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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 23-Fev-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19478.011 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, epaços e tempos

Memórias ancestrais e filosofias africanas forjando caminhos para uma educação afrorreferenciada

Ancestral memories and African philosophies forging paths to an Afro-referenced education

Memorias ancestrales y filosofías africanas forjando caminos havia uma educación afro-referenciada

Adilbênia Freire Machado** 
http://orcid.org/0000-0003-3226-2139

Lorena Silva Oliveira*** 
http://orcid.org/0000-0001-6411-8962

**Coordenadora do Eixo Filosofia Africana e Afro-Diaspórica da Associação Brasileira de Pesquisadores Negr@s (ABPN). Doutora em Educação (UFC); Mestra em Educação (UFBA). E-mail: <adilmachado@yahoo.com.br>

***Doutoranda em Filosofia – PPGF/UFRJ. Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB/UFU. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). E-mail: <professoralorenaoliveira@gmail.com>


Resumo:

Este ensaio é mais que tudo um convite, uma mensagem que parte de nossos chãos de pertencimentos, de nossas experiências na busca de aprendermos a ler o mundo para além do que as peles de papel (livros) nos dizem. Forjando outros modos de aprender / ensinar, de construir uma educação afrorreferenciada mediada pelas filosofias africanas que são tecidas por tradições, valores e culturas preservadas e transmitidas por memórias ancestrais bordadas em nossos corpos, em práticas cotidianas de solidariedade, de cuidado, de respeito à natureza, as nossas sensibilidades, à ancestralidade. É convite à escuta sensível, ao aprender ouvindo as pessoas anciãs que nos apresentam ferramentas outras para construção de uma educação para as relações étnico-raciais harmônica, plural e integradora.

Palavras-chave: Senioridade; Metodologias Afrorreferenciadas; Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER)

Abstract:

This essay is more than anything an invitation, a message that comes from our grounds of belonging, from our experiences in the search to learn to read the world beyond what the paper skins (books) tell us. Forging other ways of learning / teaching, of building an Afro-referenced education mediated by African philosophies that are woven by traditions, values and cultures preserved and transmitted by ancestral memories embroidered on our bodies, in daily practices of solidarity, care, respect for nature, our sensibilities, to ancestry. It is an invitation to sensitive listening, to learn by listening to elderly people who present us with other tools for building an education for harmonic, plural and integrative ethnic racial relations.

Keywords: Seniority; Afro-referenced methodologies; Education for Ethnic-Racial Relations (ERER)

Resumen:

Este ensayo es más que nada una invitación, un mensaje que viene de nuestro terreno de pertenencia, de nuestras vivencias en la búsqueda de aprender a leer el mundo más allá de lo que nos dicen las pieles de papel (libros). Forjar otras formas de aprender / enseñar, de construir una educación afroreferenciada mediada por filosofías africanas que se tejen con tradiciones, valores y culturas preservadas y transmitidas por memorias ancestrales bordadas en nuestros cuerpos, en prácticas cotidianas de solidaridad, cuidado, respeto por la naturaleza, nuestras sensibilidades, a la pertenencia. Es una invitación a la escucha sensible, a aprender escuchando a las personas mayores que nos presentan otras herramientas para construir una educación para las relaciones étnicas raciales armónicas, plurales e integradoras.

Palabras clave: Antigüedad; Metodologías Afro-referenciadas; Educación para las Relaciones Étnico-Raciales (ERER)

Abrindo porteiras

A vida é um mistério. Viver é um constante mistério e cada um[a] tem que descobrir o seu mistério do seu viver. Quando você começa a pensar nisso já é alguma coisa...

Makota Valdina Pinto

Sabemos que um dos grandes propósitos da Lei 10.639 / 2003, assim como das Relações Étnico-Raciais, é o fortalecimento do nosso pertencimento, mostrando e potencializando nossas histórias, nossas origens, libertando-nos, emancipando-nos para que possamos afirmar e viver com orgulho nosso pertencimento, nosso chão, nosso ser / estar no mundo afrorreferenciado.

A educação brasileira, em suas diferentes vertentes, com currículos e metodologias eurocentradas, individualistas e excludentes, não nos ensina quem realmente somos, quais as histórias de reinados, lutas, resistências, re-existências dos povos africanos, afrodescendentes e originários; não nos ensina a sonhar, a aprender sentindo, ouvindo, lendo o mundo. Desconsidera as diversas possibilidades de letramento/aprendizagens existentes em nossa sociedade, que diferem do modelo eurocentrado, disciplinador e regulador de corpos e mentes.

Por sua vez, tem nos ensinado uma história única em que o ocidente se coloca como universal, modelo de humanidade, único capaz de conhecer, ensinar, forjar conhecimentos, nos colocando como incapazes e até não humanos, posto que o que “nos” faz humano é a capacidade de racionalizar. Todavia, essa razão apresenta a nós, pela perspectiva brancocêntrica, nos ensina a negarmos quem somos, nossas raízes, nossas origens, nossa ancestralidade.

Logo, cabe refletirmos sempre: que razão é essa que nega a humanidade e agencia política, intelectual, econômica, etc., de grande parte da população brasileira? Que educação é essa que nos ensina a ler linhas que nos negam, que não são escritas por nós, que roubam nossos legados e hierarquiza pessoas, saberes, culturas?

A Lei 10.639/03 e a 11.645/08 vêm nos recordar que é hora de aprendermos a escrever em papel o que nossa ancestralidade indígena e africana vem nos ensinando: ler o mundo que parte dentro de nós, pois somos seres ancestrais tecidos na e pela terra... Alimentar nossas memórias ancestrais, pois, como denuncia Ailton Krenak: “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dança, de cantar” (2019, p. 26).

Portanto, acordar, alimentar, ouvir / sentir / viver nossa ancestralidade, nossa memória, é alimentar “o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar”, de criar, de plantar, de colher, de fazer chover, de fazer sol, de desejar, de amar, de sermos inteiras, de ressignificar e transformar nossa educação, descolonizar, ou melhor, como nos ensina Antônio Bispo, contra colonizar (BISPO, 2019). Pois a humanidade atual, marcada pelo capitalismo, pelo consumismo, nos ensina a não tolerar a potencialização da vida, pregam o “fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos” (KRENAK, 2019, p. 27). Precisamos sonhar, acreditar, fazer acontecer.

Reconhecer nossa humanidade, nossa agência e nosso pertencimento negro é ato político, de afirmação e potencialização da vida, essa que só é possível em relação com as pessoas, a natureza, o mundo visível e o mundo invisível, uma relação implicada, respeitosa, enraizada. Esse reconhecimento não se dá de modo impensado, pois é tecido pela filosofia do encantamento, que é uma atitude da / para a vida: implicação ética, estética, política, social, cultural, educacional, amorosa... Pois,

...a descolonização como um processo político é sempre uma luta para nos definir internamente, e que vai além do ato de resistência à dominação, estamos sempre no processo de recordar o passado, mesmo enquanto criamos novas formas de imaginar e construir o futuro. (hooks, 2019, p. 37).

Consciência racial! Estética do Bem viver! Engajamento! Educação para outras relações étnico-raciais, educar o olhar, os sentidos, educar para a sensibilidade do chão, do tempo, do vento, das águas, do fogo, do corpo... Portanto, definimos nossa existência pelo comunitarismo e pela justiça social, o bem viver, em uma relação ancestral de enraizamento, pois

a terra, a água, a natureza são manifestações de princípios ancestrais construtores dos seres humanos. A terra é mãe, é mulher, é generosa, é sedutora. A terra se enfeita e se aquece, se oferece para receber a chuva, sêmen que molha e deixa exalar um cheiro de vida. A terra é viva e abre suas entranhas para receber novas sementes, novas folhas, novos frutos. A terra é próspera. A terra é sagrada. Cada pedaço de terra, por menor que seja, por certo é uma síntese do mundo, uma referência de vida, assim como a água. (MACHADO, 2013, p. 78, grifos nossos).

Aprender com o passado, fortalecer o presente e possibilitar outros futuros é a teia da educação para as relações étnico-raciais desde / com o pensamento afrorreferenciado, ou seja, pensamentos oriundos das cosmopercepções africanas, tecidas pelo conhecer / aprender / sentir / ensinar por meio de vivências e experiências de corpos forjadores de conhecimento, portanto, implicam-se em pensamentos / conhecimentos / saberes oriundos de nossas raízes, de nossas tradições, de nossos chãos, de nossos corações, da nossa ancestralidade encantada (MACHADO, 2021). Nesse sentido, compreendemos que as leis supracitadas e o ensino para as relações étnicoraciais estão implicadas em provocar mudanças, possibilitar outros futuros, desde o reconhecimento de nossas origens e o encantamento por elas. O encantamento por nossa ancestralidade africana (e originária) nos leva a seguirmos em uma luta engajada pelo direito à própria vida, à existência em sua totalidade, ao bem viver.

Desse modo, é necessário não perdermos de vista a construção da consciência política, social, cultural e de pertencimento para a construção de sociedades democráticas, com equidade, onde o bem viver marque nossas existências, permitindo viver plenamente nossa cidadania e assim o respeito às diferenças aparecem como primordial. Portanto, compreendemos que as descolonizações perpassam a escuta sensível, a percepção do todo, o cuidado a cada segundo com o que o colonizador (e o patriarcado construído por eles) e o racismo entranham em nosso modo de ser e estar no mundo.

Assim, reconhecer nosso pertencimento negro africano fortalece, potencializa e multiplica os sentidos de pertencimento de cada pessoa, atingindo outras pessoas. Por isso, é fundante existirmos em nossas pesquisas, falarmos desde nós mesmas, desde nossas experiências, fragilidades, dúvidas, curiosidades, lutas, conquistas, medos... pois o racismo, a colonialidade afeta profundamente nossas subjetividades, negando-as, silenciando-as. A afirmação de si é afirmação de todas as nossas ancestrais... de quem já veio, de quem aqui está e de quem virá. Afinal, nossos passos vêm de longe e

Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravas dentro de nós. (KOPENAWA, 2015, p. 75).

Desse modo, temos responsabilidade em contribuir para os processos de descolonização e afirmação desses passos / memórias ancestrais que ficam gravadas dentro de nós. Como nos ensina bell hooks:

para encarar essas feridas, para curá-las, as pessoas negras progressistas e nossos aliados nessa luta devem estar comprometidos em realizar os esforços de intervir criticamente no mundo das imagens e transformá-lo, conferindo uma posição de destaque em nossos movimentos políticos de libertação e autodefinição. [...] a questão da raça e da representação não se restringe apenas a criticar o status quo. É também uma questão de transformar as imagens, criar alternativas, questionar quais tipos de imagens subverter, apresentar alternativas críticas e transformar nossas visões de mundo e nos afastar de pensamentos dualista acerca do bom e do mau. (2019, pp. 36-37).

Portanto, é fundante trabalharmos metodologias, currículos, referenciais afros para que possamos despertar ancestralidades adormecidas, encantamentos silenciados, calados. Nossos textos, que não se resumem aos escritos, estão impregnados de vida, de axé, de luta, por isso nossas teorias gritam, choram, dançam, flertam, seduzem, cantam, encantam, encantam-se... Somos de corpo inteiro, nossos corpos falam, nossos textos são escritas de nossos corpos.

É fundamental unirmos nossas forças para nos curarmos, potencializarmos cada vez mais nossos modos de ser e estar no mundo. Nos encantarmos! Assim, com algum atrevimento, essas filósofas educadoras do sertão cearense e mineiro buscam forjar teias para potencializar o ser-tão de cada pessoa que “com nós prosear”, afinal o ser-tão é dentro da gente e a educação para as relações étnico-raciais é convite, ação para o bem viver dentro da gente, no centro da terra (MACHADO, 2020).

Saber apresentar outros mundos possíveis: ler / ouvir / sentir a terra

Desacelere o passo, vai encontrar muita boniteza nessa vida, a Terra é como uma mãe, ela nos acolhe sempre.

Aidil Araújo Lima

Certa vez, em uma aula sobre práticas pedagógicas, aprendemos que ser docente é saber apresentar o mundo. Essa frase marcou muito e até hoje promove reflexões quando nos deparamos com questões do tipo: como podemos contribuir socialmente sendo pesquisadoras e docentes de filosofias africanas, afrorreferenciadas e educação para as relações étnico-raciais?

Quando questões como essa surgem em nossos pensamentos, recordamo-nos sempre desta frase: apresentando o mundo para as pessoas. E nos alegramos ao perceber que podemos escolher outros modelos de mundo, que podemos viver/construir além do que está posto, pois o que está aí foi construído, forjado por pessoas com necessidades e interesses específicos, que ora sabemos, não são interesses que beneficiam a todos os membros desse corpo social e pluriversal em que vivemos. E se o que está posto foi construído nós sabemos que podemos construir outros mundos, pois não apenas outros mundos são possíveis, como eles existem.

Outras lógicas de ser/estar no mundo são mais que necessárias. Mas, ainda assim pensamos: temos a capacidade de demonstrar as ferramentas que foram utilizadas para que esse mundo e tudo que o compõem esteja como estão, fracassando, pois que são pautados na individualidade, no racionalismo, no capitalismo, no patriarcado, no sexismo, no machismo, no racismo, no genocídio, no epistemicídio, na necropolítica (LORENA, 2020). Nesse sentido, apresentar outras ferramentas para serem forjadas/utilizadas que já trazem e que trarão mais saúde para as nossas relações interpessoais, ambientais, espirituais e matérias é fundamental. Todavia, quais ferramentas são essas? Eis uma boa questão a ser refletida.

Nossos pensamentos, ao buscarem algumas possíveis respostas, nos recordam que sempre pensamos desde um lugar, do nosso chão de pertencimento, de onde estamos enraizadas. E do lugar que estamos enquanto pesquisadoras de filosofias e educação afrorreferenciadas e pluriversais, certamente escolheremos pensar a partir do que tem nos inspirado nas trilhas das linhas e entrelinhas das inúmeras leituras feitas diariamente. Vale relembrar que essas leituras ultrapassam as páginas de papel, como nos ensina a sagacidade de Dona Maria Toinha ao narrar sua história em A Mística dos Encantados (2020, p. 24), ela diz:

Olho para o meu rosto, com a ajuda das minhas mãos sinto as marcas que se escavaram com o tempo. Estas marcas são provas do que me aconteceu… são o registo do tempo na minha pele. Estas marcas contam as minhas estórias de um jeito melhor do que eu poderia dizer. Escute-as, antes de escrever. Elas dizem aquilo que minha voz não é capaz de falar. (SANTOS; SANTOS, 2020, p. 24).

As filosofias afrorreferenciadas nos orientam/relembram que a vida, as relações, a dinâmica da natureza com seus ciclos são livros abertos e escolas divinas para uma vida bem vivida e qualificada, tecida por memórias e saberes ancestrais, pelas marcas do tempo em nossos corpos. É preciso aprender a ler / escutar / sentir o mundo!

Logo, tendo como referências as filosofias escritas nas folhas de papel e as filosofias que estão nos livros da vida, entendemos que somente a observação, a escuta sensível e vivência/experiência atenciosa, respeitosa podem nos auxiliar a traduzir os saberes neles presentes. Assim, encontraremos aprendizados que podem ser utilizados para a construção/apresentação de outros mundos e, consequentemente, de uma educação pluriversal e integradora que faça sentido e traga vitalidade para todas as pessoas que estão abertas para ser apresentadas a outros mundos, interagir e contribuir com sua transformação.

Transforamar. Pois, transforamar é reconhecer e encantar-se por nossa ancestralidade, compreender que o amor tecido por ela é ato de resistências, de re-existências e implicações com a plenitude da vida, com as liberdades e emancipação, com as descolonizações dos sentidos, do conhecimento, pois esse amor ancestral é tecido pela escuta sensível, que, por sua vez é bordada pela escuta de corpo inteiro, com ouvidos dóceis, escrita, cuidado, construções das poéticas / políticas de encantamento, é prática ancestral!

A escuta sensível começa em nós, na escuta da nossa intimidade, da nossa ancestralidade, por isso é transformação crocheteada pelo transforamar, é comunitária, pois só existimos em comunidade, em relação... e em harmonia com a natureza, posto ser ela que nos permite a vida (MACHADO, 2020)! Makota Valdina Pinto nos ensina:

Ancestralidade pra mim é tudo o que veio antes de mim. Então, a natureza é a minha ancestralidade. [...] E a natureza não foi o [ser humano] que fez, o [ser humano] veio depois, veio depois que toda a natureza foi criada pra dar boa intenção de vida pro [ser humano]. Então, a minha ancestralidade é toda a natureza que foi criada pela primeira semente viva que iniciou esse mundo. [...] Minha ancestralidade é a natureza. (PINTO, 2017, fonte oral, grifos nossos).

A ancestralidade nos habita, nesse sentido, é preciso silenciarmos para que possamos ouvila e transforamar. Pois, transforamar também é compreender que “despertar para o amor só pode acontecer se nos desapegarmos da obsessão pelo poder e pela dominação. [...] Uma ética amorosa pressupõe que todos têm o direito de ser livres, de viver bem e plenamente” (hooks, 2020, p. 123).

Ética amorosa, ética do cuidado, natureza tecendo as poéticas de encantamento que são oriundas desses encontros / encruzilhamentos com a ancestralidade, são tecidas pela ética do bem viver, pela liberdade plena, pela busca e construção da emancipação inteira, de corpo inteiro! A ética do cuidado implica-se em busca e afirmação de nosso pertencimento, do comunitarismo que nos tece, de nossas origens e raízes, de nossa ancestralidade e nosso encantamento, é escuta sensível da nossa intimidade. Nos afastarmos de nossa intimidade (de quem somos, de onde viemos, da nossa comunidade, da nossa ancestralidade) nos torna pessoas inseguras, sem direção, sem sentido, sem enraizamento, sem compromisso com a vida.

Portanto, precisamos transformar, transforamar, compreendendo que “para trazer a ética amorosa para todas as dimensões de nossa vida, nossa sociedade precisaria abraçar a mudança” (Idem), transformação. Uma dessas transformações são as mudanças metodológicas e curriculares. Essas são implicações fundantes do ensino para as relações étnico-raciais! Afinal, mudarmos o modo como escolhemos apresentar o mundo, requer escolher outros caminhos. Andar, observar, encruzilhar-se com outras estradas.

Neste sentido, observando as vivências, os cotidianos, as relações que nos forjaram, e continuam forjando, percebemos o quanto nas comunidades afrodescendentes as pessoas mais velhas exercem uma autoridade sem a qual a organização social não faz sentido. Aprendemos desde criança a importância de tomar a benção das pessoas mais velhas da nossa família, assim como também devemos pedir a benção às pessoas mais velhas de outros grupos de parentesco, de outras comunidades, dos encruzilhamentos de nossas estradas, de nossos terreiros.

E a explicação sobre o porquê dessa atitude é simples, dizem nossos pais: por respeito, minhas filhas. RESPEITO. Respeito ancestral, respeito pelas sabedorias ancestrais que esses corpos carregam, respeito às suas resistências e re-existências... aos caminhos forjados para que possamos estar aqui.

As pessoas mais velhas devem ser respeitadas em nossas comunidades, elas são autoridades. E nem venha achando que essa categoria se assemelha ao autoritarismo. Não é sobre isso. As pessoas mais velhas são autoridades por serem aquelas que caminharam pelas linhas e entrelinhas dos livros da vida antes de nós e possuem conhecimentos das melhores ferramentas e caminhos possíveis para utilizarmos/percorrermos durante nossa caminhada rumo à apresentação de mundos e de como bem vivermos. Falamos de senioridade, esta que se apresenta como nos diz Aline Matos da Rocha em seu diálogo com Oyèrónké Oyěwùmí, como:

A (dis)posição das pessoas com base em suas idades cronológicas, porém relativas, pois se manifesta continuamente em relação com alguém, sendo um princípio situacional, dinâmico e fluído que nos possibilita pensar e conceber papeis sociais que não são diferenciados por gênero. A pessoa mais velha independentemente do seu sexo anatômico assume a posição de poder em/com relação à pessoa mais nova, cuja posição variará em função da faixa etária com quem se relaciona, já que não somos de forma permanente pessoas mais novas, considerando o aspecto fluído e transitório das relações etárias. (ROCHA, 2020, on-line).

À vista disso, considerarmos perspectivas ancestrais nesse processo de reflexão sobre ensino e aprendizagem das relações étnico-raciais é primordial vez que respeitamos as vidas que possibilitaram a nossa existência como também evidenciamos que o pensamento afrorreferenciado compreende que a senioridade não é um fardo social e sim uma lamparina que ilumina nosso caminho por ser o marco zero, a fonte onde devemos procurar a orientação necessária para aprendermos a bem viver. A fonte que nos orienta.

Portanto, refletir sobre práticas pedagógicas no que tange ao ensino das relações étnicoraciais diz respeito a refletirmos a necessidade de termos outras referências de orientação da vida. Enquanto eternas estudantes, pesquisadoras e professoras, precisamos compreender que as metodologias de ensino que as escolas de educação básica e universidades têm utilizado são (muitas vezes) adestradoras para o continuum de uma ideologia econômica, social e cultural que tem nos levado, apressadamente, para o poço do individualismo, do racionalismo, do materialismo, do desrespeito à natureza, às pessoas mais velhas e às tradições que contradizem os saberes e práticas do modo necropolítico capitalista, racista, sexista.

As metodologias brancocêntricas de ensino têm nos reportado, historicamente, para um verso da história. E esse único verso da história tem mantido à margem, buscando sufocar, outras formas possíveis de aprendermos a ler o mundo, o experimentarmos, interagirmos e criarmos novas possibilidades de vida e vivência além das propostas que são impostas.

Tanto que não sabemos como os povos africanos e indígenas, ciganos, quilombolas, ribeirinhos, asiáticos, dentre outros povos, concebem o mundo, as formas de organização política, social, ambiental, espiritual e educacional, pois a homogeneização ocidental brancocêntrica interdita essas concepções, privando-nos de termos acesso, com e através da educação, a outras possibilidades de perspectivas do e sobre o mundo e suas relações sociais, culturais.

Sendo assim, nosso intuito é refletir sobre a importância e necessidade de olharmos para o lado e vermos, ouvirmos, sentirmos e experimentarmos outras formas de nós, enquanto educadoras e educadores sociais, aprendermos a ler o mundo e consequentemente ensinarmos nossas/os estudantes que existem pluriversos de ferramentas / metodologias para esse feito. A saber, comunidades afrodescendentes e indígenas, por exemplo, historicamente utilizam formas comunitárias de ensino e aprendizagem, tendo os anciãos como os principais mestres nesse processo.

Vejamos como o comunitarismo e a senioridade podem orientar nossas reflexões nesse forjamento de ferramentas que combata projetos educacionais necropolíticos e contribua na apresentação de outras perspectivas de mundo que promova a equidade racial e o bem viver em comunhão com a natureza.

Comunidade e Ancestralidade forjando caminhos desde o nosso chão...

As filosofias africanas e afrodiaspóricas vêm demonstrado a falaciosidade que é a ideia de que o pensamento deva ser universal. O universalismo científico gerou e tem gerado conflitos em todos os âmbitos da sociedade ao impor um modelo específico a ser seguido por todas as sociedades. Portanto, não é nossa intenção que as reflexões abaixo sejam consideradas absolutas e universais. Nossa ideia é demarcar que pensamos desde, a partir de lugares e que esses lugares podem servir de referência.

Temos apostado na ideia de que o nosso chão de pertencimento, nossas raízes têm muito a nos dizer. Nossos territórios são livros abertos em que os detalhes que estão, sobretudo, nas entrelinhas têm tanto a nos ensinar, como a nos recordar. E nas observâncias e escutas sensíveis desses chãos percebemos o quanto as práticas culturais dos povos africanos que foram escravizados no Brasil, permanecem em nossas vidas e não temos dado a atenção necessária, pois nossas lentes estão tão carregadas das poeiras das histórias eurocentradas que não encontramos, muitas vezes, as referências necessárias para lermos as performances educativas que a cultura Bantu, por exemplo, tem nos ensinado e pode nos ensinar. Aqui, fazemos a opção de dialogar desde os saberes ancestrais de referências Bantu.

No nosso caso, tem sido o olhar, a escuta e vivência sensível que tem nos auxiliados a nos debruçarmos com mais atenção às histórias que a história não conta (MACHADO, 2019b), às vivências que a academia não faz questão de compreender, para entendermos o quanto as culturas africanas, como a cultura Bantu, permanecem vivas no chão brasileiro e tem contribuído com a educação como um todo, com apresentações outras do mundo para todas as pessoas, em todos os lugares.

Por exemplo, as pessoas mais velhas negras e indígenas de nossa terra não tiveram a oportunidade de se debruçarem em peles de papel, como nos diz Davi Kopenawa (2015), para aprenderem a ler o mundo, pois desde muito tempo já aprendemos, tecidas por essas ancestralidades, que o conhecimento não está localizado, apenas, em instituições, livros e metodologias únicas. Aprendemos que uma pessoa precisa ter sabedoria para ler o mundo, ser bem orientada e essas orientações ultrapassam os bancos escolares e as peles de papel. A natureza e a espiritualidade são uma das fontes acessadas para que o ensino e aprendizagem ocorram satisfatoriamente.

No entanto, cabe questionarmos: como nossas mais velhas forjaram as ferramentas necessárias para lerem e apresentarem outros mundos? É curioso refletirmos sobre isso, pois tal questionamento necessariamente nos remeterá à existência de metodologias de aprendizagem e ensino que estão para além do que o modelo eurocentrado escolar e acadêmico nos dita.

Notemos que segundo Catherine Fourshey, Rhonda Gonzales e Christine Said (2019) na obra África Bantu as formas pelas quais os povos Bantu compreendem como adequadas para o ato de educar diverge do modelo ocidental capitalista e consequentemente individualista e institucionalizado de ser. De acordo com as autoras:

Educar, falar, assimilar ideias e práticas, e desempenhar ações coletivamente conferia sabedoria e fortalecia o sendo de pertencimento. Os registros de etnografia comparada nas regiões Bantu apontam que, na história remota, a abordagem pedagógica comum envolvia a participação ativa dos alunos no processo de aprendizagem e os professores, por meio de atividades práticas, asseguravam o domínio do conteúdo. O ensino e a aprendizagem eram processos ativos. Histórias orais, contos, mitos, canções, charadas e provérbios narrados ao redor de fogueiras noturnas ou em outras situações informais e formais, funcionavam como formas comunitárias de educação. O público era chamado a participar em determinados momentos específicos. Os membros mais velhos da comunidade tinham a responsabilidade de corrigir ou questionar aspectos da história, das letras ou da tradição oral que eles considerassem que o interprete havia ignorado, esquecido ou narrado de forma incorreta (FOURSHEY; GONZALES; SAID, 2019, p. 153, grifos nossos).

Nesta passagem verificamos que as autoras demarcam a presença da coletividade/comunitarismo/senioridade no processo de ensino/aprendizagem entre os povos Bantu. Adiante, elas reiteram que educar para essa cultura, que constitui nossa brasilidade, incluía:

[...] tanto aprender com os anciãos de sua comunidade quanto dominar as habilidades necessárias para a sobrevivência. Eles ouviam os anciões narrando histórias, provérbios e mitos, e observavam e aprendiam com os interpretes das canções, músicas e danças executadas em espaços comunitários. (FOURSHEY; GONZALES; SAID, 2019, p. 154).

Ou seja, a comunidade, as pessoas anciãs e as artes são algumas ferramentas necessárias para que o processo de ensino/aprendizagem ocorresse/ocorra nessa cultura. As artes são tessituras de nossos corpos e é desde / com nossos corpos que aprendemos, a razão é delineada por nossas percepções e sensações, portanto, não se separa razão e emoção, pois que, “o ensinamento não tem hora marcada. Todo saber está imanente em tudo que está para ser desvelado. Insistimos que a escuta [sensível] é o caminho para aprender a tornar-se efetivamente um ser participante da comunidade”. (MACHADO, 2013, p. 119).

O que nos demonstra que não necessariamente precisamos estar em instituições específicas para aprendermos a lermos o mundo e nos relacionarmos harmonicamente com todos os seres que compõem a sociedade. Mas, que precisamos (nós e as diversas instituições de ensino) estar em e na comunidade para aprendermos como ler, interpretar, aprender e ensinar a viver em comunhão ancestral; esse é um dos centros importantes das filosofias africanas para forjarem educações afrorreferenciadas, enraizadas, comunitária, pois que “a comunidade e a pessoa são uma coisa só. Um rebuliço com um membro da comunidade e todos são afetados. Somos elos de uma mesma corrente. Galhos e Folhas de uma mesma árvore” (MACHADO, 2013, p. 60).

Educar pode ser compreendido como o ato de apresentar, mostrar, ensinar; de vermos que a instrução verbal, a oralidade, as contações de histórias, os provérbios, assim como as performances artísticas são ferramentas metodológicas fundamentais utilizadas no processo educacional dessas culturas e que os povos de língua Bantu escravizados e transportados na era do tráfico transatlântico trouxeram essa cosmovisão e prática para as Américas, pois,

As evidências linguísticas e etnográficas revelam que, para os antigos povos Bantu, a dança e a música não eram apenas expressões artísticas separadas. Em épocas mais recentes, muitos povos Bantu também combinavam o movimento corporal e as artes auditivas para expressar a herança cultural comum e para transmitir conhecimento por meio da performance. Os significados sobrepostos dessas raízes de palavras revelam que as performances musicais eram fundamentais para a educação desde as eras mais antigas da história Bantu. Há muito tempo os povos de língua Bantu empregam a música, a dança e o canto como componentes-chave na comunicação e na educação (FOURSHEY; GONZALES; SAID, 2019, p. 156).

E como vemos no Brasil, a arte tem sido um dos principais veículos que transporta a nossa história e conhecimento africano, pois a usurpação da história não foi capaz de apagar o que corpos em performance podem transmitir. Em nossos corpos estão grafados o nosso acordo, a nossa história ancestral que não é apenas de DOR. É conhecimento e potência de vida, vitalidade, criatividade e encantamento.

Em Perfomances da oralitura: corpo, lugar da memória, de Leda Martins, a autora reafirma o poder que corpos em performance exercem nas culturas negras. Segundo a autora:

Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo é, por excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado. Daí a importância de ressaltarmos nas tradições performáticas sua natureza meta-constitutiva, nas quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e modifica dinamicamente. O corpo, nessas tradições, não é, portanto, apenas a extensão de um saber reapresentado, e nem arquivo de uma cristalização estática. Ele é, sim, local de um saber em contínuo movimento de recriação formal, remissão e transformações perenes do corpus cultural. (MARTINS, 2003, p. 78).

Vejamos a congada que traz a história viva da cultura da África Central, que os livros brancocêntricos não fazem questão de nos contar. Nós, educadoras e educadores sociais, precisamos reeducarmos a nossa forma de compreender como podemos aprender e em quais locais podemos aprender. As práticas culturais, as histórias que essas performances artísticas nos contam podem ser grandes bibliotecas e fornecedoras dos elementos que necessitamos para o forjar de novas formas de vermos os mundos e apresentá-los. A saber,

no âmbito da performance dos Congados, por exemplo, em seu aparato-cantos, danças, figurinos, adereços, objetos cerimoniais, cenários, cortejos e festejos -, e em sua cosmovisão filosófica e religiosa, reorganizam-se os repertórios textuais históricos, sensoriais, orgânicos e conceituais da longínqua África, as partituras dos seus saberes e conhecimentos, o corpo alterno das identidades recriadas, as lembranças e as reminiscências, o corpus, enfim, da memória que cliva e atravessa os vazios e hiatos resultantes das diásporas. Os ritos cumprem, assim, uma função pedagógica paradigmática exemplar [...]. (MARTINS, 2003, p. 74).

Portanto, as performances dos corpos negros, suas filosofias e artes são condutores da aprendizagem e, por sua vez, é uma afronta para um modelo de educação capitalista, usurpadora e exploradora dos corpos, que não os reconhece como forjadores de conhecimento. Tanto que a potência educadora e vitalícia dos corpos negros tem sido amortecida pelo excesso de trabalho que traz a impossibilidade de sonhar, de dançar, de imaginar e criar outras realidades além da que está posta, pois para nós estar em contato é o que mais importa, pois é no encontro com as diferenças que aprendemos a lidar com elas, inclusive o diverso que há em cada uma de nós, é na troca que aprendemos a complementariedade, que conhecemos!

Ou seja, o diverso, o diferente, ensina. Conhecemos somente em contato com o desconhecido, portanto, as sabedorias ancestrais tecidas pela experiência, pela escuta sensível, por corpos inteiros, fortalecem nossas raízes para que possamos nos abrir para o desconhecido e ampliar nossos saberes, nos ensinando a sentir, perceber, escutar o que está fora sem jamais deixarmos de sentir, perceber, escutar o que está dentro de nós.

Nesse sentido, reivindicamos uma educação que nos forma para a sensibilidade, para esse encontro / encanto que nos impele a transformar-se e transformar, nos possibilitando reflexões críticas contínuas. A ancestralidade é desenhada, bordada, crocheteada, falada, escrita em nossos corpos, tendo-o como produtor de sentidos, de encantados, de conhecimento, pois nossos corpos são definidos pelo contexto social, cultural em que estão inseridos; assim, define-se pelo seu lugar, seu contexto, este é tecido pelas experiências, compreendemos, desde a matriz africana que “a inscrição do universo está no corpo [...].

Como solo sagrado, ele receberá os sinais daquilo que lhe possibilita a origem e o destino” (OLIVEIRA, 2007, p. 124). Nosso corpo é sagrado, a ancestralidade nos habita, nesse sentido, a educação tecida pelos aprendizados das leituras dos mundos nos permite entender e respeitar nossos corpos como sagrados, pois

...o corpo é equivalente à natureza e ao espírito. [...] O corpo é um texto aberto para a leitura de quem o vê. O escritor é a comunidade. Portanto, meu corpo não é meu, mas um texto coletivo. [...] será sempre cheio de sinais, símbolos e marcas. O corpo é um vestígio dos valores civilizatórios do grupo que nele escreve e nele se reconhece. (OLIVEIRA, 2007, p. 124).

É necessário aprendermos as leituras dos mundos, de nossos corpos, das práticas culturas que nos tecem. Precisamos prestar atenção nas observações, nas percepções e sensações que as pessoas mais velhas das comunidades têm a nos dizer, pois suas palavras são lâminas e lamparinas que devem nos orientar nesse processo de entendimento de quais elementos devemos utilizar nessa caminhada rumo ao forjar de novas ferramentas. Lembremos, elas sabem ler os mundos tecidos nos corpos e nas entrelinhas da natureza. Tem muito a nos ensinar. Para mais, como nos rememora Leda Martins:

A textualidade afro-brasileira e as performances da oralidade nos oferecem um amplo feixe de possibilidades de percepção, caligrafando a história e a memória dos afrodescendentes. Essa memória do conhecimento grafa-se, também, como aletria, nas pautas do papel e do corpo. Um saber que se borda pela fina lâmina da palavra ou delicado gesto. Littera e litura. Gravuras da letra, do corpo e da voz. (MARTINS, 2003, p. 80).

Nossos corpos são memórias ancestrais que perpassam e ultrapassam o tempo! As filosofias africanas são tecidas por tradições, por valores e culturas que são preservadas e transmitidas por essas memórias ancestrais bordadas em nossos corpos, nas práticas cotidianas de solidariedade, de cuidado, de respeito à natureza, às pessoas mais velhas, na relação espiritual estabelecida com o universo em que o constituímos ao mesmo tempo em que somos constituídas e constituídas por ele... nas relações de cura pela terra, pelas plantas, pela natureza, inclusive nossa própria natureza (MACHADO, 2019a).

São os mistérios do viver, onde aprendemos, como nos ensina Dona Maria Toinha, desde os saberes ancestrais tecidos nas memórias do seu corpo, que “ao registrar no corpo as estórias, o tempo as torna visíveis para os outros, deste modo é possível entrar nelas e vivê-las através de outros corpos. Os corpos são entidades que se abrem umas para as outras. (SANTOS; SANTOS, 2020, p. 182). Nossos corpos são moradas ancestrais! A ancestralidade nos habita e uma educação afrorreferenciada tecida pelas filosofias africanas está implicada no respeito à vida, a todas elas, começando por nossos corpos, nossas memórias ancestrais.

Fim que não se finda: Ir ao encontro / encanto forjando outros mundos possíveis Criando no Espaço da Criação Divina

Carlos Petrovich e Vanda Machado

Era uma vez, há muito e longo tempo atrás, muito antes dos tempos conhecidos, nas primeiras terras que apareceram no mundo, um gigante negro bem velho, ia de tribo em tribo, relembrando a força dos espaços vazios.

Sentava-se à beira do rio Ogum, deixava-se ficar brincando com os pés dentro d’água, rodeado de crianças. E, enquanto todos ficavam admirados de ver aquele tamanhão de gente jogando água pro ar, ele dizia: - Estão vendo o que faço com a água no vazio? E as crianças riam dando grandes gargalhadas, pensando que além de grandalhão desajeitado, aquele gigante era meio lelé do ori, lelé da cuca. Era Kolori.

E o velho estirava o corpo de repente, levantava água com um chute, jogava água com as duas mãos e soprava a água que trazia na boca. As crianças faziam silêncio, ao ver o desenho da água no ar. E ele falava: - “Ora iê, iê ô, ora iê iê ô” – saudavam Oxum. O que eu faço cada um pode fazer. Criar formas com a água no vazio do espaço. E, continuava a falar no silêncio encantado.

Era uma vez, Oloduramé, que depois de criar coisa com coisa, criou os homens e as mulheres. E se alegrou do que fizera. E riu. E seu riso encheu de felicidade aqueles seres que acabara de criar.

Foi então que Ele me chamou um mensageiro e disse-lhe: - Vai ter com essas criaturas risonhas. Diga-lhes que tudo isso que criei é para que elas sejam muito felizes. ... o mensageiro foi saindo e parou.

Olodumaré continuando a falar disse: - Entre as coisas criadas deixei muito espaço vazio. Nesses espaços as criaturas também poderão criar. E quando tiverem aprendido a ser felizes, criando coisas no vazio elas poderão criar mundos e universos no espaço sideral. Isto me alegrará muito, concluiu Olodumaré. – O mensageiro que interrompera a sua saída, neste instante partiu montado numa estrela a caminho da terra. Quando o mensageiro desapiou da montaria estelar, subiu num dendezeiro bem grande e reuniu homens e mulheres. Lá, do alto da palmeira, do igi opê, deu início ao recado para os homens. As criaturas humanas só ouviram metade do recado. Justamente aquela parte que dizia que o mundo era para elas serem felizes. Enquanto se afastavam ouviu-se uma risada debochada e longa caindo pela escadaria do tempo. O mensageiro pensou, e agora? Como concluir a missão? Olodumaré iria pedir contas. Então o mensageiro pensou, pensou e lembrouse que as criaturas que Olodumaré inventara dormiam e sonhavam. Então decidiu comunicar-se com elas através do sonho. Era preciso que as criaturas humanas soubessem que o vazio é a matéria prima da criação divina. E neste instante teve início a nova missão do mensageiro por decisão própria. E ele vai, de sonho em sonho, dando inspiração a cada um: homem ou mulher, criança ou velho, rico ou pobre, doente ou são.

O gigante negro despediu-se das crianças que ficaram sonhando e desapareceu no meio dos dendezeiros.

Recentemente, o mensageiro esteve com Adilbênia e Lorena1, e orientou-lhes para avisar às pessoas amigas, que antes de criar estrelas no universo, é preciso ajudar a humanidade a forjar novas metodologia de ensino e aprendizagem para bem vivermos no III Milênio. E só então, Ele, nos levará para criar outros mundos. Então, mãos à obra. Há muitos vazios. Vamos ocupá-los.

Vamos ocupá-los construindo novas ferramentas para a consolidação de mundos integradores onde viver, bem viver e bem querer em comunidade seja realidade para todas as pessoas.

Acreditamos que, para que isso possa ocorrer, devemos saber ouvir/escutar, sensivelmente, o que as pessoas anciãs de nossas comunidades têm a nos dizer sobre caminhos possíveis... caminhos encantados, implicados com o bem viver, bem querer.

Esse processo requer que nós, pessoas educadoras / aprendizes, compreendamos que há outras pessoas, formas e possibilidades de aprendermos e ensinarmos para além das metodologias que o ocidente materialista e necropolítico nos legou.

Nesse sentido, queremos, nessa inconclusão, deixar a mensagem que nós, professoras e professores, enquanto apresentadoras e apresentadores de mundos, podemos escolher que outros mundos apresentaremos para nossas e nossos estudantes que estão em todos os lugares e não apenas nos bancos escolares e que esse processo pode ser realizado em comunidade com o auxílio de quem veio antes.

Essa habilidade, oportunidade que temos de mudar os métodos requer responsabilidade com os futuros que almejamos para toda a humanidade. É evidente que não é mais cabível o modelo de educação eurocêntrico que nos foi imposto como o único saber e modo válido. Somos capazes de compreendermos, historicamente, o que nos levou, por anos, a acreditarmos que só a educação institucionalizada fosse o único caminho para obtermos conhecimento. Fato que condicionou o fechamento das inúmeras porteiras desse mundo...

Todavia, para que consigamos uma reeducação das nossas relações étnico-raciais, é preciso que tenhamos coragem de abrirmos porteiras, entendermos que a vida/mundo são encruzilhadas onde muitos mundos se encontram e que, se quisermos nos relacionarmos bem, é preciso darmos ouvido, atenção, amor, compreensão, sermos pessoas solidárias com as diversas cosmologias dos diferentes mundos que conosco convivem. É preciso abrir as porteiras dos nossos entendimentos e auxiliar nossas companheiras e companheiros de jornada a entender a pluriversalidade de mundos e caminhos que existem e que sendo assim, para vivermos em paz é preciso ouvirmos as vozes sábias desses diferentes pluriversos e o que essas vozes nos dizem sobre como poderíamos caminhar.

Hoje, nós trouxemos perspectivas desde e com nosso chão de pertencimento, nossos lugares de encantos, para demonstrar que nas nossas andanças, nossas vivências temos compreendido que aprender a ler o mundo está para além de aprender o que as peles de papel (livros) nos dizem. Temos aprendido com as pessoas mais velhas que o mundo, as vivências, as práticas culturais e suas diferentes performances são livros que também precisamos aprender a ler para forjarmos ferramentas para a apresentação desses mundos onde as relações étnico raciais serão harmônicas.

Racionalidade e sensibilidade são aspectos importantes a desenvolvermos nesse processo de alfabetização em que todos nós nos encontramos ao aprendermos a nos relacionarmos etnicamente. A educação da nossa sensibilidade tem sido o aspecto mais árduo, pois aprendemos com o eurocentrismo que razão e emoção não devem caminhar juntos no processo de aprendizagem. Que a racionalidade é a única coisa que nos permitirá ter um conhecimento verdadeiro.

Mas, com muito amor e tranquilidade as pessoas anciãs têm nos ensinado que somente a racionalidade não basta. Enquanto humanos, nós somos o todo e, para compreendermos essa integridade, não podemos contar apenas com a racionalidade. Ela precisa, assim como nós, de todo o corpo, pois somente em comunhão com a sensibilidade, com a experiência é que conseguimos e conseguiremos entender o que é sermos integrais.

E é essa mensagem que queremos deixar para vocês, educadoras e educadores, apresentadores/ras de outros mundos possíveis. Assim como, apenas a racionalidade não é suficiente para compreendermos que somos o todo, precisamos entender que as metodologias que aprendemos não são suficientes nesse processo de forjamento de novas ferramentas para a construção e apresentação de mundos onde nos relacionaremos saudavelmente.

Convidamos a todas e todos a aproveitar o espaço vazio para forjar ferramentas em comunidade. Entenderemos que há diversos e lindos detalhes que podem ser pincelados por mãos, de modo que não deixaremos brecha para a exclusão.

Nas performances dos corpos encontraremos elementos.

Na escuta sensível das pessoas mais velhas encontraremos elementos.

No agir em comunhão encontraremos elementos para a construção de metodologias afrorreferenciadas de ensino para as nossas relações étnico raciais. Essas metodologias são tecidas pela pluriversalidade, são bordadas pela diversidade.

Acreditem! Nós temos acreditado, lido, ouvido e sentido que outros caminhos são possíveis e convidamos a todas e todos a acreditar, ler, ouvir, sentir desde os diversos chãos que as pessoas anciãs, as performances dos corpos e suas comunidades têm a nos ensinar para que possamos melhor caminharmos nesse constante processo de forjar ferramentas ancestrais e encantadas, ou seja, totalmente implicadas com a potencialização da vida em comunhão com todos os seres viventes, com a natureza...

Que possamos pensar sobre isso e sobre o que um dos historiadores e zeladores da cultura afrobrasileira, do interior de Minas Gerais, o saudoso Jeremias Brasileiro, vem nos dizendo na obra As guardiãs de memórias e saberes ancestrais:

A consciência histórica de um determinado povo incomoda na medida em que os (as) jovens negros (as) passam a ter ciência de um passado diferente daquele que aprendem na escola tradicional. Essa outra aprendizagem só pode ser permeada por uma consciência de mundo experenciada na vida real e na oralidade das guardiãs das memórias e saberes ancestrais. (BRASILEIRO, 2021, p. 115, grifos nossos).

A porteira está aberta para que possamos ir ao encontro / encanto das guardiãs e guardiões dos saberes e métodos ancestrais.

Desejamos que todas pessoas educadoras estejam dispostas a esse encontro/encanto e que exercitem a escuta sensível.

Confiamos que outras metodologias, de acordo com cada chão, poderão ser despertadas. E, nos espaços vazios desse pluriverso da educação criadas/re-criadas.

Que nossa ancestralidade nos guie nesse processo!

1Adaptação nossa.

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Recebido: 20 de Setembro de 2021; Revisado: 15 de Novembro de 2021; Aceito: 16 de Novembro de 2021; Publicado: 10 de Janeiro de 2022

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