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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 10-Mar-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19330.034 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

“Eu não sei se posso dizer que não sou racista”: narrativas discentes sobre história da cultura afro-brasileira e indígena na Educação Superior

“I don’t know if I can say I’m not racist”: student narratives on the history of Afro-Brazilian and indigenous culture in the Higher Education

“No sé si puedo decir que no soy racista”: narrativas de estudiantes sobre historia de la cultura afrobrasileña e indígena en la Educación Superior

Cíntia Régia Rodrigues* 
http://orcid.org/0000-0003-3319-3702

Edison Lucas Fabrício** 
http://orcid.org/0000-0003-4337-4654

*Doutora em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Docente do Departamento de História e Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Regional de Blumenau (Furb). E-mail : <crrodrigues@furb.br>.

**Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor colaborador no Departamento de História e Geografia da Universidade Regional de Blumenau (Furb) e na Rede Estadual de Educação do Estado de Santa Catarina. E-mail: <efabricio@furb.br>.


Resumo:

O objetivo deste estudo é analisar narrativas elaboradas por acadêmicos de diversos cursos da Universidade Regional de Blumenau sobre o tema da diversidade étnico-racial, a partir da disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena” e de como esta se insere na conjuntura e nas singularidades experimentadas pela sociedade em questão, a do Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Este trabalho ancora-se nos debates acerca da construção de narrativas, a partir de Paul Ricoeur, com o círculo hermenêutico, e de Jörn Rüsen, sobre a noção de aprendizagem histórica. As fontes advêm de um questionário distribuído aos estudantes no primeiro e segundo semestre acadêmico de 2020. Em relação aos resultados, este estudo constatou uma importante reelaboração discursiva sobre a história indígena e afro-brasileira e um reconhecimento das singularidades identitárias, dos contextos de negação de direitos e dos processos históricos de exclusão.

Palavras-chave: História da cultura afro-brasileira e indígena; Narrativas; Aprendizagem histórica

Abstract:

The aim of this study is to analyze narratives elaborated by university students from several courses at the Universidade Regional de Blumenau on the theme of ethnic-racial diversity, from the subject “History of Afro-Brazilian and Indigenous Culture” and how it fits into the situation and in the singularities experienced by the society in question, that of the Vale do Itajaí, in Santa Catarina, Brazil. This work is anchored in debates about the construction of narratives, based on Paul Ricoeur, with the hermeneutic circle, and Jörn Rüsen, about the notion of historical learning. The sources come from a questionnaire distributed to students in the first and second academic semester of 2020. Regarding the results, this study found an important discursive re-elaboration on indigenous and Afro-Brazilian history and a recognition of the singularities of identity, contexts of denial of rights and the historical processes of exclusion.

Keywords: History of Afro-Brazilian and Indigenous culture; Narratives; Historical learning

Resumen:

El objetivo de este estudio es analizar narrativas elaboradas por estudiantes de varios cursos de la Universidade Regional de Blumenau sobre el tema de la diversidad étnico-racial, a partir de la asignatura “Historia de la cultura afrobrasileña e indígena” y de cómo está se encaja en la coyuntura y en las singularidades vividas por la sociedad en cuestión, la de Vale do Itajaí, en Santa Catarina, Brasil. Este trabajo está anclado en debates acerca de la construcción de narrativas, a partir de Paul Ricoeur, con el círculo hermenéutico, y de Jörn Rüsen, sobre la noción de aprendizaje histórico. Las fuentes provienen de un cuestionario distribuido a los estudiantes en el primer y segundo cuatrimestre escolar de 2020. En relación a los resultados, este estudio constató una importante reelaboración discursiva sobre la historia indígena y afrobrasileña y un reconocimiento de las singularidades de la identidad, de los contextos de negación de derechos y de los procesos históricos de exclusión.

Palabras clave: Historia de la cultura afrobrasileña e indígena; Narrativas; Aprendizaje históric

Introdução

Os últimos meses de 2020 foram marcados pelo intenso debate em torno da expansão de grupos neonazistas no Brasil - especialmente no Sul do país - e da disseminação de discursos supremacistas brancos nos espaços públicos e virtuais. A discussão ganhou especial relevo quando, na cerimônia de posse, a governadora interina do Estado de Santa Catarina, Daniela Reinehr, evitou condenar o nazismo e o negacionismo do Holocausto, relativizados em textos por seu pai, Altair Reinehr, professor aposentado de História (DEUTSCHE WELLE, 2020). Alguns dias depois, em artigo publicado na Folha de São Paulo, a governador disse não compactuar com as ideias do pai (REINEHR, 2020).

Se o negacionismo histórico do Holocausto e a ausência de compromissos claros com uma agenda de combate à discriminação racial chegaram aos palácios governamentais é porque, no interior da sociedade, tais ações são ainda mais corriqueiras. A disseminação da ideologia nazista pelo Sul do Brasil não constitui algo novo, desde os anos de 1930 há fartas referências na historiografia sobre a existência de núcleos do Partido Nazista. Contudo, nos últimos anos, especialmente por uma ascensão global dos movimentos políticos de direita, é que se percebe uma expansão considerável de tais grupos. A antropóloga Adriana Abreu Magalhães Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em pesquisa empreendida sobre o tema nos últimos 15 anos, afirma existir 334 células neonazistas no Brasil, divididas entre hitleristas, supremacistas brancos, negacionistas do Holocausto e separatistas. Desse montante, 99 células se localizam no Estado de São Paulo e 182 nos três estados do Sul; sendo 69 em Santa Catarina, 66 no Paraná e 47 no Rio Grande do Sul (VEIGA, 2019). Ainda, segundo a pesquisadora, das três seções locais da Klu Klux Klan no Brasil, duas se localizam no município de Blumenau.

Esse cenário sombrio, acima descrito, é o contexto no qual se inserem os desafios de uma educação histórica humanista e antirracista. Espaço privilegiado para o debate, a universidade não pode se furtar ao seu papel acadêmico e político de qualificar as discussões sobre as relações étnico-raciais e formar profissionais, nas mais diversas áreas do conhecimento, com referências sólidas sobre a história e a cultura afro-brasileira e indígena na formação do Brasil. De acordo com Hall (2003), as culturas nacionais concebem identidades na medida que produzem sentidos sobre a “nação”, como as quais se reconhecem. Assim, existem diversas identidades que se ligam, se conectam, se desarmonizam e se ressignificam incessantemente em um mesmo grupo social ou entre grupos sociais.

Pensar a construção da identidade histórico-cultural brasileira é colocá-la nos moldes mais amplos do projeto colonial para a América. Diversos estudos historiográficos apontam que, ao longo do processo de colonização na América, o modelo e padrão de sociedade inseridos esteve preponderantemente atrelado à cultura europeia, do homem branco. De acordo com Quijano (2005),

[...] raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população. Com o tempo, os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e a assumiram como a característica emblemática da categoria racial. [...]. Os negros eram ali não apenas os explorados mais importantes, já que a parte principal da economia dependia de seu trabalho. Eram, sobretudo, a raça colonizada mais importante, já que os índios não formavam parte dessa sociedade colonial. Em consequência, os dominantes chamaram a si mesmos de brancos. Na América, a ideia de raça foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista. (QUIJANO, 2005, p. 15).

De forma complementar, Munanga (2003) afirma que o conceito de raça foi utilizado em diversas áreas, como na Zoologia e na Botânica, mas também serviu, sobretudo, para classificar a diversidade humana, e consequentemente, esses “[...] conceitos e classificações servem de ferramentas para operacionalizar o pensamento [...]” (MUNANGA, 2003, p. 2). Dessa forma, é importante considerarmos que, na história do Brasil, desde o período colonial, há um processo de hierarquização e de discriminação que se impõe por meio do racismo, visto aqui como “[...] uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes” (ALMEIDA, 2019, p. 32), estando arraigado na sociedade brasileira.

O reconhecimento das experiências, das vivências e das ações dos povos africanos e afrobrasileiros e dos povos indígenas foram invisibilizados durante séculos na escrita da história do Brasil, repercutindo também nos processos de discriminação elaborados por camadas da sociedade brasileira, favorecendo a construção do racismo, mascarando outros saberes e ancestralidades, produzindo uma sociedade desigual e encobrindo a pluralidade existente. A partir dos movimentos negro (PEREIRA, 2013) e indígenas (MUNDURUKU, 2012), fortalecidos durante a década de 1970, e o reconhecimento do pluralismo étnico-cultural por meio da Constituição Federal de 1988, criou-se um terreno fértil para o combate a um conjunto de desigualdades e um ambiente imprescindível para a construção e o fortalecimento da democracia.

Esse movimento também repercute na historiografia, contribuindo para a produção de diversas pesquisas com o intuito de visibilizar o tema da diversidade étnico-racial na história do Brasil. Além disso, também podendo ser interpretadas como ferramentas na superação de visões equivocadas, as Leis Federais Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, e Nº 11.645, de 10 março de 2008, que instituem a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena em todo o campo educacional (BRASIL, 2003, 2008), principalmente na Educação Básica, fundamentam o debate e a construção de conhecimento sobre o pluralismo étnico-cultural, além de reforçar a presença de sujeitos de origens africanas e indígenas na história do Brasil. Ambas as Leis são suplementares e primordiais em nosso país.

Dado esse contexto de elaboração de diversas e recentes pesquisas de um campo muito abrangente de temas, recortes, narrativas e de Leis Federais que efetivam o debate das diversidades étnicas, buscamos, neste trabalho, analisar a formação de uma consciência histórica mais plural entre os estudantes de Ensino Superior em Santa Catarina – de um modo geral, mais particularmente no Vale do Itajaí –, por intermédio das narrativas dos acadêmicos sobre a disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena” na Universidade Regional de Blumenau (Furb). Essa disciplina foi criada em 2018, conforme a Resolução Nº 068/2018, de 27 de agosto (FURB, 2018), e tem buscado cumprir com os objetivos de fomentar o debate sobre o racismo, o racismo estrutural, o reconhecimento de direitos, de outros saberes, histórias e culturas, alicerçando a luta pela democracia no país e na construção de uma sociedade antirracista. As narrativas deste artigo são provenientes de universitários de diversos cursos, tais como os de bacharelado em Psicologia, Ciências da Computação, Medicina, Arquitetura, e dos cursos de licenciatura em Dança e Química, que cursaram a disciplina por meio de aulas síncronas, via Internet, na plataforma Microsoft TEAMS. Ao total, participaram três turmas da disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena”, sendo uma turma no semestre 2020/1 e outras duas no semestre de 2020/2, mediante o contexto de pandemia da Covid-19.

As fontes utilizadas na presente investigação procedem de revisões historiográficas acerca da temática da história afro-brasileira e indígena no Brasil e de um questionário1 elaborado e aplicado aos estudantes, em que os acadêmicos desenvolveram reflexões acerca do papel da disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena” na Furb por meio de quatro questões semiabertas. As perguntas, encaminhadas ao final de cada semestre acadêmico, foram as seguintes: 1. Quais eram seus conhecimentos acerca da história do Brasil e das relações étnico-raciais antes de cursar a disciplina?; 2. Tendo cursado a disciplina, quais são as suas possibilidades de interpretação da história do Brasil e das relações étnico-raciais?; 3. Sobre a história regional (Santa Catarina e Vale do Itajaí): a) O que você conhecia sobre os povos indígenas?; b) Quais conhecimentos você teve acesso por meio da disciplina cursada?; 4. Qual é a avaliação que você faz da disciplina para a sua formação profissional e humanística?

Dessa forma, neste artigo, pretendemos analisar as narrativas construídas pelos acadêmicos de diversas áreas sobre o tema da diversidade étnico-racial a partir da disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena”, levando em consideração o contexto e as especificidades vividas pela sociedade em destaque, o Vale do Itajaí, em Santa Catarina. Para tanto, organizamos a discussão em dois momentos. O primeiro trata de apresentarmos e debatermos um conjunto de produções historiográficas acerca dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas no Estado de Santa Catarina. Já no segundo, examinamos as narrativas produzidas pelos acadêmicos, diante do questionário organizado a partir dos referenciais teórico-metodológicos de Rüsen, Ricoeur, dentre outros. Por fim, lançamos algumas considerações finais sobre o estudo.

Alguns apontamentos sobre a escrita das histórias dos povos africanos e afro-brasileiros e dos povos indígenas em Santa Catarina

Pretendemos, nesta seção, apresentar em linhas gerais alguns estudos e pesquisas que corroboram este estudo para construir um breve panorama sobre a escrita acerca de alguns grupos étnicos que também formam e formaram a sociedade catarinense. Em vista disso, buscamos demonstrar, diante de espaços, recortes cronológicos e abordagens distintas, que esses grupos se fizeram presentes e são atuantes na história de Santa Catarina.

Segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), a população negra e parda no Sul do Brasil é de aproximadamente 20% do total populacional. Em Santa Catarina, o número é de aproximadamente 15%, o mesmo se repetindo no Rio Grande do Sul e alterando-se para 28% no Paraná (IBGE, 2010). Esses números são resultado de uma política de branqueamento da população brasileira iniciada no Brasil Império e que, por meio de sucessivas ondas migratórias, teve impacto profundo na composição atual dos três estados sulistas. Assim, não é fortuito que a história e a cultura afro-brasileiras no Sul do Brasil sejam pouco conhecidas do grande público, e até mesmo no meio acadêmico.

Tratando-se de povos indígenas, conforme a Fundação Nacional do Índio (Funai), Fundação Nacional da Saúde (Funasa) e IBGE, em seu último Censo elaborado em 2010, no Estado de Santa Catarina existem 16.041 indígenas. Nesse número estão inclusos os indígenas que moram em Terras Indígenas (TIs) e os que vivem nas cidades. Brighenti (2012b) destaca que, atualmente, encontram-se 10.369 indígenas nas TIs, divididos em três etnias: sendo 1.657 Guarani, em 21 aldeias; 6.543 Kaingang, distribuídos em cinco Terras Indígenas; e 2.169 Xokleng, ocupando duas Terras Indígenas.

Tradicionalmente, a história de Santa Catarina tem sido narrada e vista pelas lentes da imigração. O litoral teria sido o espaço da presença açoriana e as outras regiões, como o Vale do Itajaí e o Sul do estado, seriam marcadas pela inserção de alemães, italianos, poloneses, ucranianos e de outras nacionalidades europeias. Portanto, grande parte da tradicional historiografia catarinense tem sido mobilizada para descrever a saga da imigração europeia. Em grande medida, o chamado progresso e a pujança econômica têm sido associados à fixação de colonos europeus no estado. Essa demasiada predileção pela história da imigração acabou por invisibilizar vários grupos étnicos. A história e a cultura de povos indígenas, de caboclos e, por fim, de africanos e de afrodescendentes têm sido obliteradas na memória histórica catarinense. E isso tem se refletido nos diferentes níveis da formação educacional dos jovens, tanto na Educação Básica como no Ensino Superior.

É salutar retomarmos, neste espaço, algumas referências dos estudos sobre africanos e afrodescendentes em Santa Catarina. Foi no âmbito do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC), ainda na virada da década de 1930 para 1940, que surgiram os primeiros trabalhos, no contexto do cinquentenário da abolição. Ainda que sejam textos de monumentalização da memória de abolicionistas brancos e de elite, são as primeiras obras a colocar em destaque questões da população negra (BARBOSA, 1940; BLUM, 1939).

Na década de 1960 em diante, no quadro mais amplo das pesquisas da chamada Escola Paulista de Sociologia, o trabalho de Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, Cor e mobilidade social em Florianópolis (CARDOSO; IANNI, 1960), é importante referência sobre a questão das populações afrodescendentes. Esse trabalho, embora buscasse superar o discurso da chamada democracia racial, acabou criando preconceitos. De um modo geral, ao negar a capacidade de agência, defendia que a dominação continuou depois da abolição e que a ideologia de branqueamento foi assimilada pelos próprios negros, criando o preconceito em relação a sua própria cor. Saídos do regime escravista, os negros não teriam conseguido romper com as estruturas de inferiorização e, sempre dominados simbólica e economicamente pelos brancos, não viam outra alternativa além de viver fazendo concessões a partir da dominação introjetada em si mesmos. Por conseguinte, ainda que seja uma contribuição importante para a compreensão dos aspectos residuais da escravidão, dos limites da mobilidade social e do papel central do preconceito racial na década de 1950, o livro de Cardoso e Ianni tem muitas limitações.

Um dos primeiros trabalhos do incipiente campo acadêmico catarinense a tratar com maior precisão a população negra em Santa Catarina é o do professor Walter Piazza, O escravo numa economia minifundiária, publicado em 1975. Mesmo com as limitações de seu tempo, o livro do professor Piazza é uma das primeiras obras a falar do aspecto demográfico, sobre a procedência dos contingentes de escravos, o cotidiano do trabalho, as festas e as devoções, as fugas e a organização de quilombos, e os movimentos abolicionistas. Contudo, fazendo coro às publicações de autores vinculados ao IHGSC, como Oswaldo Rodrigues Cabral, Piazza acabou por enfatizar a suposta marginalidade econômica do estado, sempre visto à sombra das grandes monoculturas do Sudeste e Nordeste, como atesta o título da obra. Contudo, mesmo com essa ênfase, é possível ainda analisar dados importantes do trabalho de Piazza, como o fato de registrar um contingente de 15.533 escravos (33%) para o total de 45.410 habitantes de Santa Catarina, em 1824; porcentagem nada desprezível se ainda se levar em conta a exclusão de libertos (PIAZZA, 1975).2 Em se tratando das populações indígenas do estado, é preciso enfatizarmos o silêncio da produção historiográfica do IHGSC. Será preciso um olhar mais atento dos profissionais da Antropologia para que a história indígena conquiste um maior espaço no debate intelectual catarinense.

Na década de 1980, a do centenário da abolição, surgiram novos trabalhos com consolidação de uma nova historiografia a partir da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Negro em terra de branco: escravidão e preconceito em Santa Catarina no século XIX, livro organizado pela professora Joana Maria Pedro, foi uma obra que trouxe novas abordagens sobre a temática, ao mesmo tempo em que realizou uma revisão crítica da suposta insignificância demográfica das populações africanas e afrodescendentes em Santa Catarina (PEDRO, 1988). Ainda na linha da revisão crítica, o livro Negros no sul do Brasil, organizado pela antropóloga Ilka Boaventura Leite, contou com a contribuição de diversos historiadores e abriu novas perspectivas de análise (LEITE, 1996).

A primeira década deste século foi pródiga em novos estudos sobre as populações africanas e afrodescendentes em Santa Catarina. Realizarmos uma análise exaustiva da produção historiográfica sobre populações afrodescendentes em Santa Catarina é uma tarefa hercúlea a qual este artigo não se propõe. Contudo, é importante mencionarmos que todas as regiões do estado já foram contempladas com trabalhos historiográficos sobre os períodos da escravidão e do pósabolição, com destaque para Lages, Laguna, Desterro, São Francisco do Sul e a região da foz do Rio Itajaí. Nesse conjunto de obras, ganha destaque Os homens pretos do Desterro: um estudo sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário (1841-1860), da professora Claudia Mortari Malavota (2011). Ainda focalizando a capital, há o livro do professor Paulino de Jesus Cardoso (2008), Negros em Desterro: experiências das populações de origem africana em Florianópolis na segunda metade do século XIX. E sobre a região da foz do Rio Itajaí, os trabalhos do professor José Bento Rosa da Silva: A Itajahy do século XIX: história, poder e cotidiano (SILVA, 2008) e Negros em Itajahy: da invisibilidade à visibilidade -mais de 150 anos de história, este último em coautoria com Moacir Costa (SILVA; COSTA, 2010).3

As obras citadas anteriormente foram publicadas e chegaram ao grande público. Contudo, a maior parte dos estudos não chega a sair dos repositórios das universidades. É nesse contexto, da publicização do conhecimento histórico, que ainda podemos situar uma última e importante obra: História diversa: africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina, organizada pelas professoras Beatriz Mamigonian e Joseane Vidal (2013a), a qual contou com a colaboração de mais de uma dezena de historiadores e historiadoras. Na introdução do livro, as autoras pontuam que o objetivo é trazer ao público uma história diversa: “Diversa porque diferente da história contada até agora; diversa porque múltipla e porque expõe a diversidade; diversa porque está mudada; e ainda, diversa porque é discordante” (MAMIGONIAN; VIDAL, 2013b, p. 3).

“História diversa” traz temas ainda pouco abordados pela historiografia, tais como o lugar da Ilha de Santa Catarina no tráfico marítimo de escravos, a presença de escravos nas armações baleeiras, nos engenhos de farinha e no comércio, os espaços de sociabilidade, clubes e associações, as festas e as irmandades, as fugas e a formação de quilombos. Para além da importância da visibilidade histórica, para Mamigonian e Vidal ( 2013b, p. 4), “[...] não se trata, como se vê, de acrescentar ‘contribuição’ de um ‘grupo étnico’”, mas de inserir a discussão em uma perspectiva mais ampla, a do Atlântico Negro, da chamada diáspora africana, de “[...] migração forçada, que deslocou populações no interior do continente africano, dispersou aproximadamente doze milhões de pessoas através do Atlântico e alimentou a escravidão, deixando um legado de discriminação racial” (MAMIGONIAN; VIDAL, 2013b, p. 4).

Como já sinalizamos anteriormente, diversos grupos étnicos foram ocultados na escrita da história catarinense, como os povos indígenas, ora retratados como vítimas do processo colonizador e em vias de extermínio, ora descritos como selvagens, impedindo o desenvolvimento das frentes de expansão colonial (ALVES, 2000; SANTOS, 1973; WITTMANN, 2005). Os povos indígenas, a partir do século XVI, tiveram seus territórios históricos usurpados pelos colonizadores que promoveram a ocupação e a apropriação desses espaços, contribuindo para ações de invisibilização dos povos originários e, portanto, de suas histórias e culturas. Antes do processo de colonização já havia grupos humanos (SCHMITZ, 2013, 2016) dos quais descendem os atuais povos indígenas que habitam as terras catarinenses: os Guarani, os Xokleng e os Kaingang. Ainda é possível verificar a presença dos povos originários a partir de escritos de diversos viajantes, como Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, de 1541 (CABEZA DE VACA, 2000) e Hans Staden, de 1557 (STADEN, 1930).

Na tradicional historiografia catarinense do século XX, principalmente nas décadas de 1930 e 1940, a presença dos indígenas é interpretada a partir de Oswaldo Rodrigues Cabral (1937, p. 113) como uma “[...] conquista da civilização ao primitivo gentio”. Uma mudança substancial é operada a partir do conjunto das pesquisas realizadas pelo antropólogo Silvio Coelho dos Santos sobre os povos indígenas no Sul do Brasil, em especial sobre os Jê, Xokleng e Kaingang. Principalmente a partir da década de 1970, seus estudos destacam a presença e a história dos povos originários no Estado de Santa Catarina, os contatos estabelecidos com os não-indígenas, as ações de extermínio empreendidas aos Xokleng e, ainda, a prática da política indigenista no contexto regional que pretendia “integrar” os indígenas à civilização (SANTOS, 1970, 1973, 1997). De acordo com Santos: “A caracterização dos Xokleng como selvagens desalmados, que tudo faziam para matar ao branco, foi comum e necessária para se justificar as ações que sobre eles deflagravam os bugreiros e os colonos [...]. O índio não era exatamente humano, concluía-se dessas histórias” (SANTOS, 1973, p. 97).

Em 2000, o historiador Rodrigo Lavina, a partir de um capítulo intitulado “Indígenas de Santa Catarina: história de povos invisíveis”, ressaltava que as produções historiográficas sobre a presença dos indígenas em Santa Catarina eram escassas e praticamente atestavam que os indígenas eram menosprezados como agentes históricos, pois:

Mesmo entre os historiadores, o assunto raramente passa de um capítulo no início das obras sobre a História do Estado ou das comunidades que o formam, repetindo sempre as mesmas fontes e eternizando lugares-comuns a respeito destes povos que, se formos acreditar nestes trabalhos, teriam deixado como sinais de sua passagem apenas nomes de rios, lagoas e montanhas [...]. (LAVINA, 2000, p. 73).

Mesmo diante do cenário descrito, no contexto dos movimentos indígenas e da elaboração da Constituição Federal de 1988, com o encontro profícuo entre historiadores e antropólogos, dentre outros intelectuais no Brasil, os estudos sobre os povos indígenas vêm os reconhecendo como sujeitos ativos nos processos históricos. Trata-se de uma virada historiográfica em relação à temática indígena, quando “[...] os índios vão, lentamente, passando da invisibilidade construída no século XIX para o protagonismo conquistado e restituído nos séculos XX e XXI, por movimentos políticos e intelectuais nos quais eles próprios têm tido intensa participação” (ALMEIDA, 2012, p. 22), produzindo a chamada nova história indígena. Esse movimento tem produzido vários estudos que contribuem para visibilizar cada vez mais as histórias e os protagonismos indígenas no Estado de Santa Catarina.

Vários espaços de pesquisa e núcleos de estudos foram criados em universidades catarinenses ao longo das últimas décadas, impulsionando a produção de trabalhos históricos acerca das histórias dos povos indígenas. Dentre o número expressivo de pesquisas acadêmicas, vários temas são analisados, como etno-história, memória, imigração e povos indígenas, política indigenista, movimento indígena, ensino de história indígena e outros. Tais temas são tratados por vários pesquisadores, dos quais podemos destacar: Brighenti (2012a, 2012b), Bringmann (2015), Nözold (2004), Rosa (2017), Wittmann (2005, 2007), dentre outros. Entretanto, é preciso ressaltarmos ainda que a pouca visibilização de trabalhos relacionados às culturas afro-brasileiras no estado, descritos anteriormente, também se aplica às pesquisas realizadas acerca da história indígena no Estado de Santa Catarina.

Essa breve e despretensiosa apresentação da historiografia sobre populações indígenas, africanas e afrodescendentes em Santa Catarina serve de ponto de partida para destacarmos a importância desses grupos na formação da identidade cultural do estado. Essa perspectiva é relevante para uma primeira aproximação dos estudantes em relação ao tema. Para muitos estudantes, a história das populações negras, da escravidão e da resistência à escravidão parece algo distante, apenas parte da história das regiões Nordeste e Sudeste do país. É com surpresa que muitos ouvem, pela primeira vez, sobre a existência de comunidades quilombolas em uma região em que predominou por muito tempo o discurso da presença europeia. Inserir o Sul do Brasil na dinâmica do tráfico atlântico de escravos e das resistências à escravidão no restante do país é, portanto, fundamental para uma compreensão mais ampla dos processos históricos. De forma semelhante, as narrativas constantes sobre os povos são povoadas por imagens estereotipadas que os caracterizam como sujeitos do passado, além de se homogeneizar culturas diversas, fruto de visões preconceituosas construídas desde o processo de colonização do Brasil que pretendiam assimilar os povos originários a cultura dita “superior” e visivelmente ainda muito arraigadas nos dias atuais. As etnias continuam a serem invisibilizadas, mesmo que estas tenham seus direitos garantidos constitucionalmente e façam parte da sociedade catarinense; afinal, os indígenas são os primeiros habitantes deste espaço e convivem com os não indígenas nas cidades, nas rodovias, nas universidades e em diversos espaços.

Em vista disso, é primordial ponderarmos sobre as narrativas elaboradas pelos acadêmicos sobre a diversidade étnico-racial e a participação dos povos africanos e afrodescendentes e indígenas na construção da história do Brasil, consequentemente de Santa Catarina, estimulando a formação de uma consciência histórica múltipla e analisando as refigurações e recriações de narrativas no que concerne ao tema, diante da participação na disciplina “História da cultura afrobrasileira e indígena”.

Aprender sobre história da cultura afro-brasileira e indígena: narrativas discentes

A função pública da didática da história tem no humanismo um de seus princípios. O autoconhecimento e o reconhecimento do outro são elementos fundamentais de uma aprendizagem histórica emancipadora, eixo central da orientação para a vida prática. Para além de uma pedagogia instrumental e das competências, que transforma alunos em cifras contabilizadas em planilhas e índices de aprovação, é preciso desenvolver uma aprendizagem histórica alicerçada em um humanismo “[...] pautado nos princípios da interculturalidade e da intersubjetividade” (SCHIMIDT; FRONZA, 2015, p. 8). De acordo com Rüsen (2012, p. 78), a aprendizagem histórica “[...] é um processo auto-reflexivo das operações de consciência, no qual se trata do processo produtivo da experiência temporal da interpretação do tempo [...]”.

A partir dessa orientação, é possível pensar o quanto o ensino de história pode ser o lugar do contato e do encontro com a alteridade e uma subjetividade diversa. O escritor indígena Ailton Krenak (1999), ao falar do polissêmico “eterno retorno do encontro”, assinala que não podemos restringir o contato ao evento de 1500 ou da chamada conquista da América; o encontro deve continuar a ocorrer no presente e no futuro. Para o autor:

Reconhecer isso nos enriquece muito mais e nos dá a oportunidade de ir afinando, apurando o reconhecimento entre essas diferentes culturas e “formas de ver e estar no mundo” que deram fundação a esta nação brasileira, que não pode ser um acampamento, deve ser uma nação que reconhece a diversidade cultural. (KRENAK, 1999, p. 28).

Portanto, um humanismo baseado na interculturalidade pode ser uma resposta aos diversos etnocentrismos recrudescidos nos últimos anos. Vinte anos depois, Ailton Krenak volta a nos fazer refletir sobre as subjetividades indígenas e o quanto é necessária essa pedagogia do encontro. Ao falar dos 500 anos de resistência indígena no Brasil, Krenak enfatiza:

A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais. [...]. Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades — as nossas subjetividades. Então vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar, não botar ela no mercado. [...] vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, nossas visões, nossas poéticas sobre a existência. (KRENAK, 2019, p. 31-33).

O encontro com estas subjetividades “outras” deve ser um dos objetivos centrais da aprendizagem histórica. Nesse sentido, trata-se de sermos impelidos a conhecer narrativas diversas e, por meio delas, reelaborarmos nossas próprias visões de mundo e perspectivas acerca da formação histórica do Brasil e do Estado de Santa Catarina, reinterpretando nossas próprias identidades.

O trabalho com narrativas discentes passa, necessariamente, pela discussão da natureza do próprio ato de narrar. Nesse viés, embora exista uma rica tradição filosófica desde o surgimento da hermenêutica moderna, com destaque para Friedrich Schleiermacher e Wilhelm Dilthey, é em Paul Ricoeur que teremos uma reflexão mais adequada aos nossos objetivos.

As reflexões de Paul Ricoeur apontam-nos que a produção da identidade passa pelo encontro com a alteridade e faz-se por inetrmédio da narrativa. A narrativa é o produto de uma hermenêutica de si diante do encontro com a alteridade. A hermenêutica proposta por Paul Ricoeur situa-se “[...] no interior de uma ambição mais ampla que é a de examinar as relações entre um Texto e o Viver [...], fiel à tradição que faz da Hermenêutica uma ‘ciência sobre o outro’” (BARROS, 2012, p. 17). Nessa perspectiva, Ricoeur apresenta uma proposta circular de análise, que parte do vivido, integra produtores de textos e leitores e retorna ao vivido – o conhecido círculo hermenêutico.

O círculo hermenêutico é trifásico e comporta as chamadas três mimeses. A primeira é o momento de buscar elementos narrativos no vivido. O tempo da chamada Mimese I situa-se no domínio da vida prática, anterior à escrita, trata-se de “[...] pré-compreender o que ocorre com o agir humano: com sua semântica, com sua simbólica, com sua temporalidade” (RICOEUR, 1994, p. 101). A Mimese II é a construção da trama ou da intriga, aqui “[...] o tempo configurado em um texto institui ainda a ponte que vai do autor para o leitor” (NICOLAZZI, 2003, p. 8). E, por fim, a Mimese III, que é o trabalho de recepção e de recriação pelo leitor. A essas fases, Ricoeur denominou: prefiguração, configuração e refiguração. É importante percebermos como as três mimeses se entrelaçam e são mutuamente afetadas. A segunda mimese atua como mediadora entre o vivido e o leitor. É a mimese configurada em texto que media o vivido e a própria vivência do leitor. E nesse ponto o círculo não se fecha definitivamente, mas se abre indefinidamente pela recepção ou recriação de sentidos que o leitor opera. Em termos temporais, tem-se o tempo do autor (I), o tempo do texto (II) e o tempo do leitor (III). É esse último que interessa especialmente aos objetivos deste artigo.

O modelo hermenêutico ricoeuriano mostra-se adequado para refletirmos sobre as narrativas discentes construídas a partir da disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena”. Essas narrativas são resultado do encontro entre o mundo vivido dos discentes com os textos da disciplina, as próprias narrativas docentes e outros recursos pedagógicos audiovisuais. De forma complementar, é importante trazermos a contribuição de Rüsen, quando destaca que a consciência histórica também pode ser “[...] direcionada exatamente à organização dos fatores de ensino e aprendizagem, [...] trata-se de trazer o lado subjetivo que todos os professores e alunos [...] têm [...]”, promovendo a construção da identidade por meio de experiências históricas escolhidas (RÜSEN, 2012, p. 71). A partir de Ricoeur, a síntese discente em forma de narrativa constitui a refiguração, a recriação e a inventividade – elementos fundamentais para o processo de aprendizagem histórica.

O leitor é quem permite que a História retorne ao vivido – aspecto fundamental nas proposições ricoeurianas. [...]. O leitor constrói sua identidade por contraste com a identidade de outros, estabelece reconhecimentos, compara situações com a sua própria experiência vivida, elabora uma “visão” de si mesmo, do mundo e do outro, bem como de suas relações recíprocas. (BARROS, 2012, p. 24).

A partir desse movimento hermenêutico em direção ao outro e a si mesmo, trazemos algumas narrativas elaboradas pelos acadêmicos que cursaram a disciplina, a partir das perguntas elaboradas no formulário do Google Documentos. Vale ressaltarmos que foram escolhidas algumas respostas de um universo de 22 estudantes que responderam ao formulário, recorte necessário diante da impossibilidade de analisarmos qualitativamente todas as respostas. A primeira pergunta teve um caráter preliminar e visava perceber o conhecimento prévio dos estudantes: “Quais eram seus conhecimentos acerca da história do Brasil e das relações étnico-raciais antes de cursar a disciplina?”.

Primordialmente, antes de cursar a disciplina já entendia dos aspectos mais relevantes quando se fala das relações étnico-raciais. Aspectos como: A dificuldade dos africanos e indígenas no Brasil; a história do povo negro. O reconhecimento do indígena no Brasil, e a luta para não perder sua identidade. (Estudante 4).

As básicas, aprendidas na escola: história geral da colonização, como o domínio sobre os indígenas e escravidão de povos africanos; e atualmente um pouco sobre a atual desigualdade de negros e brancos, e a carência dos indígenas quanto aos seus direitos. (Estudante 2).

As primeiras impressões trazidas por esses excertos dizem respeito a temas corriqueiros que a história escolar proporciona aos estudantes. O contato com esses temas também ocorre por meio dos mais variados meios de comunicação, das telenovelas, das expressões artísticas, musicais, dentre outras. Assim, temas como escravidão, a diversidade étnico-racial, as dificuldades e as carências como frutos de um processo de negação de direitos básicos e dignidade, as lutas em defesa da identidade cultural, surgem como elementos a priori no processo de aprendizagem histórica. No entanto, a reflexão sobre esse conhecimento prévio também deu margem para autorreflexões com profundidade crítica, inclusive com avaliações sobre a condição histórica do país em uma perspectiva de longa duração, na qual elementos excludentes persistem nas estruturas socioculturais.

Antes de estudar essa matéria, eu acreditava entender como o racismo e o preconceito existiam em nossa sociedade e que pareciam estar cada vez menores. Eu estava errada. Estudando a fundo a história desses povos, de suas lutas e sofrimento, percebo hoje o quanto ainda precisamos lutar e melhorar. A crueldade a qual os povos indígenas foram submetidos quando aqui chegaram os europeus, abre os olhos para a verdade de que aqui somos todos imigrantes. Roubamos suas terras, sua dignidade e, para nos proteger, demonizamos e marginalizamos esses povos, passando de geração em geração mentiras e falsas noções, e que infelizmente persistem até hoje. (Estudante 20).

Na sequência do questionário, a intenção foi a de perceber como ocorreu a apropriação do conhecimento histórico, quais elementos sobressaíram na experiência da aprendizagem histórica. Nesse sentido, a segunda pergunta foi a seguinte: “Tendo cursado a disciplina, quais são as suas possibilidades de interpretação da história do Brasil e das relações étnico-raciais?”.

Acho que aumentaram consideravelmente, pois percebi como tudo do que sabemos não é tão simples. Entendi a diferença de escravidão e racismo, percebi como os indígenas estão distribuídos pelo Brasil e como eles ainda sofrem inúmeros preconceitos e estão numa luta constante pelos seus direitos. Essa disciplina é muito importante para [...] aprendermos a ir atrás de conhecimento, resposta e soluções para aqueles que são descartados pela sociedade. (Estudante 2).

Muitos aspectos foram acrescentados com a disciplina. Além de dados apresentados que esclarecem muito mais a situação, pude observar e refletir sobre situações que ocorrem na minha própria região, como, por exemplo, a vida desfavorecida dos indígenas que foram realocados para o outro lado da barragem. (Estudante 1).

A principal interpretação é que há muito a se estudar, se orgulhar e dar MUITA voz referente aos povos indígenas e afrodescendentes, pois esses contribuem e contribuíram muito para a formação do país, embora silenciados e menosprezados. (Estudante 16).

Essas respostas colocam questões fundamentais sobre as funções práticas da aprendizagem histórica e, em um aspecto mais particular, o encontro do estudante/leitor com a narrativa histórica. Para Rüsen (2010, p. 43), o aprendizado histórico pode “[...] ser compreendido como um processo mental de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica”. Assim sendo, é o caráter orientador do conhecimento histórico que possibilita uma avaliação mais atenta das experiências humanas. Dessa forma, “[...] a unidade do aprendizado histórico em suas complexas referências a desafios do presente, experiências do passado e expectativas de futuro encontra-se resolvida na estrutura narrativa deste trabalho de interpretação” (RÜSEN, 2010, p. 43-44)

É nessa perspectiva de carência de orientação para a vida prática que podemos observar também as respostas que seguem, em que a aprendizagem histórica oferece possibilidades para pensar criticamente as funções da religião, o caráter laico da educação e as estruturas racistas perpetuadas na sociedade brasileira.

Conhecer os conceitos que deram origem e justificaram a escravização dos povos nos traz argumentos para a elaboração de formas de diminuir o preconceito e a prática do racismo. [...]. Entender que a religião, de forma negativa, contribuiu para o sofrimento e legitimou a violência tanto de índios como de negros, nos faz refletir [...]. Nos traz as razões pelas quais a escola deve ser laica. Nos mostra como o racismo estrutural ainda justifica muitas desigualdades, que, muitas vezes, infelizmente, ocorre com certa naturalidade. [...]. Precisamos respeitar que existe o diferente, que negros e índios tinham suas próprias culturas e que foram forçados a assumir uma outra, quase perdendo a sua identidade. (Estudante 22).

Estudando sua história, percebemos o quanto sua cultura [indígena] é rica e diferenciada, quase completamente engolida pela conversão forçada imposta sobre eles por nossos antepassados. [...]. Sempre que pensamos em escravidão sentimos tristeza, é um tema pesado, cruel mas muito real. Apesar de sempre ter estudado sobre esse assunto, muita coisa nova se apresentou para mim neste semestre. [...] agora me dou conta do privilégio que experimentei a vida toda sem saber, apenas por ser branca. (Estudante 20).

Para além da defesa da laicidade da educação, essas respostas denotam a importância do conhecimento histórico para refletir sobre o processo histórico de construção de desigualdades a partir da inferiorização étnico-racial. De forma concomitante, ao lado da sensibilidade para com a alteridade e a diversidade cultural, emerge uma reflexão relevante sobre os próprios privilégios da branquitude em um contexto de racismo estrutural.

Na sequência, a terceira pergunta do formulário buscava abordar aspectos da temática étnico-racial em âmbito regional: “Sobre a história regional (Santa Catarina e Vale do Itajaí): a) O que você conhecia sobre os povos indígenas? b) Quais conhecimentos você teve acesso por meio da disciplina cursada?”. Seguem algumas respostas:

[Conhecimento sobre os povos indígenas de Santa Catarina]. Conhecia bem pouco, acreditava inclusive ser mais habitual em estados do Norte do país. [...]. Essa questão indígena, pude ver a problemática de uma forma mais próxima, que abrange melhor a minha realidade local e que torna a pauta ainda mais pertinente, sabendo que não se trata (apenas) de responsabilidade do âmbito federal. (Estudante 7).

Sobre os indígenas sabia ainda menos do que sobre os afrodescendentes. Apenas uma visão bem superficial e sem nenhum conhecimento focado nos indígenas da região. O que mais me chocou foi a situação desse povo no outro lado da barragem, que sofre todos os dias e pouquíssima gente tem conhecimento. (Estudante 1).

Essas respostas fornecem indícios importantes. À primeira vista, chama atenção a invisibilidade dos grupos indígenas no Estado de Santa Catarina, a percepção de que sua presença seria mais comum apenas no norte do país. Dessa forma, a distância espacial e cultural é vista como um obstáculo à própria aproximação ao tema, além de demonstrar a falta de clareza sobre os direitos constitucionais e da cidadania indígena conquistada ainda no século XX. E, sobretudo, demonstra o “desconhecimento” dos efeitos nocivos da Barragem Norte para com os indígenas que vivem na região do Alto Vale do Rio Itajaí, os quais constantemente se mobilizam em busca de suas demandas; dentre elas, o reconhecimento dos seus direitos e ao mesmo tempo do próprio direito de viver na região.

Contudo, à medida que se tem acesso ao conhecimento histórico sobre as populações indígenas do estado, e principalmente sobre os grupos étnicos Xokleng, Kaingang e Guarani, percebe-se a construção da empatia histórica – condição da própria compreensão e consciência históricas –, que não se reduz à simples empatia emotiva. Nesse ponto, retomamos o tema central desta seção: o “aprender”, a aprendizagem histórica que pode ser operada pela empatia. Segundo Isabel Barca,

[...] aprender a praticar a empatia histórica traduzida no diálogo intelectual com os diversos “outros”, sejam seres humanos do passado, do presente e, também, do futuro (na medida em que podemos perspectivar consequências das ações do presente para os sujeitos vindouros). Os jovens estarão assim mais preparados para procurar entender o estranho e, por isso, mais aptos a selecionar opções para si próprio, numa perspectiva de humanismo intercultural. (BARCA, 2017, p. 89).

Fomentando o pensar histórico dos acadêmicos, torna-se possível formar profissionais em diversas áreas com a percepção de que são sujeitos históricos, políticos, sociais e culturais e que refletem sobre uma sociedade que se movimenta (FREIRE, 2018). Por consequência, o humanismo pode impulsionar a prática da educação democrática e plural.

A quarta pergunta versa sobre as possibilidades de avaliação da disciplina na formação dos acadêmicos. Assim, era necessário responder: “Qual é a avaliação que você faz da disciplina para a sua formação profissional e humanística?”.

A avaliação que eu faço [...] é que é uma matéria muito importante para o desenvolvimento pessoal e profissional. Quando trabalhamos com outras pessoas, é muito importante saber reconhecer as diferentes identidades e culturas. Nosso ambiente profissional é constituído por diversos profissionais, de diversas etnias. Graças a essa disciplina, somos capazes de trabalhar com diversos tipos de pessoas e de reconhecer a sua importância dentro do nosso grupo. (Estudante 4).

Conhecer a nossa história e as relações étnico-raciais foi e continuará sendo de suma importância para o meu crescimento pessoal e profissional. Como futura psicóloga, saber entender os anseios do próximo é essencial e isso começa pelo conhecimento, respeito e desejo de lutar junto. A disciplina foi excelente para abrir esses horizontes. (Estudante 10).

Essas duas respostas iniciais, como as anteriores, realizadas com possibilidade de anonimato, mostram a importância atribuída à disciplina de “História da cultura afro-brasileira e indígena” não apenas em cursos de formação de professores, mas também nos de bacharelado, tais como os de Psicologia, Ciências da Computação, Medicina, Arquitetura, dentre outros. Estes são indícios evidentes de uma crescente percepção da importância das humanidades, mesmo em cursos historicamente marcados por uma formação majoritariamente técnica. Paulatinamente, os novos perfis profissionais são colocados diante de novos desafios e exigências na e em sociedade. Diante dos inúmeros conflitos globais oriundos dos campos econômicos, políticos, religiosos e culturais, urge a formação de profissionais no quadro de um “[...] novo humanismo que resolva o problema da comunicação intercultural no quadro da atual agenda de globalização” (RÜSEN, 2015, p. 160).

É importante mencionarmos também que a compreensão humanista e emancipatória do conhecimento histórico está longe de ser vista como algo necessário à formação acadêmica, especialmente nos últimos anos, marcados pelo recrudescimento de manifestações e posicionamentos políticos de extrema direita. Nesse contexto, levando em conta as palavras introdutórias deste artigo, que mencionam a multiplicação exponencial de grupos supremacistas brancos, neonazistas e até células da Ku Klux Klan em Santa Catarina, não é fortuito que surgissem respostas negativas à importância de uma disciplina como a de “História da cultura afro-brasileira e indígena” e negadoras da diversidade étnico-cultural. Uma das respostas à pergunta “Qual é a avaliação que você faz da disciplina para a sua formação profissional e humanística?” veio de forma enfática: “Matéria totalmente desnecessária que só promove a doutrinação dos alunos! Não agrega nada em minha formação profissional e humanistíca” (Estudante 13).

Essa resposta também deve ser lida na chave de compreensão do negacionismo do conhecimento científico dos últimos anos. Esse negacionismo afeta as mais variadas áreas do conhecimento, mas é particularmente incisivo sobre as humanidades e especialmente sobre a História, na qual ganha destaque como revisionismo negacionista, cujos alvos preferenciais são a experiência do Holocausto, as diversas ditaduras latino-americanas, a escravidão africana e indígena e seus efeitos perversos até os dias atuais. Contudo, na sequência das respostas, é possível identificarmos outras perspectivas, como a que segue:

A inclusão social não é fazer o outro assumir a cultura padrão, mas aceitar que a cultura de cada um pode contribuir, sem perder a sua própria identidade. Como educadores, devemos estar habilitados a entender que os povos indígenas e os afrodescendentes (bem como povos de outras origens) precisam ser compreendidos e respeitados na busca de suas origens e na formação da sua identidade cultural. Entendo que pelos motivos relacionados acima, esta disciplina se torna importante para a nossa formação como educadores, dada a composição da população do nosso país, ainda hoje, possuir uma grande quantidade de descendentes de negros e índios. (Estudante 22).

Essa resposta coloca a importância do tema para a formação docente. Nesse ponto, é relevante percebermos a reelaboração narrativa sob o viés da valorização e o reconhecimento da diversidade cultural e identitária. Ao mesmo tempo evidencia a relevância da inclusão de disciplinas nos currículos da formação inicial dos profissionais de educação atreladas ao debate do pluralismo cultural, de modo a promover a qualificação desses docentes para a aplicação e as efetivação das Leis Nº 10.639/2003 e Nº 11.645/2008 na Educação Básica – corroborando, sobremaneira, para a superação do colonialismo e buscando ativamente a introdução da interculturalidade crítica como elemento principal para a construção de uma escola e sociedade multiculturais. Nessa conjuntura, ainda é significativo que cada vez mais a revisão historiográfica e bibliográfica apontada anteriormente, concretamente faça parte da formação de professores, contribuindo para a restituição dos protagonismos africanos, afrodescendentes e indígenas na formação da história do Brasil. Esse conjunto proporciona a formação da consciência histórica dos futuros docentes, lembrando que, a partir de Rüsen (2001), os conhecimentos construídos na academia não são eventos apartados da sociedade, surgem das próprias ações dos sujeitos e das suas vidas habituais e devem voltar como função de orientação na vida prática.

Ainda em se tratando da apreciação dos estudantes acerca do papel da referida disciplina na sua formação, segue mais uma narrativa:

Esta disciplina mudou muito minha visão sobre a importância dos indígenas e negros. Pude ver como os negros influenciaram na cultura do Brasil, trazendo novos costumes e crenças. Os indígenas, mesmo com todos os esforços, podemos ver uma grande injustiça com eles, pois esta terra era totalmente deles e agora eles não têm nem lugar para sua moradia e plantio para sua sobrevivência. Confesso que, antes desta disciplina, eu tinha a visão popular sobre os indígenas, aquela visão que são vagabundos, que querem ser sustentados pelo governo, que deveriam andar ainda de tanga e pelados. Mas com o conhecimento apresentado aqui [...], notei que todos devemos evoluir e que eles têm, sim, direito às terras. O que me chamou mais atenção nesta disciplina foi uma frase de uma indígena em um dos documentários propostos: “Pra nós a terra não é dinheiro, a terra pra nós é vida”. (Estudante 19).

Nessa narrativa, é possível destacarmos alguns aspectos importantes. Parte-se de uma visão estereotipada para um “reconhecimento do outro”, principalmente de seu direito à vida e a condições dignas de existência. Assim, processa-se uma reelaboração da percepção da alteridade após o confronto com a narrativa histórica. Nesse ponto, é importante retomar Paul Ricoeur a partir de outra obra, Percurso de reconhecimento. Nela, Ricoeur enfatiza que, especialmente na modernidade, “[...] o reconhecimento surge com as relações de direito [...]” e que “[...] o direito é reconhecimento recíproco” (RICOEUR, 2006, p. 196). Trata-se, portanto, do “[...] reconhecimento da identidade distinta das minorias culturais desfavorecidas [...], em uma dimensão temporal que abarca discriminações exercidas contra esses grupos em um passado que pode ser secular” (RICOEUR, 2006, p. 227).

É importante mencionarmos, ainda, retomando a narrativa discente anterior, que a região do Vale do Itajaí, desde o início da imigração europeia – ainda no século XIX –, sempre foi marcada pelo discurso de exaltação do trabalho. Esse discurso alimentou a narrativa do colonizador desbravador em oposição aos luso-brasileiros e indígenas, considerados indolentes. Na Era Vargas, esse discurso foi alimentado ainda mais, inclusive pelo presidente em visita à Blumenau. E, por fim, nos anos de 1980, após as grandes inundações, o estereótipo do descendente de alemães, trabalhador ordeiro e produtivo, foi acionado como elemento positivo na tarefa de reconstrução, contrapondo-se à produção de imagens negativas de pessoas de outras regiões do país, principalmente do Nordeste (FROTSCHER, 1998).

Ainda no contexto das respostas sobre a contribuição da disciplina de “História da cultura afro-brasileira e indígena” para a formação profissional e humanística, temos a resposta que dá o título para este artigo e demonstra o caráter ambíguo do racismo.

Eu não sei se posso dizer que não sou racista. Por muito tempo fiz comentários sobre “não ter interesse em saber da história indígena”, e coisas absurdas as quais crescemos ouvindo e espalhando [...]. Depois de ir para a sala de aula e ver o preconceito, ver a rotulação, ver a discriminação, [...] comecei a rever conceitos, procurar fontes, escutar as pessoas desse meio, e tentar entender o quão difícil é não ter a mesma condição de outras pessoas, simplesmente por ter a cor de pele diferente, ainda mais aqui na nossa região. (Estudante 21)

Essa resposta coloca um problema muito relevante do debate público. Trata-se de uma narrativa que enfatiza o caráter ambíguo do racismo. O ano de 2020 – marcado de forma indelével pela morte de George Floyd e pelo Movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos, e pelas manifestações antirracistas em torno da morte do estudante João Pedro e do soldador João Alberto, no Brasil – também foi o momento em que se desencadeou um intenso debate sobre as características estruturais do racismo. Questionou-se desde a paridade entre negros e brancos nas bancadas de telejornais até o vocabulário usado no cotidiano, marcado por elementos racistas. Nesse ambiente de incertezas e desconforto, a própria educação, as expressões utilizadas cotidianamente e o comportamento também passam a ser questionados como reprodutores de um racismo que é estrutural, que perpassa instituições como a família, a escola, as religiões, o estado e tantas outras esferas que moldam os sujeitos ao longo da sua existência.

Além disso, 2020 também foi um ano de contrastes para os povos indígenas e que escancararam problemas seculares. Se, cada vez mais lideranças e intelectuais indígenas como Davi Kopenawa, Cacique Raoni e Sônia Guajajara, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Ailton Krenak – premiado como intelectual do ano, em 2020 –, tornaram-se conhecidos e continuaram a visibilidade à causa indígena, também foi o ano de um intenso ataque à autonomia territorial indígena, invasões de terras por garimpeiros, incêndios florestais e o descaso genocida em relação aos cuidados sanitários que as autoridades governamentais deveriam dispensar às populações indígenas. Todo esse contexto de profundas contradições e desigualdades propicia um ambiente de urgências no campo educacional, de temas aos quais não é possível se esquivar. Assim sendo, nada mais salutar do que uma educação que produza a autorreflexão sobre a própria condição humana, uma hermenêutica de si mesmo a partir de uma compreensão da alteridade, para retomar o pensamento de Paul Ricouer.

Considerações finais

No percurso deste artigo, caminhamos sob algumas inquietações heurísticas de Paul Ricoeur e é importante retornarmos a elas nestas considerações finais. Para esse filósofo francês, “[...] a compreensão do si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros símbolos e signos uma mediação privilegiada” (RICOUER, 1991, p. 138). As narrativas são, portanto, fundamentais para um encontro com a própria identidade, em constante exercício de reflexão e de interpretação. “O si-mesmo como um outro” é resultado de uma hermenêutica da identidade, do sujeito reflexivo e que tem consciência de que seu pensamento implica em responsabilidades éticas, de que “[...] a função narrativa não existe sem implicações éticas” (RICOUER, 1991, p. 193).

Partindo do princípio segundo o qual a educação e o ensino de história têm implicações éticas, destacamos que a análise das narrativas apresentadas demonstra a importância da disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena” na formação dos acadêmicos da Educação Superior. Mesmo que, ao longo de suas trajetórias escolares, muitos estudantes tenham se deparado com debates em torno da formação da sociedade brasileira em diversos contextos históricos e tenham conhecido códices elaborados pelo estado brasileiro no que tange ao reconhecimento do pluralismo étnico, percebemos, nas narrativas explicitadas, elementos de visões preconceituosas e de cunho racista em se tratando da história das culturas africanas e afro-brasileiras e indígenas.

As narrativas discentes sobre a história e a cultura afro-brasileira e indígena podem ser analisadas sob o ponto de vista do valor formativo da disciplina, que cumpre o objetivo de ser um espaço para construir a experiência histórica, interpretá-la, usar a experiência interpretada para orientação na vida prática a partir da consciência histórica, vivenciando concretamente a presença da diversidade étnico-racial na construção da história do Brasil, com seus protagonistas diversos. Afinal, coexistem diferentes identidades de estudantes, as quais se relacionam com um grupo social ou grupos sociais. Para tanto, a referida disciplina pode impulsionar a ressignificação e a autorreflexão sobre os “outros”, individual e coletivamente, e promover a reflexão sobre as relações étnico-raciais. Nesse sentido, é preciso empatia e um olhar humanista para a História. Nessa chave de leitura, as narrativas discentes são importantes indícios do processo de aprendizagem histórica, da qual nos fala Jörn Rüsen (2010). É por meio das narrativas que podemos perceber o percurso de reconhecimento e afirmação das diferenças culturais, de um “[...] reconhecimento mútuo, em que o sujeito se coloca sob a tutela de uma relação de reciprocidade (RICOUER, 2006, p. 260).

Concomitantemente, a disciplina “História da cultura afro-brasileira e indígena” pode ser um espaço para refigurar narrativas no que se refere à própria história de Santa Catarina e, principalmente, do Vale do Itajaí, local em que os acadêmicos transitam, recriando debates sobre os processos e os mecanismos de invisibilização de diversas etnias, desde a ação do colonialismo na região. Ao mesmo tempo, essa educação para as relações étnico-raciais, construída nessa simbiose de uma hermenêutica de si mesmo e do outro, entre narrativa e vivido, reforça a importância de uma formação humanista, promotora da autonomia, emancipatória e antirracista do conhecimento histórico em diferentes níveis da educação, especificamente em cursos de graduação, tornando-se imprescindível para a atuação profissional e a vida cotidiana dos sujeitos. compromissos éticos fundamentais diante dos desafios colocados pela contemporaneidade.

1O questionário foi elaborado no formulário Google Documentos com termo de aceite. Optamos por não identificar os participantes, para tanto, foram enumeradas em ordem sequencial as narrativas dos acadêmicos e acadêmicas.

2Para uma crítica aos trabalhos de Walter Fernando Piazza e Oswaldo Rodrigues Cabral, ver Freitas (1997).

3Para uma análise mais ampla da historiografia catarinense sobre a população africana e afrodescendente, ver o artigo “Um desejo infinito de vencer”: o protagonismo negro no pós-abolição, de Petrônio Domingues (2011).

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Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 14 de Fevereiro de 2022; Aceito: 15 de Fevereiro de 2022; Publicado: 22 de Fevereiro de 2022

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