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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 10-Mar-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19386.031 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

A atualidade de Paulo Freire no “grito” sufocado dos oprimidos

Paulo Freire’s actuality in the suffocated “cry” of the oppressed

La actualidad de Paulo Freire en el “grito” sofocado de los oprimidos

Kelly Cristina Soares Lima* 
http://orcid.org/0000-0002-8222-6761

Josiane Arnholz Plaster** 
http://orcid.org/0000-0002-0758-4411

Gerda M. Schütz-Foerste*** 
http://orcid.org/0000-0002-6040-5435

*Professora da Rede Estadual de Ensino do Espírito Santo (Sedu). Mestra em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: <kellyph2014@gmail.com>.

**Professora da Educação Básica na Rede Municipal de Educação de Santa Maria de Jetibá (ES). Mestra em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: <josianearnholz@gmail.com>.

***Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Mestra em Educação pela UFG, doutora em Educação pela UFF, com pós-doutorado em Pedagogia Social pela UNI-Siegen, Alemanha. E-mail: <gerda.foerste@ufes.br>.


Resumo:

Este estudo problematiza as relações opressivas da escravidão que perduram e estimulam a violência, instituindo o racismo estrutural no Brasil. A metáfora do “grito” orienta a tese defendida de que a palavra produzida no diálogo libertador promove a libertação (FREIRE, 1980). Como metodologia, o artigo pauta-se na pesquisa bibliográfica em obras de Almeida (2019), Freire (1980, 1987, 1993, 2002), Freyre (2003), Gomes (2019), Hooks (2017), Munanga (2005), Nascimento (2016), Schwarcz (2019), entre outros. Esta pesquisa infere que a educação dialógca potencializa as lutas dos oprimidos fomentando a práxis educativa freiriana como possibilidade de superação gradual do racismo estrutural. Destaca, ainda, a necessidade de ampliar-se o debate sobre racialidade nas formações iniciais e continuadas de professores, de modo a incentivar a “conscientização” e o “Ser mais” (FREIRE, 1980, 1987).

Palavras-chave: Racismo estrutural; Educação; Libertação

Abstract:

This study problematizes the oppressive relations of slavery that endure and encourage violence, instituting structural racism in Brazil. The “cry” metaphor guides the thesis defended that the word produced in the liberating dialogue promotes liberation (FREIRE, 1980). As a methodology, the paper is based on bibliographic research in works by Almeida (2019), Freire (1980, 1987, 1993, 2002), Freyre (2003), Gomes (2019), Hooks (2017), Munanga (2005), Nascimento (2016), Schwarcz (2019), among others. This research infers that dialogical education enhances the struggles of the oppressed, promoting Freire’s educational praxis as a possibility of gradually overcoming structural racism. It highlights the need to broaden the debate on raciality in the initial and continuing teacher education, in order to encourage “awareness” and “Being more” (FREIRE, 1980, 1987).

Keywords: Structural racism; Education; Liberation

Resumen:

Este estudio problematiza las relaciones opresivas de esclavitud que prrduran y estimulan la violencia, instituyendo el racismo estructural en Brasil. La metáfora del “grito” guía la tesis defendida de que la palabra producida en el diálogo liberador promueve la liberación (FREIRE, 1980). Como metodología, el artículo se basa en la investigación bibliográfica en obras de Almeida (2019), Freire (1980, 1987, 1993, 2002), Freyre (2003), Gomes (2019), Hooks (2017), Munanga (2005), Nascimento (2016), Schwarcz (2019), entre otros. Esta investigación infiere que la educación dialógica potencia las luchas de los oprimidos, fomentando la praxis educativa de Freire como posibilidad de superación gradual del racismo estructural. Destaca, aún, la necesidad de que se amplíe el debate sobre racialidad en las formaciones iniciales y continuas de docentes, de modo a incentivar la “concientización” y el “Ser más” (FREIRE, 1987, 1980).

Palabras clave: Racismo estructural; Educación; Liberación

Introdução

I can’t breathe” (“Eu não consigo respirar”), repetiu George Floyd, cidadão americano, negro, antes de ser sufocado por policiais brancos do Departamento de Polícia de Mineápolis, nos Estados Unidos (EUA), em maio de 2020. A frase de George Floyd tornou-se o slogan do movimento Black lives matter1 (“Vidas negras importam”), que protestou contra o racismo e a violência policial nos EUA e promoveu levantes em torno dessa causa em vários outros países.

No Brasil, esse problema toma contornos particulares a partir do racismo estrutural2 que o cerca, pois a violência policial contra negros é endêmica e agravada pela conivência do Estado e pela orientação política ultraconservadora predominante no cenário político atual. Ao longo de décadas, a grande mídia brasileira banalizou o genocídio de jovens negros, as invasões nas favelas e a perseguição aos poucos representantes políticos das comunidades negras em posições de mando. Um caso emblemático é o da vereadora do Rio de Janeiro, Marielle Franco3, assassinada em março de 2018, juntamente ao motorista Anderson Gomes, por milicianos ligados às forças políticas reacionárias e corruptas nacionais. As lutas dessa socióloga, que defendia o feminismo e os direitos humanos, levaram-na a um choque frontal com as forças militares e paramilitares ao denunciar os abusos de policiais e de autoridades contra moradores de comunidades periféricas do Rio de Janeiro. Seu mandato (2017-2020) foi brutalmente interrompido com a emboscada que a executou sumariamente. Posteriormente, foram-lhe atribuídas honrarias que a definem como ativista das causas de mulheres negras, contudo não foram esclarecidas as relações de mando de sua morte.

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, das mulheres assassinadas no Brasil, 68% eram negras (BRASIL, 2020a). O mesmo relatório apresenta dados sobre homicídios de jovens: “Foram 30.873 jovens vítimas de homicídios no ano de 2018, o que significa uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens, e 53,3% do total de homicídios do país” (BRASIL, 2020a, p. 20). Além disso: “Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de 11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma diminuição de 12,9%” (BRASIL, 2020a, p. 47).

As estatísticas confirmam que a cada 23 minutos, um jovem negro é morto no Brasil (MARQUES, 2017). São 66 vidas por dia, tendo em vista que um rapaz negro tem até 12 vezes mais chances de ser assassinado em relação a um branco. Defendemos que um sistema de violência foi originado no período colonial, consolidando a desigualdade estrutural social e racial no país. A violência e a discriminação são aplicadas diferencialmente, mais intensamente pelos sistemas de julgamentos e de punição sobre o negro. Dessa maneira, os movimentos populares tomaram as ruas, explicitando a falácia dos processos democráticos e colocando a sociedade em confronto com suas “belas mentiras”4. A atualidade desse tema incomoda e expõe o racismo estrutural que fundamenta as relações de poder e a segregação racial na sociedade brasileira.

Movimentos sociais, em diferentes momentos da história brasileira, “gritaram” e até hoje “gritam” as vozes silenciadas e sufocadas. Essa metáfora orienta a tese aqui defendida de que a palavra produzida no diálogo libertador promove a libertação, sufocada no “grito” contido. Freire (1992) comenta que sempre o impressionou, em suas experiências com trabalhadores urbanos e rurais, sua linguagem metafórica. A linguagem é ferramenta de transformação e a escola, como instituição, constitui-se em espaço de lutas, conforme abordaremos mais adiante.

Este artigo foi idealizado a partir da disciplina “Abordagens Histórico-Sociológicas da Educação no Brasil”, do Mestrado em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), e das discussões do Grupo de Estudo e Pesquisa Imagens, Tecnologias e Infâncias (Gepiti), por meio das quais refletimos sobre as teorias histórico-sociológicas, fazendo um paralelo com as questões raciais na atualidade e a educação. Dessa forma, recorremos à metáfora do “grito” para expor situações concretas veiculadas hoje na mídia5 e estabelecer interlocução com autores como Almeida (2019), Hooks (2017) e Nascimento (2016) para explicitar o racismo estrutural vigente na sociedade brasileira.

Colocamo-nos em sintonia com os movimentos sociais que reivindicam a revisão de valores vigentes e de práticas opressivas hegemônicas na sociedade, inclusive no sistema escolar. Movimentos que se inserem e se solidarizam com as lutas contra o racismo e a favor da implementação plena da Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que determina, para todos os níveis, o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e de práticas educativas dialógicas (BRASIL, 2003).

Inicialmente, discorremos sobre o racismo estrutural e suas manifestações, destacando o quanto esse caráter da sociedade brasileira foi e continua sendo negado. Para tanto, destacamos a obra do sociólogo pernambucano Freyre (2003), a qual narra o que teria sido uma convivência branda entre “casa-grande e senzala”. Revisitada criticamente, essa visão explicita as contradições da sociedade escravocrata em que o Brasil se constituiu, sendo contraposta no diálogo com os historiadores Schwarcz (2019) e Gomes (2019), que ajudam a evidenciar que a casa-grande e a senzala, como no passado, continuam em relação conflituosa, de violência, de opressão e de desigualdade, tirando as oportunidades do povo negro nas mais diversas áreas e situações.

Os fundamentos das pedagogias do oprimido e da esperança são, em seguida, destacados como caminhos possíveis para a discussão da opressão racista, de modo que, pelo processo educativo, o grito do povo negro na sociedade brasileira não apenas seja livre, mas ecoe e seja acolhido, visando desestruturar o racismo sobre o qual se assenta o Brasil.

A discussão promovida a partir de situações concretas veiculadas pelas mídias na atualidade nos permitem perceber a constância e a permanência dos processos opressivos historicamente produzidos e destacar a importância da educação no processo libertador das comunidades negras oprimidas, com base na concepção freiriana de “Ser mais”6.

Racismo estrutural e a educação

Almeida (2019) diferencia o racismo em suas dimensões individual, institucional e estrutural. No indivíduo, o racismo manifesta-se como discriminação racial e está também alicerçado no racismo institucional e estrutural. Nas instituições, materializa-se em normas e em práticas que promovem privilégios e/ou exclusões de determinados grupos de acordo com as raças. Decorre daí a estruturação do racismo que se perpetua nas práticas institucionalizadas, predominantemente machistas e segregacionistas.

O autor ressalta que o estabelecimento do conceito de racismo institucional foi primordial, pois demonstrou que o racismo vai além do âmbito da ação individual, destacando a dimensão do poder como elemento que compõe as relações sociais. Ele considera a teoria como um avanço para os estudos das relações sociais; no entanto, destaca que algumas questões ainda persistem, mas “[...] de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade é racista” (ALMEIDA, 2019, p. 31). Relacionado ao contexto educativo, o racismo não é criado pela escola, mas, muitas vezes, é reproduzido por ela.

Em uma sociedade em que o racismo está presente na vida cotidiana, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial irão facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como “normais” em toda a sociedade. É o que geralmente acontece nos governos, empresas e escolas em que não há espaços ou mecanismos institucionais para tratar de conflitos raciais e sexuais. Nesse caso, as relações do cotidiano no interior das instituições vão reproduzir as práticas sociais corriqueiras, dentre as quais o racismo, na forma de violência explícita ou de microagressões – piadas, silenciamento, isolamento etc. Enfim, sem nada fazer, toda instituição irá se tornar uma correia de transmissão de privilégios e violências racistas e sexistas. De tal modo que, se o racismo é inerente à ordem social, a única forma de uma instituição combatê-lo é por meio da implementação de práticas antirracistas efetivas. (ALMEIDA, 2019, p. 32).

Para o autor, as instituições, como campos de disputas ideológicas por hegemonia, definiram regras fundamentadas em princípios discriminatórios. Ele destaca ainda que “[...] uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja existência antecede à formação de sua consciência e seus afetos” (ALMEIDA, 2019, p. 43).

Os corpos disciplinados nas instituições interiorizam valores e normas que reproduzem o status quo. Contudo, os espaços institucionais são também campos de resistência e de territórios de disputa cultural, política e social. Particularmente, a instituição escolar é palco de discussões históricas no que tange ao seu papel na sociedade.

A escola é um campo de disputas ideológicas. Bourdieu e Passeron (1992) problematizam a educação escolar atribuindo-lhe o papel da reprodução da desigualdade na sociedade, por meio da violência simbólica e do capital cultural. Para eles, o currículo oficial promove, por um lado, a marginalização de parcela dos estudantes; e, por outro lado, a bagagem cultural que estes trazem para a escola não é levada em consideração no processo de ensino e de aprendizagem, sendo, muitas vezes, considerada como fator de fracasso e de não acompanhamento das informações passadas pelo discurso escolar.

Almeida (2019) chama atenção para alguns mecanismos que reforçam percepções racistas, inclusive na escola:

O racismo constitui todo um complexo imaginário social que a todo momento é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo sistema educacional. Após anos vendo telenovelas brasileiras, um indivíduo vai acabar se convencendo de que mulheres negras têm uma vocação natural para o trabalho doméstico, que a personalidade de homens negros oscila invariavelmente entre criminosos e pessoas profundamente ingênuas, ou que homens brancos sempre têm personalidades complexas e são líderes natos, meticulosos e racionais em suas ações. E a escola reforça todas essas percepções ao apresentar um mundo em que negros e negras não têm muitas contribuições importantes para a história, literatura, ciência e afins, resumindo-se a comemorar a própria libertação graças à bondade de brancos conscientes. (ALMEIDA, 2019, p. 41-42, grifo nosso).

Esse tema é abordado por intelectuais do movimento negro, que defendem outro currículo escolar. Cardoso (2005) destaca como a educação é um elemento decisivo na luta contra o racismo e enfatiza a importância de se repensar os currículos e os livros escolares. De acordo com o autor:

É indispensável que os currículos e livros escolares estejam isentos de qualquer conteúdo racista ou de intolerância. Mais do que isso. É indispensável que reflitam, em sua plenitude, as contribuições dos diversos grupos étnicos para a formação da nação e da cultura brasileiras. Ignorar essas contribuições – ou não lhes dar o devido reconhecimento – é também uma forma de discriminação racial. A superação do racismo ainda presente em nossa sociedade é um imperativo. É uma necessidade moral e uma tarefa política de primeira grandeza. E a educação é um dos terrenos decisivos para que sejamos vitoriosos nesse esforço. (CARDOSO, 2005, p. 10).

Giroux (1986) contestou essa teoria da reprodução. Fundamentado na obra de Paulo Freire, o autor defendeu que os oprimidos e os marginalizados promovem resistência aos conteúdos que lhes são alheios. O espaço escolar é campo de disputa ideológica, portanto também passível de transformação e de produção de novas práticas. Compreendemos, então, o professor e o estudante como agentes de transformação. A escola é espaço de encontro de diferentes culturas, promovendo exercícios de construção dialógica e democrática.

Na esteira desse debate, a pedagogia de Paulo Freire torna-se fundamental. Para o autor, “[...] não há educação com verbalismo, nem tampouco com ativismos, mas com práxis, portanto, com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas” (FREIRE, 1987, p. 146). Dessa forma, este artigo está ancorado nas contribuições de Paulo Freire para discutir questões étnico-raciais na atualidade, levando-nos a analisar a prática na qual o educador deve conhecer e significar os saberes do educando.

Paulo Freire coloca a diversidade cultural como tema central da educação libertadora. Para ele, a língua, os modos de ser das classes operárias devem ser contextualizados na educação; em especial, ele defende que a palavra dos oprimidos possa ser dita e ouvida. Sobretudo, para Freire (1987, p. 57), é importante que, na educação, se promova a superação das situações-limites, compreendidas como “[...] dimensões concretas e históricas de uma dada realidade”. O ensino que parte da realidade dos educandos potencializa a criação da consciência libertadora. Assim, para Paulo Freire, a esperança é uma atitude ética. Para ele, o educador progressista tem como uma de suas tarefas desvelar as possibilidades para a esperança, por meio de uma análise política séria e correta, independentemente dos obstáculos, visto que a luta sem esperança é suicida (FREIRE, 1992, p. 11). A Pedagogia da Esperança, atualmente, fomenta a construção da liberdade na perspectiva de um novo saber, de um ensino com e para a autonomia, partindo da realidade do educando pela experiência da ação formadora de sujeitos críticos.

No entanto, conforme Nascimento (2016), a política governamental não favorece o debate das relações étnico-raciais, fato que nega a democracia racial. Notadamente, na atual conjuntura, o que observamos são políticas públicas que vão em direções contrárias às práticas democráticas e dialógicas, reafirmando o caráter opressivo do Estado a serviço das elites. Em abril de 2020, o atual governo reduziu, consideravelmente, os incentivos para os cursos das Ciências Humanas no edital de bolsas científicas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Por meio da Portaria Nº 1.122, de 19 de março de 2020 (BRASIL, 2020b), e da Portaria Nº 1.329, de 27 de março de 2020 (BRASIL, 2020c), o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) restringiu as bolsas da área de Humanas e incrementou projetos de pesquisa, de desenvolvimento e de inovações voltados às áreas de Tecnologias. Dessa forma, diminuiu consideravelmente a quantidade de bolsas direcionadas aos cursos responsáveis por integrar a maior diversidade racial7, constituindo-se instrumento de ampliação das desigualdades sociais, uma vez que desestimula pesquisas em áreas que historicamente tendem a desenvolver a criticidade. Medidas como essas retomam e aprofundam questões históricas sobre a desigualdade racial, as quais destacamos a seguir.

A perpetuação da “casa-grande” versus “senzala”: a questão da desigualdade racial

Na obra Casa-Grande & Senzala, Freyre (2003) analisa as relações raciais do ambiente doméstico do latifúndio escravagista para forjar o caráter nacional brasileiro no período colonial. Nela, Freyre (2003) apresenta uma visão otimista e harmônica entre as raças. O autor faz a análise tomando por referência o Nordeste do país, a sociedade da cana-de-açúcar e, sobretudo, as narrativas levantadas em Pernambuco.

A defesa que o autor faz do encontro das etnias no Brasil é, hoje, problematizada, visto que Freyre (2003) defendia o Brasil como lugar de um novo mundo nos trópicos, um espaço capaz de produzir uma nova sociedade multirracial e multicultural. O pensamento de Freyre é problematizado na medida em que ele mistificou a relação entre brancos e negros, senhores e escravos, compreendendo-a como pacífica e democrática. Por conseguinte, o autor fez dessa relação lições de referência nacional para analisar como se configurava a sociedade de estrutura agrária, de sistema escravocrata de exploração econômica e de composição social híbrida (índio e depois negro), quer dizer, a sociedade dos grandes latifúndios. O núcleo básico de suas análises era o sistema social da casa-grande e da senzala, base da sociedade da época, com as “grandes famílias” que se configuraram como mini sociedades, compostas por senhores patriarcas e escravos, que dividiam os espaços a partir do estabelecimento de relações hierárquicas de poder. O autor infere, portanto, as estruturas sociais públicas a partir de uma perspectiva privada.

O termo “raça” é endossado por significados culturais, sendo a miscigenação entre os índios, os africanos e os portugueses uma virtude que contribui para o enriquecimento cultural brasileiro. Na abordagem de Freyre (2003) acerca do processo de colonização, a harmonia entre as raças e o patriarcalismo são destacados como prestígio, em uma tentativa de convencer o leitor da cordialidade, da sensibilidade e do calor humano brasileiros. “No fundo, a história que ele conta era a história que os brasileiros, ou pelo menos a elite que lia e escrevia sobre o Brasil, queriam ouvir” (CARDOSO, 2003, p. 11).

Freyre (2003) trouxe a descrição de convivência branda entre as estruturas sociais e raciais de dominação e de dominados, uma visão romantizada, colocando os escravos na condição de “servidores” de seus senhores como condição favorável, pacífica e naturalizada.

A história que está sendo contada é a história de muitos de nós, de quase todos nós, senhores e escravos. [...] a história dos portugueses, de seus descendentes e dos negros, que se não foi exatamente como aparece no livro, poderia ter sido a história de personagens ambíguos que, se abominavam certas práticas da sociedade escravocrata, se embeveciam com outras, com as mais doces, as mais sensuais. (CARDOSO, 2003, p. 11).

Freyre (2003) minimiza a violência da escravidão no Brasil, causando controvérsia em torno das relações entre brancos e negros. Contudo, é inegável a contribuição desse registro para uma análise crítica da ideologia subjacente às relações étnico-raciais no Brasil, quando confrontado com os debates contemporâneos que evidenciam que o racismo é uma das pilastras sobre as quais está assentada a estrutura da sociedade brasileira.

Ao olharmos isoladamente para o racismo, limitando-o a aspectos comportamentais, desconsideramos os fatos dessa mazela estruturada, em que as maiores injustiças sociais, as maiores desgraças articuladas foram instituídas pela legalidade e “[...] com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados ‘homens de bem’” (ALMEIDA, 2019, p. 25).

No Brasil, foi cometida uma profunda injustiça social em decorrência do sistema escravocrata que estabeleceu uma dívida histórica a ser superada com a população afrodescendente. De acordo com Schwarcz (2019), os senhores de escravos eram tão violentos que inventaram verdadeiras “arqueologias de castigos”. Entretanto, a revolta e a violência têm um preço e, segundo a autora,

[...] toda moeda carrega consigo seu outro lado. Por aqui – e contrariando a ladainha que descreve um sistema menos severo – escravizados e escravizadas reagiram mais, mataram seus senhores e feitores, se aquilombaram, suicidaram-se, abortaram, fugiram, promoveram insurreições de todo tipo e revoltas dos mais diferentes formatos. Também negociaram seu lugar e condição, lutando para conseguir horas de lazer, recriar seus costumes em terras estranhas, cultuar seus deuses e realizar suas práticas, cuidar de suas lavouras, e trataram de preservar suas famílias e filhos. (SCHWARCZ, 2019, p. 29).

A mobilização das comunidades negras, ao longo da história, em busca de igualdade e de inclusão social, foi representativa. Estabeleceu conquistas dentre as quais, de acordo com Schwarcz (2019), destacam-se: a Frente Negra Brasileira; a União dos Homens de Cor; o Teatro Experimental do Negro; o Movimento Negro Unificado; a criação da Fundação Cultural Palmares em 1988; o reconhecimento de Zumbi dos Palmares como herói nacional em 1997; a implementação de políticas compensatórias em 2002; a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial em 2003; a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana no currículo oficial em 2003; entre outras. Conquistas que, frente à profunda injustiça social decorrente do sistema escravocrata, vêm para atenuar a dívida histórica do país com a população afrodescendente.

Apesar dessas conquistas, o racismo está naturalizado no Brasil e manifesta-se como uma poderosa ideologia autoritária, estruturada nas hierarquias de mando, nas leis, na estratificação social, no sistema educacional e de saúde, entre outras formas de manutenção do status quo. Para ilustrarmos essa naturalização de perseguição racial, citamos o caso da empregada doméstica que sofreu injúria racial e perdeu o emprego porque usou o banheiro da casa da patroa no dia da limpeza (CAMPOS, 2017). A patroa alegou que a doméstica não deveria ter usado o banheiro, afirmando ser anti-higiênico. Ao rebater, a trabalhadora foi ameaçada de ter seu nome exposto nas redes sociais, para que outras pessoas não contratassem seus serviços. Percebemos que a trabalhadora foi tratada como uma “raça inferior”, tratamento já citado no discurso de Freyre (2003, p. 255, grifo nosso): “O escravocrata terrível que só faltou transportar da África para a América, em navios imundos, que de longe se adivinhavam pela inhaca, a população inteira de negros, foi por outro lado o colonizador europeu que melhor confraternizou com as raças chamadas inferiores”.

Almeida (2019) localiza a produção do conceito de raça na modernidade quando elaborações da biologia e da física classificaram os seres humanos a partir de características étnico-culturais e geográficas. Assim, definiram-se territórios e papéis sociais dos sujeitos. A dívida social aprofunda-se nas relações étnico-raciais. Um exemplo são as relações de trabalho que se perpetuam desde a limpeza das “casas-grandes” de famílias brancas, antes executadas por escravos e hoje realizadas por pessoas em condições sociais desfavoráveis e moradoras das periferias, as chamadas “senzalas” modernas. Como Freyre (2003) descrevia em Casa-Grande & Senzala, há, ainda hoje, uma constelação de preconceitos, de discriminações, de estereótipos aos que sofrem por essa mancha histórica de injustiça social, desde o período escravocrata. As marcas são perceptíveis na exclusão racial, no tipo de ofício, na condição social, na violência e em ofensas verbais.

O Brasil é profundamente desigual, e isso se reflete na pobreza, na distribuição da terra, dos bens e dos serviços. A lógica da escravidão reverbera nas persistentes práticas encravadas no racismo e na discriminação pela raça e pela cor. Os escravos libertos não receberam as mínimas condições de sobrevivência, e a situação atual dos negros continua refletindo a escassez de oportunidades, as péssimas condições de moradia, de emprego e de educação. Gomes (2019), a partir de diversas fontes, alerta-nos que os resultados dessa herança aparecem nas estatísticas:

Negros e pardos – classificação que inclui mulatos e uma ampla gama de mestiços – representam 54% da população brasileira, mas sua participação entre os 10% mais pobres é muito maior, de 78%. Na faixa dos 1% mais ricos da população, a proporção inverte-se. Nesse restrito e privilegiado grupo, situado no topo da pirâmide de renda, somente 17,8% são descendentes de africanos. Na educação, enquanto 22,2% da população branca têm 12 anos de estudo ou mais, a taxa é de 9,4% para a população negra. O índice de analfabetismo entre os negros em 2016 era 9,9%, mais que o dobro do índice entre os brancos. A brutal diferença se repete na taxa de desemprego, de 13,6% e 9,5% respectivamente. Os negros no Brasil ganham em média R$ 1.570,00 por mês, enquanto a renda média entre os brancos é de R$ 2.814,00. [...]. Nas quinhentas maiores empresas que operam no Brasil, apenas 4,7% dos postos de direção e 6,3% dos cargos de gerência são ocupados por negros. Os brancos são também a esmagadora maioria em profissões de alta qualificação, como engenheiros (90%), pilotos de aeronaves (88%), professores de medicina (89%), veterinários (83%) e advogados (79%). Só 10% dos livros publicados no Brasil entre 1965 e 2014 são de autores negros. Entre os diretores de filmes nacionais produzidos de 2002 a 2012, apenas 2%. (GOMES, 2019, p. 31-33).

A desproporção nas oportunidades entre negros e brancos também pode ser vista nos cursos de Pós-Graduação stricto sensu (em 2010 eram apenas 0,03% de alunos negros), na docência universitária, na participação política, no Poder Judiciário. Em contrapartida, a estrutura carcerária está ocupada, majoritariamente, por afrodescendentes que, dado o abandono a que foram submetidos, estão mais vulneráveis à pobreza e à criminalidade (GOMES, 2019).

O fim da escravidão não aboliu a discriminação racial e suas consequências, o preconceito racial e a exclusão social do cenário nacional. A herança trágica dessa prática transpôs o tempo e os espaços sociais, chegando até hoje como um dos fatores determinantes do destino econômico e social dos estudantes brasileiros. O combate ao racismo precisa despertar nos estudantes o reconhecimento de que não vivemos em uma democracia racial e que a tarefa histórica de combate às mazelas se faz ainda mais necessária, apesar dos avanços legais.

A valorização da educação formal insere-se como ferramenta de ascensão social, “[...] porque ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo” (FREIRE, 2002, p. 38), e essa intervenção dá-se seja como reprodutora da ideologia dominante, seja como descortinamento dessa mesma ideologia. Assim, não há dúvidas de que a educação também é responsável, em certa medida, pela perpetuação das desigualdades sociais. Conforme Silva (1996), a educação presta-se à burocratização ao agir de forma institucionalizada nos seus materiais didáticos, uma educação de embranquecimento cultural. A ideologia eurocêntrica inferioriza e desqualifica a população negra.

Frente a tantas injustiças, a população negra, majoritária e em condições de miséria, busca superar as condições de exclusão e construir sua liberdade. Na visão de Gomes (2019), enquanto essa população não tiver liberdade e oportunidade de realizar e de expressar sua palavra com plenitude e conquistar seus espaços, o país nunca será próspero. Para tanto, o autor sugere uma segunda abolição da escravidão, para corrigir os desníveis sociais. Segundo Schwarcz (2019):

[...] uma nação que naturaliza desigualdade racial, na figura das empregadas domésticas, dos trabalhadores manuais, da ausência de negros nos ambientes corporativos e empresariais, nos teatros, nas salas de concerto, nos clubes e nas áreas sociais. O país, também pratica outra forma de exclusão racial cotidiana, delegando à polícia o papel de performar a discriminação, nos famosos “atos de intimidação”: as batidas policiais que escolhem sempre mais negros do que brancos e os humilham a partir da apresentação pública do poder e da hierarquia.

Com tal contencioso nas costas, criamos uma nação profundamente desigual e racista, cujos índices de violência não pararam nos tempos da escravidão. Eles têm sido reescritos na ordem do tempo contemporâneo, que mostra como o racismo ainda se agarra a uma ideologia cujo propósito é garantir a manutenção de privilégios, aprofundando a distância social. (SCHWARCZ, 2019, p. 35).

Percebemos que a libertação da população escravizada não possibilitou sua efetiva libertação e autonomia, com subsídios suficientes para que se concretizasse. A dicotomia “casa-grande e senzala” mantém-se na divisão das classes sociais dos brasileiros. A “senzala” abriga a população que serve com sua mão de obra às “casas-grandes”. Conforme revela Schwarcz (2019, p. 40) sobre a perpetuação dos comportamentos escravocratas: “A escravidão na escala em que conhecemos aqui, foi e continua sendo uma especificidade incontornável da história brasileira. Herdamos um contencioso pesado e estamos tendendo a perpetuá-lo no momento presente [...]”.

As estruturas que perduram mostram a segregação racial. A condição social é herança histórica das senzalas, hoje periferias. A classe operária, que não detém patrimônio historicamente e do período Brasil-Colônia nada herdou, não recebeu o mínimo pelos seus serviços prestados, pelo esforço de seu trabalho, para iniciar em uma estrutura básica de sobrevivência; formou-se em espaços de condições precárias, periféricas e continua a “servir” os “senhores” das “casas-grandes”, não em latifúndios agrários necessariamente, mas com mão de obra nas operações industriais e nas atividades domésticas.

Freyre (2003, p. 206) destaca as palavras de Nabuco, proferidas em 1881, antes da Lei Áurea: “Em primeiro lugar o mau elemento da população não foi a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro [...]”, o que se mantém até hoje na exclusão racial, na condição social, na violência, nas ofensas verbais e nos tipos de ofício. Assim, a condição social é herança histórica das senzalas.

O racismo e a violência que o sistema escravocrata gerou se manifesta ainda em situações como a que o professor negro da Universidade Estadual Paulista (Unesp) foi submetido: chamado de “macaco” e esfaqueado (CHAPOLA, 2019). O fato chamou atenção porque ocorreu no Dia da Consciência Negra. O professor de 60 anos de idade voltava para casa e foi insultado por um rapaz de 30 anos que o chamou de “macaco”. O docente foi tomar satisfação, o rapaz abriu o canivete e o golpeou. O professor defendeu-se e conteve o agressor.

Fatos como esse deixam explícitos que não se trata de uma discriminação pela condição social, abrandada no discurso de Freyre (2003) que queria convencer o leitor de que não se tratava de preconceito racial. Nesse caso, é uma situação de ódio e de violência contra pessoas pela condição da sua cor. Além disso, chama-nos atenção que esse caso foi divulgado por tratar-se de alguém que se defendeu e, ciente de seus direitos, prestou queixa. Todavia, persiste a pergunta: Quantos casos ficam mascarados ou silenciados?

Os motivos de violência e de agressão fazem parte de uma cultura do racismo que é estrutural na sociedade brasileira. Essa herança nos é justificada por Freyre (2003) enquanto característica atribuída ao escravo a partir de códigos de moralidade eurocêntricos. Contudo, o autor justifica a violência como carga das injustiças cometidas pelo sistema escravocrata. A carga ideológica que atribui ao negro a pecha de “imoral”, uma vez citada, escrita, só se fortalece, mesmo quando o autor, com suas “boas intenções”, tenta abrandá-la. Assim, Freyre (2003, p. 207) afirma: “A escravidão desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro comportamento senão o imoral, de que tanto o acusam”.

Perguntamo-nos: Como um indivíduo escravizado, totalmente dominado pela força autoritária, sem liberdade de escolha e de expressão, poderia libertar-se? Assim, formaram-se as mazelas que se consolidam na linguagem racista que estrutura a sociedade brasileira. Contraditoriamente, também é no movimento que se rompem os grilhões e que se produzem alternativas de esperança e de utopia. Nesse sentido, a seguir, discutimos a luta contra a opressão racista à luz dos princípios basilares freirianos. Buscamos, no processo educativo, o grito do povo negro na sociedade brasileira, de modo que ele não apenas seja livre, mas que ecoe e seja acolhido, visando a desestruturar o racismo sobre o qual se assenta a estrutura da sociedade brasileira.

A atualidade do pensamento de Paulo Freire: a educação libertadora e a busca de “Ser mais”

Apesar do legado de Paulo Freire ser reconhecido mundialmente e de ter sido declarado patrono da educação brasileira em 2012, recentemente, sua obra e as ideias que defende foram alvo de críticas do governo reacionário de desmonte dos direitos humanos, vigente no Brasil. Jair Bolsonaro, em 2019, fez ofensas ao educador brasileiro, chamando-o de “energúmeno”8. Isso evidencia o incômodo que a educação diferenciada proposta por esse importante educador brasileiro pode causar em governos conservadores.

Em 2018, foram comemorados os 50 anos da primeira publicação da obra Pedagogia do Oprimido, escrita por Freire em 1968, durante o exílio no Chile, quando atuou no Instituto Chileno para Reforma Agrária (Icira). Nela, Freire traz à luz ponderações essenciais para pensarmos a educação como elemento transformador a serviço da libertação de “Ser mais”.

Para Freire (1987, 2002), os homens têm uma vocação ontológica de “Ser mais”. Devemos ser conscientes de nossa inconclusão, para que possamos de fato nos dirigirmos a um processo permanente de humanização, que é uma vocação histórica. Tendo em vista, portanto, que a humanização é uma vocação histórica (e não a desumanização), não podemos assumir uma posição fatalista, como se nada pudesse ser feito. Ao contrário, devemos assumir uma postura crítica e esperançosa, não no sentido de esperar, de nada fazer, mas no sentido de movermo-nos, de lutarmos com esperança, com a confiança de que a libertação é possível. O processo de humanização é uma práxis “[...] que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (FREIRE, 1987, p. 43).

Essa vocação, muitas vezes, é “[...] negada na injustiça, na exploração, na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada” (FREIRE, 1987, p. 19). Para o autor, a busca pelo “Ser mais” não é individual, mas, sim, coletiva, em comunhão, sendo necessária a libertação de opressores e de oprimidos, uma vez que a busca pelo “Ser mais” é “[...] impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos” (FREIRE, 1987, p. 48). Ele defende a vocação de “Ser mais” como um direito, e que deve haver um diálogo verdadeiro, esperançoso, crítico: “Se o diálogo é o encontro dos homens para Ser Mais, não pode fazer-se na desesperança” (FREIRE, 1987, p. 53).

O conceito de “Ser mais” está relacionado aos conceitos de consciência e de libertação, na obra de Paulo Freire. Por meio do diálogo libertador, opressores e oprimidos ultrapassam a apreensão espontânea da realidade para chegarem a uma “[...] esfera crítica na qual realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (FREIRE, 1980, p. 26). Trata-se de um processo educativo permanente, no qual o ser humano se desafia a superar as situações-limite. Nesse sentido, o autor defende:

A educação é permanente não porque certa linha ideológica ou certa posição política ou certo interesse econômico o exijam. A educação é permanente na razão, de um lado, da finitude do ser humano, de outro, da consciência que ele tem de sua finitude. Mais ainda, pelo fato de, ao longo da história, ter incorporado à sua natureza não apenas saber que vivia, mas saber que sabia e, assim, saber que podia saber mais. A educação e a formação permanente se fundam aí. (FREIRE, 1993, p. 22-23).

Na obra Pedagogia do oprimido, a qual foi produzida na práxis educativa com os trabalhadores, em período anterior ao golpe militar de 1964, esse tema é amplamente debatido.

Durante o período da ditadura, Paulo Freire foi exilado, retornando ao Brasil no início dos anos de 1980, no processo de abertura política. As décadas de 1980 e de 1990 foram marcadas pela retomada dos processos democráticos e pela reorganização da sociedade civil. Movimentos sociais organizados9 apresentavam a extensa pauta de reivindicações por reforma agrária, moradia, saúde, educação, trabalho, entre outras tantas. Dentre os movimentos sociais de maior expressão, à época, destacava-se o Movimento dos Trabalhadores sem Terra10 (MST), que retomou a organização dos trabalhadores rurais no processo de luta pela terra e por uma vida digna nas cidades e no campo. Somaram-se aos movimentos sociais alguns segmentos das instituições religiosas, sindicais e empresariais, unidos na corrente pela democratização do acesso aos bens e aos serviços.

No retorno do exílio, Freire participou da criação do Partido dos Trabalhadores (PT). De 1989 a 1991, foi Secretário de Educação da cidade de São Paulo. O legado freiriano está vivo nas práticas educativas democráticas e apresenta-se, hoje, como uma bandeira de luta dos movimentos que “gritam” por direitos sociais, a exemplo do movimento Black lives matter. Ele desafia os sujeitos nas situações-limite, que impulsionam a roda da história em seu processo contraditório e “[...] mais além das quais se acha o ‘inédito viável’, às vezes perceptível, às vezes não, se encontram razões de ser para ambas as posições: a esperançosa e a desesperançosa” (FREIRE, 1992, p. 6).

Hooks (2017) afirma que, com Paulo Freire, se compreendeu os desafios de construir, no espaço escolar, a educação enquanto exercício de liberdade, e alerta para a necessidade de se estabelecer uma reflexão crítica permanente com os sujeitos, com vista à práxis engajada e libertadora. Especialmente, destaca o papel dos educadores como intelectuais que atuam na transformação dos currículos.

Os professores progressistas que trabalham para transformar o currículo de tal modo que ele não reforce os sistemas de dominação nem conflita mais nenhuma parcialidade são, em geral, os indivíduos mais dispostos a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e a fazer de sua prática de ensino um foco de resistência. (HOOKS, 2017, p. 36).

A intelectual depõe sobre a potência da pedagogia de Paulo Freire em seu processo de formação, afirmando que recebeu o apoio necessário para “[...] desafiar o sistema da ‘educação bancária’, a abordagem baseada na noção de que tudo que os alunos precisam fazer é consumir a informação dada por um professor e ser capazes de memorizá-la e armazená-la” (HOOKS, 2017, p. 26).

De modo semelhante, o anseio por liberdade moveu lutas como a da vereadora Marielle Franco e a de movimentos como Black lives matter. Esse movimento, fundado em 2013 em resposta à absolvição do segurança George Zimmerman, assassino do jovem Trayvon Martin, protagonizou a nova onda de protestos de 2020, com a morte de George Floyd, apregoando uma luta por liberdade e por justiça, defendendo uma mudança próxima, uma revolução: “Our fight for liberty, justice, and freedom continues. Together, we can — and will — transform. This is the revolution. Change is coming11.

O desejo de revolução remete-nos ao pensamento freiriano e reforça seu caráter atual, conduzindo-nos aos questionamentos: Como o direito à educação participa da transformação de uma sociedade racista a uma sociedade que reconheça a dignidade e o valor do povo negro? De que forma é possível implementar essa revolução na educação? Freire (1987, p. 77) pontua que o caminho é uma práxis libertadora, “[...] com reflexão e ação incidindo sobre as estruturas a serem transformadas. O esforço revolucionário de transformação radical destas estruturas não pode ter, na liderança, homens do que fazer e, nas massas oprimidas, homens reduzidos ao puro fazer”.

Da mesma forma, da práxis autêntica de sujeitos como a vereadora Marielle Franco, militante de direitos humanos e símbolo das novas políticas no Rio de Janeiro, ecoa o “grito” dos oprimidos. Formada em Sociologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com Mestrado em Administração Pública na Universidade Federal Fluminense (UFF), teve 100% de bolsa após sair do curso pré-vestibular comunitário, que a ajudou a “despertar a sua consciência para o mundo”12.

Marielle Franco envolveu-se na militância após perder uma amiga, que tinha acabado de ser aprovada na universidade, por bala perdida, em tiroteio entre policiais e traficantes no Complexo da Maré. Trabalhou em organizações da sociedade civil como a Brasil Foundation e o Centro de Ações Solidárias da Maré (Ceasm) e coordenou a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Lutava contra a violência de gênero e, poucos dias antes de sua morte, assumira o cargo de relatora de uma comissão que monitora as ações da intervenção federal no Rio de Janeiro. Uma mulher negra, “cria da favela”, que chegou ao poder público para representar e defender os direitos do seu povo: “[...] ocupar a política é fundamental para reduzir as desigualdades que nos cercam” (MOTTA et al., 2018, n.p.).

O passo inicial para a superação da situação de oprimidos e para a conquista de uma pedagogia humanista e libertadora é o despertar crítico, é o desvelamento do mundo da opressão e o comprometimento com uma práxis autêntica: “Quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto mais se ‘inserem’ nela criticamente” (FREIRE, 1987, p. 25-26).

Nesse sentido, Hooks (2017, p. 26) afirma que “[...] foi a insistência de Freire na educação como prática da liberdade que me encorajou a criar estratégias para o que ele chamava de ‘conscientização’ em sala de aula”. A autora compreende, com base na concepção freiriana, que a educação como prática da liberdade pressupõe participação, e compara esta com uma plantação em que todos precisam plantar, o que significa trabalho coletivo.

O desafio de buscar “Ser mais” está presente na educação libertadora, que promove a conscientização. Para Freire (1980), a conscientização é um processo contínuo, que pressupõe atitude crítica sobre a realidade para transformá-la. Ao mesmo tempo, a conscientização convida à utopia. Na concepção freiriana, “[...] o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por essa razão a utopia é também um compromisso histórico” (FREIRE, 1980, p. 27).13

A prática educativa proposta por Paulo Freire é extremamente atual. O educador brasileiro foi reconhecido mundialmente por sua proposta de alfabetização fundada no diálogo, na experiência e na leitura do mundo que cerca os sujeitos oprimidos. A educação, enquanto prática da liberdade, pressupõe a tomada de consciência sobre o mundo e as relações interpessoais, o que exige a superação de uma consciência ingênua. Para tanto, Paulo Freire opôs-se frontalmente à educação bancária e antidialógica que mantém o status quo e reproduz o sistema opressor. Essa prática é desafiadora. Segundo Hooks (2017), as práticas dialógicas nos espaços escolares podem suscitar estranhamentos, medos e inseguranças. “Esse medo existe porque muitos profissionais reagem de modo profundamente hostil à visão da educação libertadora que liga a vontade de saber à vontade de vir a ser” (HOOKS, 2017, p. 32).

De acordo com Freire (1987), para superar as desigualdades e a opressão, faz-se necessária uma luta por uma educação permeada por práticas dialógicas, de emancipação social do sujeito, que possa libertá-lo das opressões que se encontra submetido. Para o autor, essa educação dialógica guia-se pela colaboração, pela união, pela organização e pela síntese cultural. A educação dialógica guia-se pela colaboração, por meio da qual há o encontro de sujeitos para a pronúncia e a transformação do mundo. O pensamento freiriano concebe a colaboração como elemento associado à ação dialógica, a qual pode se estabelecer entre as pessoas, mesmo que elas ocupem funções diferentes, por exemplo, professor e alunos.

A união é basilar, ao passo que a divisão das massas reforça e organiza o poder da elite dominadora, antidialógica, que mantém o dominado “aderido” à realidade opressora, mistificandoa. O esforço de união requer a desmistificação da realidade, a qual permite aos excluídos agir de forma transformadora por nela se inserirem criticamente. Para Freire (1987), na teoria antidialógica da ação, impõe-se necessariamente a divisão dos oprimidos, pois, dessa forma, se mantém a opressão mais facilmente. Por consequência, a busca da unidade requer a organização das massas populares. Na teoria dialógica, a liderança não tem o direito de impor sua palavra arbitrariamente, o que não significa assumir uma posição liberalista, o que levaria a licenciosidade.

Em oposição à invasão cultural, em que a liderança impõe sua visão de mundo e força os oprimidos a se reconhecerem como inferiores, o que representa grande equívoco, a síntese cultural funda-se nas diferenças, mas nega a invasão de uma pela outra. Freire (1987), em diversas passagens da obra Pedagogia do Oprimido, chama atenção para o fato de que a revolução só pode ser feita com o povo. Nesse sentido, posturas como a da vereadora Marielle Franco e de movimentos como Black lives matter assumem vital importância a partir do momento em que se colocam a serviço de uma práxis revolucionária, fruto da reflexão e da ação desses ativistas, e ecoam uma luta de afirmação da vida, uma luta por um “Ser mais”, que não teme a liberdade.

Freire (1987, p. 20-21) sublinha a necessidade de superação do medo da liberdade, “[...] que tanto pode conduzi-los [os oprimidos] a pretender ser opressores também, quanto pode mantê-los atados ao status de oprimidos [...]”. Isso porque, enganados, os oprimidos temem que a consciência crítica os conduza à desordem, ao anarquismo, convencidos que foram de que a única ordem possível é a contradição opressores-oprimidos. É preciso, portanto, superarmos o medo para que exista uma educação libertadora.

Considerando o racismo estrutural, a transformação deve ocorrer por meio da efetivação de práticas antirracistas. Um dos caminhos perpassa a promoção da educação intercultural, uma educação que busque a “unidade na diversidade”, na qual “[...] o educador progressista entende que qualquer reducionismo de classe, de sexo, de raça, distorce o sentido da luta, pior ainda, reforçando o poder dominador, enfraquece o combate” (FREIRE, 1993, p. 46).

Paulo Freire motiva-nos a “esperançar” e acredita que é possível a luta por um mundo melhor. Referindo-se aos movimentos emergentes nas décadas de 1980 e 1990, o autor afirma:

O povo grita contra os testemunhos de desfaçatez, as praças de novo se enchem. Há uma esperança, não importa que nem sempre audaz, nas esquinas das ruas, no corpo de cada uma e de cada um de nós. E como se maioria da nação fosse tomada por uma incontida necessidade de vomitar em face de tanta desvergonha. (FREIRE, 1992, p. 5, grifo nosso).

A palavra a ser lida, segundo Freire (1992), deve ser precedida da leitura do mundo. Isso está implicado no processo dialógico que fomenta a consciência crítica e a libertação dos oprimidos. A palavra silenciada, então, toma as ruas, inicialmente como uma “[...] incontida necessidade de vomitar em face de tanta desvergonha” (FREIRE, 1992, p. 5) e esperançosamente traduzida em direitos e cidadania. Assim, refere-se esse educador brasileiro:

Aí está uma das tarefas da educação democrática e popular, da Pedagogia da esperança – a de possibilitar nas classes populares o desenvolvimento de sua linguagem, jamais pelo blablablá autoritário e sectário dos “educadores”, de sua linguagem, que, emergindo da e voltando-se sobre sua realidade, perfile as conjecturas, os desenhos, as antecipações do mundo novo. Está aqui uma das questões centrais da educação popular – a da linguagem como caminho de invenção da cidadania. (FREIRE, 1992, p. 20).

Desse modo, defendemos que, na metáfora do “grito”, a palavra produzida no diálogo libertador promove a libertação de todos, oprimidos e opressores. A esperança é um convite de reforço para retomarmos o porquê de trabalhar-se uma educação com os oprimidos. Conforme Freire (1992), a educação deve transformar as pessoas, prepará-las para a vida em uma perspectiva de educação crítica, deve conduzi-las com coragem na leitura de mundo, na luta por equidade de direitos e de inclusão social, na superação da opressão e na transformação da realidade.

O racismo gera uma sociedade autoritária com hierarquias de mando, justificando o presente com a história mítica do passado. As soluções para romper com a cultura de autoritarismo, afirma Schwarcz (2019), passam pelo fortalecimento das instituições e pela educação. Segundo Lilia Schwarcz, educação é “[...] a única coisa que pode desarmar o gatilho da desigualdade e da exclusão social” (OLIVEIRA, 2019, n.p.). De acordo com Freire (1987, 1993), a educação humanizadora é condição da libertação dos oprimidos, visto que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Segundo Ponce e Ferrari (2021), a educação escolar pode contribuir para a superação do racismo, desde que o currículo inclua narrativas dos povos negros. Para as autoras:

O fortalecimento da identidade negra requer que o currículo escolar construa novas narrativas sobre a vida da população negra. Não se nega o processo de escravidão que merece ser reparado com políticas públicas e ações afirmativas, mas a vida da população negra precisa ser contada sobre outro viés. Inclui-se, como novas narrativas o estudo dos feitos da população negra, suas agendas culturais, suas conquistas nas diversas áreas do conhecimento, os processos de luta e de resistência. (PONCE; FERRARI, 2021, p. 15).

Segundo Freire (2002), a questão da identidade cultural é essencial à prática educativa progressista. Para tanto, é necessário empatia, solidariedade social e política para evitarmos um ensino elitista e autoritário, que reproduza a desigualdade e as práticas opressivas e racistas.

No Brasil, dispomos de uma legislação consolidada no que concerne às temáticas étnico-raciais. As Leis Federais Nº 10.639/2003 e Nº 11.645, de 10 março de 2008, são reflexos de uma luta antirracista, e apontam um avanço para o estabelecimento de uma escola sem racismo, pautada em uma educação intercultural (BRASIL, 2003, 2008). Também dispomos de muitos estudos que abordam a questão do racismo e que comprovam a necessidade de continuarmos estabelecendo ações afirmativas contra o preconceito étnico-racial. Ações afirmativas como as cotas já demonstram a vitória de uma batalha14, mas é essencial avançarmos em questões práticas, visto que nossa escola ainda pode ser considerada como monocultural. José Mario Mendéz, no programa Café com Ciência (CAFÉ..., 2014), afirma que a escola é, tradicionalmente, monocultural, e que é necessário que os docentes revisem suas práticas para desmascarar os elementos da monoculturalidade, identificando a diversidade presente na sala de aula e no entorno da escola. Para Fornet-Betancourt (2004, p. 60 apudMENEZES, 2011, p. 328), devemos examinar o ensino acadêmico sob um olhar crítico, uma vez que ele está regulado “[...] por planos de estudos cujos conteúdos nucleares não apenas refletem a ‘cultura científica’ da sociedade hegemônica de ontem e de hoje, como que apontam a manutenção das condições epistêmicas necessárias para a perpetuação do conhecimento”.

A Lei Nº 11.645/2008 é conhecida, ou pelo menos deveria ser, pelos educadores. Apesar disso, é necessário perguntarmo-nos: Quantos de nós a conhecemos profundamente? Ou ainda: Quantos de nós obteve, na formação inicial, conhecimentos significativos acerca da temática étnico-racial? Tendo em vista que o racismo é estrutural, que a escola reflete a ideologia dominante, estamos, de fato, praticando uma educação antirracista ou estamos apenas cumprindo minimamente a lei, abordando essas temáticas somente em datas pontuais como o Dia do Índio e/ou o Dia da Consciência Negra, muitas vezes de forma folclorizada ou estereotipada? Munanga (2005) destaca que a luta contra o racismo exige várias frentes de batalhas, mas também enfatiza a necessidade de transformação do pensamento docente:

Como, então, reverter esse quadro preconceituoso que prejudica a formação do verdadeiro cidadão e a educação de todos os alunos, em especial os membros dos grupos étnicos, vítimas do preconceito e da discriminação racial? Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e inferioridade entre grupos humanos que foram introjetados neles pela cultura racista na qual foram socializados. Apesar da complexidade da luta contra o racismo, que consequentemente exige várias frentes de batalhas, não temos dúvida de que a transformação de nossas cabeças de professores é uma tarefa preliminar importantíssima. (MUNANGA, 2005, p. 17).

Conforme Freire (2002, p. 51), “[...] dialética e contraditória, não poderia ser a educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas desmascaradora [sic] da ideologia dominante”. Desse modo, tendo consciência do mito da democracia racial estabelecido a partir da obra de Gilberto Freyre (com um abrandamento da situação e uma visão romanceada da escravidão) e, além disso, tendo consciência de que a educação não é neutra, e que é uma forma de intervenção no mundo, faz-se importante e necessário fomentarmos práticas educacionais antirracistas.

Não existem fórmulas prontas, projetos que servirão a todos os contextos, contudo, enquanto educadores, precisamos assumir práticas que, tal como defende Freire (1987, 2002), respeitem os saberes dos educandos; promovam o reconhecimento e a assunção da identidade cultural; sejam dialógicas; despertem nos educandos a curiosidade epistemológica; os engajem na busca pelo “Ser mais”; façam ecoar as vozes dos oprimidos e dos silenciados; não tolerem preconceitos; não admitam que os nossos parceiros não consigam respirar.

Considerações finais

As discussões fomentadas em disciplinas e no grupo de pesquisa foram fundamentais para provocar o presente estudo, em nosso processo de formação continuada. As leituras realizadas acerca das relações étnico-raciais na atualidade, em confronto com a perspectiva histórica da casa-grande e da senzala, nos impulsionam a repensar o papel da educação libertadora, como escuta e reverberação das vozes (gritos) dos oprimidos.

Consideramos, nesta reflexão, que o caráter nacional foi formado pelo modelo de colonização autoritária, e que a violência é um dos reflexos do sistema escravocrata e patrimonialista. Conforme Almeida (2019) destaca, o Estado é mantenedor e principal agente de violência contra os negros.

Na atual conjuntura do país, a cada dia são suprimidos mais direitos de negros e de pardos, usurpando conquistas históricas de reparo social instauradas nas últimas décadas. A discussão promovida a partir de situações concretas veiculadas pelas mídias na atualidade nos permitem perceber a constância e a permanência dos processos opressivos historicamente produzidos.

Percebemos, na atualidade, a crescente explicitação das contradições: de um lado a exacerbação de correntes reacionárias e conservadoras, que reafirmam a exclusão social; de outro, os movimentos da sociedade civil reprimida que explodem no cotidiano social. No movimento Black lives matter, encontramos a potência do que Freire (1992, p. 5) aponta, como destacado anteriormente, ser a esperança: “Há uma esperança, não importa que nem sempre audaz, nas esquinas das ruas, no corpo de cada uma e de cada um de nós”. Paulo Freire renasce em cada palavra-mundo pronunciada e faz eclodir o “grito” sufocado do povo.

Na superação do racismo estrutural, a educação ocupa papel fundamental, na medida em que os intelectuais engajados nas lutas sociais a potencializam na qualidade de prática de liberdade. A proposta educativa freiriana estimula o “Ser mais”, ao mesmo tempo em que fomenta a palavra-mundo, muitas vezes contida e silenciada. A educação dialógica potencializa as lutas dos oprimidos no interior da instituição escolar, como superação gradual do racismo estrutural.

Paulo Freire, grande mestre da inclusão das diversidades, deixou seu legado, sua escrita, suas metodologias para a prática educativa de aproximação com a realidade do educando. A práxis pautada em Freire, na atualidade, convida-nos para o autoconhecimento, para a aproximação com o educando e desafia-nos a compreender e a enfrentar as situações-limite do povo invisibilizado e marginalizado na sociedade historicamente hegemônica.

Posto isso, destacamos a urgência de ampliar-se o debate sobre racialidade nas formações iniciais e continuadas de professores, de forma a possibilitar aos docentes um maior embasamento para atuar de forma crítica, questionando as estruturas de poder e atuando como elementos essenciais para que os estudantes encontrem o caminho de uma educação dialógica (FREIRE, 1987) e intercultural, segundo José Mario Mendéz (CAFÉ..., 2014; FORNET-BETANCOURT, 2001). Um caminho em que haja um permanente movimento de busca pelo “Ser mais”.

O sistema educacional é capaz de endossar as práticas de racismo ou de remodelar-se para o enfrentamento e o posicionamento antirracista. É preciso fazermos ecoar a voz da comunidade escolar para que os educandos se sintam pertencentes àquele espaço educativo e formativo, e que não tenha sobreposição de etnia, de cor, de gênero, mas, sim, envolvimento com base na equidade. A práxis, na perspectiva freiriana, permite mudanças diretas e necessárias ao equilíbrio social.

1Site oficial do movimento Black Lives Matter, disponível em: https://blacklivesmatter.com. Acesso: 27 jan. 2022.

2Conforme Almeida (2019), o racismo é uma consequência da própria estrutura social, e decorre do modo “normal” com que as relações (políticas, econômicas, jurídicas e até mesmo familiares) são estabelecidas.

3Site oficial de Marielle Franco, disponível em: https://www.mariellefranco.com.br. Acesso: 27 jan. 2022.

4Parafraseando Maria de Lourdes Chagas Deiro Nosella (1978), em sua discussão acerca das ideologias subjacentes ao livro didático.

5O estudo realiza visitas à grande mídia, como fonte de informação que atinge as grandes massas a partir do discurso hegemônico dos meios de comunicação nacional, e às mídias alternativas, que disponibilizam informações e produzem o debate a partir do confronto de ideias, em posições contra-hegemônicas. Sobretudo, busca apresentar fatos apresentados pelos sites oficiais dos movimentos sociais.

6Conforme Freire (1987), somos seres inconclusos, contudo, somos conscientes de nossa inconclusão, de nosso inacabamento, e estamos em um processo permanente de procura, em um caminho de busca do “Ser Mais”. Para o autor, quando esse caminho é distorcido, ocorre um processo de desumanização (tanto dos oprimidos, quanto dos opressores). Discorreremos a respeito desse conceito no tópico intitulado: A atualidade do pensamento de Paulo Freire: a educação libertadora e a busca de “Ser mais”.

7Mais informações em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48201426. Acesso em: 8 fev. 2022.

8Em dezembro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro chamou o patrono da educação brasileira de “energúmeno” e “ídolo da esquerda”, enquanto criticava a TV Escola e cancelava o contrato com Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp). Esse fato foi largamente veiculado na ocasião. Ver, por exemplo, CartaCapital (2019).

9Entre os movimento sociais, destacamos o “Grito dos excluídos”, como manifestação popular organizada por diversas entidades, dentre as quais o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Cáritas Brasileira e diversas pastorais (Popular, Operária, Carcerária, Afro-brasileira, da Mulher Marginalizada, da Juventude, da Juventude do Meio, Serviço Pastoral dos Migrantes), a Comissão Pastoral da Terra, o Serviço Franciscano de Assistência, o Movimento dos Atingidos por Barragens, a Central dos Movimentos Populares, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, a Rede Rua, a Romaria dos Trabalhadores, a Rede Jubileu Sul Brasil e a Juventude Operária Católica. A organização popular possibilitou a criação do Movimento de Alfabetização de Jovens, realizada em 7 de setembro de 1995, lembrada como data emblemática da libertação, com manifestações por equidade social e direitos humanos.

10Disponível em: https://mst.org.br/. Acesso em: 10 fev. 2022.

11“Nossa luta por liberdade, justiça e liberdade continua. Juntos, podemos - e iremos - transformar. Esta é a revolução. A mudança está chegando” (tradução nossa). Disponível em: https://blacklivesmatter.com/now-we-transform/. Acesso em: 10 fev. 2022.

12Citação do amigo e também vereador Tarcísio Motta. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43423055. Acesso em: 10 fev. 2022.

13Conscientização é um termo central na abordagem freiriana sobre educação. Para Freire (1980, p. 26), a conscientização é um processo permanente, contínuo, que “[...] consiste no desenvolvimento crítico da tomada de consciência”. Freire (1980, 1987) defende que ela não pode existir sem a práxis, isto é, sem a ação e a reflexão sobre o mundo. Não se trata de apenas conhecer, mas, de conhecendo, engajar-se na luta contra a desumanização.

14Conforme dados Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, estudantes autodeclarados pretos ou pardos passaram a compor maioria (50,3%) no Ensino Superior da rede pública. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 3 ago. 2021.

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Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 06 de Fevereiro de 2022; Aceito: 08 de Fevereiro de 2022; Publicado: 18 de Fevereiro de 2022

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