Introdução
Dirijo-me a ti Eu hegemônico, falando do lugar do paradigma do Outro.
Aparecida Sueli Carneiro (2005, p. 20).
Neste texto, exploramos a trajetória de uma professora negra lésbica atuante no ensino público1 do Sul do Brasil. Trazemos, assim, reflexões a respeito da (in)visibilidade experienciada no espaço educacional e problematizamos os cotidianos escolares historicamente marcados por produções monoidentitárias (SILVA, 2015), no que concerne ao gênero, à raça e à sexualidade, silenciando diversas experiências. O argumento central, a partir da análise desenvolvida, está na tentativa de rompimento com o que Audre Lorde (1984), Cheryl Clarke (1980), Adriane Rich (1993), e outras teóricas, denominam de silenciamento epistêmico, interpretado como um processo de subjugação, de silenciamento e de extermínio de saberes relacionados a esse grupo de indivíduos.
Ser mulher negra e professora, de acordo com Gomes (2017), representa uma outra maneira de ocupar o espaço público. Ocupar profissionalmente um espaço que, outrora, era permitido somente para brancos e homens, reflete muito mais do que uma simples inserção profissional (GOMES, 1999). A trajetória das professoras negras representa a trajetória de todas as mulheres negras, as quais, ainda na esteira de Gomes (1999), são histórias de luta, de resistência, de emoção e de muita dor.
Assim sendo, neste estudo, visamos compreender a trajetória profissional com os atravessamentos inevitáveis da experiência pessoal de uma professora negra lésbica atuante no ensino público. O intuito é analisarmos e visibilizarmos as experiências vividas em sua trajetória de professora negra e lésbica no ensino público, em um cotidiano de enfrentamento de preconceito, de discriminação e de violências. Buscamos, desse modo, explorar as possíveis experiências de preconceito/discriminação interseccional presentes em sua trajetória, tornando possível identificarmos os dilemas enfrentados pelas professoras negras lésbicas no ensino público, conhecendo suas estratégias e seus recursos de sobrevivência na trajetória percorrida em contextos educacionais.
Nesse sentido, a temática surge como uma forma de lutar contra a tirania dos silêncios e dos silenciamentos muitas vezes impostos, que reforçam a invisibilidade, orientando mulheres negras e lésbicas, sujeitas a distintas e múltiplas discriminações que marcam profundamente seus corpos e as conduzem a ocuparem um lugar desigualmente diferenciado no mundo orientado pelos homens heterossexuais e homossexuais e mulheres brancas e negras heterossexuais. Contudo, buscamos trilhar um caminho até então pouco explorado, lançando-nos ao desafio de dimensionarmos o entrecruzamento entre as relações de gênero, de raça, de orientação sexual e de docência.
A fim de elucidarmos as questões propostas, utilizamos a entrevista compreensiva (KAUFMANN, 2013), transcendendo, no entanto, os limites de percebê-la apenas como uma base de sustentação metodológica para o enfrentamento de temas históricos recentes. Invocamos a oralidade como uma escolha epistemológica que viabiliza suporte para uma pesquisa politicamente empenhada com o reconhecimento e a restauração dos modos diversos de vivenciar a história, de acordo com o gênero, a idade, a sexualidade, a classe e a raça, oportunizados pelo testemunho oral.
Invocamos a oralidade como uma escolha epistemológica que viabiliza suporte para uma pesquisa politicamente empenhada com o reconhecimento e a restauração dos modos diversos de vivenciar a história, de acordo com o gênero, a idade, a sexualidade, a classe e a raça, oportunizados pelo testemunho oral.
Procurando enfatizar o protagonismo transformador da trajetória analisada, iniciamos a discussão apresentando brevemente a trajetória familiar e escolar de Assata Shakur2, professora que participou do estudo. Em seguida, refletimos sobre a atuação no ensino público a partir de sua narrativa compartilhada. Por fim, tecemos algumas considerações a partir da compreensão de que experiências, ainda que singularizadas pela individualidade, são questões sociais que coordenam saberes e fazeres no campo da educação.
Da militância à docência: representatividade negra e lésbica como inspiração
Mas eu, que sou limitada pelo espelho, assim como pela minha cama, vejo questões de cor e gênero. E sento aqui me perguntando, quem vai sobreviver a todas essas libertações.
Audre Lorde (ANUNCIADA, 2015, n.p.).
A trajetória explorada a seguir é a da professora Assata, 33 anos, formada em Magistério desde 2008, e especialista no ensino de Filosofia. Há um ano e quatro meses é funcionária pública, em uma escola de Educação Infantil, na região metropolitana de Porto Alegre.
Assata falou abertamente e com certa descontração sobre sua trajetória familiar e escolar; entretanto, quando começamos a conversar sobre lesbianidade, ficou visivelmente tensa, embora tenha enfatizado que todas as pessoas no seu ambiente de trabalho e círculo familiar sabiam de sua orientação sexual. O nervosismo tinha um motivo, que ficou evidente no decorrer do seu relato, permeado pela ênfase na aceitação própria.
Embora resida e trabalhe na região metropolitana de Porto Alegre, nasceu no interior do Estado, na região da fronteira e, ao relembrar essa fase de sua vida, destacou que sempre morou na mesma casa, que considera seu ponto de referência, pois “[...] sempre tem para onde voltar” (Assata, entrevista em 2019). Sua família tem histórico ativo de militância no Movimento Negro, mas, segundo ela, trata-se de uma militância “não declarada”. Seu avô materno era oficial do exército e contribuiu muito com a população negra da cidade, que, na sua visão, é muito racista.
De acordo com Assata, essa “militância não declarada” iniciou-se pelo seu bisavô, o qual possuía uma visão de mundo diferente, no sentido de lidar com questões consideradas tabus com mais naturalidade. Para exemplificar a visão de mundo diferente, Assata destacou que seu tio foi o primeiro homem a cursar magistério na cidade onde nasceu e que seu bisavô, mesmo sendo do exército, “[...] com todo aquele estereótipo intransigente de militar” (Assata, entrevista em 2019), concordou com a escolha do tio. Além disso, na época em que o divórcio ainda não era permitido pela legislação, seu bisavô encorajou sua filha, que vem a ser avó de Assata, a se divorciar.
Ao relembrar sua experiência como mulher negra, em uma cidade racista, Assata demonstrou certo conforto ao dizer que, por conta de sua família ter uma posição já consolidada, essa experiência não foi tão difícil quanto a dos familiares que a antecederam. Essa é uma das características marcantes do Movimento Negro, sobretudo nos microespaços. Todos os avanços concernentes à posição das pessoas negras, dentro ou não de forças políticas, como no caso da família de Assata, foram resultados de seu próprio trabalho e de sua mobilização, que se refletem para as futuras gerações, objetivando nutrir a construção de uma sociedade menos hostil para seus descendentes.
Importa aqui evidenciarmos que, de acordo com Sader (1988), o Movimento Negro pode ser compreendido como uma coletividade em que se elaboram identidades, promulgam práticas mediante as quais são constituídos e preservados interesses. É uma esfera em que se expressam vontades, se elaboram e reelaboram subjetividades, em que há reconhecimentos e interações recíprocas, em uma esfera social com um arranjo mutável, coletivo e intercambiável.
Assim, podemos afirmar que, na qualidade de movimento e de sujeito político, articulado ou não, o Movimento Negro consegue produzir um discurso capaz de reorganizar proposições, no passado difundidas como legítimas, como a ilusória superioridade branca. Para além disso, nomeia e ressignifica interesses difusos entre suas partes e por intermédio da sua capacidade articuladora, reconhecendo-se como ente capaz de estabelecer novos significados e atribuir-se importância, como agente produtor de sua própria história.
Isso fica evidente na construção de seu empoderamento de mulher negra, que se constituiu alicerçado na posição social que sua família construiu em sua cidade natal. Na perspectiva do Feminismo Negro, o empoderamento é compreendido como prática que parte do processo de autoconscientização e que culmina em transformação (BERTH, 2018) e, por tratar-se de um processo, Assata ressaltou que sua vida não foi propriamente “um mar de rosas” ao relembrar que, na infância, utilizava uma toalha na cabeça, no anseio de ter cabelo liso, por não ter contato com nenhuma representatividade negra, pois, antigamente, o cabelo crespo era considerado ruim. Nesse sentido, Vieira (2015) destaca a invisibilidade da estética negra e a dor do racismo sobre os cabelos de mulheres negras, argumentando que não é novidade que a nossa sociedade não valoriza a estética negra, aqui entendida como juízos e conceitos de beleza baseados nas características da população negra. Uma sociedade, “[...] diga-se de passagem, extremamente racista, que tenta a todo custo dissipar qualquer manifestação de negritude contida na mesma” (VIEIRA, 2015, n.p.).
O gesto de colocar uma toalha na cabeça na pretensão de encenar um cabelo liso reflete outra faceta do racismo, que desumaniza o sujeito negro, fazendo-o criar rejeição pelo próprio corpo. Os padrões de beleza cerceiam a liberdade da construção identitária dos sujeitos negros, uma vez que são pautados em brancura e cabelos lisos, impostos de forma cruel em nossa sociedade e impactando desde cedo na autoestima. Em tom de revolta, Assata compartilhou que “[...] até hoje lá em [...], aquele inferno de cidade, dizem que a gente tem o cabelo ruim” (Assata, entrevista em 2019). Embora não considere o episódio marcante, recordou uma experiência envolvendo seu cabelo, na época em que cursava o Ensino Fundamental.
Na ocasião, acontecia, na escola, uma campanha de prevenção contra piolhos. As professoras realizavam uma espécie de revista nas cabeças das alunas e dos alunos, e Assata relembrou que, nesses momentos, sua mãe sempre recebia elogios pelo fato de sua cabeça estar sempre muito limpa e cheirosa. Os elogios, no entanto, eram sempre acompanhados de certo tom de surpresa, “[...] como a cabeça da Assata pode ser tão limpa e cheirosa?”. E por que não seria?
O Feminismo Negro brasileiro já denunciou outra das tantas peculiaridades do racismo, relacionada à construção de estereótipos. Ao passo que o estereótipo de mulher bonita, limpa, doce, delicada e frágil, endossado pelo patriarcado, só é aplicado às mulheres brancas, pois as mulheres negras, desde a infância, são vistas como sujas, feias, brutas e de cabelo ruim. Em tempo, na concepção feminista, o patriarcado designa uma formação social em que os homens detêm o poder, ou simplesmente, o poder é dos homens, podendo significar, assim, quase sinônimo de dominação masculina ou de opressão das mulheres.
Consoante Marcia Tiburi, em entrevista (SILVA, 2018), o que chamamos de patriarcado nada mais é do que o sistema capitalista aplicado ao gênero e à sexualidade. Este, portanto, se configura como um sistema de opressão e de privilégios dos sujeitos machos e brancos, na medida em que não se pode falar em patriarcado negro. Assata concordou que, mesmo que o racismo não tenha impactado diretamente sua constituição como sujeito, ele agiu de formas mais indiretas, como na estética, pois, na época da escola, desejava ser igual a suas colegas de cabelo liso.
A respeito de sua vivência escolar, Assata relembrou que sempre foi a única negra na turma, “[...] no máximo três, já era revolução”. Por ter um perfil de liderança, nunca se sentiu excluída no espaço escolar e disse sempre ter se sentido autossuficiente, embora frisou que a cidade é extremamente racista, não recordou de nenhum episódio que a tenha marcado, mas ponderou que isso não se devia ao fato de que as pessoas do seu contexto escolar não fossem racistas, mas, sim, pela posição social que sua família ocupava. A experiência de Assata demonstra que, embora pudesse perceber a presença do racismo na cidade onde cresceu, como afirmou diversas vezes ao se referir a sua cidade natal, a posição social de sua família, ou seja, a classe social um tanto mais elevada do que a maioria das famílias negras da época, foi um fator que a blindou de certa forma.
Tal posição social está relacionada ao fato de que, na época, existia uma quantidade irrisória de famílias negras; logo, as que porventura obtivessem um poder aquisitivo mais expressivo que a maioria (das poucas famílias negras), se inseriram em uma situação de privilégio e status social, o que, de acordo com Assata, era raro na cidade. Além de sua família, existiam apenas outras duas com a mesma condição. Esse fator foi determinante na construção da trajetória profissional de Assata, como veremos a seguir.
Para explicar como chegou até a docência, Assata salientou que foi o Movimento Estudantil que se mostrou inicialmente em sua vida, durante a oitava série do Ensino Fundamental. Na época, movida pelo desejo de melhorar o contexto da escola em que estudava, ingressou no Grêmio Estudantil, que, na sua perspectiva, não atendia às demandas dos(as) estudantes, e o desejo de transformar esse cenário a motivou a participar. Durante boa parte de sua vida, o Movimento Estudantil foi sua prioridade e, ao finalizar o Ensino Fundamental, por imposição familiar, que, segundo ela, se divide entre militares e professores(as), iniciou o Curso Normal3, integrado ao Ensino Médio. Ela descreveu como imposição, pois seu sonho era cursar Direito.
Por consequência da militância, em termos de formação, Assata permaneceu muito tempo parada, pois, além do Movimento Estudantil, militou também no Movimento de Mulheres e, também, no Movimento Negro, sendo inclusive Conselheira Nacional do Movimento Estudantil no governo Lula4. Ao prestar vestibular pelo Programa Universidade para Todos (Prouni)5, Assata foi aprovada em quatro universidades na área da Educação, como Letras, Pedagogia, História, e em Psicologia. Contudo, não teve condições de ingressar em nenhum curso, pois acreditava que isso prejudicaria sua dedicação à militância.
Foi com a Universidade Aberta Brasil (UAB6) que Assata conseguiu conciliar a faculdade de Filosofia com seu emprego na época, cursando semestres em cidades diferentes, em decorrência dos concursos em que foi sendo aprovada no decorrer desse período. Formou-se em 2018 e disse ter demorado um certo tempo para se encontrar como profissional e, por esse motivo, acabou se distanciando da militância – “[...] agora eu milito para mim mesma” (Assata, entrevista em 2019). Ao ser questionada sobre o motivo de ter, por muito tempo, priorizado a militância, Assata, sorrindo, disse que o mundo seria diferente, as coisas estariam bem melhores, se cada pessoa fizesse a sua parte.
Negra, lésbica e de religião de matriz africana: tudo aquilo que não desejavam para uma professora
[...] a academia não é o paraíso, mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado. A sala de aula com todas as suas limitações continua sendo ambiente de possibilidades. Nesse campo de possibilidades, temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, exigir de nós e de nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permite encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginemos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade.
bell hooks (2013, p. 273) 7.
Ao refletir sobre como sua orientação sexual se insere na atuação como professora, Assata relembrou a experiência do antigo emprego, em uma escola da região do Vale do Rio dos Sinos. Em tal escola, ela não comentava acerca de sua sexualidade, o que suscitava sempre algum tipo de comentário. Assata saiu dessa escola por conta de racismo, intolerância religiosa e lesbofobia, pois, na sua perspectiva, ela era “[...] tudo aquilo que não desejavam para uma professora: negra, lésbica e de religião de matriz africana” (Assata, entrevista em 2019).
A primeira experiência de preconceito foi com o racismo, que aconteceu desde o primeiro dia em que esteve na escola, situada, de acordo com Assata, em uma região mais tradicional de cultura alemã. Na escola em questão, em um contexto de 100 crianças que compunham a instituição inteira, Assata ressaltou que havia apenas duas negras. Entre as professoras, além dela, havia apenas mais uma professora negra e uma faxineira.
Nesse momento, Assata brincou e disse em tom de deboche: “[...] tem que ter as cotas, né?” (Assata, entrevista em 2019). Ela relembrou que, durante toda a sua vida, nunca sentiu a necessidade de pensar a respeito da questão racial e que veio a conhecer o racismo aos 30 anos, naquela escola. Ao detalhar a experiência em questão, que aconteceu no ano de 2017, iniciou dizendo que a diretora da escola era loira, de olhos azuis e que só soube que ela era negra quando chegou para se apresentar, uma vez que tinha sido aprovada em um concurso.
Após esse momento, a escola promoveu, como fazia todos os anos, uma atividade cultural, que aconteceu no dia 21 de novembro. A escolha foi visitar um museu de colonização alemã, o que causou um certo desconforto em Assata, uma vez que, no dia 20 de novembro, se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra. Criado em 2003, como efeméride incluída no calendário escolar, tal data foi oficialmente instituída em âmbito nacional mediante a Lei Nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, sendo feriado em cerca de mil cidades em todo o país e nos estados de Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro por meio de decretos estaduais (SILVA; SILVÉRIO, 2003).
Embora o dia eleito seja o 20, o mês de novembro é considerado mês da Consciência Negra, quando se propõe refletir sobre a inserção da população negra na sociedade brasileira, suscitando questões sobre racismo, discriminação, igualdade racial e social, inclusão da população negra na sociedade brasileira e cultura afro-brasileira. A data foi escolhida por coincidir com o dia atribuído à morte de um dos maiores líderes negros do Brasil, Zumbi dos Palmares, que, em 1695, lutou pela libertação do povo contra o sistema escravocrata (SILVA; SILVÉRIO, 2003).
O mês e o dia em questão são considerados importantes no reconhecimento das pessoas que descendem de africanos(as) e da construção da sociedade brasileira. O fato de a escola ter escolhido visitar um museu de colonização alemã, naquela data, deixou Assata intrigada e um pouco desconfortável. Por esse motivo, sentiu-se julgada, “[...] só porque você é negra, não tem cultura nenhuma, não teve a oportunidade de conhecer nada” (Assata, entrevista em 2019).
Na ocasião do passeio ao museu, ouviu da diretora comentários pejorativos a seu respeito, o que a deixou muito chateada, levando-o a reclamar para as colegas de trabalho. Por conta desse episódio, foi convocada pela diretora para elaborar uma ata a respeito do ocorrido, na qual, a pedido desta, deveria registrar que ela teria acabado com o passeio, por ter causado uma situação embaraçosa, ao iniciar uma reflexão sobre o significado do dia 20 de novembro e ter reclamado dos comentários realizados que a deixaram incomodada.
Tal atitude foi contestada e Assata se negou a colaborar, recordando que solicitou à diretora que também registrasse em ata o episódio do passeio, quando o grupo de professoras estava se organizando para tirar uma fotografia e a diretora a chamou empregando a seguinte expressão: “Assata vem aqui, antes que eu te coloque no tronco!”. Diante disso, explicitou que o posicionamento da diretora era racista, o que causou revolta e a solicitação de que tal acusação fosse registrada em ata, com a presença de testemunhas. A faxineira da escola, que era negra, foi convocada para testemunhar a favor da diretora e, de acordo com Assata, foi constrangida a dizer que ela jamais tinha sido racista com ela, o que, no seu entendimento, já configurava racismo.
Por conta de a diretora não reconhecer o cunho racista de seu posicionamento, Assata sugeriu que chamassem a polícia – nas suas palavras: “[...] se você não está entendendo o que está acontecendo aqui, com certeza a polícia vai entender” (Assata, entrevista em 2019). A coordenadora tentou apaziguar a situação, dizendo que tudo teria acontecido por conta de as duas estarem exaltadas. Como era o primeiro mês de trabalho de Assata, ela decidiu não dar continuidade, após o pedido de desculpas por parte da diretora.
O episódio narrado evidencia a importância da análise do caráter dinâmico do racismo, pois, ainda que diversos atores sociais o categorizem como um comportamento individual e irracional, de sujeitos específicos, Moreira (2019) enfatiza que “[...] estereótipos racistas estão presentes nas mentes de praticamente todas as pessoas, sendo elemento central na história social e psíquica das nações ocidentais” (MOREIRA, 2019, p. 45).
A simbologia carregada pela expressão empregada pela diretora da escola guarda relação com o que Moreira (2019) conceitua como racismo simbólico, que “[...] designa construções culturais que estruturam a forma como minorias raciais são representadas” (MOREIRA, 2019, p. 47). Tais construções são ponto de partida para ações de sujeitos particulares como também de agentes institucionais.
O racismo simbólico, nesse sentido, concerne a símbolos que ganham sentido dentro de um processo de distinção cultural, em que determinados elementos ganham distintas significações, o que viabiliza o emprego deles na denominação de diferentes objetos.
Um símbolo faz referência a diversas cadeias de significação que determina a percepção do mundo exterior e dos objetos aos quais ele está relacionado. Mais do que isso, conteúdos simbólicos são parâmetros para a formação do ego, instância que será estruturada a partir dos significados culturais com os sentidos presentes em uma determinada sociedade. (MOREIRA, 2019, p. 48).
Em decorrência desse episódio, a coordenação da escola iniciou uma perseguição velada contra ela. Inicialmente, Assata foi destinada a trabalhar com uma estagiária que, por conta da religião que professava, não respeitava a religiosidade de Assata e a impossibilitava de concretizar suas práticas pedagógicas. Quando a funcionária foi demitida, atribuiu a responsabilidade à Assata e entrou em contato com os familiares da turma, inventando inverdades acerca de sua conduta como professora, alertando-os com o argumento de que precisavam ter cuidado, pois Assata era “a professora dos Orixás”8, uma vez que ela professa sua fé em uma religião de matriz africana, a Umbanda.
A partir da iniciativa da então ex-estagiária, alguns pais a denunciaram na Secretaria de Educação, a qual, por um período, passou a acompanhar as suas aulas. Para além disso, foi retirada da sua turma e substituída por uma pessoa branca e evangélica, o que fez com que Assata começasse a adoecer, sobretudo mentalmente, uma vez que também não tinha apoio das colegas de trabalho, que, segundo ela, lhe ignoravam o tempo todo. Por conta disso, Assata desencadeou um quadro de depressão e ansiedade, tendo de iniciar tratamento psicológico e psiquiátrico, inclusive fazendo uso de medicamentos.
O fato de as colegas de trabalho a ignorarem configura, na esteira de Moreira (2019), racismo aversivo, que se caracteriza pela manifestação de preconceitos sutis, mas contínuos, que revelam “[...] o desprazer na interação social com negros, motivo pelo qual pessoas brancas costumam evitar contato com eles ou os tratam com o devido distanciamento social” (MOREIRA, 2019, p. 46-47). Assata trabalhou nessa escola durante dois anos, e a última experiência de preconceito vivenciada foi com relação a sua orientação sexual, ocasião em que ouviu que ser lésbica era inaceitável.
Mesmo depois de ter passado por experiências que a adoeceram, Assata disse, sem titubear, que continua sendo professora porque acredita na educação. Que os problemas relacionados aos preconceitos experienciados por ela não eram de responsabilidade dos(as) alunos(as), mas, sim, do contexto social no qual estavam inseridos. Como motivação, compartilhou a experiência de docência em uma escola localizada em uma região periférica.
Essa experiência foi inesquecível para Assata, que emocionada relatou que, quando ingressou na escola, “[...] o sonho das crianças era serem donas de uma boca de tráfico e quando eu saí de lá, eles já queriam ser mecânicos, jogadores de futebol, querendo jogar mais futebol do que fazer arminha com lego” (Assata, entrevista em 2019). Foi a partir dessa vivência que Assata passou a perceber que a educação vale a pena, que, como professora, estava contribuindo na construção de uma sociedade diferente.
Assata analisou que, no passado, havia ingressado na militância para contribuir com a mudança no mundo, mas que, a partir daquela experiência, notou que essa diferença pode ser feita nas menores esferas e, também, nos microespaços, como na sala de aula. Justamente por isso, ela acredita na educação. É possível identificar em sua narrativa a forte presença do ativismo cupim9 (KENEDDY, 1976).
Ao reiterar que acredita na educação, Assata demonstrou fazer uso do que bell hooks (2013) conceitua de pedagogia engajada, uma vez que acredita que a docência não se resume ao simples partilhar informação, mas também a participar do crescimento intelectual das(os) alunas(os). A atuação de Assata conecta-se com a pedagogia engajada na medida em que ela se inspira a ter coragem de transgredir as fronteiras que encerram cada aluna(o) em uma abordagem de aprendizagem mecanicista, como em uma rotina de linha de produção.
Professoras que utilizam da pedagogia engajada em suas trajetórias, como Assata, se aproximam das(os) alunas(os) “[...] com a vontade e o desejo de responder ao ser único de cada um, mesmo que a situação não permita o pleno surgimento de uma relação baseada no reconhecimento mútuo” (HOOKS, 2013, p. 25). Nessa concepção, a possibilidade de reconhecimento está sempre presente.
Essa perspectiva de pedagogia compreende a educação como prática de liberdade, uma vez que pressupõe a criação de estratégias de construção de consciência e engajamento críticos. Na esteira de hooks (2013), a educação só pode ser libertadora quando todas(os) se empoderam do conhecimento como se este fosse uma plantação onde devemos trabalhar coletivamente. Justamente por isso, a pedagogia engajada se mostra muito mais exigente do que a pedagogia crítica e até mesmo a feminista convencional.
Com um sorriso radiante, Assata disse que atualmente se sente “o máximo” por ser professora negra e lésbica e se perceber como um exemplo positivo para as alunas que passaram por suas turmas, servindo inclusive de inspiração para algumas delas. A pedagogia engajada necessariamente valoriza a expressão da(o) aluna(o), tática que permeia a atuação de Assata, uma vez que percebeu que, para além da representatividade de ocupar aquele espaço, sua presença representava, para algumas alunas, possibilidades.
Foi então que passou a levar narrativas de sua própria experiência para a discussão em sala de aula, no intuito de demonstrar que mulheres como ela podem transgredir as barreiras impostas pela sociedade, no seu caso, por meio da educação. Nas práticas mais sutis, onde Assata faz conexões com a sua trajetória, ela demonstra seu empenho em transformar o currículo de tal forma que ele minimamente deixe de ser um mecanismo que reforça os sistemas de dominação, se mostrando disposta “[...] a correr os riscos acarretados pela pedagogia engajada e a fazer de sua prática de ensino um foco de resistência” (HOOKS, 2013, p. 36).
Os enfrentamentos a auxiliaram a pensar no processo de construção de uma educação libertadora, que reconhece a necessidade de se trabalhar a diferença dentro da sala de aula, descentralizando condutas, raças, gêneros, sexualidades e religiões da posição de certas ou normativas. Pois, se uma educação como prática de liberdade não interessa a uma estrutura que “[...] não tem funcionado e continua penalizando grupos e/ou populações, com quem a ‘estrutura’ se importa?” (ARAUJO, 2016, n.p.). As narrativas de Assata levam-nos a questionarmos: Se não estamos auxiliando nossas(os) alunas(os) a “[...] enxergar a sociedade a partir de uma ótica cultural e diversa, de entender as identidades e a produção da diferença, como algo natural, o que estamos ajudando a fazer, a manutenção”? (ARAUJO, 2016, n.p.).
Assim, visualizarmos que as relações de poder intervêm na educação de maneira que o status quo acaba sendo reproduzido em nossas práticas pedagógicas nos possibilita problematizar nosso lecionar, educar e, com isso, colaborar na construção de contextos concretos que tensionem e problematizem questões que envolvem educação e poder e como tais questões estão imbricadas no interesse de educar.
Retomando distintas histórias, pouco ou quase nunca contadas: considerações finais
[...] e quando falamos nós temos medo
nossas palavras não serão ouvidas
nem bem-vindas
mas quando estamos em silêncio
nós ainda temos medo
então é melhor falar
tendo em mente que não esperavam que sobrevivêssemos.
Audre Lorde (1997, n.p., tradução nossa).
Ao longo da historiografia educacional elaborou-se um lugar das professoras negras na história oficial. Nesse viés, as reflexões promovidas pela trajetória de Assata provocam-nos a pensar que, para além de existirem nesses espaços, as professoras negras e lésbicas podem, devem e estão contestando todos os óbices heteronormativos e racializantes no âmbito da educação pública.
A singularidade de sua trajetória expressa que não existe um lugar tampouco um modelo fixo da mulher negra lésbica, do mesmo modo que não existe uma única forma de docência. Embora Assata tenha relatado muitos obstáculos e preconceitos enfrentados na docência no ensino público, ela permaneceu acreditando que continuar ocupando esses espaços e produzindo suas ações contribui para as mudanças tão necessárias em prol da construção de uma educação sem discriminação.
Salientamos que o sentido de acreditar, na perspectiva singular da trajetória de Assata, apresenta suas agências e suas estratégias desenvolvidas, ainda que dentro dos limites de gênero, classe, raça e sexualidade, não desconsiderando as opressões que incidem sobre ela. O acreditar dessa professora não é, nem de longe, uma visão romantizada da docência, que ignora os limites e as fragilidades da educação no contexto atual da sociedade brasileira, mas se mostra como um modo de colocar no âmago da pesquisa suas possibilidades vividas, não deixando de destacar as barreiras criadas para que suas práticas não sejam efetivadas.
Assata, enegrecendo o espaço educacional e dando cor à consciência política, produz concepções de educação emancipadora, que refuta os padrões raciais, de gênero e de sexualidade e, com isso, liberta para além das dificuldades e das dores. A singularidade de sua trajetória constitui possibilidades e constrói caminhos coletivos de tornar-se e ser professora negra e lésbica. A densidade simbólica de seu corpo feminino negro lésbico na docência proporciona romper com estereótipos sobre a negritude e a lesbianidade nos processos educativos escolares.
As reflexões propostas por meio da análise de sua trajetória provocam-nos a pensar que as experiências, ainda que singularizadas pela individualidade, são questões sociais que coordenam saberes e fazeres no campo da educação.