entendem e eles têm postura, então, eles discutem a questão étnica, eles discutem a questão de gênero, eles discutem a questão do ser negro na periferia, de uma maneira muito boa, eu acho, sem grito, sem loucura, sem desespero, sem é, sabe, algumas coisas mais radicais, né, eu acho que é muito mais sustentável, se você conversar com qualquer aluno aí eles vão saber se posicionar. (Diretor).

O currículo pode fortalecer a identidade negra, acolhendo o aluno negro e a aluna negra, permitindo que se sintam representados e agentes de sua própria história, a partir de uma escola antirracista. Nessa perspectiva, a professora A pontua que:

Então a escola é o lugar que a gente tem que desconstruir isso, esses preconceitos e tem que positivar essa identidade né, a gente tem que positivar. E como é que eu positivo essa identidade? A partir do momento que eu trago o tema para discussão, eu trago um texto africano, eu trago uma história da cultura do negro no Brasil, eu falo da questão da escravidão. Sim, porque é aquilo que eu sempre falo, não dá para negar tá, não dá pra negar que existiu escravidão nesse país, foram trezentos e cinquenta e nove anos de escravidão e, as respostas estão aí né, assim, as respostas não, mas as situações, aquela favela, aquele lugar, aquela concentração de maioria negra, os pardos, pretos e pardos né, enfim, isso são os resquícios de uma escravidão e a gente teve. Então, o racismo ele vai estar presente né, está sempre presente, agora cabe a nós professores, procurar claro que com a fala, com o gesto, com atitude e também trazendo o tema, trazendo a discussão, trazendo as questões né, principalmente quando eu trago essas questões, valorizo elas. Eu detesto aqueles vídeos que o povo passa por aí, não estou dizendo na EMEF, mas quem mostra aqueles africanos tudo na miséria, na desgraça, eu odeio aquilo, eu odeio, aqueles clipes que o povo põe aquelas crianças miseráveis, desgraçadas. Não estou dizendo que não tenha, tem. (Professora A).

A postura epistemológica antirracista compreende que todo o fazer curricular precisa estar alinhado à construção de um novo olhar sobre a África, os africanos e os afro-brasileiros. A fala da professora A anteriormente e da professora E a seguir elucidam a postura epistemológica que se espera dos sujeitos do currículo:

Então um dos objetivos da EMEF foi trazer vários elementos que pudessem trabalhar isso. A gente está mudando o planeta? Não, mas a gente está plantando sementinhas né e dentro da nossa comunidade. A gente consegue conscientizar as crianças não negras e as crianças negras né, tanto a valorização, a autoestima e empoderamento, mas também trabalhar a criança não negra a entender as suas ações, né, que é como fala: Ai que coisa chata, não posso nem fazer uma brincadeira. A criança não negra ela precisa entender, ela precisa entender que ela também está dentro desse contexto, não é porque não tem uma pigmentação retinta que ela não faz parte daquilo. Dentro disso, a gente vai construindo, com a melhor convivência, né, um pouco mais de, de empatia. As pessoas vão respeitando mais e literalmente se conscientizando o que uma tem a ver com a outra. Eu faço tudo, eu faço tudo dentro da nossa... da cultura negra e as crianças, quando elas começam a perceber isso, elas mesmas vão fazendo uma reflexão e vão se podando. O que a gente vai ver daqui para frente eu não sei, mas, para mim, que tive uma aprendizagem desse tipo, funciona, então eu acredito que vai funcionar em pelo menos um ou dois ou mais adolescentes. (Professora E).

A construção de um olhar antirracista e de percepção positiva da identidade negra só poderá ser alcançada por meio da proposição de práticas curriculares que combatam a violência sofrida pela população negra: “Só se fará justiça curricular por meio de práticas curriculares que não se omitam em relação às violências” (PONCE; NERI, 2015, p. 333). As práticas curriculares antirracistas mencionadas pela professora A sinalizam possibilidades de fortalecimento da identidade negra e de valorização da História e Cultura Afro-brasileira:

A minha amiga, ela fez um trabalho da Pós e ela estava trabalhando com cultura né, com diversidade cultural, e ela foi e perguntou para mim: Professora, posso entrevistar seus alunos no projeto? Eu falei: Pode, fique à vontade. Aí ela foi lá um dia do projeto, sentou com os alunos, começou a fazer um monte de perguntas e aí ela falou: “É que eu quero saber qual a visão que eles têm da África”. Olha, isso foi antes do grupo de africanos chegarem na escola. Eu falei assim: “Você vai ter um problema, porque os meus alunos e todos os que passam por mim, eles têm uma visão de África, pelos meus olhos, então eles amam a África”. Eles vivem dizendo para mim: “Professora, me leva pra África junto com você”. Nenhum deles, nenhum deles me pede para ir para Disney, mas me pedem pra ir pra África né, vários me dizem isso: “Ah, professora leva a gente vai, eu quero ir pra África com você”. Isso porque o olhar de África que eles conhecem é um olhar positivado, não que eu negue os problemas sociais que a África apresenta, mas eu apresento para eles a descendência que eles têm, descendência de um povo guerreiro, de um povo que, que lutou, um povo que construiu esse país né, de um povo que, que assim, que sofreu muito, mas que não, não desistiu, não desistiu, tanto que estamos aqui, e a gente tem que valorizar esses, esses povos. Então eu falo, seu bisavô, sua bisavó, né, tudo o que a gente tem, está aqui, construiu, foi graças a eles, claro que cada um de uma forma né, cada um lutou com as armas que tinha, do jeito que deu para lutar. (Professora A).

O fortalecimento da identidade negra requer que o currículo escolar construa novas narrativas sobre a vida da população negra. Não se nega o processo de escravidão que merece ser reparado com políticas públicas e ações afirmativas, mas a vida da população negra precisa ser contada sobre outro viés. Inclui-se, como novas narrativas, o estudo dos feitos da população negra, suas agendas culturais, suas conquistas nas diversas áreas do conhecimento, os processos de luta e de resistência. “Pensar em tantos brasileiros que negam sua identidade, inclusive porque a escola não lhes permitiu conhecer sua história e saber quem são [...]” (MOURA, 2005, p. 69). A professora D exemplifica, a partir de sua prática:

E se você não desconstruir e a escola não tiver esse olhar de desconstrução aí, a meu ver, o racismo tende a ficar mais forte e quando você trabalha, nossa, é o contrário né, é maravilhoso, porque daí você conhece, reconhece a raça, reconhece o valor, a importância da formação da sociedade através dos negros, ele é matriz né, ele é a matriz do povo, é história, é isso. O povo indígena, português e africano é a matriz do povo brasileiro, então você não pode falar apenas de uma matriz. Então quando você traz a trona, nossa, eu estou até emocionada, porque eu lembro de uma aluna que ela é negra, que ela é negra e ela alisava o cabelo sabe, ela passava chapinha, nada contra, as pessoas usam o cabelo como quiserem, a pessoa pode fazer o que ela quiser, mas eu me lembro que ela começou a assumir o cabelo dela ano passado, lindo, enrolado sabe, assim falava com orgulho: “Eu tenho orgulho de ser negra, tenho orgulho do meu cabelo, tenho orgulho da minha história”. E assim dá uma emoção de saber que a pessoa conhecer, ter conhecimento de toda a história, ela se enxerga né, ela não fica com vergonha, não fica que nem era antigamente, ela tem orgulho de ser negra, orgulho da sua história, do seu povo, isso é muito importante. (Professora D).

As falas das professoras A e D demonstram como os currículos escolares podem contribuir para o fortalecimento da identidade negra. Ressalta-se que, tão importante quanto introduzir conteúdos sobre a temática racial, é fundamental promover e fomentar discussões que permitam a desconstrução dos estereótipos de inferioridade.

É possível uma prática curricular emancipatória que produza caminhos de combate ao racismo

A pesquisa apontou a urgência da construção de currículos escolares comprometidos com a Educação para as relações étnico-raciais e da “[...] construção de espaços de enunciação das diferenças, capazes de questionar preconceitos enraizados e de conduzir a práticas educativas que contemplem e valorizem as diferenças culturais e raciais existentes” (PEREIRA; ARAÚJO, 2017, p. 143).

A centralidade dos sujeitos na luta antirracista é importante, mas é o poder público que tem o dever de garantir recursos para que os profissionais da educação possam implementar a Educação para as relações étnico-raciais nos currículos escolares. Os sujeitos da escola não podem ser culpabilizados pela ausência de práticas voltadas à Educação para as relações étnico-raciais. Nesse sentido, é imperioso garantir condições materiais e imateriais para que o ordenamento sistêmico formal propositivo do currículo se materialize em vivência subjetiva e social comprometida com a educação antirracista.

Assim sendo, a favor de um “ordenamento sistêmico formal” como uma das dimensões do currículo que combate o racismo, como já mencionamos anteriormente, foi promulgada a Lei Nº 10.639/2003 e foram implementadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004), as Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2006) e o Plano Nacional de Implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2010).

Na esteira da “vivência subjetiva e social” do currículo escolar, estão as práticas curriculares que dão ênfase à superação do racismo e foram identificadas na EMEF estudada como um processo de participação coletiva dos sujeitos na construção do currículo; de acolhida das diversidades de saberes; de estudo da História e Cultura Afro-brasileira; de proposição de representatividade negra por meio da busca por materiais didáticos e obras literárias que contemplem a questão racial; de identificação de representantes negros e negras em diversas instâncias da sociedade; e de ações que fortalecem a identidade negra nas aulas regulares e nos projetos interdisciplinares.

Todavia, pontuam-se os desafios que ainda precisam ser superados: a ampliação de mudanças no currículo escolar a partir da representatividade negra entre os sujeitos da educação, da representatividade negra nos espaços estruturais e do diálogo com o Movimento Negro, tendo em vista que as proposições da EMEF estão centradas na introdução de conteúdos; a indisponibilidade de investimentos financeiros pelo poder público; o enfrentamento do desmonte dos núcleos de formação da Educação para as relações étnico-raciais; a qualificação social da formação inicial e continuada dos profissionais da educação; e a insuficiência de acervos didáticos e literários que proponham a representatividade negra e desconstruam estereótipos.

São muitos os desafios encontrados para se propor a Educação para as relações étnicoraciais assim como para a implantação de um currículo inspirado na proposta da Justiça Curricular, que tem como propósito construir práticas curriculares que se comprometam com a superação das desigualdades, de modo a garantir que todos os sujeitos tenham acesso a conhecimentos que produzam a sua emancipação para compreender o mundo e a si mesmos, que sejam objetos de cuidados que lhes garantam condições dignas de vida e que saibam construir condições para uma convivência democrática e solidária como parte do currículo.

Pautar as práticas curriculares pelos preceitos da Justiça Curricular contribui para a mudança cultural que considere os sujeitos da educação como sujeitos de direitos (PONCE; NERI, 2015). Dessa forma, é imperioso que o currículo escolar possibilite a construção de subjetividades democráticas (PONCE; ARAÚJO, 2019), o que implica formar sujeitos capazes de se apropriarem subjetivamente de seus direitos (PONCE, 2018). Assim sendo, enquanto houver racismo ou qualquer outra forma de opressão, haverá luta para que os currículos escolares sejam espaços de construção de vida digna, justa e solidária para todos e todas.

1Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

2As professoras foram, aqui, identificadas como professoras A, B, C, D e E.

3Mancala é um jogo de tabuleiro de origem africana que se utiliza de sementes. As jogadas são chamadas de semeaduras. O objetivo vai além de capturar as sementes do oponente. A ideia central do jogo é a partilha.

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Recebido: 01 de Setembro de 2021; Revisado: 24 de Novembro de 2021; Aceito: 25 de Novembro de 2021; Publicado: 04 de Dezembro de 2021

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