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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 23-Fev-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19389.020 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Reflexões decoloniais sobre as relações étnico-raciais nas provas de espanhol do Enem (2010-2020)

Decolonial thoughts about ethnic-racial relations on ENEM’s Spanish exams (2010-2020)

Reflexiones decoloniales sobre las relaciones étnico-raciales en las de pruebas de español del Enem (2010-2020)

Gabriela Rodrigues Botelho* 
http://orcid.org/0000-0003-4738-6724

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail: <gabibottelho@hotmail.com>


Resumo:

O presente artigo tem como objetivo compreender como a afrodescendência no mundo hispânico é abordada, sob a óptica das relações étnico-raciais, nos itens de língua espanhola do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Metodologicamente, esta pesquisa adota uma abordagem qualitativa (FLICK, 2009), descritivo-interpretativa (MOITA LOPES, 1994) e técnica documental (BARDIN, 1977; GIL, 2002). A análise fundamenta-se nos estudos decoloniais (MALDONADO-TORRES, 2007; PALERMO, 2012; QUIJANO, 2005; VERONELLI, 2015; WALSH, 2012); nos estudos sobre relações étnico-raciais (BRASIL, 2006; GOMES, 2018); e nas diretrizes do Enem (BRASIL, 2010; INEP, 2013). Os resultados indicaram que, dos 120 itens analisados, nove permitem a discussão sobre as relações étnico-raciais, dos quais apenas dois itens colocam em discussão a racialização. Os demais itens tratam a racialização e a afrodescendência de forma estereotipada ou ignoram o tema em suas problematizações.

Palavras-chave: Exame em larga escala; Espanhol; Decolonialidade

Abstract:

The present article aims to understand how Afro-descendants in the Hispanic world are approached, from an ethnic-racial relation perspective, at the Spanish language items from the National Secondary Education Exam (Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM). Methodologically, this research adopts a qualitative (FLICK, 2009), descriptive-interpretative (MOITA LOPES, 1994) and documentary technique approach (BARDIN, 1977; GIL, 2002). Analysis is based on decolonial studies (MALDONADO-TORRES, 2007; PALERMO, 2012; QUIJANO, 2005; VERONELLI, 2015; WALSH, 2012); in studies on ethnic-racial relations (BRASIL, 2006; GOMES, 2018); and ENEM guidelines (BRASIL, 2010; INEP, 2013). Results showed that of the 120 analyzed items, 9 of them make ethnic-racial relations discussion possible, of which only 2 items actually discuss racialization. The other items approach racialization and Afro-descendancy in a stereotyped way or ignore it in their problematizations.

Keywords: Large scale exam; Spanish; Decoloniality

Resumen:

El presente artículo tiene como objetivo comprender cómo la afrodescendencia en el mundo hispánico es abordada, bajo la óptica de las relaciones étnico-raciales, en las cuestiones de lengua española del Examen Nacional de la Educación Secundaria (Enem). Metodologicamente, esta investigación adopta un abordaje cualitativo (FLICK, 2009), descriptivo-interpretativista (MOITA LOPES, 1994) y técnica documental (BARDIN, 1977; GIL, 2002). El análisis se fundamenta en los estudios decoloniales (MALDONADO-TORRES, 2007; PALERMO, 2012; QUIJANO, 2005; VERONELLI, 2015; WALSH, 2012); en los estudios sobre las relaciones étnico-raciales (BRASIL, 2006; GOMES, 2018); y en las directrices del Enem (BRASIL, 2010; INEP, 2013). Los resultados indicaron que, de las 120 cuestiones analizadas, 9 permiten la discusión sobre las relaciones étnico-raciales, de los cuales solamente dos cuestiones colocan en discusión la racialización. Las demás cuestiones tratan la racialización y la afrodescendencia de forma estereotipada o ignoran el tema en sus problematizaciones.

Palabras clave: Exámenes a gran escala; Español; Decolonialidad

Considerações iniciais

A preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) tornou-se rotineira para concluintes e docentes do último ano da Educação Básica brasileira por meio da revisão das provas anteriores, da solução dos itens de cada área do exame ou dos estudos específicos sobre os conteúdos mais recorrentes. No entanto, pouco se fala sobre os critérios para a formulação dos itens e como a compreensão desse processo pode favorecer o entendimento do exame, a atividade docente e a preparação para a prova. Diante dessa realidade, esta pesquisa1 justifica-se por ser uma possibilidade de compreensão sobre a elaboração dos itens de espanhol, por intermédio da afrodescendência no mundo hispânico, no âmbito das relações étnico-raciais. Este estudo pode ser um auxílio aos docentes que queiram refletir sobre a abordagem dessa discussão em sala; sobre a relação entre o Enem e os conteúdos escolares, já que a Educação para as Relações Étnico-Raciais (Erer) é parte do currículo; sobre o uso das provas do Enem nas aulas; ou para professores/as2 que queiram elaborar itens.

Em relação aos exames em larga escala, Scaramucci (2016) chama atenção para o aperfeiçoamento na elaboração dos itens, principalmente os que medem a proficiência em línguas, como o Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros (Celpe-Bras), o Diploma de Espanhol como Língua Estrangeira (DELE) ou o Teste de Inglês como Língua Estrangeira (TOEFL), mas também os que medem o construto do ensino regular como o Enem, a Prova Brasil, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb)3 etc.

Segundo Scaramucci (2016), esses exames adquiriram maior precisão psicométrica ao medirem as habilidades dos participantes, além de contemplarem discussões contemporâneas, incentivando os participantes a estarem atualizados sobre situações relevantes socialmente. Assim, mais do que memorização ou conhecimentos técnicos, exige-se um raciocínio que possibilite a compreensão e a solução de problemas (SCARAMUCCI, 2016). Portanto, para a autora, é importante que os professores estimulem os alunos preparando-os para tais exigências. Não se trata de reduzir o ensino aos moldes do exame, mas aproveitar os pontos positivos que podem favorecer o desenvolvimento da língua estrangeira (LE).

Ao estabelecer o estado da arte sobre pesquisas que investigam a retroalimentação entre exames de larga escala, como o Enem, e seu contexto de aplicação, Scaramucci (2004) aponta que, além dos aspectos técnicos e psicométricos das provas, fatores indiretos, como as crenças da comunidade escolar, o posicionamento das instituições educativas, a formação docente, as ações políticas, sociais e econômicas vigentes no período de condução do exame, podem afetar a aplicação da prova, o desempenho dos participantes bem como os efeitos gerados na sala de aula. Em função disso, esta pesquisa compreende o Enem nas esferas educacional, política e social.

Entendemos que os itens são elaborados para aferir uma determinada proficiência, porém também circulam linguagens, posicionamentos, saberes, conhecimentos que legitimam ou deslegitimam o que pode ser posto na escola, refletindo o meio social. Desse modo, consideramos necessário analisar os itens que circulam informações sobre a afrodescendência no mundo hispânico e as relações étnico-raciais, já que o posicionamento do exame pode repercutir nos diferentes âmbitos mencionados. O foco deste artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa de Mestrado, intitulada Os itens de língua espanhola no Exame Nacional do Ensino Médio a partir de uma perspectiva afrogênica, defendida na Universidade Federal de Sergipe (UFS), na qual buscamos compreender as etapas de construção dos itens, com vistas a analisar que lugar ocupa a afrodescendência no mundo hispânico nas provas de língua espanhola do Enem, a partir das relações étnico-raciais, sendo a linguagem o meio pelo qual realizamos as análises.

Esta pesquisa insere-se no âmbito da Linguística Aplicada (LA), que busca inteligibilidade sobre o meio social, no qual a linguagem é entendida como prática social, isto é, como instrumento para a construção de conhecimento e da vida em sociedade (MOITA LOPES, 2009). O escopo da LA centra-se na resolução de problemas de uso da linguagem, a partir da interdisciplinaridade do meio cultural, institucional, histórico e da heterogeneidade dos atores sociais. Consideramos, neste caso, não os falantes hegemônicos do espanhol, mas as contribuições da afrodescendência para a constituição linguística e cultural do mundo hispânico. Para Moita Lopes (2009):

Como Ciência Social, conforme muitos formulam a LA agora, em um mundo em que a linguagem passou a ser um elemento crucial, tendo em vista a hiperssemiotização que experimentamos, é essencial pensar outras formas de conhecimento e outras questões de pesquisa que sejam responsivas às práticas sociais em que vivemos. (MOITA LOPES, 2009, p. 19).

Destarte, os cadernos de perguntas do Enem, como documentos oficiais, são fontes importantes para entender posicionamentos que emergem das estruturas sociais a partir do uso da linguagem, no que se refere à afrodescendência no mundo hispânico e as relações étnico-raciais. Dito isso, nesta introdução, apresentamos a pesquisa e seu objetivo. No tópico seguinte, explicamos a abrangência e as implicações do Enem para além da educação. No terceiro tópico, demonstramos como os aportes decoloniais são úteis nas discussões sobre os exames em larga escala e as relações étnico-raciais. Na sequência, expomos a metodologia de análise e a discussão dos dados. No último tópico, exibimos as considerações finais.

Implicações de um exame em larga escala

As características de um exame em larga escala compreendem a abrangência da avaliação em relação à extensão de pessoas alcançadas pelo exame. Além de ser dispendioso mobilizar um número elevado de pessoas, direta e indiretamente, consumir um tempo considerável em sua aplicação em sala de aula e ser uma estratégia de regulação dos currículos, sua elaboração utiliza testes padronizados de aplicação externa às instituições avaliadas e objetiva mensurar o desempenho de estudantes, escolas e redes de ensino, dependendo da sua função (SCHNEIDER, 2013). Nesse sentido, o Enem caracteriza-se como um exame em larga escala em três dimensões.

A primeira é educacional, a qual serve como sistema de mensuração da qualidade do ensino em nível médio, do sistema educativo, das escolas e do desempenho dos participantes; nessa esfera, o exame abrange conhecimentos específicos e alcança concluintes e egressos do Ensino Médio. Os construtos foram estipulados na reformulação do exame em 2009, por meio da elaboração de uma Matriz de Referência (MR), na qual foram definidas quatro áreas disciplinares: Ciências Humanas e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; e a área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e Redação. Cada área comporta suas próprias habilidades e competências. Constam, ainda, cinco eixos cognitivos comuns a todas as áreas: dominar linguagens; compreender fenômenos; enfrentar situações-problema; construir argumentação; e elaborar propostas, sendo este o formato atual da prova.

Na MR também constam os objetos de ensino para cada área, os quais delineiam os conteúdos a serem abordados pelo exame. As especificações da prova de LE aparecem nas quatro habilidades da área de linguagens agrupadas na Competência 2, como vemos no Relatório Pedagógico 2009-2010, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep):

H5 – Associar vocábulos e expressões de um texto em LEM ao seu tema.

H6 – Utilizar os conhecimentos da LEM e de seus mecanismos como meio de ampliar as possibilidades de acesso a informações, tecnologias e culturas.

H7 – Relacionar um texto em LEM, as estruturas linguísticas, sua função e seu uso social.

H8 – Reconhecer a importância da produção cultural em LEM como representação da diversidade cultural e linguística. (INEP, 2013, p. 18).

As orientações da MR propõem um diálogo entre o exame e a Educação Básica no nível médio, portanto estão em consonância com as diretrizes que regem a educação; dessa maneira, servem “[...] não apenas para subsidiar a elaboração de itens, mas também para aprimorar as práticas pedagógicas do Ensino Médio. Além disso, as Matrizes asseguram maior transparência ao processo de avaliação” (INEP, 2013, p. 17). O documento ainda ressalta que suas orientações não devem ser confundidas com o currículo da Educação Básica, o qual é muito mais amplo.

Contudo, na prática, essa confusão é inevitável, já que, desde sua primeira aplicação, em 1998, o exame visou influenciar os conteúdos e as metodologias da escola, demonstrando seu caráter regulador. Durante mais de 20 anos de implementação de exames em larga escala, no Brasil, o Estado argumentou pela medição da qualidade do ensino e pelo aprimoramento pedagógico, mas inclusive o Enem tem sido contestado nesses quesitos. De acordo com Freitas (2014, p. 1088), “[...] importa para este novo ciclo observar se ao longo do tempo as médias descem ou sobem e não se as formas de organização das práticas pedagógicas das escolas evoluem em direção a concepções avançadas de educação e de participação social da juventude”. Para o autor, a medição dos exames em larga escala, independentemente de seu resultado, não garante que haja qualidade na educação, correndo o risco de apenas adequar o cotidiano escolar aos moldes dos exames, como um treino.

Essa contestação leva à dimensão política do Enem, já que os exames em larga escala vêm sendo utilizados como instrumentos de políticas neoliberais de diminuição do Estado, funcionando como prestação de contas dos resultados educacionais, responsabilização da comunidade escolar e regulação da educação com base nos interesses do mercado financeiro e de trabalho (FREITAS, 2014; SCHNEIDER, 2013). A construção de rankings com as notas das escolas no intuito de tornar público os resultados alcançados na educação também são instrumentos de regulação, que expõem as escolas ao julgamento da sociedade, sem que haja políticas públicas específicas para auxiliar as que estão em desvantagem. Nessa vertente administrativa, as escolas passam a ser vistas como empresas que competem entre si para alcançar melhores resultados, o Estado cumpre o papel de avaliador, os estudantes são treinados para os exames e os gestores, os professores e as escolas são responsabilizados pelos resultados (FREITAS, 2014; SCHNEIDER, 2013).

A inserção da língua espanhola como LE no Enem, em 2009, também pode ser vista como uma decisão política, pois ocorreu no momento em que o Governo Federal estreitava relações com os países sul-americanos, falantes de espanhol, e realizava acordos econômicos com a Espanha, utilizando a promulgação da Lei Nº 11.161, de 5 de agosto de 2005, que obrigava a oferta do idioma na Educação Básica, como forma de reforçar os laços (BLANCO, 2018; KANASHIRO, 2012). Naquele período, o Enem intensificava a função de seleção para o ensino universitário, o que justificava ter o espanhol como língua de amplitude internacional em sua avaliação. Para Blanco (2018), esse ainda pode ser um dos motivos da língua figurar no exame, uma vez que, após a Reforma do Ensino Médio de 2017, o espanhol passou a ser opcional e apenas a língua inglesa é obrigatória na Educação Básica.

Por sua vez, a dimensão social de exames em larga escala abrange o impacto na comunidade como um todo. Podemos considerar a logística de contratação de serviços para a realização da prova, desde transporte, impressão ou aplicadores, até as mobilizações comerciais, como aluguéis ou venda de alimentos, próximo dos locais de aplicação. Outro ponto é o caráter inclusivo que os exames vêm adquirindo. A datar dos anos 2000, o Enem garante o acesso às provas para pessoas com deficiência, sabatistas – por convicção religiosa, lactantes entre outras necessidades. Do mesmo modo, a adesão de cotas raciais e econômicas gerou maiores oportunidades, já que com a nota do exame é possível dar continuidade aos estudos superiores, técnicos, profissionalizantes, dentre outras seleções.

Contudo, desde 2016, após as mudanças no direcionamento político do país, o Enem sofreu algumas alterações em sua logística que impactaram negativamente nas necessidades dos participantes, como a aplicação da prova em dois fins de semanas subsequentes, por exemplo. Na esteira desses acontecimentos, a aplicação referente a 2020 é outro exemplo de impacto social, pois colocou em risco seus participantes e a sociedade em geral ao ser realizada durante o agravamento da pandemia da Covid-19, intensificando a crise sanitária já instalada. Devido à má condução do Governo Federal em relação à saúde e à educação neste período pandêmico, o recorde de abstenção e a logística inadequada às condições sanitárias eram esperados; com isso, a edição de 2020 do Enem consolidou-se como a mais excludente de sua história4.

Em relação ao impacto do Enem na educação linguística em espanhol é possível encontrarmos diversos efeitos retroativos, em outras palavras, aqueles que afetam a metodologia utilizada em sala de aula, a seleção de material, a avaliação dos alunos e a atuação docente (SCARAMUCCI, 2004). Estudos de Pinheiro e Quevedo-Camargo (2017) chamam-nos atenção para a potencialidade das provas de LE do Enem estimularem as práticas de multiletramentos nas escolas e, consequentemente, para a necessidade de formar professores capacitados para essa abordagem, uma vez que os itens costumam valorizar diferentes gêneros discursivos com ênfase na multimodalidade.

Fernandes (2016) aponta como efeito retroativo a elaboração de provas no formato dos itens do Enem, a priorização da habilidade de leitura e de interpretação e o estreitamento do currículo para a adaptação das aulas às necessidades do exame. A pesquisadora também identificou um discurso recorrente por parte de alunos e de professores de que aprender espanhol pode ajudar em teste de LE. Já Blanco (2018) demonstra que as crenças em relação ao Enem como a dificuldade da prova e a necessidade de curso preparatório para o exame são determinantes, pois levam os estudantes a buscarem essa preparação, caso tenham condições, como se fosse a única forma de obter bons resultados. Essa dependência alimenta a rede de serviços gerados por um exame em larga escala.

Dialogando diretamente com as análises deste artigo, Silva (2016) concluiu que, para a língua espanhola ser um caminho de entrada para o Enem, mobilizando competências socioculturais, faz falta uma formação docente que esteja atenta à diversidade cultural e linguística do espanhol, inclusive na preparação para o exame, visto que são conhecimentos exigidos pela MR.

Conforme expomos até aqui, é notável o quanto exames como o Enem interferem diretamente no cotidiano profissional e pessoal dos envolvidos, mas também indiretamente na sociedade como um todo. Embora o exame viesse alcançando um histórico de aperfeiçoamento e de democratização, sua estrutura e seu objetivo final relacionam-se ao controle do Estado e à subordinação da educação aos interesses econômicos. Essas características levam à padronização das questões e à hegemonização do perfil dos participantes. Assim, aspectos propriamente educativos precisam ser negociados, para então pensar esse espaço como lugar de reflexo da diversidade.

Compreender a abordagem dada à afrodescendência no mundo hispânico é parte dessa negociação, pois permite entender o exame não apenas como uma avaliação em larga escala, que ele é, mas também como espaço de disputa. Considerando esses fatores, no intuito de colaborar na reflexão de professores e elaboradores de itens, no próximo tópico, faremos relações entre a prova de LE do exame, o currículo escolar (por meio da Erer) e a educação linguística em espanhol.

(De)colonialidades e relações étnico-raciais

Este trabalho parte da intersecção entre a língua espanhola como disciplina opcional na Educação Básica, avaliada no Enem, e a Erer na qualidade de eixo transversal que perpassa o currículo da educação e deve estar presente também no exame nacional. Buscamos, assim, pensar a decolonialidade como um caminho para a educação linguística em espanhol que potencialize o reconhecimento da diversidade dessa língua (MATOS, 2020). Neste trabalho, a afrodescendência é entendida como um dos elementos da diversidade mencionada.

Pensar a afrodescendência no mundo hispânico implica considerarmos as hierarquias sociais estabelecidas a partir do processo colonial, que permitiu a expansão da língua e da cultura hispânica. Para compreendermos como as relações étnico-raciais se consolidaram nesse contexto, Quijano (2005) explica que o colonialismo, entendido como um regime político, se findou com a independência das colônias nas Américas, porém a lógica de organização social se manteve por meio da colonialidade do poder. Essa lógica colonial de hierarquização continua manifestada na ideia de raça, do eurocentrismo e da divisão mundial do trabalho estruturando as sociedades atuais.

Essa teorização abriu caminho para pensar sobre as sociedades colonizadas nas Américas e identificar outros aspectos que fortalecem as colonialidades. Walsh (2012) nomeou colonialidade quadri-dimensionada o vínculo entre colonialidade do poder, que relaciona a classificação racial à exploração capitalista como ordenação do trabalho no mundo; a colonialidade do ser, que coloca em dúvida o valor humano das pessoas não brancas reforçando sua racialização; a colonialidade do saber, que privilegia o eurocentrismo como única forma de razão, conhecimento ou pensamento válido, deslegitimando qualquer outra racionalidade; e a colonialidade da natureza, que, por intermédio do binarismo sociedade/natureza, defende a dominação ambiental, como se fosse algo separado do ser humano. Essa ação destrói a territorialidade dos povos ancestrais e com isso suas próprias vidas.

Outros conceitos se somam à identificação de colonialidades para compor este trabalho, como a colonialidade da arte, ao dialogar com as hierarquias provenientes da racialização que diminuem o valor artístico e monetário de produções realizadas por pessoas subalternizadas (PALERMO, 2012). Já a colonialidade da linguagem demonstra que o diálogo está colonizado, pois as formas de expressão são controladas de acordo com o mando do colonizador, ou seja, de quem detém o poder (VERONELLI, 2015). Nesse sentido, a colonialidade segue ordenando a vida social a partir da lógica colonial, na qual a hierarquização racial é o centro. Maldonado-Torres (2007) afirma:

Assim, pois, ainda que o colonialismo preceda a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. A mesma se mantém viva em manuais de aprendizagem, no critério para um bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na autoimagem dos povos, nas aspirações de seus sujeitos, e em tantos outros aspectos da nossa experiência moderna. Em um sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131, tradução nossa).

Como explica o autor, a modernidade sustenta as colonialidades, na medida em que idealiza as sociedades mantendo a categoria raça como fator hierárquico. A ideia de raça em sentido moderno foi criada nas Américas como instrumento da dominação da empresa colonial, categorizando todos os corpos a partir da superioridade da branquitude, por isso raça é categoria fundante nos estudos decoloniais (MATOS, 2020).

Segundo Gomes (2018), o apagamento da intelectualidade negra na educação é uma forma de colonialidade, já que esse pensamento se funda na contestação da modernidade e da empresa colonial, sendo por si decolonial. Para a autora, outros exemplos de colonialidade nos currículos são ações como o Programa Escola Sem Partido, que, com base em uma suposta neutralidade, visa cercear a autonomia acadêmica, sendo um de seus principais intentos a exclusão das discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas. A autora também aponta que a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ambas de 2017, reforçam colonialidades, como, por exemplo, ao obrigar a oferta apenas do Inglês como LE estrangeira na escola. Essas ações refletem em todo o trabalho escolar, podendo interferir, inclusive, na oferta das Línguas Estrangerias no Enem. As ações mencionadas tendem à homogeneização do perfil de estudantes e do próprio currículo, limitando o espaço para a pluralidade, inclusive linguística e étnico-racial, afetando o currículo e a prática pedagógica.

Entretanto, Matos (2020) explica que os estudos decoloniais propõem uma agenda que busca subverter os padrões coloniais fazendo frente às colonialidades presentes, por exemplo nos currículos escolares. A autora identifica como formas de resistência decolonial aos currículos coloniais o trabalho com gênero e sexualidade como prevenção de violências e a Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena, visando a pluralidade cultural brasileira (BRASIL, 2008). A autora ainda alerta que, mesmo sendo ações afirmativas, essas propostas podem ter uma abordagem que reforce a lógica colonial como a redução dos trabalhos sobre pluralidade cultural a datas específicas, como o Dia do Índio e o Dia da Consciência Negra, o que, muitas vezes, incorre em “homenagens” estereotipadas e que não colaboram para a reflexão sobre as identidades em questão (MATOS, 2020).

Confluindo com as ponderações anteriores, Raposo, Almeida e Santos (2021) alertam que os dispositivos legais, como a Lei Nº 11.645/2008, não garantem uma representação afirmativa das pessoas negras no contexto escolar, exigindo uma abordagem que denuncie as colonialidades epistemológicas do currículo e valorize as perspectivas negras. Em relação ao eixo transversal Erer e sua presença na escola, Raposo, Almeida e Santos (2021) afirmam:

É importante que os grupos subalternos possam conhecer sua história e sua identidade cultural, que também se expressam como linguagem da sociedade, e que seja vista no currículo escolar de forma crítica e positiva. Desse modo, é importante que sejam construídas leituras que possibilitem um maior realismo ao lidar com os processos históricos e conjunturais, e reafirmem a perspectiva de mudanças do ponto de vista social e democrático. (RAPOSO; ALMEIDA; SANTOS, 2021, p. 15).

O pensamento decolonial agrega críticas novas e antigas feitas à modernidade/colonialidade, e é entendido como projeto, agenda e ação que visa “[...] transcender a colonialidade através da construção de outras formas de poder, saber e ser, criando novas epistemologias e ontologias” (MATOS, 2020, p. 100). Nesse viés, as identidades e os pensamentos negros são essenciais para direcionar novas lógicas de construção social. Tal pensamento, como afirma Gomes (2018), sempre esteve presente no Brasil e, como veremos, também no mundo hispânico.

Na próxima seção, discutimos como essa problemática está presente nos itens do Enem, visto que há propostas que podem ser consideradas decoloniais e cumprem com as ações afirmativas das quais são oriundas, mas também há propostas acríticas em relação ao trabalho com a Erer, o que acaba por reforçar colonialidades.

Metodologia e análise dos dados

O desenvolvimento metodológico desta pesquisa partiu dos pressupostos da abordagem qualitativa, compreendendo que os documentos são artefatos sociais que revelam como as pessoas constroem o mundo em situação conjunta, sendo conflituosa ou não (FLICK, 2009). Seguimos a perspectiva descritivo-interpretativista (MOITA LOPES, 1994) para averiguar a formatação dos itens e sua composição. Utilizamos a técnica de pesquisa documental que, segundo Gil (2002), permite uma análise crítica de documentos investigados, de modo a problematizar o seu conteúdo e compreender, neste caso, como as relações étnico-raciais se estabelecem em cada item. Segundo Bardin (1977), elementos como o tema, as palavras, o parágrafo e os aspectos contextuais determinam uma unidade de contexto e favorecem a análise de um conteúdo textual. Assim, para analisar os itens do Enem, utilizamos, como unidade de análise, a unidade de contexto, abarcando as seguintes categorias: texto base, enunciado e alternativas de resposta de cada item.

Para selecionar os itens que permitem debater as relações étnico-raciais, consideramos os documentos sobre Erer (BRASIL, 2006) e o conceito de perspectiva afrogênica (WALKER, 2018). Por isso, este trabalho contemplou situações que, em um primeiro momento, não parecem refletir as relações étnico-raciais, mas com uma análise mais aprofundada é possível compreender as camadas de colonialidade que sustentam e escondem as relações estabelecidas. Devido ao racismo científico, diversas áreas da ciência omitiram ou distorceram o protagonismo afrodescendente pelo mundo. Por isso, tomamos como base o trabalho de Walker (2018), que se mostrou sensível a essas questões, ao representar os afro-sul-americanos a partir da visão das pessoas negras. Essa iniciativa coincide com ações realizadas no Brasil, que buscam reconhecer as ações das pessoas negras para um construto nacional.

Nas palavras de Walker (2018, p. 24), “[...] nossa intensão era falar da história, cultura, e subsídio à nação, assim como sobre a situação atual de cada comunidade, e preparar um livro que serviria de base para a criação de materiais educativos sobre estas comunidades”. A escolha dessa bibliografia justifica-se por considerar a alteridade das pessoas negras na constituição de suas próprias histórias em comunidades diaspóricas nas Américas, isto é, apresenta uma perspectiva afrogênica.

Tendo as considerações de Walker (2018) como metodologia de seleção dos itens e com base nos pressupostos da classificação de pesquisa, foram avaliadas as provas aplicadas entre 2010 e 2020 (consideramos 11 provas regulares; uma reaplicação; 11 provas para Pessoas Privadas de Liberdade – PPL; e a versão digital aplicada pela primeira vez em 20215), totalizando 120 itens dos quais nove permitem o debate sobre as relações étnico-raciais e a afrodescendência no mundo hispânico. Os itens foram classificados em três grupos dispostos no Quadro 1.

Quadro 1 Classificação dos itens 

Item Título do texto base Afrodescendência no mundo hispânico Abordagem do item
91 Ano 2010 La Cueca Chilena Influência cultural. O texto base reproduz estereótipos sobre a afrodescendência. O enunciado e as alternativas não problematizam as relações étnico-raciais no mundo hispânico.
94 Ano 2011 El Tango Influência cultural.
93 Ano 2012 El idioma español en África subshariana: aproximación y propuesta Língua espanhola na África e Guiné Equatorial.
2 Ano 2017 Erradicar el cólera Informações sobre o Congo.
95 Ano 2013 Duerme Negrito Subjetividade das pessoas negras. O texto base evidencia as relações étnico-raciais, mas o enunciado e as alternativas focam em outros aspectos sociais, invisibilizando a racialização.
93 Ano 2015 Caña Hierarquia social e laboral racializada.
3 Ano 2019 Adelfos Relação cultural entre Espanha e África.
91 Ano 2014 El Candombe es participación Influência cultural. O texto base, o enunciado e as alternativas evidenciam a racialização no mundo hispânico, colaborando para a reflexão sobre as relações étnico-raciais.
95 Ano 2014 No más el día de la raza Formação racial nas Américas.

Fonte: Elaborado pela autora.

Para realizar uma análise detalhada, consideramos as orientações da MR do Enem (INEP, 2013) e as diretrizes do documento Guia para elaboração e revisão dos itens (BRASIL, 2010). Segundo o documento, item corresponde a uma unidade de testagem. No caso do Enem, as questões do caderno de resposta são os itens, compostos pelo texto base, pelo enunciado, pelas alternativas de resposta e inclui o gabarito. Cada item deve contemplar uma situação problema, que aproxime os fenômenos apresentados a contextos reais e estimule a elaboração de soluções (BRASIL, 2010).

Dessa maneira, os textos base devem ser sucintos e objetivos, contendo o problema apresentado ou motivando sua formulação; os enunciados podem ser uma pergunta ou uma frase a ser completada, buscando a compreensão global do texto e evidenciando as reflexões nele contidas; já as alternativas de respostas devem ser plausíveis em relação ao problema, porém somente o gabarito deve ser uma resposta possível (BRASIL, 2010). É preciso considerar ainda que “[...] o item deve ser estruturado de modo que se configure uma unidade de proposição e contemple uma única habilidade da Matriz de Referência” (BRASIL, 2010, p. 9). Em vista disso, as partes do item devem estar articuladas com as habilidades, as competências, os eixos cognitivos e a estrutura de múltipla escolha adotada pelo exame. Devido ao espaço ser reduzido, analisamos detalhadamente um item de cada grupo disposto no Quadro 1. A Figura 1 traz o primeiro item selecionado.

Fonte: Imagem adaptada de Brasil (2011, p. 5).

Figura 1 Item nº 94: Aplicação regular da prova de 2011 

A Questão 94 da prova regular de 2011 traz informações sobre o tango argentino. O texto é adaptado e, embora conste a fonte de onde foi retirado, não encontramos a versão original, portanto os comentários sobre esse item baseiam-se apenas no trecho adaptado para a prova. O texto base apresenta uma descrição clássica do tango, explicando sua gênese no período mais fundo da história Argentina. Na sequência, o texto menciona a difusão do tango pela classe média portenha por meio dos cabarés. Por fim, há um salto temporal, enfatizando seu sucesso musical na Europa e a luxuosidade que passou a envolvê-lo, por volta de 1920.

O texto base não é coerente ou mesmo coeso, apresenta saltos na descrição dos fatos e reducionismos históricos (o que não sabemos se é pela adaptação ou um problema na escrita). Já o conteúdo é superficial, pois omite que foi a partir das casas de nações, onde a comunidade africana e afrodescendente se reunia para compartilhar suas tradições, que surgiram os tambos ou tangos, locais de baile. Segundo documentação histórica, o primeiro tango foi registrado no século XIX, com autoria do afro-argentino Rosendo Mendizábal (MOLINA; LÓPEZ, 2018).

Quanto ao enunciado, há confluência com os critérios para elaboração de itens, pois sua abordagem destaca a importância da produção cultural para influenciar, retratar ou até refletir a história de um país, e pede para situar o reconhecimento do tango no contexto argentino. Assim, de fato, o tango retrata, influencia e reflete a história da Argentina, inclusive na diversidade da sua população, porém esse ponto não é considerado no conteúdo do texto base.

Já as alternativas apresentam opções óbvias, pois são o contrário do que aparece no texto, como a não alteração do gênero musical; a influência limitada ao subúrbio; a difusão do seu valor primitivo em diferentes camadas sociais; a negação da influência da França e da Inglaterra; com exceção da alternativa correta C, que se refere à sobrevivência do tango ao ultrapassar as fronteiras.

Para Kanashiro (2012), que analisou as provas de espanhol do Enem com foco na compreensão leitora, esse item pretende cumprir a habilidade de área 8 da MR, de modo a valorizar a produção cultural em LE. Para a autora, é possível que os estudantes do Ensino Médio já tenham esse conhecimento prévio, pois também é parte das diretrizes da educação o conhecimento cultural em LE como forma de valorizar a diversidade, combater a discriminação e a xenofobia. Estamos de acordo com a autora, no que diz respeito ao cumprimento dos critérios da MR, e em relação ao possível conhecimento prévio dos examinados. Entretanto, o texto selecionado exibe uma repetição acrítica da história oficial e não colabora na reflexão sobre a importância cultural para um povo.

O texto faz o trajeto real do tango, porém a forma de descrever esse percurso pode ser interpretada a partir dos estudos sobre relações étnico-raciais como um silenciamento da participação afrodescendente na concepção da dança, haja vista que, para não mencionar a afrodescendência, se remete a algo primitivo ou remoto, desqualificando a cultura produzida pelas pessoas não brancas e periféricas, no intuito de esconder essas origens.

Outra interpretação pode vir dos estudos decoloniais, pois a descrição é eurocêntrica, tanto ao esconder as raízes afrodescendentes, quanto em sua valorização, somente após as influências da estética artística de Londres e de Paris. Por fim, no último parágrafo, o texto retoma a ideia de mudança e de reinvenção do ritmo, agora em relação a outros gêneros musicais e sua disseminação por várias partes do mundo, confirmando, mais uma vez, a necessidade de aceitação externa para a valorização dessa arte, isto é, a colonialidade da arte (PALERMO, 2012).

Durante a formação dos Estados-Nação no continente americano, houve um esforço para apagar as influências afrodescendentes e supervalorizar a influência europeia na identidade nacional. O texto da Questão 94 da prova regular de 2011 é um bom exemplo disso, pois se esforça para não citar a afrodescendência, exaltando a cultura europeia como a única importante. É compreensível que, por ser uma prova realizada há dez anos, possivelmente as discussões em torno da afrodescendência no tango não estivessem tão difundidas e que, de fato, aquela forma de contar a história fosse a mais recorrente, não somente no ensino de LE no Brasil, mas, inclusive, na Argentina.

Por isso, questionamos, assim como faz Kanashiro (2012), a fonte usada para tratar esse aspecto histórico-cultural de tanta importância. A autora critica o fato de se usar um blog em vez de uma fonte histórica. Consideramos a crítica válida, pois há diferentes tipos de blogs, de modo que nem todos têm o compromisso com a checagem das fontes. Todavia, é possível que mesmo as fontes históricas silenciem a afrodescendência no mundo hispânico, pois, como afirmam Molina e López (2018):

É evidente que as e os argentinos, entre tantas outras coisas, não temos resolvido nosso passado, que foi sempre tratado com base em uma história mentirosa, silenciadora, mistificadora, maniqueísta e “exemplar” que muitas vezes se afasta dos dados da realidade em função das “ficções orientadoras” que se pensaram na segunda metade do século XIX. (MOLINA; LÓPEZ, 2018, p. 111).

Os autores ressaltam, ainda, que a história de forma acrítica contribuiu para imprimir uma identidade que unisse a nação sob o privilégio de grupos raciais em detrimento de outros e que esse pensamento é difundido, inclusive, nos textos escolares. Contudo, consideramos possível encontrar discussões mais aprofundadas, caso os critérios da MR fossem empregados com maior rigor.

Embora seja uma prova antiga, cabe refletirmos sobre como a identidade nacional é abordada no âmbito da cultura, de modo a questionarmos se, de fato, há crédito aos grupos sociais/raciais que constituíram determinada expressão cultural. Não negamos a influência europeia no tango ou mesmo na formação dos Estados-nação americanos, apenas questionamos até que ponto se trata de uma influência ou uma imposição das relações de poder.

Vale ainda dizermos que esse tipo de texto parece inofensivo, repetitivo, corriqueiro, mas, por fim, se mostra perigoso, pois não há como combater a xenofobia, valorizar a diversidade ou mesmo demonstrar a importância da produção cultural se a cultura retratada se resume a um único grupo racial (os brancos); se o texto foca em diminuir e fazer desaparecer outros grupos (no caso os negros); e termina por valorizar a cultura, quando ela atinge o público estrangeiro (europeu).

Esse item, definitivamente, não traz uma perspectiva afrogênica, muito pelo contrário, apresenta uma perspectiva eurogênica e em sua maior parte eurocentrada. Tomamos esse item como análise, porque ele dá margem para pensarmos as relações étnico-raciais, tanto pelo que informa quanto pelo que se nega a informar. Assim, é um exemplo da colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), quando resume um gênero musical a um único grupo racial e se esforça para silenciar outros grupos. É também um exemplo da colonialidade da arte (PALERMO, 2012), quando mede a expressão inicial do tango como primitiva ou malevo e considera sofisticada a estética europeia, como se fosse possível hierarquizar as expressões artísticas com base na racialização.

Gomes (2018) alerta que quanto mais democrática a escola se torna, mais contato haverá entre pensamentos diferentes. Nesse contexto, deveria haver um tratamento igualitário a todos, mas historicamente nunca houve, portanto “[...] entender essas tensas questões é desvelar quão coloniais ainda são os nossos currículos” (GOMES, 2018, p. 4791). Considerando que os itens do Enem se estruturam a partir do currículo escolar e, também, são responsáveis por sua construção, além de ser um exame que cada vez mais abrange diferentes participantes, cabe repensarmos o uso de textos como o da Questão 94.

Esse item representa o grupo de itens que aborda a afrodescendência e as relações étnico-raciais de forma estereotipada. Na sequência, exibimos o item que representa o grupo no qual o texto base evidencia as relações étnico-raciais, mas o enunciado e as alternativas focam em outros aspectos sociais, invisibilizando a racialização.

O texto base da Questão 93 da prova de 2015 é um poema do escritor cubano Nicolás Guillén intitulado Caña. Esse poema faz parte do livro Sóngoro Cosongo, publicado em 1931, e que tinha como inspiração a cultura afro-cubana. Nele e em outros livros, Nicolás Guillén reflete os anseios cubanos, evidenciando a afrodescendência a partir de suas particularidades em relação ao povo negro, mas também no âmbito das relações étnico-raciais entre, principalmente, negros e brancos. Como um escritor negro, sua poesia não é isenta, muito menos neutra, e, com maestria, demonstra a vontade de convivência entre as diferentes culturas que compõem Cuba e os conflitos existentes para que essa convivência ocorra de forma respeitosa e justa. Vejamos, na Figura 2, o item elaborado com o poema Caña como texto base:

Fonte: Imagem adaptada de Brasil (2015, p. 5).

Figura 2 Item nº 93: Aplicação regular da prova de 2015 

O poema Caña demonstra as relações étnico-raciais no contexto da exploração da cana-de-açúcar na América Latina. Com poucas palavras, surpreende pela profundidade das reflexões que esboça ao denunciar a exploração racial e da terra, esta que se encontra mais abaixo na hierarquia criada, abaixo dos brancos, abaixo dos negros. Como podemos observar na Figura 2, o poema representa grupos sociais/raciais, com base na hierarquia entre pessoas negras e brancas, mas também no território latino-americano e na presença anglo-americana, indicando a exploração dos Estados Unidos em relação à América Latina e mais especificamente a Cuba.

Na construção do poema, o indivíduo branco tem uma nacionalidade e, a partir dela, damo-nos conta do seu poder e possivelmente da sua cor de pele. Há uma caracterização que pode ser definida como política, a partir da palavra Yanqui, por referir-se aos estadunidenses, em geral do Norte dos Estados Unidos ou os de ideologia imperialista. Já o indivíduo negro apenas se remete ao seu local de exploração, não tem nacionalidade, apenas tem a sua cor, seu corpo, o que caracteriza a colonialidade do ser (MALDONADO-TORRES, 2007).

Por sua vez, a terra remete-nos à Cuba, devido ao contexto histórico da obra e do autor, mas poderia ser qualquer lugar da América Latina onde houve a monocultura da cana-de-açúcar, como no Brasil, por exemplo, ou na Jamaica. A terra é o elemento mais desvalorizado, ainda que seja essencial para o sustento de todos, uma vez que sem a terra não há canavial, aspecto central dessa relação de poder. Em consequência disso, entendemos que o poema coloca em discussão, também, o que chamamos colonialidade da natureza (WALSH, 2012), devido ao destaque dado à terra enquanto um ser explorado.

Nesse sentido, o poeta apresenta-nos uma América Latina afrodescendente, como de fato ela é, e relacionada à terra. Nos dois últimos versos, o autor evidencia que a relação entre os grupos se dá pela violência, pela exploração, pelo derramamento de sangue. De acordo com o pesquisador Oliveira Neto (2019), a poesia de Nicolás Guillén, a partir da ideia de mulatez, defende o protagonismo afrodescendente na construção da identidade cultural cubana, sem negar as influências europeias, porém afirmando uma nova identidade da qual os elementos afro-cubanos são indispensáveis. Para o autor, a poesia de Guillén não sobrepõe o desejo de unificação do país à busca de emancipação dos povos marginalizados. Por conseguinte, a denúncia em relação à dominação racial perpassa toda a sua obra, apontando a discriminação, a marginalização, a vergonha de si mesmo impetradas por outros grupos raciais, que vem do período colonial por conta da escravização e persiste em momentos históricos posteriores como vemos no poema Canã. Assim, conforme Oliveira Neto (2019):

O negro continua subjugado junto ao canavial enquanto o branco imperialista se encontra sobre o canavial. Este poema surge em pleno regime do ditador Gerardo Machado, marcado pela repressão, tortura e exploração do trabalho para atender os interesses hegemônicos dos Estados Unidos. Em Cuba, entre os proletários, o negro tinha as piores condições. Além da exploração do trabalho sofria os estigmas do racismo. (OLIVEIRA NETO, 2019, p. 71).

Diante do exposto, constatamos que o poema Caña, como texto base, apresenta uma perspectiva afrogênica, pois mostra as pessoas negras em contexto de exploração marcando sua posição social no sentido de estar no trabalho com a terra, mas questiona essa hierarquia ao demonstrar que as posições e as relações sociais naquele contexto não eram pacíficas, pois havia conflitos que resultavam em violência e em sangue derramado. Por meio dessa construção, o autor evidencia o conflito nas relações sociais entre os grupos estabelecidos e a própria natureza, de modo a problematizar essa relação, visto que as posições sociais e o trato com a terra não são normalizados, não é uma simples descrição, mas uma denúncia da relação exploratória.

O enunciado do item chama atenção para as preposições, relacionando esses elementos linguísticos à metáfora que o texto encerra, ao indicar a posição social de cada grupo retratado. Esse enunciado contempla, quase que por inteiro, o teor do poema, pois entender as posições sociais é central para sua interpretação, garantindo que a metáfora faça sentido. Ao dar atenção à metáfora presente no texto, valoriza-se o gênero poema, uma vez que esta é uma característica própria desse gênero literário. Todavia, constatamos que o enunciado não apresenta uma perspectiva afrogênica, pois coloca em evidência as posições sociais, traz uma reflexão para essas interações relacionadas a um período histórico, mas não menciona a racialização como fator de exploração.

Ao indicar que o poeta reflete sobre a plantação da cana-de-açúcar na América Latina, o enunciado reforça que a situação exposta abrange todo o contexto colonial e neocolonial latino-americano, o que é importante destacarmos, pois onde houve monocultura da cana-de-açúcar, há afrodescendentes. No entanto, a reflexão do poeta não se centra no contexto de plantação em si, mas na relação de poder estabelecida entre grupos sociais/raciais a partir do plantio da cana-de-açúcar, questão que o enunciado e o item como um todo não aborda.

As alternativas não parecem coerentes com o enunciado ou com o contexto do poema. A opção A não tem muita relação com o texto, podendo apenas confundir o leitor, pois fala em desordem na organização das lavouras. A alternativa B menciona relações diplomáticas em um contexto em que a convivência termina em sangue, podendo ser facilmente descartada. A opção C sugere que as proposições indicam localidades na América Latina, podendo também confundir o leitor mais desatento, porém sem muita relação com o texto. A alternativa D, que é a correta, descreve a metáfora como indicando as relações sociais entre os indivíduos que vivem da cana-de-açúcar. Enquanto a opção E se remete às funções de cada profissional envolvido na lavoura.

Em resumo, o poema coloca em evidência a neocolonização estadunidense em relação aos países latinos ou até mesmo a escravização das pessoas negras. Para que houvesse uma reflexão mais aprofundada, por parte do leitor, as alternativas deveriam apresentar problemáticas reais para a situação exposta. O poema foca nas relações sociais assimétricas, nas relações de trabalho que resultam em sangue, por isso é estranho notarmos nas alternativas palavras como: diplomacia, organização do trabalho ou função profissional. A relação com a terra e sua exploração é esquecida, bem como os versos finais que mostram o conflito. Já a alternativa correta parece coerente, porém poderia ser mais engajada, isto é, as preposições de fato se remetem às relações sociais dos grupos apresentados (e cabe a ressalva, pois na alternativa aparece indivíduos), porém não é qualquer relação, é uma relação exploratória que termina em sangue.

É possível afirmarmos que o item 93 da prova de 2015 cumpre as exigências da MR do Enem, além de valorizar o gênero textual escolhido. Entretanto, acaba por problematizar as relações de trabalho independentemente da variável racial que é nitidamente uma questão central no poema. Pensando nas Orientações para as Relações Étnico-Raciais (BRASIL, 2006), vemos esse posicionamento do item como uma perda de oportunidade de problematizar os conflitos gerados pelo racismo, pois o próprio documento ressalta a importância de ver o ambiente escolar como lugar de reflexão sobre as relações de poder e de busca por igualdade, de modo que seria oportuno considerar a violência e a exploração estrutural retratados no poema, em vez de reduzir o problema às relações individuais.

O item demonstra como a divisão racial do trabalho, a exploração das pessoas e das terras colonizadas são naturalizadas pelo eurocentrismo e pelo grupo racial branco, descrevendo em poucas palavras a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), do ser (MALDONADO-TORRES, 2007) e da natureza (WALSH, 2012). A racialização, a exploração do trabalho e as colonialidades são concepções ou comportamentos reproduzidos pelas pessoas, mas que fazem parte de uma estrutura política e social que sustenta as instituições, as relações e todo o convívio em sociedade. Desse modo, não podem ser reduzidos ao nível dos indivíduos, mas, sim, pensar em grupos sociais, que, nesse caso, se caracterizam por pessoas negras e pessoas brancas. Nesse sentido, a ação do poeta é de denúncia e não apenas de descrição de uma realidade.

A escolha do texto foi muito feliz, o enunciado problematiza em partes a temática do poema, além de valorizar aspectos linguísticos e do gênero textual, mas deixa a desejar nas alternativas. Entendemos que há diferença no grau de dificuldade dos itens, que talvez um poema já seja um texto mais complexo e, por isso, tanto o enunciado quanto as alternativas sejam simplificadas, porém há uma fuga do contexto do poema quando se utiliza de palavras de um campo semântico que simplesmente diminui a gravidade do contexto relatado. Por fim, o item 93 foi quase completo ao discutir as relações étnico-raciais na prova de espanhol do Enem.

O próximo item representa o grupo que busca problematizar as relações étnico-raciais e a afrodescendência no mundo hispânico. Trata-se da Questão 95 da prova para Pessoas Privadas de Liberdade de 2014, cujo texto base é um artigo de opinião apresentado sem o título e está adaptado (Figura 3).

Fonte: Imagem adaptada de Brasil (2014, p. 6).

Figura 3 Item nº 95: Aplicação para PPL prova de 2014 

A adaptação do texto base mantém a ideia central do texto original que se intitula No más día de la Raza, cujo objetivo é chamar atenção para o significado da expressão “Dia da Raça”. Assim, a autora demonstra que essa nomenclatura e suposta comemoração que alude à chegada dos primeiros europeus em solo americano, em um 12 de outubro, parte de uma concepção colonial de conquista, colocando em destaque a possível existência de diferentes raças. O argumento, como demonstrado no trecho adaptado, é de que essa expressão já não serve como forma de identificação para a sociedade uruguaia, uma vez que não houve descobrimento, mas, sim, apropriação e genocídio, gerando não uma nova raça (até porque não existem raças biologicamente), mas a dominação dos povos originários, das pessoas negras traficadas para essa região e de seus descendentes.

Podemos considerar que o item propõe um giro decolonial, pois rompe com a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), já que questiona o eurocentrismo, o conceito colonial de raça e suas consequências. Nesse mesmo viés, também rompe com a colonialidade da linguagem (VERONELLI, 2015), quando propõe a autonomeação, a busca de uma frase ou expressão que, de fato, simbolize o acontecimento a ser rememorado no dia 12 de outubro. É importante destacarmos que a autora não impõe outra nomenclatura, mas busca refletir sobre os significados da data.

Dessa maneira, é possível afirmarmos que o trecho adaptado colabora com o debate sobre a colonização nas Américas, uma vez que identifica traços de colonialidade a partir da linguagem e deixa explícita a necessidade de que uma nomenclatura coletiva deve contemplar os diversos grupos sociais. A supressão do título do texto não compromete a compreensão, mas diminui a ênfase do que seria um basta, isto é, de que já não se pode mais tolerar ou normalizar expressões que carregam xenofobia e racismo, como a autora define a nomenclatura da data, no início do artigo. Por conseguinte, o uso de no más, muito próprio da língua espanhola, poderia ser utilizado para problematizar o argumento do texto, formulando um item ainda mais adequado à MR.

O enunciado do item prende-se à compreensão global do texto como orienta a MR e foca no argumento apresentado no trecho adaptado para sustentar a necessidade de mudança da expressão Dia da Raça, uma vez que a data rememora a violência colonial e não apenas a chegada dos primeiros europeus no continente americano. Há uma problematização em relação à comemoração da data, como pretende originalmente o artigo6, e não há fuga do tema central do texto.

As alternativas complementam o raciocínio em relação ao problema, ao expor possíveis motivos para que a expressão seja substituída. As opções A e B utilizam informações do próprio texto para propor hipóteses. Já as alternativas D e evocam motivos mais relacionados ao significado colonial de raça e, talvez, presentes no senso comum dos países hispânicos bem como da sociedade brasileira, ao romantizar a colonização e a mestiçagem. As alternativas expõem compreensões possíveis para o simbolismo da colonização. Uma leitura atenta não deixa dúvidas sobre o gabarito que corresponde à opção C, indicando a necessidade de refletir-se sobre o significado da expressão e sua relação com a colonização. A abordagem desse item poderia ser a mais completa, exceto pelo fato de que, no trecho adaptado, não aparece explicitamente o protagonismo dos povos originários e afrodescendentes, como é demonstrado no texto original.

Esse ponto é importante pois caracteriza, mais uma vez, um certo apagamento de grupos sociais etnicamente marcados, nesse caso, em detrimento da reflexão gerada em torno da data específica, das concepções de colonização e de descobrimento. Não se trata de desconsiderar essas reflexões, mas de deixar proeminentes as ações de grupos minoritarizados, pois, quando há uma generalização, como ao citar a sociedade uruguaia sem especificações dos grupos sociais/raciais envolvidos, as ações desses grupos ficam invisibilizadas.

O questionamento da comemoração sobre o dia da raça ganha destaque porque é visto como uma discussão necessária, porém, se seus protagonistas não são evidenciados, mantém-se a exclusão. Evidenciar a atuação dos grupos sociais é uma forma de garantir seu lugar na história e reconhecer a importância da sua participação na sociedade. Manifestações como descrito no texto base do item 95, em relação ao Uruguai, são um exemplo dessas atuações.

Os itens aqui analisados são representativos do corpus estudado. Como foi descrito, a afrodescendência no mundo hispânico, ainda que timidamente, é contemplada no Enem; contudo, a abordagem do tema tende a propor reflexões envoltas às colonialidades.

Considerações finais

Ao longo deste artigo, buscamos demonstrar que exames em larga escala como o Enem são dispositivos de regulação dos currículos, interferindo na dinâmica educacional e política de toda a sociedade. Suas implicações na educação linguística em espanhol podem favorecer a difusão da língua no Brasil, mas, ao mesmo tempo, fica subordinada a interesses econômicos que regem a educação. De igual maneira, o exame pode ser um espaço de aplicação da Erer, refletindo no currículo escolar e em outros âmbitos sociais a positivação das identidades negras, a indagação da hierarquização racial e social, além de promover a visibilidade das culturas afrodiaspóricas. Contudo, essa interpretação das possibilidades do exame não é isenta de disputas e de negociações.

Nesse sentido, buscamos demonstrar que a linguagem reflete, no caderno de perguntas das questões em espanhol, diferentes abordagens da afrodescendência no mundo hispânico, podendo ser direcionadas a uma perspectiva decolonial ou a uma manutenção das colonialidades. Conforme descrevemos nas análises, é possível constatarmos que as culturas afrodiaspóricas ocupam um lugar minoritarizado nas questões de língua espanhola do Enem, já que, dos 120 itens analisados, apenas nove permitem debater a racialização no mundo hispânico; e, entre esses itens, apenas dois positivam as influências afrodescendentes na cultura hispânica. Também foi possível constatarmos que a afrodescendência aparece de forma indireta na maioria dos casos, o que aporta maior relevância a essa pesquisa, uma vez que a temática pode passar despercebida para professores e elaboradores de itens que queiram se basear nas provas anteriores.

Desse modo, concluímos que, mais do que utilizar-se os cadernos de perguntas do Enem como uma preparação para o exame, é possível utilizá-lo como um material que, a partir da materialidade linguística que comporta, revela discussões pertinentes sobre a sociedade atual. A abordagem desse material pode ser realizada de diversas maneiras, dependendo do objetivo do professor. Buscamos, aqui, imprimir possibilidades decoloniais, que questionem a colonialidade do poder, do ser, da natureza, da arte e da linguagem, e ajude a promover um giro decolonial em direção à valorização e ao reconhecimento dos aportes da cultura negra no Brasil e no mundo hispânico.

Consideramos que, a partir dos itens do Enem, outras discussões podem ser realizadas em sala, como a representatividade dos povos originários, a desigualdade nas relações de gênero na sua diversidade, entre outras abordagens, observando inclusive as linguagens multimodais, que não couberam nesta pesquisa, mas que podem ser um campo para futuras investigações.

1A pesquisa aqui relatada recebeu apoio da agência de fomento Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe (Fapitec/SE).

2Para facilitar a leitura do texto, doravante omitimos a flexão de gênero. No entanto, sempre que nos referimos a examinados, alunos, professores etc., estão inclusas examinadas, examinades, professoras, alunas, alunes etc.

3A Educação Básica, no Brasil, compreende a Educação Infantil, o Ensino Fundamental I e II e o Ensino Médio. Para avaliar a qualidade da educação, são realizados exames em larga escala como o Enem, destinado ao Ensino Médio; a Prova Brasil, aplicada nos anos finais do Ensino Fundamental I e II com foco em Português e Matemática; o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), aplicado em diferentes etapas da Educação Infantil ao Ensino Médio; entre outros exames.

5Devido à pandemia da Covid-19, a aplicação regular do Enem 2020 ocorreu em janeiro de 2021 na sua versão impressa e digital. A segunda aplicação ocorreu em fevereiro e foi direcionada para as PPL e para as pessoas que não conseguiram fazer a prova na primeira aplicação, por conta das falhas na condução do exame no contexto pandêmico.

6Artigo completo disponível em: https://www.alainet.org/es/active/49991. Acesso em: 1 out. 2020.

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Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 26 de Janeiro de 2022; Aceito: 28 de Janeiro de 2022; Publicado: 04 de Fevereiro de 2021

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