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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 23-Fev-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18362.008 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, epaços e tempos

“Escrevivências” e afectos literários entre universidade e escola*

“Escrevivências” and literary affects between university and school

“Escrivivencias” y afectos literarios entre universidad y escuela

Iris Verena Oliveira** 
http://orcid.org/0000-0001-7041-3327

Jeane Matos Araújo Lima*** 
http://orcid.org/0000-0002-5092-0767

Geniclécia Lima dos Santos**** 
http://orcid.org/0000-0003-3714-1985

**Professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Doutora em Estudos Étnicos e Africanos. E-mail: <irisveren@gmail.com>.

***Professora do Colégio Estadual de Bandiaçu, Rede Estadual da Bahia. Especialista em Linguística. Estudante do Mestrado em Educação e Diversidade na Uneb. E-mail: <jejejeane962@gmail.com>.

****Licenciada em História. Estudante do Mestrado em Educação e Diversidade na Uneb. E-mail: <geniclecialima94@gmail.com>.


Resumo:

Este texto trata dos encontros ocorridos entre universidade e escola, atravessados pela literatura produzida por escritores/as negros/as, com destaque para a obra de Conceição Evaristo. A partir de interpelações apresentadas por professoras da Educação Básica em atividades acadêmicas na universidade, o genocídio da juventude negra é abordado como questão de currículo na formação de professores/as. Nesse sentido, apresenta-se o relato da realização de uma Mostra de Literatura, a partir de articulações construídas no espaço escolar e na universidade, mobilizadas pelo acesso à arte. Defende-se que os impactos curriculares da Mostra extrapolam o tratamento de questões étnico-raciais na escola como temática, pela proposição de experiências estéticas produzidas pelo encontro. Os desafios metodológicos na pesquisa em Educação são vistos de modo a propor o conceito de “escrevivências” como operador teóricometodológico atravessado pelas concepções de afecto e pelos agenciamentos coletivos.

Palavras-chave: Escrevivências; Juventude negra; Currículo; Afecto

Abstract:

The text deals with the encounters between university and school, crossed by the literature produced by black writers, with emphasis on Conceição Evaristo’s work. From interpellations presented by teachers of Basic Education in academic activities at the university, the genocide of black youth is addressed as a matter of curriculum in teacher education. In this sense, the report on the realization of a Literature Exhibition is presented, based on articulations built in the school space and at the university, mobilized by access to art. It is argued that the curricular impacts of the Exhibition go beyond the treatment of ethnicracial issues at school as a theme, by proposing aesthetic experiences produced by the meeting. The methodological challenges in research in education is seen in a way to propose the concept of escrevivências as a theoretical-methodological operator crossed by the concepts of affect and collective agency.

Keywords: Escrevivências; Black youth; Curriculum; Affect

Resumen:

Este texto trata de los encuentros entre la universidad y la escuela, atravesados por la literatura producida por escritores/as negros/as, con énfasis en la obra de Conceição Evaristo. A partir de interpelaciones presentadas por docentes de Educación Primaria en actividades académicas de la universidad, el genocidio de la juventud negra se aborda como una cuestión de currículum en la formación de profesores/as. En este sentido, se presenta el informe sobre la realización de una Muestra de Literatura, a partir de articulaciones construidas en el espacio escolar y en la universidad, movilizadas por el acceso al arte. Se defiende que los impactos curriculares de la Muestra van más allá del tratamiento de las cuestiones étnico-raciales en la escuela como temática, por la proposición de experiencias estéticas producidas por el encuentro. Los desafíos metodológicos en la investigación en educación son vistos de modo a proponer el concepto de escrivivencias como operador teórico-metodológico atravesado por las concepciones de afecto y agenciamientos colectivos.

Palabras clave: Escrivivencias; Juventud negra; Currículum; Afecto

Escola, literatura e universidade

Neste texto misturamos nossas vozes para tratar sobre as intersecções entre a “Mostra de Literatura: Escrevivências Afro-Brasileiras” desenvolvida em 2019 no Colégio Estadual de Bandiaçu, localizado na zona rural de um município de Conceição do Coité, na Bahia, e o projeto “Combinamos de escreviver! Práticas de leitura e produção de narrativas negras”, formulado no Departamento de Educação da Universidade do Estado da Bahia1 (Uneb), no mesmo município. No texto, nossas falas intercalam, propositadamente, expectativas, ações e diálogos entre profissionais da universidade e da escola, para enfatizar a porosidade dos muros institucionais, exercitando a construção de modos de fazer, a partir do atravessamento de “escrevivências”2 docentes e estudantis. Trata-se de um relato que apresenta acontecimentos curriculares propiciados por debates no Programa de Pós-Graduação Profissional em Educação e Diversidade, que, ao abrir a possibilidade para as provocações de professoras impactadas pela arte e mobilizadas por questões que lhes desafiam no cotidiano escolar, permitiram a construção de pontes, entre o campus universitário e a escola.

Neste texto, apresentamos escrevivências formativas a partir dos afectos literários, que reverberaram em professoras e estudantes na universidade e na escola. Ao acionarmos o conceito de escrevivências, reconhecemos as imagens individuais e coletivas que, no espelho, refletem afectos e potencializam agenciamentos (EVARISTO, 2020) Esse movimento aponta para a importância da literatura para a educação das relações étnico-raciais, tanto na escola como na Educação Superior, especialmente nos cursos de Licenciatura.

As escrevivências curriculares experienciadas no Colégio Estadual de Bandiaçu são movimentos que respondem aos desafios enfrentados pela comunidade escolar diante do número crescente de jovens negros assassinados no município, entre eles, alunos e egressos da referida insituição escolar. Diante desse contexto, algumas docentes do colégio acessaram textos escritos por pesquisadoras negras enquanto cursavam componentes curriculares no Mestrado, o que inspirou a proposição da “Mostra de Literatura: Escrevivências afro-brasileiras contemporâneas”, organizada pela comunidade escolar. Assim sendo, este texto trata de lágrimas, de esperança e de preocupações alimentadas no âmbito da escola, em diálogo com provocações suscitadas pelo compartilhamento de escrevivências na universidade e do incômodo frente às imposições dos documentos curriculares no âmbito nacional, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a base estadual, o Currículo Bahia. Diante das tentativas de padronização, a experiência narrada aponta para disputas por narrativas e visibiliza as brechas, destacando o fôlego das investidas locais e coletivas, atravessadas por afectos literários, mobilizados a partir do contato com a produção de Conceição Evaristo.

O exercício da pesquisa acadêmica com a comunidade escolar demandou a elaboração de operadores teórico-metodológicos que superem antigas dicotomias e lugares pré-estabelecidos. Recusamos, portanto, a proposição de pesquisa que toma a escola como espaço para coleta de dados e que transforma conversas em oportunidade de registros para acessar a “realidade da escola”, bem como as contraposições entre quem elabora políticas e quem implementa práticas curriculares, assim como oposição entre pesquisados/as e pesquisadores/as. Apresentamos escrevivências docentes como registros de momentos de desestabilizações ocorridos no encontro, assumindo a alteridade como incontornável e a necessidade de construir outros modos de fazer a pesquisa em Educação, para honrar o compromisso ético com a educação antirracista.

Em uma gira de múltiplos afectos literários, atendemos ao chamado da escola para pensar juntos/as sobre o impacto do genocídio da juventude negra nas ações curriculares, ao mesmo tempo em que as proposições de cenários formativos protagonizados por personagens de escritores/as negros/as possibilitam fabulações no ambiente escolar e provocam respostas metodológicas que atendam à complexidade do encontro, a partir das tensões, dos deslizamentos e das articulações geradas no diálogo entre universidade e escola. Na seção “Olhos d’água”, narramos as interpelações apresentadas por professoras da Educação Básica em atividades acadêmicas na universidade, a partir do impacto provocado pela leitura de contos de Conceição Evaristo. Apresentamos, também, as estatísticas sobre genocídio da juventude negra no Brasil e, diante desse contexto, sistematizamos questionamentos sobre o papel da escola e da universidade. Na seção “Mostra de Literatura: Escrevivências Afro-Brasileiras contemporâneas”, relatamos as atividades curriculares que mobilizaram a comunidade do Colégio Estadual de Bandiaçu e descrevemos as articulações construídas no espaço escolar e mobilizadas pelo acesso à arte. Em seguida, na seção “Afectos literários entre escola e universidade”, discutimos os impactos curriculares da Mostra de Literatura no colégio e problematizamos os desafios metodológicos para a pesquisa em Educação atravessada pelas concepções de afecto, pelos agenciamentos coletivos e pelas escrevivências. O “composto de sensações” do texto é finalizado na seção “Insubmissas Lágrimas de Mulheres”, na qual defendemos a importância da literatura afrobrasileira nos espaços formativos, para propor a criação de desvios, de encontros e de partilhas em agenciamentos coletivos que podem ser registrados como escrevivências.

Olhos d’água

Após a leitura do conto “Olhos d’Água”3, o silêncio fez-se no auditório. O desconforto expressava-se de diversas formas: algumas tossiam, outras fungavam e muitas enxugavam as lágrimas. O auditório era ocupado predominantemente por professoras4 da Educação Básica que atuam na rede estadual de ensino da Bahia, em municípios vizinhos, e integravam o corpo discente do Mestrado Profissional em Educação e Diversidade na Uneb. As professoras cumpriam os créditos do componente curricular “Gênero, Etnia e Práticas Escolares”, e, após a leitura, impunhase o desafio de retomar o debate com a voz embargada, lidando com o impacto provocado pelo conto. Naquele intervalo de tempo, desaguavam “as águas de Mamãe Oxum”, evocadas pela escritora Conceição Evaristo, no texto que remonta a relação afetiva de uma mulher negra com a sua mãe (EVARISTO, 2016, p. 19).

O silêncio foi rompido com a descrição das sensações experimentadas no momento de escuta do conto. Eram tentativas de expressar algo sobre as memórias de relações familiares que vieram à tona, além dos questionamentos sobre a falta de acesso à produção literária de escritoras negras na formação escolar e universitária. Em meio às falas, destacou-se uma, com o tom de revolta e inconformidade: a professora compartilhou a sensação de ter sido lesada ao entender que a sua formação em Letras Vernáculas aconteceu sem o diálogo com a produção de escritoras como Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Geni Guimarães, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, entre tantas outras.

Todas essas reações descritas e tantas outras que não cabem aqui se devem à escrita de Conceição Evaristo, uma escrita do corpo vivido, das dores, das alegrias e dos sentimentos pulsantes quando falamos sobre nós, sobre os nossos. No conceito de escrevivência, Evaristo aglutina as palavras “escrever” e “viver” e ainda diz sobre escrever se vendo. Trata-se da escrevivência como signo fundante, que se refere aos corpos de mulheres negras carregados de experiências e de vivências individuais e coletivas (EVARISTO, 2020). Assim, neste texto, tomamos o conceito de escrevivência como operador teórico-metodológico, pois nos autorizamos a escrever sobre nós e nossas experiências docentes no cotidiano da universidade e da escola, narrativas atravessadas pelos contos de Conceição Evaristo. O conceito é definido da seguinte forma pela autora:

Escrevivência, em sua concepção inicial, se realiza como um ato de escrita das mulheres negras, como uma ação que pretende borrar, desfazer uma imagem do passado, em que o corpo-voz de mulheres negras escravizadas tinha sua potência de emissão também sob o controle dos escravocratas, homens, mulheres e até crianças. [...]. E se a voz de nossas ancestrais tinha rumos e funções demarcadas pela casa-grande, a nossa escrita não. Por isso, afirmo: “a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordálos de seus sonos injustos”. (EVARISTO, 2020, p. 30).

Ao escrevermos sobre nossas andanças, reivindicamos autoria em uma luta simbólica no meio acadêmico em que predominam narrativas masculinas, brancas e heterosexuais. Assumimos nossas vivências individuais e coletivas como formas de contar outras histórias sobre nossos corpos, formulando histórias que destoam dos estereótipos criados pelos gêneros literários tradicionais (EVARISTO, 2020). Quando escrevemos, não inventamos nossos pontos de vista, mas estes estão entrelaçados aos marcadores de raça, de gênero, de sexualidade, de classe social e de profissão. Revindicamos, portanto, a fala fundada em saberes localizados, como nos ensinou Donna Haraway (1995) e colocamos as “tripas no papel”, tal e qual Glória Anzaldúa (2000).

As idas e as vindas entre escola e universidade, no momento em que cursávamos componentes como alunas especiais, produziram movimentos aparentemente caóticos. Acessar, novamente, os debates acadêmicos levava-nos a estranhamentos de situações rotineiras da escola, ao mesmo tempo em que, na universidade, a condição de “aluna especial” remetia a um meio de caminho, uma transição, compartilhávamos os espaços e as discussões, mas não erámos mestrandas. As sensações que nos atravessavam naquele momento remetem à preparação do angu, mencionada por Conceição Evaristo na abertura do Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as (Copene), em 20205. Em meio a diversas vozes, mulheres negras preparam o alimento, em um espaço que reúne homens, mulheres e crianças em volta do caldeirão, estabelecendo uma rede de ajuda mútua, que também é envolta em conflitos, formando microcomunidades como espaços de vivências culturais. O nosso angu pode ser lido como um entrelugar (BHABHA, 2019), que não era a escola, nem a universidade, mas, sim, esses dois espaços, com vozes que entrelaçavam novos conceitos e experiências. Atividades rotineiras da escola como “a hora de fazer a chamada” vinham à tona juntamente a novos questionamentos: “Quem é Lélia Gonzalez?”; “incentivar a leitura usando o texto bíblico, numa escola laica?”.

Ao longo daquele semestre, as discussões acadêmicas foram atravessadas pela arte. Em meio a contos, crônicas, músicas e clipes produzidos por artistas negros/as, irromperam desabafos sobre os cotidianos escolares que ampliavam a sensação de compartilhamento e de formação de uma microcomunidade. Temas delicados enfrentados na escola foram relatados, como as práticas de automutilação e o crescimento das taxas de suicídio entre crianças e adolescentes. Entendemos que, por vezes, a escola se torna o espaço de acolhimento para pais que não conseguem lidar com a orientação sexual dos seus filhos e das suas filhas e, também, para estudantes que estabeleciam com as professoras relações de confiança, que lhes permitiam denunciar situações de abuso e de abandono ocorridas no âmbito doméstico. Os relatos afetavam todas as pessoas envolvidas, pela possibilidade aberta para o encontro com o outro, aqui entendida como afecto, como o acontecimento propiciado pela potência do encontro (DELEUZE; PARNET, 1998). Nesse processo de afectos literários e de discussões sobre as nossas reações frente aos dilemas vivenciadas nos espaços escolares, percebemos que “[…] as sensações, percepos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido” e que a “[…] obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 194).

Nos encontros vespertinos, em meio aos lanches coletivos, indicações de textos literários e outras artes, ouvimos a fala emocionada de uma professora que, na condição de gestora de uma escola estadual, lidava com o crescimento do número de alunos e de egressos entre os jovens negros assassinados. A denúncia sobre o genocídio da juventude negra no Território do Sisal já era pautada pelos movimentos sociais há alguns anos; entretanto, era a primeira vez que ouvíamos uma provocação sobre aquele debate no ambiente escolar. Diante disso, perguntamo-nos: Qual é o papel da escola? O que fazem as professoras quando mais um caso acontece? Como elas dialogam com os/as estudantes da escola sobre o assassinato de um colega? Como desenhar “projetos de vida” ou defender que a “educação é a base” (BRASIL, 2018) em meio ao luto?

Após aquela aula, o conto “A gente combinamos de não morrer”, que também integra o livro Olhos d’água, de Conceição Evaristo, ressoava o tempo inteiro, como uma linha de fuga, uma espécie de delírio, no sentido de delirar até sair dos eixos, pirar (DELEUZE; PARNET, 1998). A narrativa que intercala as experiências das personagens Esterlinda, Dorvi e Bica tem como fio condutor o acordo estabelecido entre os jovens, que dá nome ao conto. A narradora chega à conclusão de que “[…] deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver uma vida menos cruel” (EVARISTO, 2016, p. 108). Com isso, reiteramos que a escrivência não é uma ação contemplativa, ela nos conduz diante do incômodo com as opressões que permeiam o nosso cotidiano (EVARISTO, 2020). Seguíamos questionando: Como o combinado de não morrer pode atravessar práticas curriculares em espaços de formação como escolas e universidades?

Ao tomar a questão do genocídio da juventude negra e seu impacto nas escolas públicas, a partir das linhas de fuga deleuzianas, corremos o risco de ser mal interpretadas, por isso é importante destacarmos que “[…] o grande erro, o único erro, seria acreditar que uma linha de fuga consiste em fugir da vida; a fuga para o imaginário ou para a arte” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 40). Entendemos, portanto, que: “Fugir, porém, ao contrário, é produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 40). Cientes disso, levamos à sério a interpelação da professora, atentando às experiências de inúmeras pessoas negras no Brasil que lidam com a morte e entendem que “[…] não morrer, nem sempre é viver” (EVARISTO, 2016, p. 108).

Em Olhos d’Água, a morte indica a precariedade das condições de vida da população negra brasileira. A escritora apresenta suas personagens em diversas camadas, que envolvem os/as leitores/as em seus dramas. Por isso, quando eles perdem a vida em meio a um “gozo-pranto”, como no conto “Ana Davenga”, estamos envolvidas naquele romance, em que o “[…] personagem Davenga é um sujeito humano capaz de uma enorme atrocidade, mas é também capaz de viver uma bela e comovente história de amor” (EVARISTO, 2020, p. 40). No conto “Maria”, acompanhamos a protagonista na volta do trabalho, carregando as frutas para os filhos e nos tornamos cúmplices de seus anseios, seus desejos e suas lutas. A autora afirma trazer “[…] outro tratamento, outra construção para essas personagens negras, assim como outro olhar para uma outra ambiência social negra” (EVARISTO, 2020, p. 40). Por isso, a leitura de cada conto transporta-nos para o cotidiano de personagens que soam familiares. Para Duarte (2020), a literatura de Conceição Evaristo envolve os/as leitores/as graças à sua perspicácia em apreender o seu tempo e suscitar reflexões contundentes, que fazem as pessoas se identificarem com sua narrativa. Enquanto nas escolas, os/as professores/as relatam dramas de Josés e Pedros da “sétima A” ou da “oitava B”; indicam a vinculação familiar, “neto de Dona Joana”; e a relação, por vezes, conflituosa com a escola, “ele foi transferido e depois voltou”, ou, ainda, “ele perdeu o ano duas vezes.”

A situação identificada por professoras nas escolas está conectada às estatísticas publicizadas por órgãos como a Anistia Internacional e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o genocídio da juventude negra (IPEA, 2020). No Colégio Estadual de Bandiaçu, a experiência de professoras e de gestoras permite-nos olhar para tal violação dos direitos humanos, a partir de lentes que humanizam os números. O aumento da frequência de assassinatos tem impacto direto nas unidades escolares que atendem a jovens do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, provocando momentos dramáticos, que exigem a tomada de decisões e extrapolam atribuições profissionais das docentes. Por vezes, as professoras decidem levar estudantes em casa, temendo que sejam assassinados ao caminhar pelas ruas da cidade; em outras situações, as gestoras permitem que eles permaneçam na escola, ainda que não queiram assistir às aulas, por saber que o espaço da escola é seguro. As ações de professoras e de gestoras não se limitam ao tempo em que estão na escola, uma vez que algumas integram um grupo no aplicativo de mensagens, por meio do qual trocam informações nas madrugadas ao ouvir tiros na cidade, com o intuito de sondar se os estudantes estão bem ou mesmo para identificar qual foi o estudante assassinado naquela madrugada.

Os diálogos e as relações de confiança estabelecidos com os estudantes no ambiente escolar possibilitam o acesso a informações dramáticas. Na unidade escolar em que desenvolvemos a pesquisa, cinco estudantes foram assassinados entre 2015 e 2020. A comunidade conhece os estudantes “envolvidos”, ou seja, aqueles vinculados ao tráfico de drogas na cidade e, também, aqueles que estão marcados para morrer. Ainda assim, nenhum gráfico, tabela ou estatística pode transmitir o sentimento de impotência, que vem à tona frente a notícia do assassinato de mais um estudante, como foi possível flagrar no desabafo registrado em grupo no aplicativo de mensagens, que ocorreu no dia 25 de abril de 2019:

Mais uma vida interrompida.

Gente, eu aconselhei, abracei e me despedi dele a semana passada ao entregar a transferência na mão da mãe.

Eu não estou dando conta.

A mãe veio buscá-lo na semana passada com medo de matarem ele. (Trecho do Grupo de Mensagens “Escrevivências”).

Naquela ocasião, outras professoras entraram no diálogo, na tentativa de consolar a colega e insistiam em demarcar que ela estava fazendo um bom trabalho como gestora; entretanto, pairou o silêncio após a afirmação da professora: “Não está sendo suficiente, continuo perdendo alunos...”.

Nos debates promovidos pela academia e pelos movimentos sociais, discutem-se o racismo estrutural e as situações de exclusão racial que produzem padrões estatísticos, em que constam números alarmantes sobre exclusão do espaço escolar, ingresso reduzido na universidade e grande índice de jovens negros entre os assassinados e os encarcerados (ALMEIDA, 2019). Nessas ocasiões, ouvimos a defesa da escola como lugar estratégico para a luta antirracista, por significar um espaço que não se reduz à função de ensinar, entendendo-a, portanto, como território de socialidades, encontros, afetividades, desavenças (MACEDO, 2017; OLIVEIRA, 2020). Assim sendo, quais movimentos curriculares são protagonizados por professoras e estudantes no contexto em que estudantes “combinam de não morrer”?

Na atividade realizada no Colégio Estadual de Bandiaçu, que apresentaremos a seguir, unimo-nos a tantos/as outros/as pesquisadores/as negros/as no intuito de atuar pela permanência dos corpos negros vivos, tanto na escola quanto na academia; reivindicamos, desse modo, um lugar de enunciação em que as questões raciais atravessem o processo formativo e o currículo, deixando de serem referidas apenas como temáticas de pesquisas e em ações pontuais (FELISBERTO, 2020).

Mostra de Literatura: Escrevivências Afro-Brasileiras contemporâneas

A despeito de toda a movimentação protagonizada por associações de pesquisa que questionam os pressupostos da BNCC, como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e a Associação Brasileira de Currículo (ABdC) (ANPED; ABDC, 2015), o referencial foi aprovado em 2017. O documento promete desempenhar um papel fundamental explicitando “[…] as aprendizagens essenciais que todos os estudantes devem desenvolver e expressa, portanto, a igualdade educacional sobre a qual as singularidades devem ser consideradas e atendidas” (BRASIL, 2018, p. 15, grifo do autor). As promessas da BNCC quanto à garantia de qualidade e de igualdade na educação foram construídas fora do cotidiano escolar, a partir de previsões sobre competências e habilidades necessárias para estudantes de todo o país, em uma listagem que envolveu até mesmo as competências socioemocionais. Nesse sentido, concordamos com Guilherme Lemos e Elizabeth Macedo quando afirmam que “[…] as condições socioemocionais serão sempre circunstanciais, portanto, imprevistas e implanejáveis” (LEMOS; MACEDO, 2019, p. 67).

Ao mesmo tempo em que a BNCC não considera os conhecimentos, as práticas culturais e os atravessamentos raciais e de gênero que pululam no cotidiano escolar, as práticas curriculares de professores/as continuam sendo afetadas por questões como evasão escolar, gravidez não planejada, situações de abuso sexual e tantos outros desafios encarados por docentes e gestores/as. Como afirmam Alice Casimiro Lopes e Núbia Regina Moreira, a BNCC defende o currículo comum como “[…] tentativa de apagar conflitos políticos, contextuais que minimizam as possibilidades de uma política curricular radicalmente democrática” (LOPES; MOREIRA, 2020, p. 294).

No Colégio Estadual de Bandiaçu, algumas docentes viram, nas escrevivências de Conceição Evaristo, uma inspiração para consolidar vínculos entre a comunidade escolar e experimentar outras práticas curriculares. O ponto de partida foi o projeto de leitura já existente na escola e que, inicialmente, era fundamentado no provérbio bíblico “No princípio era o verbo”. Como diria Sabela, personagem da novela com o mesmo nome (EVARISTO, 2017), isso era o que estava escrito no livro do outro povo e era o ponto de partida para a proposta que norteava as demais ações desenvolvidas durante o ano letivo no colégio; assim, foi direcionada para a leitura de escritores clássicos.

A partir do contato de algumas professoras com os livros Olhos d’Água e Ponciá Vicêncio, surgiu a ideia de organizar a Mostra Literária focada na produção de escritores negros e de escritoras negras. O objetivo era compartilhar as sensações vivenciadas quando tiveram a oportunidade de ler autores/as negros/as e visava oportunizar o acesso àqueles textos para estudantes durante a vida escolar. A aposta era que os dilemas apresentados no formato de crônicas, contos e poesias entrelaçavam questões semelhantes àquelas que atravessavam os muros escolares, a partir das experiências dos/as estudantes.

A escolha das obras para fazer parte da Mostra Literária do Colégio Estadual de Bandiaçu ocorreu após as discussões sobre questões étnico-raciais na retomada dos estudos na universidade. Naquele momento, realizamos o primeiro levantamento sobre o perfil dos estudantes/egressos da escola que haviam sido assassinados e identificamos que eram quase todos meninos, negros e enquadrados na condição de distorção idade-série causada por algumas reprovações, saídas e retornos para a escola. No ano de 2018, a escola tinha perdido dois alunos e uma aluna brutalmente assassinados/a e lidávamos com a sensação de impotência frente às questões do racismo estrutural que ultrapassavam a escola, ao mesmo tempo em que estava arraigada nela. Questionávamo-nos qual era o nosso papel como professoras frente àquela situação. Qual o nosso compromisso com os estudantes vivos, cujo perfil é semelhante àqueles que foram assassinados? Não se tratava de uma postura salvacionista, mas, sim, do questionamento em relação ao papel da escola e dos/as profissionais de educação. Diante de tal cenário, a produção de uma Mostra de Literatura povoada por escrevivências de autores/as negros/as podia apontar para uma direção distinta daquela em que corpos negros eram reduzidos à criminalização, violência e restrição de direitos, sem negar que tais questões atravessavam as vivências de muitos estudantes da instituição.

Na Jornada Pedagógica de 2019, frente ao interesse de algumas professoras em retomar o projeto de leitura, foi lançada a proposição da “Mostra de Literatura: Escrevivências Afro-Brasileiras contemporâneas”6. A proposta foi recebida com estranhamento, especialmente por tirar da centralidade os textos de autores clássicos, predominantemente brancos. Na conversa com a comunidade escolar, foram apresentados os dados sobre o perfil estudantil do colégio, negros em maioria e que não tiveram a oportunidade de acessar a produção literária de escritores/as contemporâneos/as, cujas temáticas, abordagem e estética dialogam com o cotidiano dos/as estudantes. A proposição foi aceita, com algumas resistências pontuais.

Por conta da construção da Mostra, algumas professoras leram pela primeira vez autores/as como Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Elisa Lucinda, Lázaro Ramos e Cuti. No momento das discussões, alguém lembrou da repercussão da fala da professora Diva Guimarães, que emocionou o ator Lázaro Ramos na Feira Literária de Paraty de 2018, ao contar sobre os atravessamentos do racismo em sua história de vida (SINDERSKI, 2018). Ao longo daquele ano letivo, as conversas sobre o universo das personagens e das trajetórias dos/as escritores/as extrapolavam os momentos de planejamento e movimentaram o cotidiano das professoras dentro e fora da escola. Em uma das conversas na sala dos professores, ouvimos o relato emocionado da docente que viajou para Salvador com o intuito de assistir ao espetáculo “O topo da montanha”, montagem com os atores Lázaro Ramos e Taís Araújo. A motivação para a viagem foi a leitura do livro Minha Pele, em que o ator baiano apresenta a sua biografia, um dos textos lidos pela comunidade escolar para a realização da Mostra de Literatura.

Entre as dificuldades apontadas para a execução da proposta estava o acesso aos livros. Poucas publicações de autores/as negros/as contemporâneos/as faziam parte do acervo da biblioteca da escola e a atuação da coordenadora pedagógica na organização de cópias dos livros e arquivos em PDF foi fundamental para o desenvolvimento das atividades. A coordenadora também teve um papel fundamental junto aos/às alunos/as, fazendo o trabalho de sedução nas turmas em que as professoras não estavam muito convencidas sobre a relevância da temática. Nesses casos, os/as estudantes foram envolvidos/as primeiro e contagiaram as docentes. Além disso, foi construída uma parceria com alguns/mas escritores/as do município, levando-os para participar ativamente da Mostra.

Os estudos na comunidade escolar envolveram a biografia dos/as escritores/as, suas fotografias e produções literárias. Como a Mostra aconteceu no mês de agosto, as atividades pedagógicas de três unidades do ano letivo foram articuladas às discussões suscitadas pelos livros. Cada turma ficou responsável por um livro e tinha um/a docente como orientador/a dos estudos. Os textos transformaram-se em peças de teatro, performances gravadas com o celular e coreografias que foram encenadas para a comunidade escolar. O professor de História acionou a produção literária para tratar de desigualdades sociais, questões de moradia e de racismo. Nas aulas de Educação Física, os/as estudantes foram desafiados/as a produzir livros infantis com protagonistas negros/as e os materiais impressos foram lidos para crianças da Escola Municipal Arlindo José de Lima, localizada no mesmo distrito.

Os textos literários guiaram as experiências em toda a Mostra, tanto nas leituras como nas produções escritas dos/das estudantes. Quando o professor de Educação Física propôs que os/as estudantes escrevessem livros infantis com personagens negros/as como protagonistas, ele se contrapôs à construção de personagens negros/as esterotipados/as e subalternizados/as e propôs outros lugares para o corpo negro na literatura. Para Heloisa Pires Lima (2005), a literatura infantojuvenil pode acionar ideias, conceitos e emoções, assim como tem a força de construção de enredos e os riscos de cristalizar as percepções sobre o mundo. Na pesquisa realizada, Lima destacou que, quando o negro aparecia nos livros, estava, geralmente, na condição de escravizado, fraco, subjulgado. A autora também analisou as ilustrações que chamam atenção por serem grotescas e exageradas. As histórias inventadas para a realização da Mostra de Literatura nos conduziram para outros lugares e incentivaram o exercício de autoria individual e coletiva.

A Mostra propiciou uma movimentação na escola que envolveu estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental ao 3º ano do Ensino Médio. A comunidade escolar atuou na produção de figurino, maquiagem, ensaios de coreografias e retomadas da leitura para a confecção dos “pentes d’África”, de Cidinha da Silva (2009). O espaço da escola foi assumido com a pulsão de vida, que envolveu conflitos de liderança, trocas de ideias, parcerias e disputas internas. Foi interessante observarmos que algumas turmas em que os/as estudantes não demonstravam tanto envolvimento com a escola apresentaram características bem diferentes durante a organização da Mostra. Jovens que eram aparentemente tímidas nas aulas apresentaram coreografias com desenvoltura no palco, enquanto meninos que aparentavam descompromisso com outras atividades na escola, assumiram, com grande responsabilidade, a tarefa de decorar as falas para as apresentações teatrais. Ocorreram, também, situações inesperadas, como a ausência de um dos protagonistas da peça teatral do 6º ano, conforme relatou a professora:

No dia da apresentação o aluno que faria o papel de Zumbi não pôde ir, porque o avô tinha falecido. Aí eu me desesperei. E agora? Quem vai fazer o Zumbi? Como vai fazer sem ensaiar? Então, um danadinho do sexto ano B – desses meninos danados mesmo, que não gostam de ficar sentados, que não fazem as atividades, que perturbam um, perturbam outro – esse menino se dispôs! -‘Pró, se quiser eu faço!’ Assim, na hora, no dia! Eu disse: -‘Meu filho, você faz mesmo?” E ele: - “Faço!” Então, a gente se sentou, eu mostrei as falas, disse mais ou menos como seria, porque já estava quase na hora da apresentação... Pois não é que o menino fez! Esqueceu uma palavrinha aqui, outra ali, mas no final, ele fez direitinho. E outra, a minha relação com ele se estreitou mais depois disso, porque ele teve a oportunidade de apresentar outro lado. Normalmente, a gente via ele só como o danadinho, já que dar aula pra ele era um sapeco! [risos] Mas, nesse dia, ele me surpreendeu. (Relato da Professora Jeane Matos).

A dinâmica de leitura dos textos literários variou entre as turmas. Em algumas, bastou a recomendação da leitura, que era feita em casa; em outras, o texto foi lido coletivamente na escola; e, na construção dos textos teatrais, a leitura era retomada como motivação para os/as estudantes. O que empolgou toda a comunidade escolar foi observar o compromisso assumido pelos/as estudantes na construção das ações propostas, o que, por sua vez, estimulou o corpo docente do colégio, na produção de outras experiências curriculares.

Durante a Mostra Literária, foi possível percebermos as escrevivências pulsando a partir de várias linguagens. Após a leitura do livro Luana, Capoeira e Liberdade (MACEDO; FAUSTINO, 2007a), os/as estudantes recriaram o texto na linguagem musical e desenvolverem performances envolvendo capoeira e maculelê, entoando cantigas e rimas que aprenderam com os mais velhos. A linguagem da dança deu-se com coreografias apresentadas por um grupo de meninas negras, depois da leitura do livro Os nove pentes d’África (SILVA, 2009); já a linguagem teatral ficou por conta dos/das estudantes que leram o livro Luana e as sementes de Zumbi (MACEDO; FAUSTINO, 2007b) e Becos da Memória (EVARISTO, 2019). Enquanto isso, a linguagem audiovisual foi desenvolvida a partir de criações de vídeos curtos, nos quais os/as estudantes discutiram as desigualdades sociais no Brasil. Já as artes visuais foram exploradas na elaboração das ilustrações nos livros infantis, na confecção de pentes-garfo, nas oficinas de fotografias, assim como na confecção de cards e cartazes utilizados como peças de divulgação do evento.

A realização da Mostra produziu movimentos curriculares interessantes para estudantes e professores/as pelas oportunidades de diálogo e relações mediadas por uma produção colaborativa, em que “[…] negociações e/ou hibridismos feitos entre currículos e cultura pelos sujeitos praticantes, [evidenciaram], desse modo, a complexidade e a diferença que permeiam suas redes de conhecimentos” (FERRAÇO; NUNES, 2013, p. 101). Além disso, a culminância desse projeto possibilitou-nos enxergar novos mundos possíveis para os corpos negros que vivenciam o cotidiano escolar. As linguagens artísticas apontaram para lugares de enunciação, diferentes dos lugares que geralmente vemos nos noticiários e grupos de WhatsApp, o que nos encorajou a tratar dos afectos literários contruídos coletivamente no espaço escolar.

Afectos literários entre escola e universidade

As práticas curriculares no Colégio Estadual de Bandiaçu apontam para a movimentação de professoras e estudantes mobilizados/as pelas demandas que emergiram no cotidiano escolar e pelos afectos literários produzidos pelo acesso à literatura criada por escritores/as negros/as a partir de encontro entre escola e universidade. O envolvimento da comunidade na leitura e no uso dos textos literários, nas aulas e na organização de atividades culturais, indica a potencialidade do processo formativo possibilitado por textos, que, ao demarcarem corpos pretos como produtores de narrativas literárias, poéticas e musicais, foram problematizados a partir de questões que perpassam as vivências dos/as estudantes.

Ao convidar grupos de teatro do município como “Quaisquer Fulanos” para recitar poesias autorais no ambiente escolar, além de valorizar os grupos culturais, a comunidade escolar sinalizou para possibilidades de ser, que extrapolam projetos de vida voltados à inserção no mercado de trabalho ou a competências socioemocionais previamente estabelecidas. As ações mostraram que é possível organizar o pensamento na forma de rimas, ficcionalizar vivências, biografar pessoas que sustentam personagens na televisão, promover disputas em forma de slam e valorizar os traços do grafite. A relação dos/as estudantes com os escritores/as locais, jovens e negros/as como eles/as, gerou uma cumplicidade e aproximação com a produção escrita que, como docentes, ainda não tínhamos vivenciado no colégio.

No mesmo ano em que aconteceu a Mostra de Literatura naquele município, a Secretaria Estadual de Educação apresentou o “Documento Curricular Referencial da Bahia”, conhecido entre as professoras como “Currículo Bahia”. O documento “[…] tem como objetivo assegurar os princípios educacionais e os direitos de aprendizagem de todos os estudantes do território estadual” (BAHIA, 2019, p. 11). O referencial curricular “[…] tem como base as orientações normativas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ressignificada e complementada à luz das diversidades e das singularidades do território baiano” (BAHIA, 2019, p. 12).

Ao final da listagem de competências e de habilidades reproduzidas da BNCC, o Currículo Bahia propõe o “Projeto de Vida” como estratégia para abordar a transição do Ensino Fundamental para o Ensino Médio, com o intuito de “[…] refletirmos sobre a função social da escola e sobre a efetividade dela na construção dos projetos de vida dos estudantes” (BAHIA, 2019, p. 451). Ao mesmo tempo em que o Currículo Bahia se apoia em competências pré-estabelecidas pela BNCC, o cotidiano escolar no Colégio Estadual de Bandiaçu assumiu a imprevisibilidade da vida, que pode vibrar em meio a ensaios e a planejamentos para uma peça teatral, assim como silenciar pelo luto. Diante de um contexto que, por vezes, parece impor previamente os lugares que podem ser ocupados por jovens negros/as, moradores/as de uma comunidade rural, a escola é o espaço em que professoras são surpreendidas com o comentário de um menino que, ao ouvir sobre a trajetória de vida da Conceição Evaristo, afirmou: “Se com todas essas dificuldades ela conseguiu ser escritora, eu também posso ser!”. No cotidiano daquela unidade escolar, algumas segundas-feiras têm clima de ressaca, após o “paredão”7 ocorrido no domingo; em outros momentos, a avaliação só pode ser feita pela menina se a professora embalar o seu bebê. Em uma terça-feira, aparentemente comum, o dia da gestora da escola pode terminar no Conselho Tutelar, após uma denúncia de abuso sexual, pois a estudante só conseguiu contar para a professora. A narrativa sobre a Mostra de Literatura aponta para a inventividade do cotidiano da escola, uma movimentação assentada na preocupação das professoras com o incentivo à leitura, que não se limitou à decodificação das letras e escancarou as possibilidades de encantamento pela arte.

A oxigenação da escola pelos debates sobre questões raciais, de gênero e de sexualidade também gerou dissensos. A articulação do colégio com a universidade foi recebida com entusiasmo por algumas professoras e com distanciamento por outras, já que os marcadores ressaltados nos debates costumavam ser tratados pontualmente como temáticas. A movimentação provocada pela Mostra promoveu uma abertura “ao chamado da alteridade” (LEMOS; MACEDO, 2019, p. 57), em um contexto no qual o discurso sobre a qualidade da educação se associa ao cumprimento do currículo comum, na tentativa de fechamento de brechas para irrupção da diferença. Ainda assim, as águas de Mamãe Oxum que vieram à tona em meio à aula na universidade nos conduziram em leitos caudalosos, que permeiam tentativas de controle da imprevisibilidade cotidiana e que aspiram a construção de “projetos de vida”, ao passo que professoras e estudantes se articularam por entender que “não morrer, nem sempre, é viver”, apostando coletivamente que “[…] deve haver outros caminhos, saídas mais amenas” (EVARISTO, 2016, p. 108).

A experiência da Mostra de Literatura do Colégio Estadual de Bandiaçu foi gerada por questionamentos de professoras no cotidiano da Educação Básica, compartilhados na universidade e que desaguaram como pulsão de vida no colégio, e possibilitaram a construção de um entrelugar, o grupo de pesquisa “Currículo, Escrevivências e Diferença”, lotado no Departamento de Educação da Uneb. A iniciativa articula ações com escolas da Educação Básica naquela região e agrega estudantes da Graduação, Pós-Graduação, professoras da Educação Básica e alunas do Ensino Médio que combinaram de escreviver, a partir de atividades, pesquisas e intervenções comprometidas com as questões que emergem no cotidiano escolar, problematizadas em ações e formulações atentas à irrupção da diferença e registradas como escrevivências escolares.

Ao mesmo tempo em que gerou mobilizações no ambiente escolar, assunção da escrevivência como operador conceitual e metodológico para pesquisa em Educação, provocou rasuras nas formas de conduzir as investigações. A proposição da pesquisa com a escola, em um terceiro espaço entre a escola e a universidade, gerou preocupações que escapam aos procedimentos adotados nas pesquisas qualitativas. Os afectos da experiência questionam a neutralidade axiológica ao assumir a localização das falas, além de apontar para outros moldes do rigor na construção da pesquisa.

O termo cunhado por Conceição Evaristo para designar uma escrita de mulheres negras, uma escrita carregada de experiências de corpos femininos negros vividas no cotidiano, aglutina as palavras “escrever” e “viver”, e refere-se ao exercício de escrever se vendo. Nesse movimento, Conceição Evaristo rasura a imagem das mulheres negras silenciadas, que foram estereotipadas com a alegação de que não sabiam falar a língua do colonizador. No presente, a escritora apropriase da escrita sem deixar de lado o valor da oralidade e assim afirma: “[…] a nossa escrevivência não é para adormecer os da casa-grande, e sim acordá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2020, p. 31).

Ao valorizar a oralidade, a escrevivência amplia o leque de possibilidades de compartilhar experiências, pois é possível perceber/sentir as vozes cotidianas em que as mais velhas compartilham saberes e experiências com as mais novas. A oralidade sempre foi relegada a um lugar menor dentro da ciência moderna. O acesso ao texto literário que assume a potência da oralidade permite levar para a escola princípios como o da ancestralidade, que possibilita acesso às memórias e a outros estilos de escrita cujos reflexos no espelho oportunizam uma escrita que não oblitera a diferença (OLIVEIRA, 2017).

Inicialmente, a leitura de textos literários nas aulas da Pós-Graduação tinha o objetivo de possibilitar o acesso aos livros produzidos por escritores/as negros/as, bem como acionar a leveza da arte frente à tensão das estudantes que lidavam com os prazos e as exigências do Mestrado. Ao ouvirmos as histórias de Ana Davenga, Maria, Natalina e Cida, pretendíamos dissipar, em meio a discussões teóricas até então desconhecidas, o medo em relação às dificuldades da pesquisa. Propomos o mergulho nas narrativas dos contos, apostando no processo de identificação com as personagens. Entretanto, à medida que os impactos daquele encontro eram sentidos, percebemos que aquele “bloco de sensações” nos convocava para águas mais profundas. Ao longo da caminhada, observamos que a proposição construída em agenciamentos coletivos era a de acionar o conceito de escrevivência como referencial teórico, a partir do qual era possível repensar as formas de fazer pesquisa.

Ao assumirmos o conceito de escrevivência como operador teórico-metodológico, reivindicamos a autoria, em meio a debates acadêmicos enquadrados nas formas enrijecidas da ciência moderna. Buscamos a fluidez de uma escrita em que conseguimos nos ver. Interessamnos as vivências cotidianas, articuladas em palavras escritas que digam dos sentidos, dos cheiros, dos gostos, das imagens, dos afectos, das alegrias, das dores e das relações construídas na escola. Na escrita de textos impregnados de sensações, esperamos dizer do afecto produzido no encontro, que, como tal, borra expectativas, planejamentos prévios e roteiros, gerando agenciamentos coletivos, a partir dos quais não é possível estabelecermos as distinções presentes na pesquisa qualitativa entre pesquisadores/as e pesquisados/as.

A escrevivência, assumida como modo de fazer pesquisa em Educação, possibilita-nos questionar protagonismos e julgamentos na relação entre universidade e escola. Na experiência relatada, as provocações apresentadas na aula, a partir dos afectos gerados pelo texto literário, interpelaram a universidade sobre o seu papel diante do crescimento alarmente do número de jovens negros assassinados e colocaram em xeque a escola e suas práticas curriculares. Os questionamentos trouxeram-nos para a roda, a partir da qual foi possível pensarmos em responsabilidades e ações conjuntas com o intuito comum de valorização das narrativas negras: as de autores/as negros/as, as nossas e as dos/as nossos/as alunos/as. Isso nos permitiu pensar em uma concepção de formação em que coubessem narrativas individuais e coletivas atravessadas por marcadores raciais; as nossas escrevivências, miradas pelo espelho de Oxum. Os afectos literários produzidos pelo encontro narrado permitiram repensarmos os procedimentos metodológicos, entendendo que a pesquisa alicerçada em escrevivências não se limitam às discussões sobre a escrita de si, uma vez que assumem o movimento de desterritorialização e descentramento do “si”, fruto do encontro e do afecto produzido na relação.

Entretanto, as relações entre escola e universidade assumem a precariedade, não como algo a ser superado, mas como constitutivo. Esse enquadramento permite pensarmos essa relação para além do projeto salvacionista, cujos problemas da Educação Básica são atribuídos às falhas da universidade na formação inicial, em projetos de formação continuada ou na denúncia pela ausência/do fracasso de uma casa comum que integraria universidade/escola. Desloca-se, portanto, a ideia de que a formação de professores seria responsável pelas mazelas da educação brasileira, pelo reconhecimento da vulnerabilidade desse processo formativo, que não seria pautado em um ideal de professor, de universidade e de escola.

No âmbito da pesquisa em Educação, nosso intuito é escapar do enquadramento em que a escola aparece como o local para coleta de dados e que reivindica uma relação transparente com os seus relatos, com a pretensão de retratar a realidade das escolas. Ao justificar seus recortes e apresentar os entrevistados, o relato de pesquisa remete a um rigor metodológico, no qual a presença dos interlocutores pela voz justifica per si a investigação e a análise apresentada. Como a pesquisa apresenta um recorte da realidade, a partir das preocupações do pesquisador, é legítimo que esse exercício inclua recomendações que levem a resolver os problemas detectados. Essa tradição de pesquisa foi construída em uma “[…] epistemologia que acredita que a metodologia é simplesmente instrumental e divorciada da epistemologia e, por extensão, que o conhecedor é separado do conhecido (conhecedor / conhecido)” (ST. PIERRE, 2016, p. 257).

Propomos outras formas de fazer pesquisa em Educação, já que o olhar a partir das escrevivências não contempla formas de significar escola e atuação de professores recorrentes no campo, em que procedimentos metodológicos envolvem tratar fragmentos das histórias de vida e narrativas de prática docente como elementos coisificáveis, nomeados como dados. Nessa tradição, os dados são desvelados, identificados e sistematizados para a produção da análise, sugerindo uma hierarquia de detentores do saber, que se aproximam da escola para detectar os seus problemas e apresentar as soluções, mas, que, por vezes, desconsideram as táticas produzidas nas relações entre integrantes da comunidade escolar.

Propomos a valorização da experiência docente na pesquisa em Educação, o que não significa tomá-la como indicativo da realidade da escola. Entendemos que a experiência precisa ser posta sob rasura, “[…] confrontar a experiência como questionável, problemática e incompleta – e não como fundamento da verdade. Colocar experiência sob desconstrução é assumir a experiência não como fonte estável do conhecimento” (JACKSON; MAZZEI, 2008, p. 305). Nesse sentido, há um questionamento das “[…] tradições significantes de presença, transparência, origens e autoridade” (JACKSON; MAZZEI, 2008, p. 304), elementos que marcam os estudos brasileiros na área da Educação. Assim sendo, entendemos que “[…] não são indivíduos que têm experiência, mas sujeitos que são constituídos através da experiência” (ST. PIERRE, 2008, p. 227). Tal entendimento redimensiona a relação entre formação e experiência, já que, “[…] em vez de ser o fundamento do nosso conhecimento, a experiência é uma ficção valorizada e reguladora e uma ‘base instável para a epistemologia’” (ST. PIERRE, 2008, p. 227). Portanto, é nesse sentido que compreendemos a escrevivência, como experiência rasurada, que apresenta, em seu bojo, a “ficção valorizada”, que, em vez de nos levar à “realidade da escola”, nos permite habitar o terceiro espaço, habitado com o outro e, em vista disso, vivido na alteridade.

Assim, tomar escrevivências curriculares que acionam a literatura na escola para tratar de questões étnico-raciais promoveu afectos literários que alteraram nossa forma de fazer a pesquisa acadêmica. Nessa proposição de pesquisa implicada, ao assumirmos o conceito de escrevivências, escapamos da individualidade da escrita de si para apostar em agenciamentos coletivos, produzidos nos encontros entre universidade e escola. Tratarmos a experiência na contingência de suas significações envolve assumirmos a pesquisa fora de “clausuras metodológicas”, em um trabalho “[…] experimental arriscado, criativo, surpreendente e notável” que “[…] não pode ser medido, previsto, controlado, sistematizado, formalizado, descrito em um livro de texto, ou convocada por metodologia metodológica pré-existente, aprovada processos, métodos e práticas” (ST. PIERRE, 2017, p. 2). Esse não-caminho questiona a forma de produzir e de analisar os dados na pesquisa qualitativa, que atribui um lugar de centralidade da voz na construção do “romance realista”, tendo em vista a predominância da observação-participante e das entrevistas, como instrumentos de pesquisa (ST. PIERRE, 2008, 2013).

Nesse movimento de pesquisa, entendemos que o debate pós-estrutural requer procedimentos metodológicos que escapem das etapas de identificação, de sistematização e de análise de dados, especialmente quando o intuito é produzir narrativas que valorizem encontros, agenciamentos coletivos e escrevivências. Ao operarmos a partir de outra chave epistêmica, defendemos que é possível construirmos estratégias de pesquisa, sem o aprisionamento dos afectos em dados, desviando para o registro de narrativas, como escrevivências.

Os encontros entre professores/as e estudantes da universidade e da escola atravessados pela produção literária de escritores/as negros/as, principalmente de Conceição Evaristo, produziram o que Deleuze e Guattari (2010) chamam de “composto de perceptos e afectos”, que nos impulsionaram a escrever, nos vendo. Esse bloco de sensações não pode ser conservado no formato de dados, portanto os nossos relatos sobre os movimentos de pesquisa buscam assumir a “contingência do retrato” e o transbordamento do vivido (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Assim, as inquietações produzidas são lidas como agenciamentos coletivos, e, como tais, sem protagonismos. Por conseguinte, só é possível narrarmos a movimentação de pesquisa a partir de suas implicações, contaminadas por lágrimas, cheiros e sons da escola.

Os impactos provocados pelo encontro têm sido narrados como fabulações coletivas, que misturam narrativas de “Pedro da oitava B”, com as vozes de Maria-Nova, personagem do livro Becos da Memória (EVARISTO, 2019). Dessa forma, a ficção conduz-nos a reconhecer o atravessamento de marcadores raciais na escola, bem como o luto que não é explicado estatisticamente e, ainda assim, pode ser compartilhado como o peso de responsabilidades entre escola e universidade. Tecer fabulações envolve o exercício de composição sinfônica entre teoria e cotidiano escolar, sem escapar das interpelações do olhar de tristeza e do contágio pelo sorriso, daquele jovem que subiu ao palco pela primeira vez e sua atuação aconteceu na escola!

Nessa perspectiva de pesquisa, o rigor que interessa envolve a abertura para ouvir o outro, como outro, sem decalques e planejamentos prévios, abrindo possibilidades para o “sendo”, em vez do fechamento das definições do “é”. Um movimento que envolve a entrega ao diálogo, o reconhecimento da importância da conversa solta, cuja conexão não pode ser registrada pelo gravador de voz. Trata-se, desse modo, da pesquisa sobre os acontecimentos gerados pelo encontro e seus desdobramentos, que não podem ser previstos. Encontros que produzem afectos, que, por sua vez, mobilizam formas de caminhar juntos/as.

O “entre” aqui colocado em um terceiro espaço, no meio do caminho e ligando universidade e escola, produziu mudanças de rota na forma de fazermos pesquisa e de percebermos a escola a partir da universidade bem como nas práticas curriculares do colégio. As articulações produzidas pela caminhada apresentaram a potência do fazer “com” e, desse lugar, não cabem apontamentos sobre possíveis faltas, que dizem sobre idealizações da escola. Na pesquisa, abandonamos as pretensões de retratar fragmentos da realidade para formular proposições individuais e apostamos na produção de narrativas, sem a pretensão de relatar a si mesmo e acionando o espelho em meio aos agenciamentos coletivos.

“Insubmissas lágrimas de mulheres”8

O racismo estrutural na forma em que se configura no Brasil tem possibilitado que os indíces alarmantes de jovens negros assassinados sejam divulgados anualmente sem elaboração de políticas públicas que visem a combatê-los. Mais recentemente, também tem crescido o número de crianças negras alvejadas em operações policiais em bairros periféricos. Situações que eram associadas apenas a grandes centros urbanos são identificadas em cidades de pequeno e médio porte, na zona urbana e rural. O crescimento da violência e a sua ligação intríseca às desigualdades raciais, no Brasil, foram associados, ao longo do texto, às dificuldades de permanência na escola, expressas nos indíces de distorção idade-série.

O diálogo com profissionais da Educação Básica tem permitido percebermos o impacto do genocídio e o encarceramento da juventude negra nas escolas. A partir do espelho erguido com as histórias de Ana Davenga e tantas outras mulheres que povoam os livros de Conceição Evaristo, jorram lágrimas daquelas que viram espelhadas na narrativa literária as histórias de vida de estudantes e de egressos/as do Colégio Estadual de Bandiaçu. O impacto produzido pelo acesso à produção literária de autores/as negros/as na vida adulta mobilizou as docentes a organizarem juntamente à toda a comunidade escolar a Mostra de Literatura. O evento construído ao longo do ano letivo mobilizou práticas curriculares, estimulou a leitura na escola, além de abrir espaço para a recriação das narrativas em diversas linguagens artistícas. Os afectos da Mostra de Literatura bagunçaram as convicções de docentes, que questionaram a ausência de textos canônicos até o momento em que foram surpreendidos/as pelo envolvimento do corpo estudantil.

No caminho entre a escola e a universidade, as escrevivências provocaram questionamentos sobre as formas de fazer pesquisa em educação, encorajando o grupo de pesquisadoras a atentar para as sensações, estimulando a construção de fabulações nas quais as narrativas coletivas põem em xeque escritas de si, a partir do espelho de Oxum, na medida em que a escrita também se depara frente ao abebé de Iemanjá, que conclama o espelhamento coletivo. O exercício de escrever se vendo provocou mudanças nas relações entre profissionais da educação das duas instituições, que, partindo do afecto, se envolveram em agenciamentos coletivos. Com o amadurecimento da pesquisa, ficou evidente a impossibilidade de aprisionar o vivido em dados, por isso assumimos, ao longo do texto, a escrita a partir do “composto de sensações” resultante do encontro.

Defendemos que as narrativas literárias acessadas pelos/as jovens no Colégio Estadual de Bandiaçu produziram afectos que não se limitam à inserção de temáticas abordadas pela literatura afro-brasileira. Ao passo que viam os/as seus/suas alunos/as entre os/as personagens dos textos lidos, as professoras propuseram a ocupação de outros espaços pelos corpos negros, movimento percebido por estudantes e ressiginificado em suas produções artísticas provocadas pelo acesso aos livros. Na universidade, a interpelação mobilizada pelo luto coletivo na escola e pelos afectos provocados pelo texto de Conceição Evaristo nos permitiram olhar para a unidade escolar com o intuito de estimular a produção de escrevivências, como um reconhecimento dos movimentos de encontro possibilitados na e pela escola.

As desestabilizações produzidas no encontro colocaram em questionamento os pressupostos de orientações curriculares que se pretendem nacional, estadual e comum, como a BNCC, na medida em que levar a sério o que acontece na escola significa questionar competências, habilidades e projetos de vida estalecidos previamente pelos atravessamentos de pulsão de vida, como os ocorridos na experiência da Mostra de Literatura, relatada tragicamente pelas notícias de assassinatos e pelos lutos coletivos gerados no espaço escolar. Como nos ensina a artista e escritora Jota Mombaça no livro Não vão nos matar agora, referindo-se ao “combinamos de não morrer”, proposto no conto de Conceição Evaristo, “[…] precisávamos também que eles tivessem combinado de não nos matar” (MOMBAÇA, 2021, p. 29). Até que isso ocorra, seguimos com os vivos escrevivendo motivos para seguir apostando na escola, em meio às tentativas de prescrição e de policiamento institucionais.

No meio acadêmico, a defesa radical da escola tem envolvido as posturas de enfretamento às normativas curriculares empreendidas pelas associações de pesquisadores bem como o reconhecimento das práticas escolares em sua dimensão de invenção e de produção curricular. Para tanto, a proposição de outros operadores teórico-metolodólogicos assume importância fundamental, no intuito de construir modos de fazer “com”, que implicam abandono de pretensões de mimetização da realidade, que assumem as fabulações no terceiro tempo entre universidade e escola. Nesse sentido, apostamos na potência da escrevivência, guiadas pela caneta de Conceição Evaristo, pelos questionamentos contruídos com a comunidade escolar e pelos abebés de Oxum e Iemanjá.

*O artigo atendeu a procedimentos éticos, apresentados no projeto submetido ao Comitê de Ética da Universidade do Estado da Bahia. Número do CAE: 44196715.1.0000.0057.

1A Universidade do Estado da Bahia é uma instituição multicampi. A pesquisa foi realizada no campus XIV, localizado em Conceição do Coité.

2Ao longo do texto, mobilizaremos o conceito de “escrevivência”, na acepção dada pela escritora Conceição Evaristo, propondo a sua utilização nas pesquisas da área de Educação. Considerando essa explicitação, seguiremos utilizando o termo, no texto, sem o uso de aspas.

3Nome do conto que integra a coletânea homônima de Conceição Evaristo e foi lido coletivamente nas aulas do Mestrado e que inspirou a experiências que serão relatadas neste texto. O livro Olhos d’água é um dos mais conhecidos da autora e foi vencedor do Prêmio Jabuti, na categoria contos e crônicas, em 2015.

4Ao longo do texto, vamos nos referir sempre a “professoras”, considerando a predominância de mulheres na turma do Mestrado e na comunidade escolar.

5Conferência de Abertura com Conceição Evaristo, intitulada “Negras Escrevivências”, realizada no dia 9 de novembro de 2020. Evento organizado pela Associação de Pesquisadores e Pesquisadoras Negros/as (ABPN). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=biBn732cI5E&t=3s. Acesso em: 20 nov. 2021.

6Professores/as envolvidos/as na construção da Mostra: Antonio Nery Guimarães Neto, Danilo José Ramos de Oliveira, Elza Pereira da Silva, Jeane Matos Araújo Lima, Lindaci Souza Miranda, Luceni Marlene dos Santos Simões, Luzimere das Mercês Freitas, Márcia Mota Simões Borges, Maria José da Silva, Nayane de Oliveira Lima, Sandra Maria Ferreira de Souza. Coordenação Pedagógica: Karyne Santiago de Oliveira. Equipe gestora: Clenilda da Silva Carneiro e Valdemara S. de Oliveira Costa.

7Paredão ou Paredão de som é um aglomerado de caixas de som acoplados na traseira de carros. O equipamento costuma ser utilizado em festas nos finais de semana, voltadas a um público jovem que dança, conversa e interage, geralmente consumindo bebidas alcoólicas.

8O título faz referência ao livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo.

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Recebido: 12 de Julho de 2021; Revisado: 02 de Dezembro de 2021; Aceito: 03 de Dezembro de 2021; Publicado: 09 de Dezembro de 2021

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