SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17A atualidade de Paulo Freire no “grito” sufocado dos oprimidosPráticas educativas de professores e famílias nos processos de construção de identidade das crianças negras índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 10-Mar-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19450.030 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Representatividade, visibilidade e vocalidade: apontamentos sobre branquitude e produção acadêmica em eventos científicos, em tempos de educação remota*

Representativeness, visibility and vocality: notes on whiteness and academic production in scientific events in times of remote education

Representatividad, visibilidad y vocalidad: apuntes sobre blancura y producción académica en eventos científicos en tiempos de educación remota

Marina Pereira de Almeida Mello** 
http://orcid.org/0000-0002-6145-4861

Samuel Dias Ribeiro*** 
http://orcid.org/0000-0001-7101-1709

**Docente do Departamento de Educação da EFLCH-UNIFESP, doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade de São Paulo (PPGA/USP), mestre, bacharel e licenciada em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros na Universidade Federal de São Paulo (NEAB-Unifesp) e coordenadora do curso Direitos Humanos e Lutas Sociais do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp. E-mail: <marina.mello23@unifesp.br>.

***Mestrando do Programa de Pós-Graduação Humanidades, Direitos e outras legitimidades, Diversitas da USP. Bacharel em Serviço Social pela Faculdade Paulista de Serviço Social (FAPSS-SP) e bacharel em Letras pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail: <ribeiro.samuel@unifesp.br>.


Resumo:

Para versar sobre a representação social no campo da Educação Superior, este trabalho traçou e analisou o perfil das e dos palestrantes de seis eventos acadêmicos realizados em 2020 por universidades públicas brasileiras. Buscou-se verificar de que modo o conceito de branquitude torna possível entender a realidade das relações e das interações acadêmicas em termos étnico-raciais. Uma das hipóteses foi a de que a intelligentsia brasileira é apresentada ou representada de forma quase exclusiva, mas sempre majoritária, por corpos brancos (ou de pele clara). Os resultados comprovaram a superexposição de pessoas brancas e pessoas de pele clara nas mesas de debates. Conclui-se que, em termos de representatividade, visibilidade e vocalidade – branquitude discursiva – os eventos invisibilizam outras presenças, perpetuando as hierarquias vigentes, ao mesmo tempo em que denotam comportamentos persistentes, embora nem sempre deliberados ou conscientes, que têm impedido a realização da justiça (social, cognitiva, epistêmica), em termos étnico-raciais, no Ensino Superior brasileiro.

Palavras-chave: Branquitude; Universidade; Racismo institucional

Abstract:

In order to discuss the social representation in the field of Higher Education, this work has traced and analyzed the profile of lecturers of six academic events held in 2020 by Brazilian public universities. It was sought to verify how the concept of whiteness makes it possible to understand the reality of academic relationships and interactions in ethnic-racial terms. One of the hypotheses was that the Brazilian intelligentsia is presented or represented almost exclusively, but always mostly by white (or light-skinned) bodies. The results proved an overexposure of white people and light-skinned people at the debate tables. It is concluded that, in terms of representativeness, visibility and vocality - discursive whiteness - the events make other presences invisible, perpetuating existing hierarchies at the same time they denote persistent behaviors, although not always deliberate or conscious, which have prevented the realization of righteousness (social, cognitive, epistemic) in ethnic-racial terms in Brazilian Higher Education.

Keywords: Whiteness; University; Institutional racism

Resumen:

Para versar sobre la representación social en el campo de la Educación Superior, este trabajo ha trazado y analizado el perfil de las y de los ponentes en seis eventos académicos realizados en 2020 por universidades públicas brasileñas. Se buscó verificar de qué modo el concepto de blancura hace posible entender la realidad de las relaciones y de las interacciones académicas en términos étnico-raciales. Una de las hipótesis fue la de que la intelligentsia brasileña es presentada o representada de forma casi exclusiva, pero siempre mayoritaria, por cuerpos blancos (o de piel clara). Los resultados comprobaron una sobreexposición de personas blancas y de piel clara en las mesas de debate. Se concluye que, en términos de representatividad, visibilidad y vocalidad - blancura discursiva - los eventos invisibilizan otras presencias, perpetuando las jerarquías vigentes, al mismo tiempo que denotan comportamientos persistentes, aunque no siempre deliberados o conscientes, que han impedido la realización de la justicia (social, cognitiva, epistémica) en términos étnico-raciales en el sistema de Educación Superior brasileño.

Palabras clave: Blancura; Universidad; Racismo institucional

Introdução

Ainda que a velocidade das transformações tecnológicas, midiáticas e organizacionais venha, já há algum tempo, alterando redes e processos de sociabilidade, comunicação e educação, a situação de emergência sanitária imposta pela pandemia da Covid-19 impôs às instituições de ensino e a seus agentes – docentes, discentes, comunidade escolar, familiares e a toda sociedade – a necessidade de formular ou adaptar caminhos, métodos e procedimentos para equacionar os desafios colocados por esse novo cenário: de instabilidade, de medo e de imprevisibilidade. Especificamente com relação às universidades públicas, a suspensão emergencial do ensino presencial a partir de março de 2020 suscitou o desenvolvimento de alternativas para o prosseguimento dos processos e rotinas técnico-científicas e pedagógicas, com desafios relativos à capacitação docente, discente e técnica para atuar nesse novo cenário.

Diante da proliferação de eventos e de atividades de divulgação e científicas, promovidas por pesquisadores, discentes e docentes das mais variadas instituições, com o recurso às mídias digitais, atentamo-nos para a dinâmica dos eventos científicos nesse novo contexto, sobretudo no que se relaciona às questões de representatividade, visibilidade e vocalidade étnico-racial e de gênero. Assim sendo, pensar o papel das universidades públicas no que diz respeito à superação das desigualdades nos conduz a refletir sobre de que modo a ansiada qualificação profissional e o consequente acesso a oportunidades que viabilizem melhor remuneração caminham lado a lado com possibilidades desiguais de ascensão social, matizadas por anseios por distinção, prestígio, reconhecimento e visibilidade, especialmente quando nos referimos a grupos historicamente discriminados. Para Santos (2018):

Políticas de ação afirmativa promovendo a discriminação positiva têm viabilizado, no Brasil, há pelo menos dez anos, o ingresso de estudantes negros (pretos e pardos), indígenas, quilombolas, de baixa renda, com deficiência, que se deparam com uma infinidade de desafios perante o elitismo manifestado por padrões epistêmicos eurocentrados. Modos e maneiras de se comportar, de se relacionar, de ver, ler e enxergar o mundo se vêem desse modo, compelidos a adaptar-se, sucumbir ou lutar para se tornarem visíveis, audíveis e, assim, tensionar a naturalização das discriminações e preconceitos (fundados na origem, na condição étnico-racial, no gênero, na classe social e na sexualidade), traduzidos por critérios de relevância e eficácia, por meio dos quais as universidades buscam integrar-se aos ditames do capitalismo global. (SANTOS, 2018, p. 326).

Tradicionalmente, o campo das Humanidades tem sido o mais acessado pelas camadas menos favorecidas da população (seja porque nessa área são oferecidos cursos no período noturno, seja porque são menos competitivos em termos do acesso via exames vestibulares). Mais do que produto de escolha livre e refletida, as carreiras ligadas às licenciaturas constituem a opção mais acessível para estudantes oriundos das classes populares, as quais, sobretudo nas instituições públicas, concluem sua formação a duras penas, muitas vezes tentando conciliar estudos, trabalho e cuidado de familiares: filhos, irmãos mais novos, idosos, doentes etc.

Contraditoriamente, em termos da composição do corpo de docentes e pesquisadores, as universidades públicas caracterizam-se pelas origens burguesas ou até mesmo aristocráticas de candidatos e selecionados para o magistério público superior, que, geralmente, pelo acesso privilegiado à educação e a bens culturais considerados “elevados”, se confrontam (material e simbolicamente) com o afluxo cada vez maior de estudantes com perfil social, econômico, étnico-racial divergente do seu, sobretudo a partir da vigência de políticas de ação afirmativa que visam ampliar o acesso desses grupos às universidades, como, por exemplo, o Programa Universidade para Todos (Prouni), o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies), a Política de Cotas.

Pois bem, durante a crise sanitária, causada pela pandemia da Covid-19, entendendo que o conhecimento não podia parar de ser produzido e nem divulgado, escolas e universidades do Brasil passaram a adotar, de maneira sistemática e emergencial, o ensino remoto, como meio de mitigar os impactos na formação de milhares de estudantes. Foi assim que eventos acadêmicos passaram a acontecer remotamente, em ambiente virtual, por meio das plataformas digitais. O uso das plataformas digitais possibilitou que eventos de diferentes regiões do país pudessem ser acompanhados por pessoas de variados lugares. Assim, pudemos perceber que os eventos online potencializaram as habituais trocas, partilhas e relações entre pesquisadores, docentes e estudantes. Dessa feita, a partir de novas dinâmicas, marcadas por trânsitos e fluxos de outra ordem, não estritamente geográficos, ampliaram-se possibilidades e engendrou-se maior pluralidade na divulgação científica.

Questionamentos preliminares da pesquisa: Congressos da branquitude?

Versando sobre a representação social da branquitude nas universidades públicas do Brasil, com enfoque nos perfis dos/das palestrantes de eventos acadêmicos realizados em 2020 por seis universidades públicas brasileiras, esta pesquisa buscou respostas para a seguinte questão: Em que medida os eventos analisados reforçam que o “pacto narcísico da branquitude” norteia, estabelece, legitima e perpetua as hierarquias vigentes, ao mesmo tempo em que impedem/inviabilizam a justiça (social, cognitiva, epistêmica) em termos étnico-raciais no Ensino Superior brasileiro?

Cunhado por Maria Aparecida Bento, o conceito de “pacto narcísico da branquitude” evoca o acordo tácito existente entre sujeitos brancos, no sentido de preservar e conservar privilégios e interesses assentados em valores supostamente identificados à “raça branca”, promovendo uma espécie de blindagem a lugares (sociais, políticos, econômicos e epistêmicos), entendidos como privativos e não passíveis de compartilhamento (BENTO, 2002, p. 134). Objetivamos, assim, verificar de que modo o conceito de branquitude torna possível entender a realidade das relações e interações acadêmicas, principalmente no que se refere ao campo das “representações sociais” no Ensino Superior brasileiro, por meio de seis casos. Alguns objetivos foram mais específicos: Fazer o levantamento do perfil – raça/cor e gênero – dos/das palestrantes dos eventos; investigar as dimensões raciais dos fenômenos relacionados às relações de poder, prestígio e autoridade nas universidade brasileiras; entender causas e consequências de certa “transparência” conferida a indivíduos brancos, cuja autoridade, prestígio e poder são naturalizados nas hierarquias; identificar possíveis diferenças “regionais” relacionadas ao fenômeno investigado; identificar o que caracteriza a branquitude intelectual brasileira, em termos de fenótipos, comportamentos e ideias projetadas nesses eventos. Em suma, a pergunta que se faz é: É possível considerar tais eventos como propaganda da ideia de que pessoas brancas são os representantes sociais da intelectualidade científica das universidades públicas brasileiras, servindo, assim, como instrumento de manutenção dos benefícios socioculturais, políticos e econômicos da branquitude?

Levantamos as hipóteses de que é possível traçar, com mais precisão, quem as universidades brasileiras entendem como pessoas brancas ou negras a partir dos lugares que são a elas reservados nos eventos; além disso, afirmar que a presença inquestionável de brancos – visibilidade, representação – branquitude discursiva – invisibilizam outras presenças. A representação de gênero, no geral, já avançou no interior das universidades brasileiras (o que pode ser comprovado pela maior paridade entre os gêneros nas mesas), mas ainda persiste o preterimento das mulheres negras nos lugares de representação de poder. As questões raciais ainda se encontram inalteradas no interior das universidades, mesmo quando se tem em vista os avanços conseguidos com a implementação da Lei de Cotas – Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, e que aos sujeitos de pele escura nesses eventos, foi reservado o lugar de discutir somente as questões de raça e racismo, cultura e religião, enquanto os de pele clara tratavam de assuntos mais gerais e irrestritos: ciências médicas, ciências da natureza, engenharias, tecnologias, pandemia da Covid-19, dentre outros.

A pesquisa justifica-se pela importância de desvelarmos os meandros, os novos (ou nem tão novos assim) mecanismos racistas que se encontram no campo educacional, em que a “raça” branca se utiliza das universidades públicas brasileiras como lócus de manutenção dos seus privilégios sociais ao se apresentarem como símbolo/imagem legítima da produção do conhecimento e intelligentsia humana – branquitude. Ademais, a pesquisa é uma estratégia para fazer-se a crítica e a denúncia de tais privilégios mantidos pelo racismo institucional e estrutural que os sustentam, como meio de enfrentá-los.

Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa exploratória com abordagem quanti-qualitativa, por entendermos que a combinação das duas abordagens permitiria uma maior amplitude na análise dos dados. Partimos da coleta de dados quantitativos e, após, os analisamos com base nos pressupostos das pesquisas qualitativas nos termos de Paschoarelli, Medola e Bonfim (2015). O corpus foi composto dos seguintes eventos: Congresso Acadêmico Unifesp 2020 – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Jornada Virtual da UEFS 2020 – Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); IX Simpósio de Estudos e Pesquisas em Ciências Ambientais na Amazônia – Universidade do Estado do Pará (UEPA); X Encontro Nacional do GT Filosofia e Direito da ANPOF1 - Universidade de Brasília (UnB); 18ª edição da Semana de Ensino, Pesquisa, Extensão e Inovação da UFSC – SEPEX2 em casa – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Prezou-se na escolha de que houvesse ao menos uma universidade de cada macrorregião do país e que, na medida do possível, os eventos tivessem um caráter interdisciplinar.

Após a escolha do corpus, elaboramos o perfil dos/das palestrantes usando a metodologia de heteroidentificação, que vem a se tratar de aparato legal usado, no Brasil, para confirmar se as pessoas que desejam concorrer em vestibulares ou concursos públicos como cotistas nas vagas reservadas às pessoas que se autoidentificam como negras (pretas e pardas) ou indígenas são realmente lidas socialmente conforme se declaram. A heteroidentificação é feita por terceiros, os quais, se valendo exclusivamente da observação dos traços fenótipos, determinam a validade ou não da autoidentificação (DIAS; TAVARES JR., 2020). Uma observação importante a ser destacada nesse sentido diz respeito à categoria “negro”, que, ao incluir pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, exigiu que estabelecêssemos em que condições as características fenotípicas determinantes para as discriminações e os preconceitos fundados na “marca racial” definiriam a heteroidentificação proposta.

Embora seja uma questão ainda controversa no Brasil, tendo em vista a renitência do signo da mestiçagem – supostamente branqueadora, niveladora e diluidora de diferenças –, o racismo “à brasileira” caracteriza-se pela preeminência da antinegritude, na acepção cunhada por Vargas (2020), que se sobrepõe à racialização de outros grupos: como os designados como amarelos, por exemplo.

Como ponto de partida, a antinegritude e o fundamento da Humanidade. O ser moderno se define em oposição ao não ser negro. [...]. Assim, ao passo que, da perspectiva do racismo, a discriminacão racial e algo que pode ser eliminado ou pelo menos combatido, da perspectiva da antinegritude, essa proposicão fica mais complicada. Isso porque, nessa perspectiva, trata-se não apenas de eliminar um conjunto de praticas sociais e institucionais (o racismo), mas de questionar fundamentalmente a propria nocão de Humanidade e sua dependência na exclusão daquelas consideradas não pessoas. A antinegritude e constitutiva da Humanidade. Ser humano e não ser negro. Tendo isso em vista, como elaborar políticas públicas, praticas sociais ou noções de ser que questionam o conceito de Humanidade? (VARGAS, 2020, p. 18).

Virgínia Leone Bicudo (2010) e Oracy Nogueira (2007), em pesquisas e estudos que analisaram a particularidade do racismo à brasileira, identificaram que comportamentos discriminatórios e preconceituosos recaíam em aspectos fenotípicos, sobretudo na cor da pele, na textura dos cabelos, no formato e na largura de lábios e nariz.

Ainda com relação à categoria pardo, decisões judiciais recentes acerca do questionamento das ações afirmativas definem como beneficiários das cotas raciais destinadas ao grupo negro os identificados como pardo-escuro e pardo-pardo. Nesse ponto, pautamo-nos também por texto contido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1863, em que consta como consideração em relação à prática da heteroidentificação:

A identificacão deve ocorrer primariamente pelo proprio indivíduo, no intuito de evitar identificacões externas voltadas à discriminacão negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferenca. Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – ha [...] um grau de consistência entre autoidentificação e identificacão por terceiros no patamar de 79% –, essa identificacão não precisa ser feita exclusivamente pelo proprio indivíduo. [...] o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto [...]. (IKAWA, 2008, p. 129-130).

Embasados por esse entendimento, usamos os conceitos de “claros e escuros”; desse modo, corroboramos a compreensão de que, dependendo da cor da pele (mais clara ou mais escura), os sujeitos se beneficiarão ou sofrerão empecilhos em sua trajetória de vida. Tratando do tema, o intelectual brasileiro Muniz Sodré (2015, p. 9), nos diz que “[...] ‘claros e escuros’ [...] mais do que branco e negro, são termos de amplo trânsito no modo de identificação popular das diferenças fenotípicas, isto e, da cor da pele”. Em suma, entendemos que, mesmo não sendo biológica e cientificamente sustentado, o conceito de raça ainda prescreve as relações sociorraciais no país e, mais do que isso, quanto mais escura for a cor da pele, mais se evidencia o que Sueli Carneiro (2011) chama de apartheid racial, enquanto Sodré (2015, p. 10) nos alerta que “[...] em pleno século XXI, os ‘escuros’ [...] continuam econômica, política e simbolicamente desiguais frente aos ‘claros’”.

Quanto ao gênero, usamos os marcadores masculino, feminino, ou outros que foram identificados, apoiando-nos também nos pronomes usados na divulgação dos/das participantes (doutor, doutora, ele, ela, por exemplo). Há de ressalvarmos que os procedimentos de heteroclassificação étnico-racial, diante do exposto, não estão isentos de subjetividade e não têm, portanto, qualquer intenção ou presunção de se constituir em verdade absoluta, visto que o tema da racialidade brasileira é denso, complexo e as questões não estão todas pacificadas.

Assim sendo, na sequência deste artigo, abordamos os conceitos de raça e de racismo institucional e estrutural como mantenedores da hierarquização racial que vigora na sociedade brasileira. Após, discorremos sobre a branquitude, fazendo um breve histórico da literatura brasileira sobre a temática, as principais pesquisas e as definições conceituais produzidas, bem como situamos a discussão no campo específico da universidade brasileira. Por fim, apresentamos os resultados da pesquisa.

Raça e racismo no Brasil

“Branco sai preto fica”4 é uma frase que serve de mote aqui para explicar como, durante muito tempo, se deram as discussões sobre as relações raciais no mundo, e especificamente no Brasil. Configurar os sujeitos brancos como objeto de estudo foi uma virada importante nas Ciências Sociais e requereu a articulação de conceitos cujos significados estavam, outrora, diretamente ligados às pessoas negras, tais como raça, racismo, representação social, bem como demandou a elaboração e o aprofundamento de novos conceitos, tais como branquitude, privilégio social/racial, visibilidade e invisibilidade na mídia/comunicação. Esses conceitos estarão no centro deste trabalho, tendo como lócus de observação o campo da Educação Superior brasileira.

Construído historicamente (séculos XVI a XVIII), o termo “raça”, pensado e aplicado originalmente nos campos da Zoobiologia e da Botânica, adquiriu, já no século XVIII, um significado social, engendrando a classificação da diversidade humana em termos racializados, em que grupos fisicamente contrastados, em razão de semelhanças fisio-anatômicas, conformaram a “raça” como “[...] ferramenta para operacionalizar o pensamento” (MUNANGA, 2004, p. 26). Essa operacionalização trouxe como consequência o racismo, que é a crença na existência de “raças humanas” naturalmente hierarquizadas, pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. Nas palavras de Munanga (2004, p. 8), “[…] o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas.

Para Achille Mbembe (2018), a raça foi criada pelos euro-americanos e, funcionando simultaneamente como categoria originária, material e fantasmática, a raça esteve, no decorrer dos séculos precedentes, na origem de inúmeras catástrofes, tendo sido a causa de devastações psíquicas assombrosas e de incalculáveis crimes e massacres. Essas catástrofes são o rastro do racismo que usa da possibilidade de classificar e, portanto, racializar os diferentes para discriminá-los, justificando, assim, todo o tipo de atrocidades e desumanização. Como os “detentores e controladores” do pensamento e do conhecimento ocidentais são os humanos brancos, o conceito de raça por eles criado possibilita-lhes questionar a humanidade do Outro, do diferente, dos que fogem às normas humanas que eles mesmos elaboraram. Nesse sentido, a imagem é importante pois, como assinala Mbembe (2018, p. 68-69): “Para que possa operar enquanto afeto, instinto e speculum, a raça deve se converter em imagem, forma, superfície, figura, e, acima de tudo, estrutura imaginária.

Assim, raça e racismo estruturam as relações sociais no binômio branco-negro, sendo o primeiro a parte positiva, e o segundo, a negativa. No entanto, como fomos alertados, “[...] o branco é, sob vários aspectos, uma fantasia da imaginação europeia que o ocidente se esforçou para naturalizar e universalizar” (MBEMBE, 2018, p. 88). A fantasia do branco superior não é de geração espontânea, mas foi cultivada, alimentada, reproduzida e disseminada por um conjunto de dispositivos teológicos, culturais, políticos, econômicos e institucionais que criaram e renovaram o senso comum, o desejo por embranquecimento, ja que o ser branco e o ideal, “[...] a fantasia do branco age, desse ponto de vista, como uma constelação de objetos de desejo de marcadores públicos de privilégio. Esses objetos e marcadores afetam tanto o corpo quanto a imagem, a linguagem e a riqueza” (MBEMBE, 2018, p. 90). A força dessa crença está, dentre outras, na forma como no mundo moderno ela “[...] atravessa a estrutura social e econômica, interfere com movimentos da mesma ordem e se metamorfoseia incessantemente” (MBEMBE, 2018, p. 76).

No Brasil, como bem diz Lélia Gonzalez (2020, p. 34), “[...] o racismo – enquanto construção ideológica e um conjunto de práticas – passou por um processo de perpetuação e reforço após a abolição da escravatura, na medida em que beneficiou e beneficia determinados interesses”. Tais processos foram identificados por Lélia Gonzalez e Carlos Hasembalg (1982), segundo o qual a perspectiva Freyreana, que se assenta sobre a ideologia da “democracia racial”, atesta que “[...] Freyre criou a mais formidável arma ideológica contra o negro. A ênfase na flexibilidade cultural do colonizador português e no avançado grau de mistura racial da população do país o levou a formular a noção de democracia racial” (GONZALEZ; HASEMBALG, 1982, p. 84).

Freyre acreditou, e fez acreditar, que aqui todos e todas gozam das mesmas oportunidades socioeconômicas. Hasembalg (1982) identificou que intelectuais como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni encabeçaram estudos das relações raciais sob nova perspectiva e chegaram a “[...] certas conclusões comuns. Em linhas gerais, o sistema de relações raciais é enfocado a partir da análise do processo de desagregação do sistema escravista de casta e da constituição de uma sociedade de classes” (GONZALEZ; HASEMBALG, 1982, p. 86). Contudo, ele afirma que “[...] nenhuma destas perspectivas considera seriamente a possibilidade de coexistência entre racismo, industrialização e desenvolvimento capitalista” (GONZALEZ; HASEMBALG, 1982, p. 87).

Todo esse constructo ideológico que possui materialização concreta na realidade social brasileira tem como únicos beneficiários, a população que não pode ser identificada e classificada como negra. Gonzalez (2020, p. 35) afirma que, dentro das relações de trabalho capitalista, “[...] a opressão racial nos faz constatar que mesmo os brancos sem propriedade dos meios de produção são beneficiarios do seu exercício”, ainda que “[...] a maioria dos brancos receb[a] seus dividendos do racismo, a partir de sua vantagem competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam as recompensas materiais e simbolicas mais desejadas” (GONZALEZ, 2020, p. 34).

Gonzalez e, posteriormente, Gloria Anzaldúa (1980), Sueli Carneiro (a partir de 1999) e Grada Kilomba (2019), para citar alguns outros nomes, também contribuíram para o debate, ao tratarem da intersecção de gênero, raça e classe nos estudos das relações raciais. Para Lélia Gonzalez (2020, p. 76), ha uma articulação entre racismo e sexismo que “[...] produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular”, mesmo sendo elas a “viga mestra de sua comunidade”. Desde os primeiros anos pós-abolição, foi-lhes imposto lugares de trabalho “subalternos”; além disso, Gonzalez (2020, p. 41) aponta que, entre as mulheres, as brancas “sempre têm melhores oportunidades que as negras”.

É, portanto, no questionamento dos lugares de poder, que vemos diretamente como “os aparelhos ideologicos do Estado” trabalham para manter o status quo que privilegia a raça branca, sendo o sistema educacional um dos aparelhos que estruturam o racismo e a discriminação racial no Brasil (GONZALEZ, 2020, p. 34). Nas palavras de Sodré (2019, p. 883): “O racismo brasileiro é um racismo de duplo vínculo porque o sujeito diz que não é racista, mas não se aproxima [...] Trata-se de uma guerra de posições, de lugares diferenciados. Na verdade, o que se defende furiosamente e o seu lugar privilegiado”.

Representatividade, visibilidade e vocalidade

Na defesa desses lugares privilegiados, a mídia, a educação formal e a representação social exercem papel importante. Entendendo que os eventos analisados se valeram dos aparelhos midiáticos para se apresentarem à comunidade (acadêmica, intelectual), pois foram realizados usando as plataformas digitais, eles se transformaram em discursos sociais. Aqui corroboramos o pensamento de Sodré (1998, p. 23) para quem os “[...] discursos sociais [...] desempenham um papel central tanto na produção quanto na reprodução do preconceito e do racismo. Desses discursos provêm os modelos cognitivos e as atitudes relativas às minorias de qualquer natureza, especialmente os negros na sociedade ‘clara’ do Ocidente”.

Sobre mídia, Sodré (1998, p. 23) afirma que ela “[...] funciona no nível macro como gênero discursivo capaz de catalisar expressões políticas e institucionais sobre as relações interraciais, em geral estruturadas por uma tradição intelectual elitista que, de uma maneira ou de outra, legitima a desigualdade social pela cor da pele”. É nesse sentido que o conceito de representação social nos será útil, na medida em que, segundo Moscovici (2015), certas ideias circulam no mundo, cimentando o senso comum. Assim, a representação social e para ele “[...] um conjunto de estímulos feitos pelos homens, que têm a finalidade de servir como um substituto a um sinal ou som que não pode ocorrer naturalmente” (MOSCOVICI, 2015, p. 32). As representações sociais convencionam e prescrevem o que se deve pensar antes mesmo de termos entendimento sobre o pensamento e é por meio dessas convenções e prescrições que classificamos, julgamos as pessoas e, assim, nos relacionamos, comparando-as com esses protótipos (MOSCOVICI, 2015).

À luz do exposto até aqui, podemos inferir que a branquitude na academia é uma construção social que apresenta ou representa a intelligentsia brasileira como sendo exclusivamente, ou majoritariamente, constituída por pessoas brancas (ou de pele clara), sustentando um imaginário racista e, logo, discriminatório e preconceituoso contra as pessoas negras (ou de pele escura). Em suma, ao utilizarem, de maneira massiva, a mídia, os “aparelhos do Estado”, a branquitude apresenta-se para a sociedade como o protótipo do bom, do belo, do bem e, em última instância, do humano.

Tal senso pode e deve ser questionado. Segundo Almeida (2019, p. 52), “[...] a mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com repúdio moral do racismo, depende antes de tudo da tomada de posturas e da adoção de praticas antirracistas”. Nesse sentido, Moscovici (2015, p. 66) defende que “[...] todos os nossos ‘preconceitos’, sejam nacionais, raciais, geracionais ou qualquer que alguém tenha, somente podem ser superados pela mudança de nossas representações sociais da cultura, da ‘natureza humana’ e assim por diante”, o que pode ser entendido como sugerindo uma proposta de prática antirracista.

Sobre branquitude, nos estudos de Cardoso (2008), nomes como os de Alberto Guerreiro Ramos, Edith Piza, César Rossato, Verônica Gesser, Maria Aparecida da Silva Bento, Liv Sovik e Lúcio Alves de Oliveira aparecem como aqueles que utilizam o termo “branquitude” na produção acadêmica brasileira (CARDOSO, 2008, 2011), o que nos permite estudar o fenômeno contextualizado dentro das peculiaridades das construções identitárias no Brasil, mas sem perder de vista que essa construção se deu dentro de um sistema global de colonização (LABORNE, 2017).

É a partir dos apontamentos de Bento (2002) que a branquitude passou a realmente se configurar como objeto de pesquisa no Brasil, sendo a autora também a responsável por uma virada conceitual que Cardoso (2014) chama de “a rebeldia do desejo”, em outras palavras, os negros que até então eram objeto de desejo dos brancos cientistas passam a ocupar o espaço de cientistas e colocam os brancos no observatório. A metáfora diz que o objeto se rebelou e resolveu estudar o pesquisador.

Digamos que, nesta tese, a “ameba” saiu do frasco e revoltou-se. O “objeto negro”, aquele que e um “objeto” de “repulsa” e de “desejo”, rebelou-se. Em outras palavras, ocorreu a “revolta dos objetos”; “a rebelião do desejo”; “a rebelião da ameba”; “a revolta do microbio”. (CARDOSO, 2014, p. 18).

Maria Aparecida da Silva Bento é nome incontornável nos estudos da branquitude no Brasil, para quem a branquitude é:

Um lugar de privilégio racial, econômico e político, no qual a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade. Branquitude como preservação de hierarquias raciais, como pacto entre iguais, encontra um território particularmente fecundo nas Organizações, as quais são essencialmente reprodutoras e conservadoras. (BENTO, 2002, p. 7).

O principal objetivo de Bento foi investigar como as manifestações da branquitude (racialidade branca) interferem nas relações raciais no interior das organizações públicas. A autora conclui que há uma situação de desigualdade entre negros e brancos no mercado de trabalho, com poucas tentativas por parte das organizações em provocar mudanças no quadro, bem como a omissão e o silenciamento das questões raciais no interior das instituições. Em suas palavras,

[...] tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica na negação, no evitamento do problema com vistas à manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios, e o da responsabilização pelas desigualdades raciais constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade. (BENTO, 2002, p. 7).

O “pacto narcísico”, essa “confraria social”, ou, nas palavras de Bento,

[...] alianças intergrupais entre brancos garantiria certa transparência das pessoas brancas quanto a sua raça, ou seja, só os “Outros” (no caso os negros) são racializáveis, enquanto os brancos estariam acima de qualquer racialização, pois são o ideal humano, com superioridade intelectual em relação aos seres de raça negra. [...]. As consequências desse pensamento são concretas e manifestam-se na negação de um problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica, política dos negros, no universo social. (BENTO, 2002, p. 7).

Identificados por Bento, a “inércia” e o “silêncio eloquente” que a sociedade brasileira teima em manter quando o assunto é a discriminação imposta ao seguimento da população negra aparecem quase como consenso entre os estudiosos como uma das principais características da branquitude. Na esteira desses estudos, o campo de produção de conhecimento torna-se um importante contributo para construir, propagar, controlar e manter as narrativas da branquitude como superior. Para isso, vale-se de todos os mecanismos para manter o campo acadêmico sob seu controle, pautando temas, gerindo recursos e assegurando que sua representação midiática sejam os sujeitos de tez branca.

Tendo isso em vista, Ana Amélia de Paula Moreira Laborne (2017, p. 91) volta-se para a produção do conhecimento acadêmico no Brasil, tendo como objetivo verificar “[...] como essas relações de poder baseadas na raça são refletidas” nesses espaços. Para ela, podemos encontrar no meio acadêmico a expressão do que ela chama de “Narrativa Mestra da Branquitude”, entendida como “[...] um conjunto de discursos forjados durante a expansão colonial europeia que defendia a superioridade branca em diferentes aspectos” (LABORNE, 2017, p. 91). Essa narrativa de “supremacia branca” daria o direito a esse grupo de validar, controlar e excluir, “[...] se constituindo enquanto um obstáculo para a população negra em seus esforços de atingir uma real igualdade de oportunidades” (LABORNE, 2017, p. 96).

Ao apontar o privilégio da branquitude e a persistência de epistemologias europeias como únicos referenciais aceitos, Laborne (2017, p. 102) identifica a “marginalização”, o “ostracismo acadêmico”, impostos aos negros, mesmo diante de um discurso de neutralidade, de igualdade de oportunidades, mas que desvela o racismo persistente nas universidades brasileiras. Laborne retoma a questão do silenciamento, ao afirmar que “[...] o não dito é tão significante quanto as próprias palavras, e os elementos da branquitude estão operando exatamente no que é silenciado” (LABORNE, 2017, p. 103).

Edilene Santana dos Santos Silva (2019), em seus estudos sobre a Universidade Federal da Bahia (UFBA), reafirma a persistente presença do racismo nas relações acadêmicas concretizadas na pouca representatividade de professores negros, seu isolamento e sua invisibilidade, maior burocracia na universidade, o preterimento em bancas de concursos e, ainda, a hierarquização da representatividade racial do corpo docente, a partir do valor social atribuído ao curso, departamento, escola e faculdade; além disso, na forma como a instituição se apropria da luta e da produção de docentes negros para não sofrer as sanções pelo descumprimento das leis de reparação racial (SILVA, 2019, p. 6).

Nomeado por ela de “características da engenharia do racismo nas universidades brasileiras” (SILVA, 2019, p. 11), esse constructo institucional nas universidades e nos ambientes acadêmicos seria a demonstração do comprometimento das instituições acadêmicas com a organização hierarquizada de suas relações internas. Em suas palavras,

[...] no ambiente acadêmico o racismo tem se caracterizado por apresentar-se de maneira indireta, velada, não se direcionando à condição racial do docente, mas questionando, por exemplo, a sua capacidade intelectual e o seu lugar na academia, ou mesmo através da invisibilização e isolamento destes docentes, [...] inviabilidade sistemática de acesso e de ascensão dos negros ao campo acadêmico e das instâncias de poder dentro dele. (SILVA, 2019, p. 75).

Tais características se aproximam do que Muniz Sodré (2015) chama de “controle dos rostos”, que vem a ser “a possibilidade de exercer um Gesichtskontrolle (controle de rostos), que significa “[...] a decisão cotidiana sobre quem pode entrar em clubes, boates, restaurantes de luxo ou mesmo ser aceito para seguros de automoveis” (SODRÉ, 2015, p. 19); no caso, o controle de quem pode ser visto como “o rosto da universidade”, que como pretendemos demonstrar é o rosto branco. Em outras palavras, a constituição dos eventos aqui analisados pode ser entendida como um constructo midiático que, consciente ou inconscientemente, serve como propaganda do discurso de superioridade da raça branca, ou seja, é um produto da branquitude. Esse controle sobre os rostos garante que a imagem do homem branco seja reincidentemente afirmada como positiva, superior, limpa, pura, sempre associada ao bem, ao bom, ao belo e ao desejável (ideal de branqueamento), enquanto a falta do rosto negro em lugar de poder, em situações positivas, de beleza e de inteligência, aliadas à ausência de imagens negativas de pessoas brancas servem para reiterar a construção racista do ser negro como cultural e intelectualmente inferior ao branco. Assim, “[...] o valor da branquitude se realiza na hierarquia e na desvalorização do ser negro, mesmo quando ‘raça’ não e mencionada” (SOVIK, 2009, p. 50).

O conveniente silenciamento dos brancos quanto às questões raciais, principiando na sua não percepção como parte de uma raça, até a defesa de uma democracia racial que o privilegia, é identificado, também, no que aponta para a necessidade de investigar tal fenômeno (SOVIK, 2009). Ao questionar esse silenciamento, Bento (2002) afirma que o país não quer discutir o legado da escravidão, pois há benefícios em silenciar-se sobre ele e “[...] não reconhecer-se como partícipe dessa história é não assumir um legado que acentua o lugar de privilégio que o grupo branco desfruta na atualidade” (BENTO, 2002, p. 28). Sovik (2009) arremata pontuando que, a despeito das relações raciais no Brasil estarem permeadas por discursos de afeto, que aparentemente religam setores sociais desiguais, isso não se reflete em mudanças nas hierarquias raciais, que afloram quando ha conflitos “[…] enfraquecendo a posição de pessoas negras. O valor da branquitude se realiza na hierarquia e na desvalorização do ser negro, mesmo quando ‘raça’ não e mencionada” (SOVIK, 2009, p. 50).

Na tentativa de contribuir para o rompimento desse “pacto de silêncio” persistente no Brasil, quanto aos benefícios que gozam as pessoas brancas simplesmente por serem brancas e, portanto, se ausentarem dos debates sobre as questões raciais, é que propomos este trabalho e passamos a analisar os dados coletados.

Perfil dos/as participantes do Congresso Acadêmico Unifesp 2020

De 13 a 17 de julho de 2020, ocorreu o Congresso Acadêmico Unifesp 2020, cuja edição, naquele ano, foi a primeira em formato totalmente virtual, em decorrência das medidas sanitárias de distanciamento social implementadas para combater a propagação da Covid-19. Com o tema “Ciência e Universidade: Transformações para a sociedade”, e com uma extensa programação de palestras, mesas de debate e atividades culturais, o evento teve como um de seus objetivos a divulgação da produção acadêmica da universidade e, ainda, debater sobre temas atuais da sociedade. Foram “[...] mais de 25 mil inscritos, mais de 250 horas de conteúdo, transmitidos simultaneamente em seis salas, 62 palestras e mesas, as quais reuniram 261 palestrantes nacionais e internacionais, alem da apresentação de 1.745 trabalhos” (UNIFESP, 2020, n.p.). Os números demonstram a grandiosidade do Congresso, o que não se reflete, porém, em termos de diversidade dos/as convidados/as para palestrar e mediar as principais discussões.

O evento apresentou um perfil racial e fenotípico de convidados/as oficiais majoritariamente brancos. Foram analisados 249 de 261 perfis, pois nem todas as fotos de divulgação estavam com qualidade suficiente para serem analisadas. Desses 249 perfis, como mostra a Figura 1, 86% foram identificados como brancos, 10% como pretos, e 4% foram classificados como não-brancos. Analisamos, ainda, o gênero dos/das convidados/as: 51% eram do gênero masculino e 49% feminino.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nas informações e nas fotos dos/das participantes constantes no espaço virtual do Congresso.5

Figura 1 Perfil de palestrantes do Congresso Acadêmico Unifesp 2020 

Observando esses dois dados, vemos que há um equilíbrio quanto ao marcador de gênero, mas nele permanece o binarismo masculino e feminino. Sobre esse marcador, encontramos ainda uma mesa de debate cujo tema foi “Mulheres em posições de liderança”, mas o nome mais apropriado seria “mulheres brancas em posição de liderança”, já que, nele, 100% das palestrantes eram brancas. Importante atentar para esse fato, pois ele corrobora, ao mesmo tempo, duas de nossas hipóteses, quais sejam: a equidade entre os gêneros e a prevalência de privilégio branco, mesmo entre o gênero feminino.

Lélia Gonzalez já tinha cantado essa bola. No entanto, a resistência mostrou-se na mesa “Mulheres negras das Ciências Exatas, onde estão?”, em que todas as convidadas eram pretas. Novamente, uma sugestão de nome que se adequaria seria: “Pessoas negras nas ciências da Unifesp, onde estão?”, resposta que pode ser obtida quando analisamos o perfil dos/das convidados/as das mesas cujo tema era racismo; nelas sim, a presença branca foi de 0% de participantes. Esse dado possibilita-nos tratar de outra de nossas hipóteses, pois fica evidenciado, pela pele retinta dos participantes, quem é visto, lido como negro ou preto pela universidade, e aqui o conceito de claros e escuros de Sodré nos é útil e encontra o dado empírico, não fugindo do perfil nacional.

O fenômeno de invisibilidade percebido e descrito reitera nossas indagações a propósito das instâncias de poder inscritas na organização do evento e que correspondem às configurações do poder institucionalmente investido e legitimado dentro das universidades. À ínfima presença de palestrantes e mediadores/as pretos/as e ou não-brancos/as podemos contrapor indignadas manifestações que ocorreram, por meio de chats e aba de comentários, por parte de membros internos e externos da comunidade acadêmica e que, não sendo objeto de nossa análise atual, podem ensejar investigações futuras.

Perfil dos/as participantes da Jornada Virtual da UEFS 2020

Com o tema “Trilhas para a Pluriversidade”, ocorreu entre os dias 27 de julho e 1 de agosto de 2020, a Jornada Virtual da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). No texto de apresentação, é ressaltado que o evento tem como motivação o desejo da universidade, mesmo em meio à pandemia da Covid-19, em continuar “[...] atuando junto à comunidade, em atividades de extensão, pesquisa, mesas de diálogo, comunicações [...]” objetivando “[...] a troca de conhecimentos, experiências e aprendizados que contribuam para um mundo melhor” (UEFS, 2020, n.p.).

A universidade apresenta-se como uma “[...] universidade sertaneja, desejosa de (re)pensar e buscar caminhos, dialogar e incluir saberes, tornar-se mais e definitivamente plural” (UEFS, 2020, n.p.). Consta, ainda, que a jornada contara com “[...] a participação da comunidade universitária, dos servidores docentes, técnicos administrativos e estudantes, bem como suas representações sindicais e estudantis, colegiados, departamentos, setores, sempre tendo em vista atividades que ultrapassem o espaço da UEFS e envolvam toda a Sociedade” (UEFS, 2020, n.p.).

A apresentação que ressalta a troca de conhecimentos de forma plural e diversificada esbarrou no perfil dos/das convidados/as oficiais do evento (Figura 2). Foram analisados 27 participantes, dos quais 59% foram identificados como brancos, 30% como pretos, 7% como indígenas e 4% amarelos. A presença de pessoas brancas é quase o dobro de outros perfis, fato que ocorre, também, quando o quesito é gênero, pois, dos/as 27 convidados/as, 63% eram do gênero masculino e 37% do feminino.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nas informações publicadas no site do evento.6

Figura 2 Perfil de palestrantes da Jornada Virtual da UEFS 2020  

Nesse evento, um diferencial foi a mesa com o tema “invisíveis maiorias; iniquidade e injustiça”, que contou com a presença de pessoas indígenas e amarelas, discutindo diretamente sobre diversidade étnico-racial no campus universitário, bem como contou com um mediador identificado como branco. Outro dado encontrado foi que, com exceção de uma mesa, todas as outras tinham representantes de outras raças e/ou cor.

Perfil dos/as participantes do IX Simpósio de Estudos e Pesquisas em Ciências Ambientais na Amazônia - UEPA

De 9 a 11 de dezembro de 2020, ocorreu o evento promovido pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) de forma virtual e com o tema “Estudos Interdisciplinares em Ciências Ambientais: desafios em tempos de pandemia”. Contando com uma breve apresentação, o evento seria uma especie de “[...] esforço de sensibilização das pessoas, pela defesa da Amazônia” (UEPA, 2020, n.p.). Trata-se de um evento com recorte mais restrito quanto ao tema, mas dada a dificuldade que tivemos de encontrar eventos acadêmicos virtuais na região Norte do país, optamos por analisá-lo, devido à importância da UEPA.

O cenário de prevalência de pessoas brancas continua sendo alto (Figura 3): 61% dos/as convidados/as, diante de 26% de pretos; 13% dos perfis não puderam ser classificados com segurança, ou por não terem tido fotos divulgadas, ou pela qualidade delas, o que dificultou a identificação de características fenotípicas, segundo a metodologia deste trabalho. O evento também se aproxima de uma paridade entre os gêneros: 58% masculino e 42% feminino.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nas informações publicadas no site do evento.7

Figura 3 Perfil de palestrantes do IX Simpósio de Estudos e Pesquisas em Ciências Ambientais na Amazônia - UEPA 

Perfil dos/as participantes da 18° Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFSC – SEPEX em casa – Universidade Federal de Santa Catarina

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) apresenta a SEPEX como um evento que visa “[...] o estímulo à curiosidade e a motivação da população para que possa discutir as implicações sociais da ciência, além de aprofundarem seus conhecimentos” (UFSC, 2020, n.p.). As atividades foram divididas em quatro eixos: Ciência & Tecnologia, Bioeconomia, Conheça a UFSC e Eixo Geral. O evento foi realizado entre os dias 22 e 24 de outubro de 2020.

A mesa “O antirracismo e o anticolonialismo na ciência” contou com uma mediadora branca, uma palestrante preta e outra indígena. Uma mesa em especial chamou nossa atenção, intitulada “Bioeconomia catarinense - Ações da Epagri...” que contou com a participação do grupo “Sementes Crioulas - Epagri”. O nome poderia levar o espectador a encontrar pessoas pretas como membros do grupo, sobretudo no senso comum, pela implicação “racial” que o termo evoca. Contudo, o que se viu no vídeo de apresentação foi um grupo 100% branco. Acessando a página da Epagri, fica-se sabendo que se trata de uma empresa pública, vinculada ao Governo Estadual de Santa Catarina: Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI). Quanto à alusão às “sementes crioulas”, no mesmo site, nos e informado que “[...] transmitidas através das gerações, as sementes crioulas são aquelas tradicionais, adaptadas às condições locais e da agricultura familiar, sem restrição para multiplicação” (PÁGINA RURAL, 2020, n.p.). Desse modo, assim como a crioulização em termos étnico-raciais supõe o nascido aqui, mas com origens algures, o mesmo se aplica ao conceito utilizado para as sementes.

Quanto ao sexo/gênero prevalente no evento, o masculino contou com 63% de participação, contra 37% do gênero feminino. A disparidade permanece, porém, menor se comparada ao recorte de raça, cuja presença de pessoas brancas nas mesas de debate chega a 89%. conforme mostra a Figura 4.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nas informações publicadas no site do evento.8

Figura 4 Perfil de palestrantes da 18° Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFSC – SEPEX em casa – Universidade Federal de Santa Catarina 

Perfil dos/as participantes do X Encontro Nacional do GT Filosofia e Direito – ANPOF – Razão e política: diálogo em torno do direito e da democracia

O evento ocorreu entre os dias 20 e 22 de outubro de 2020, de forma virtual pela plataforma do canal no YouTube, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília (UnB), com o tema “Razão e política: dialogo em torno do direito e da democracia”. Articulando a área da Filosofia e do Direito, o evento teve como proposta “[...] fornecer instrumentos para se refletir sobre a realidade brasileira e procurar também articular um caminho teórico para iluminar as questões fundamentais da filosofia política moderna e contemporânea” (UNB, 2020, n.p.). A apresentação afirma que a universidade tem como papel

[...] refletir sobre a sociedade e contribuir para se buscar alternativas e soluções para os problemas do presente, tendo em vista o bem-estar das gerações atuais e futuras, e contribuindo também, desta maneira, para implementar as condições para uma convivência pacífica e frutífera em nível nacional e planetário. (UNB, 2020, n.p.).

Entretanto, a atividade reflexiva e a busca de “[...] soluções para os problemas do presente” (UNB, 2020, n.p.) parecem ser exclusividade de pessoas brancas se levarmos em conta o perfil dos/as convidados/as do evento (Figura 5). Nele, encontramos o maior percentual de diferença entre os gêneros: 70 % masculino e 30% feminino, e, no quesito raça/cor, 91% dos/as participantes foram brancos/as, em um universo de 23 convidados/as.

Fonte: Elaborado pelos autores com base nas informações publicadas no site do evento.9

Gráfico 5 Perfil dos/as palestrantes do X Encontro Nacional do GT Filosofia e Direito - ANPOF - Razão e política: diálogo em torno do direito e da democracia 

No blog de divulgação do evento10, encontramos uma foto em preto e branco que ilustra a programação em que vemos homens negros carregando cartazes nos quais se pode ler frases em inglês: “I am a man” e outra que seria “Union, Justice...” – em tradução livre: “Eu sou um homem” e “União e Justiça”, respectivamente. Importante ressaltarmos que o evento foi promovido e contou com a participação de docentes de outras universidades brasileiras como a Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), a UnB, a Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e a Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Apesar dessa imagem de divulgação, os negros pouco apareceram nas mesas de debate.

Esboçando interpretações

Retomaremos aqui as nossas hipóteses, como forma de respondê-las após a apresentação dos dados colhidos. Entramos nessa empreitada acreditando que a representação de gênero no geral já avançou no interior das universidades brasileiras (o que pode ser comprovado pela maior paridade entre os gêneros nas mesas), mas ainda persiste o preterimento das mulheres negras nos lugares de representação de poder, hipótese que foi confirmada, visto que as mulheres negras não ocuparam significativamente lugares de representação, embora não tenham deixado isso passar “em branco”, visto que protagonizaram uma mesa em que, para além da denúncia explicitada pela presença de varias “mulheres cientistas”, um outro paradigma foi ali rompido: o de que as ciências identificadas como “exatas” ou “duras” não seriam lugar para mulheres, muito menos mulheres pretas. Diante dos números, percebemos que algumas universidades demonstraram mais interesse em equilibrar a participação entre os gêneros masculino e feminino, mas não houve a transversalidade dos marcadores, cristalizando a representação social preconceituosa da figura das mulheres brancas como superiores às mulheres negras ou, ainda que não tenha sido propriamente algo intencional, evidencia um cenário incontestavelmente desigual em termos de justiça (epistêmica, cognitiva).

Conjecturamos que seria possível, ao analisarmos o perfil dos/as participantes dos eventos acadêmicos que compõem o corpus desta pesquisa, traçar com alguma precisão quem as universidades brasileiras entendem como pessoas brancas e negras, a partir dos lugares que são a elas reservados nos eventos. É sim possível se levarmos em conta que os números evidenciam a prevalência de pessoas de pele escura nos debates referentes ao racismo ou a temas que supostamente “lhes diriam respeito”; enquanto a ausência de pessoas de pele clara nesses mesmos debates, indicaria que o tema não lhes seria concernente, com raríssimas exceções, pontuadas no decorrer da pesquisa.

Inferimos então que, para a branquitude, a brancura e um “passe livre” para não se falar de raça, é uma isenção marcada na pele. Os dados levam-nos a crer que não só há um “Pacto Narcísico”, como um pacto do “comigo não morreu” em que, segundo os lugares ocupados nos debates, branco fala de tudo, preto, de preferência, só de racismo e arte. Branco quando fala de racismo é no âmbito da escolha acadêmica, é seu objeto de estudo. Assim, o imaginário social de que o ser branco não é uma raça, mas um ser universal, o parâmetro, o paradigma do Homo sapiens, da beleza, do ser capaz, competente, hábil e fadado “naturalmente” ao sucesso, encontrou terreno fértil para se manter quase inconteste.

Afirmamos ainda que a presença inquestionável de brancos – em termos de representatividade, visibilidade e vocalidade – branquitude discursiva – invisibilizam outras presenças. Posto de outra forma, os resultados comprovam que há uma superexposição de pessoas brancas e pessoas claras nas mesas de modo geral, não havendo meramente uma invisibilização de outras presenças, mas a restrição delas em outras partes. O que queremos dizer é que houve visibilidade para outros grupos, dada sua participação em mesas com status de oficiais, mas essa visibilidade se deu dentro do limite temático da raça, do racismo, do preconceito e quando muito nos espaços de arte. Isso nos leva a outra de nossa hipóteses: as questões raciais ainda se encontram inalteradas no interior das universidades, mesmo quando se tem em vista os avanços conseguidos com a implementação da Lei de Cotas – Lei Nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, a qual forçou as universidades a se abrirem para pluralização de corpos, de saberes e de perspectivas, mas, ao tratar somente do acesso de novos estudantes, as universidades, ao que tudo indica, não tomaram medidas efetivas para a promoção de reais condições institucionais para a equidade representativa, de oportunidades de reconhecimento e de valorização das diferenças. Pessoas brancas continuam circulando sozinhas nos espaços de poder; assim, a branquitude demonstra-se pouco afeita a trocas reais de conhecimento e de formas de produzi-los.

No entanto, um contramovimento tem sido engendrado dentro e fora das universidades, por perspectivas críticas de engajamento que têm desafiado ideias de luta e resistência pautadas nas tradicionais dicotomias: teoria/prática, razão/emoção, racional/irracional. Como constata Boaventura de Sousa Santos:

A insatisfação com a universidade por parte de grupos sociais que apenas recentemente conseguiram a ela ter acesso poderá levar a novas lutas sociais pelo direito à educação e a uma educação alternativa. O movimento concebido pelo capitalismo global que obriga a universidade a tratar do seu futuro dá origem, através do envolvimento da universidade com o colonialismo e o patriarcado, a um contramovimento que a desafia a confrontar-se com o seu passado. Assim, a universidade encontra-se diante de dois espelhos, ambos inquietantes, um que reflecte a imagem de um futuro muito incerto e o outro que reflecte a imagem de um passado muito problemático. (SANTOS, 2018, p. 325).

Nesse sentido, Santos (2018) aponta que a complexidade implicada nos processos de descolonização leva à necessidade de intervenção em áreas como: acesso à universidade (de estudantes) e acesso a uma carreira universitária (dos docentes); investigação e a conteúdos pedagógicos; disciplinas do conhecimento, currículo e programas de curso.

Acreditamos, portanto, que reformular, repensar e recriar o presente, para vislumbrar um futuro efetivamente mais polissêmico e polifônico, requer o desenvolvimento de procedimentos, práticas e metodologias que possam, de fato, conduzir e ser conduzidas pelo compartilhamento, pela escuta ativa e pelo reconhecimento de corpos, territórios e práticas outras, assentadas em outras epistemes, para além das já autorizadas e sistematizadas.

No decorrer desta pesquisa, percebemos ser necessário, em outra fase das investigações, analisar mais detidamente mesas de debates específicas e como os sujeitos nelas se comportam; cotejar os números com a autodeclaração dos docentes quanto a sua raça/cor; a necessidade de ampliação do corpus; a inclusão do marcador de cor “parda”, dentre outras, que pretendemos aprofundar em estudos posteriores. Por ora, finalizamos pontuando que a universidade brasileira, por meio desses eventos, apresentou-se menos diversa do que pretende e mais “uni”, no sentido de unidade do que “pluri”, o que sempre foi sua característica. Se a branquitude faz um pacto de silêncio narcísico, como bem demonstrou o estudo de Bento (2002), a universidade pode ser entendida como o espelho d’agua em que Narciso se olha.

*Este texto compartilha apontamentos e discussões oriundos de pesquisa de Iniciação Científica desenvolvida na Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-UNIFESP), entre 2020-2021.

1ANPOF – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia.

2SEPEX – Salão de Ensino, Pesquisa e Extensão.

3A ADPF 186, proposta pelo partido Democratas (DEM), questionava o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial em processos de seleção para ingresso em instituição pública de Ensino Superior. Foi julgada e considerada, por unanimidade, improcedente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=6984693. Acesso em: 4 fev. 2022.

4Inspirado no filme de mesmo nome “Branco Sai, Preto Fica” – produção de 2015, dirigido e roteirizado por Adirley Queirós.

5Disponível em: https://congresso.unifesp.br/agenda/17-07-20/. Acesso em: 2 out. 2020.

6Disponível em: http://www.jornadavirtual.uefs.br/. Acesso em: 2 out. 2020.

7Disponível em: https://doity.com.br/ppgcasimposio/. Acesso em: 2 out. 2020.

8Disponível em: https://sepexemcasa.ufsc.br/. Acesso em: 2 out. 2020.

Referências

ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. Belo Horizonte: Pólen livros, 2019. [ Links ]

ANZALDÚA, G. Falando em línguas: uma carta para mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 8, p. 229-236, 2000. DOI: https://doi.org/10.1590/%25xLinks ]

BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: Branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002 [ Links ]

BICUDO, V. L. Atitudes raciais de pretos e mulatos em Sao Paulo. Organizado por Marcos Chor Maio. Sao Paulo: Editora Sociologia e Politica, 2010. [ Links ]

CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. [ Links ]

CARDOSO, L. O branco “invisível”: um estudo sobre a emergência da branquitude nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (Período: 1957-2007). 2008. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Faculdade de Economia, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008. [ Links ]

CARDOSO, L. O branco-objeto: o movimento negro situando a branquitude. Instrumento: Revista de Estudos e Pesquisas em Educação, Juiz de Fora, v. 13, n. 1, p. 81-93, jan./jun. 2011. [ Links ]

DIAS, G. R. M.; TAVARES JR., P. R. F. (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS Campus Canoas, 2018. Disponível em: https://goo.gl/m2u7gN. Acesso em: 10 dez. 2020. [ Links ]

GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio Janeiro: Zahar, 2020. [ Links ]

GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro. São Paulo: Marco Zero, 1982. [ Links ]

KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [ Links ]

LABORNE, A. A. P. Branquitude em foco: análises sobre a construção da identidade branca de intelectuais no Brasil. 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/BUOS-9TDHHV. Acesso em: 13 set. 2020. [ Links ]

MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. [ Links ]

MOSCOVICI, S. Representações sociais: investigação em psicologia social. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. [ Links ]

MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade Nacional versus Identidade Negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. [ Links ]

NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, São Paulo, v. 19, p. 287-308, 2007. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-20702007000100015Links ]

PÁGINA RURAL. SC: variedades crioulas, Epagri é parceira dos guardiões de sementes em SC. Página Rural, [s. l.], 4 ago. 2020. Disponível em: https://www.paginarural.com.br/noticia/281511/variedades-crioulas-epagri-e-parceira-dos-guardioes-de-sementes-em-sc#:~:text=Transmitidas%20atrav%C3%A9s%20das%20gera%C3%A7%C3%B5es%2C%20as,familiar%2C%20sem%20restri%C3%A7%C3%A3o%20para%20multiplica%C3%A7%C. Acesso em: 3 fev. 2022. [ Links ]

PASCHOARELLI, L. C.; MEDOLA, F. O.; BONFIM, G. H. C. Características qualitativas, quantitativas e quali-quantitativas de abordagens científicas. Revista de Design, Tecnologia e Sociedade, Brasília, v. 2, n. 1, p. 65-78, 2015. [ Links ]

SANTOS, B. S. O Fim do Império Cognitivo - A afirmação das epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2018. [ Links ]

SILVA, E. S. dos S. Racismo e docência em universidade pública: o caso da Universidade Federal da Bahia. 2019. Dissertação (Mestrado Ciências Sociais) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019. [ Links ]

SODRÉ, M. Claros e escuros: identidade, povo, mídia e cotas no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2015. [ Links ]

SODRÉ, M. Do lugar de fala ao corpo lugar de diálogo: raça e etnicidade numa perspectiva comunicacional. Reciis – Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, v. 13, n. 4, p. 877-886, out./dez. 2019. DOI: https://doi.org/10.29397/reciis.v13i4.1944Links ]

SODRÉ, M. Sobre imprensa negra. Lumina, Juiz de Fora, v. 1, n. 1, p. 23-32, jul./dez. 1998. [ Links ]

SOVIK, L. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2018/02/Aqui_ninguem_e_branco._Rio_de_Janeiro_Ae.pdf. Acesso em: 3 out. 2020. [ Links ]

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA. X Encontro Nacional do GT Filosofia e Direito. UnB, Brasília, 13 out. 2020. Disponível em: https://filosofiapoliticaunb.blogspot.com/2020/10/x-encontro-do-gt-filosofia-e-direito.html. Acesso em: 22 maio 2021. [ Links ]

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ. IX Simpósio de Estudos e Pesquisas em Ciências Ambientais na Amazônia. UEPA, Belém, 2020. Disponível em: https://doity.com.br/ppgcasimposio/informacoes. Acesso em: 22 maio 2021. [ Links ]

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA. Jornada Virtual UFES 2020. UFES, Feira de Santana, 2020. Disponível em: http://www.jornadavirtual.uefs.br/. Acesso em: 22 maio 2021. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO. Reitora e vice-reitor realizam balanço do Congresso Acadêmico 2020. Unifesp, São Paulo, 17 jul. 2020. Disponível em: https://www.unifesp.br/noticias-anteriores/item/4618-reitora-e-vice-reitor-realizam-balanco-do-congresso-academico-2020. Acesso em: 3 fev. 2022. [ Links ]

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA. 18° Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFSC – SEPEX em casa. UFSC, Florianópolis, 2020. Disponível em: https://sepexemcasa.ufsc.br/. Acesso em: 22 maio 2021.Links ]

VARGAS, J. H. C. Racismo não dá conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Revista Em Pauta: teoria social e realidade contemporânea, v. 18, n. 45, p. 16-26, 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/rep.2020.47201Links ]

Recebido: 17 de Agosto de 2021; Revisado: 27 de Janeiro de 2022; Aceito: 31 de Janeiro de 2022; Publicado: 18 de Fevereiro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.