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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19345.040 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

O Alfabetismo da Diáspora e a Educação das Relações Étnico-Raciais: aproximações teórico-metodológicas

Diaspora Literacy and the Education of Ethnic-Racial Relations: theoretical-methodological approximations

El Alfabetismo de la Diáspora y la Educación de las Relaciones Étnico-Raciales: aproximaciones teórico-metodológicas

Débora Cristina de Araujo* 
http://orcid.org/0000-0001-8442-3366

Eduardo da Silva Araujo** 
http://orcid.org/0000-0003-1169-0214

*Doutora em Educação. Professora de Educação das Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: <debora.c.araujo@ufes.br>.

**Mestre em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Professor da Rede Municipal de Educação de Serra - Espírito Santo. E-mail: <eduprofessor@gmail.com>.


Resumo:

Com a aproximação do aniversário de 20 anos da Lei Nº 10.639/2003, torna-se de extrema relevância refletir sobre desafios que marcaram e ainda marcam sua trajetória. Pensando nisso, este artigo, de natureza ensaística, tem como objetivo evidenciar aproximações entre o que preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) e o “Alfabetismo da Diáspora”, perspectiva epistemológica que propõe o enfrentamento à “deseducação”, promovida por um currículo e um sistema formal de educação etnocêntrico e racista, o qual atua para o apagamento da história da população negra. Os princípios e os fundamentos do Alfabetismo da Diáspora e das DCNERER são explorados ao longo do texto, revelando as aproximações entre duas perspectivas diaspóricas que comungam em interesses de promover mudanças na educação formal, com vistas à transformação social.

Palavras-chave: DCNERER; Alfabetismo da Diáspora; Currículo

Abstract:

With the approximation of the 20-year anniversary of the Law no. 10.639/2003, it becomes extremely important to reflect on what challenges marked and still mark its trajectory. With this in mind, this article, of an essay nature, aims to highlight approximations between what the National Curriculum Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations and for the Teaching of Afro-Brazilian and African History and Culture (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – DCNERER) and the “Diaspora Literacy”, epistemological perspective that proposes the confrontation of “miseducation”, promoted by a curriculum and a formal ethnocentric and racist education system, which works to erase the history of the black population. The principles and foundations of the DCNERER and Diaspora Literacy are explored throughout the text, revealing the approximations between two diasporic perspectives that share interests in promoting changes in formal education, with a view to social transformation.

Keywords: DCNERER; Diaspora Literacy; Curriculum

Resumen:

Con la aproximación del aniversario de 20 años de la Ley 10.639/2003, se hace de suma importancia reflexionar sobre los desafíos que marcaron y aún marcan su trayectoria. Pensando en eso, este artículo, de naturaleza ensayista, tiene como objetivo evidenciar aproximaciones entre lo que preconizan las Directrices Curriculares Nacionales para la Educación de las Relaciones Étnico-Raciales y para la Enseñanza de la Historia y Cultura Afrobrasileña y Africana (Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – DCNERER) y el “Alfabetismo de la Diáspora” perspectiva epistemológica que propone el enfrentamiento de la “deseducación”, promovido por un currículo y un sistema formal de educación etnocéntrico y racista, que actúa para borrar la historia de la población negra. Los principios y los fundamentos del Alfabetismo de la Diáspora y de las DCNERER son explorados a lo largo del texto, revelando las aproximaciones entre dos perspectivas diaspóricas que comparten intereses en promover cambios en la educación formal, con miras a la transformación social.

Palabras clave: DCNERER; Alfabetismo de la Diáspora; Currículo

Sensibilização, implantação ou implementação?

Nos últimos anos, tem sido intensificado o debate em torno de uma pergunta: Ainda é preciso discutir sensibilização em relação ao trabalho com a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER)1 ou podemos já anunciar um efetivo processo de implementação da Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003), e seus desdobramentos legais e institucionais na educação brasileira? Tal pergunta2 se faz pertinente quando refletimos sobre os desafios que se mantêm no campo da formação docente, seja em nível inicial (COELHO; COELHO, 2018) como no continuado (GOMES, 2012). Reconhecendo não apenas a Lei Nº 10.639/2003, mas todo um conjunto legal, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Parecer CNE/CP3 Nº 3, de 10 de março de 2004, e Resolução CNE/CP Nº 1, de 17 de junho de 2004), verificamos a pertinência da pergunta e, infelizmente, a dificuldade de respondê-la de modo sucinto.

De um lado, estudos sobre a formação inicial indicam, como demonstram Mauro Cesar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho (2018, p. 1), que “[...] as lacunas existentes em relação à implementação da lei são devedoras do modo pelo qual a formação de professores é concebida e assumida nos percursos curriculares estudados”. O autor e a autora acrescentam que, na mesma medida em que se considera a responsabilidade das Secretarias de Educação e Instituições de Ensino na oferta de formação continuada, “[...] não se pode desconsiderar a responsabilidade dos cursos de licenciatura” (COELHO; COELHO, 2018, p. 5). Isso se deve ao fato de tais secretarias desempenharem tanto “[...] um papel fundamental na efetivação dos princípios presentes” na legislação da ERER, quanto porque, no âmbito dos cursos, é que são possibilitados aos/às estudantes “[...] acesso às discussões consideradas fundamentais para a sua atuação profissional, participando, assim, do que se pode chamar de Sistema Nacional de Educação” (COELHO; COELHO, 2018, p. 5). De outro lado, como discute Nilma Lino Gomes (2012, p. 23), a “[...] efetivação e a implementação de leis no campo educacional dependem em grande medida de um conjunto de condições que lhes permitam a realização plena”. Ao pensarmos sobre as marcas do racismo impressas na escola, “[...] esses dispositivos legais entram em confronto direto com o imaginário e as práticas de racismo e com o mito da democracia racial extremamente arraigados no bojo do processo de escolarização e no imaginário de profissionais da educação [...]” (GOMES, 2012, p. 24).

Assim, é possível lançarmos uma nova observação (e pergunta): Quando tratamos da ERER, estamos nos referindo à implantação ou à implementação? Gomes (2012) salienta que ambos os conceitos se relacionam a dois momentos da construção de uma política, mas com importantes diferenças. Enquanto implantação representa, em uma política pública, o início, “[...] um momento inaugural, uma etapa de apresentação de uma perspectiva que se abre à sociedade”, a implementação refere-se à capacidade “[...] da execução de um plano, programa ou projeto que leve à sua prática por meio de providências concretas” (GOMES, 2012, p. 26). A autora ainda ressalva que um e outro representam momentos interdependentes e, “[...] à medida que se apresentam as tensões da implantação, se estabelece um conjunto de ações articuladas para a implementação, em resposta aos problemas identificados” (GOMES, 2012, p. 27). Diante disso, é possível estarmos vivenciando contextos concorrentes de implantação e implementação em um mesmo espaço educacional. Isso revela o extremo desafio que tanto os cursos de formação inicial e continuada como os/as professores/as formadores/as da ERER e toda a sociedade têm de enfrentar com vistas à efetiva implementação dos dispositivos legais que marcam o combate ao racismo na educação brasileira. Se podemos hoje identificar e destacar importantes mudanças nas práticas pedagógicas de docentes Brasil afora, infelizmente ainda é possível reconhecermos limitações e resistências de profissionais da educação que, sem formação qualquer, passam a demandar um processo anterior: de convencimento e de sensibilização.

É em busca de contribuirmos com esse panorama que marca a ERER que, neste artigo, temos como objetivo evidenciar aproximações entre o que preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e o “Alfabetismo da Diáspora”, perspectiva epistemológica cunhada por Joyce Elaine King (1996, 2006), cujo objetivo é possibilitar com que “[...] o povo negro re-possua nossa história” (KING, 1996, p. 82), “[...] para o benefício da humanidade por meio de vários símbolos culturais e das experiências vividas das pessoas de África, aqui e pelo mundo” (KING, 2006, p. 345, tradução nossa). As reflexões aqui propostas partem de uma natureza ensaística que, como declara Jorge Larossa (2003, p. 114), tomam “[...] um texto pré-existente, não para ser examinado mas para ter um solo onde correr”. O solo aqui escolhido são duas perspectivas teóricas, produzidas na diáspora, e que podem oferecer interpretações amplas sobre a educação e as relações étnico-raciais. A escolha pela natureza ensaística possibilita, sobre ambas, uma maior “liberdade temática e formal” de análise (LAROSSA, 2003, p. 106), pois investe, muito mais, em caminhos sinuosos, que se abrem “ao tempo em que se caminha”. Tomaremos também alguns aspectos da análise de discurso, proposta por Grada Kilomba (2019), para interpretar as produções hegemônicas e que atuaram para fortalecer argumentos de base canônica e eurocêntrica, bem como a noção de Movimento Negro educador, proposta por Gomes (2017), para a interpretação dos documentos e dos conceitos centrais deste texto: a legislação da ERER e o Alfabetismo da Diáspora.

Na primeira parte deste artigo, apresentaremos os princípios do Alfabetismo da Diáspora. Em seguida, recuperaremos, brevemente, alguns aspectos históricos envoltos na legislação brasileira, articulando-os a tais princípios, com o intento de evidenciar como, no conjunto de pensamentos, fundamentos legais e propostas epistemológicas produzidas na diáspora, os objetivos de promover “[...] a valorização e respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, sua cultura e história” (BRASIL, 2004a, p. 12) são uma constante.

O Alfabetismo é da diáspora e não do imperialismo

Em um primeiro momento de contato com a origem geográfica (Estados Unidos) do conceito do Alfabetismo da Diáspora, resistências podem surgir por considerar-se que se trata de uma abordagem “importada” de um país colonizador. No entanto, é preciso ressalvarmos que tanto a diáspora africana quanto o racismo são elementos componentes daquele país como de todo o continente americano. Especialmente se levarmos em conta que o sequestro de populações africanas que culminou no tráfico transatlântico para as Américas, consideramos que construtos epistemológicos que visam resistir e enfrentar toda tentativa de apagamento da existência negra na diáspora são imprescindíveis. O Alfabetismo da Diáspora propõe esse exercício a partir de uma perspectiva epistemológica de combate ao que se consagrou como conhecimento único, de base hegemônica e eurocêntrica. Reducionista por natureza, esse conhecimento eurocêntrico estabelecido na diáspora, além de agir por meio de visões distorcidas, incompletas e estereotipadas acerca dos demais povos, em especial da população negra de origem africana, consagra valores de grupos dominantes e, assim, perpetua os ideais de uma sociedade hierarquizada e que tem seu funcionamento pautado na manutenção do status quo. Nesse sentido, King (2006, p. 19, tradução nossa) afirma que: “Libertar-se da hegemonia é imperativo”.

O conceito do Alfabetismo da Diáspora foi desenvolvido no campo epistemológico conhecido como Black Studies, ou Estudos Negros, no qual Joyce Elaine King tem pesquisado e contribuído para o avanço há várias décadas. São estudos que tiveram seu início na década de 1960 nos Estados Unidos e, conforme afirmam Ama Mazama e Molefi Kete Asante (2004, p. xix, tradução nossa), “[...] possibilitaram uma conscientização das grandes contribuições que os africanos e aqueles de ascendência africana têm feito aos campos do discurso e do conhecimento”. Nessa dimensão, o ponto principal a ser considerado é que a humanidade dos povos africanos e seus descendentes na diáspora foi completamente negada, resultando em alienação das gerações posteriores, tanto sobre suas identidades quanto sobre sua herança cultural, não tendo condições de lutar por condições de existência justas. Por isso, o Alfabetismo da Diáspora representa uma perspectiva epistemológica que propõe o enfrentamento à “deseducação”, prática promovida por um currículo e um sistema formal de educação etnocêntrico e racista, o qual atua para o apagamento da história da população negra. O termo “deseducação”, que subsidia o argumento de King (2006), vem do historiador Carter G. Woodson (1933), que o define como um modelo educacional baseado na crença da absoluta inferioridade das pessoas de descendência africana em relação aos brancos de descendência europeia4.

Como um desdobramento dessa perspectiva, King (2005) considera que o caráter transformativo da Black Education5, ou Educação Negra, faz referência aos requisitos fundamentais da liberdade humana que estão calcados na vivência educacional e nas circunstâncias de vida das populações de origem africana. Grande parte de seu trabalho de pesquisa e de teorização pauta-se no seguinte questionamento: “O que aconteceu com a Educação Negra e a agenda de socialização?” (KING, 2005, p. 2, tradução nossa). A fim de encontrar respostas para tal questão, a pesquisadora aprofundou-se nas causas da alienação cultural nos âmbitos educacional e acadêmico, os quais ela aponta como centrais para que a excelência educacional consolidada na tradição dos povos da diáspora africana seja minada e desarticulada.

No contexto brasileiro, podemos reconhecer situação semelhante em relação à deseducação da população negra que vem sendo, ao longo dos séculos, submetida a constantes mecanismos de subtração de sua cultura e de seus valores. A história do país, remontando séculos de relações raciais marcadas pelo flagelo da escravização e posterior marginalização social, mostra que um sentimento antiafricano se enraizou em nossa sociedade. Clóvis Moura (1992, p. 33) destaca, por exemplo, como no período escravista, a propósito da manutenção da ordem e como estratégia de dominação social, as manifestações das culturas africanas eram consideradas primitivas e exóticas, sendo reprimidas e controladas. Apenas eventualmente algumas práticas eram permitidas, mas ainda assim como manifestações de uma classe dominada. “Toda a estrutura desse controle cultural, nas suas diversas gradações, foi racionalizada para que os padrões dessas diversas culturas fossem considerados inferiores” (MOURA, 1992, p. 34). O pesquisador expõe mais detalhes desse expediente de expropriação cultural sistemático e violento:

A mesma coisa aconteceu com seus instrumentos rituais, que passaram a ser instrumentos típicos, com as suas manifestações musicais [...], indumentária africana, a cozinha sagrada dos candomblés. Tudo isso passou a ser simplesmente folclore. E com isto subalternizou-se o mundo cultural dos africanos e seus descendentes. A dominação cultural acompanhou a dominação econômica. (MOURA, 1992, p. 35).

Essa constante tentativa de apagamento cultural também se desenvolveu e se consolidou como parte estruturante do convívio social. Corroborando esse argumento, Eliane Cavalleiro (2006, p. 19) reflete em como modelos sociais foram construídos com base na “[...] precariedade de modelos satisfatórios e a abundância de estereótipos negativos sobre negros”. Acrescenta, ainda, que o dano causado pela forma como essas relações se constitui não tem sido degradante apenas para a população negra, mas para a sociedade como um todo (CAVALLEIRO, 2006). Em sua percepção, a escola tem decidido, muitas vezes, ignorar os aspectos culturais dos povos de origem africana e adotado o silêncio como estratégia para lidar com a totalidade das questões étnico-raciais na comunidade escolar. Com isso, desenvolve-se um ritual pedagógico que pode “[...] estar comprometendo o desempenho e o desenvolvimento da personalidade de crianças e de adolescentes negros, bem como estar contribuindo para a formação de crianças e de adolescentes brancos com um sentimento de superioridade” (CAVALLEIRO, 2006, p. 32-33).

De modo semelhante, King (1992) argumenta que o processo de escolarização e, especialmente, os materiais didáticos destinados às escolas, não fomentam a crítica necessária para a desalienação sobre a história e a cultura africana e, dessa forma, não enfrenta a questão da deseducação da população negra. Nesse sentido, ela introduziu, em sua pesquisa, o conceito de Epistemological Nihilation6, ou Negação Epistemológica, como sendo a imposição de um ideal cultural, histórico e estético branco que “[...] induz as pessoas a se identificarem com noções dominantes de superioridade e valor, quer seja intencionalmente ou não, e ao apagamento, que relega ‘Outros’ a um estado e não-existência [...]” (KING, 2017, p. 212, tradução nossa). A maneira como, por exemplo, a escola aborda o continente africano, no que diz respeito à sua história, cultura e realizações, é pautada no eurocentrismo e demonstra, para a autora, como opera esse processo de negação epistemológica na prática. As realizações e os avanços científicos dos povos africanos têm sido sistematicamente suprimidos e, para além disso, adulterados e distorcidos da história oficial apresentada nos currículos escolares. Nesse mesmo sentido, Elisa Larkin Nascimento (2008) levanta dados históricos que demonstram a importância das matrizes africanas, tanto para a cultura brasileira quanto para a humanidade, além de denunciar o apagamento e as alterações na forma como essa história chegou nas escolas.

Em grande parte, o que foi disseminado como a história oficial da África não passa de uma série de recortes tendenciosos daquilo que se julgou pertinente divulgar, no sentido de menosprezar os feitos de seus povos e, ao mesmo tempo, apresentá-los como subordinados e dependentes dos europeus para terem qualquer chance de alcançar a civilização. A esse propósito, ao afirmar que os europeus praticaram um holocausto no continente africano, Nascimento (2008) divide-o em dois momentos: o primeiro por meio do tráfico escravista e o segundo nos últimos 500 anos, o qual “[...] visou a aniquilação da identidade dos filhos da África e à sua integração ao modelo ocidental, considerado universal” (NASCIMENTO, 2008, p. 29).

Assim, era conveniente que a imagem dos africanos fosse sempre associada ao primitivo, ao atraso e à não produção de conhecimento. Para isso, foi necessária a omissão, por exemplo, dos conhecimentos produzidos no campo da linguagem e da escrita por civilizações muito antigas. Esse movimento, produzido pelo “academicismo convencional”, negou a historicidade ao continente africano e à sua população, classificando-a como pré-histórico, “[...] com base na alegação de que seus povos nunca desenvolveram a escrita. Entretanto, os africanos estão entre os primeiros povos a criar essa técnica” (NASCIMENTO, 2008, p. 34). Henrique Cunha Junior (2013) acrescenta que, devido aos conhecimentos reduzidos que acessamos sobre o continente africano, ignoramos “[...] as sociedades africanas tradicionais como sociedades das escritas, sociedades letradas e com histórias registradas por documentos escritos diversos, que por vezes não foram do alcance das sociedades europeias em decifrá-los” (CUNHA JUNIOR, 2013, p. 17).

Com essa visão tendenciosa, tampouco poderiam ser relatados os avançados conhecimentos na área da medicina por parte dos egípcios e outros povos, além do desenvolvimento da Astronomia, da Metalurgia, da Mineração, da Ciência e da Agropecuária espalhados pelo continente. E, ainda, segundo Nascimento (2008), outra área de amplo domínio dos antigos povos africanos era a Matemática, o que remete à maestria das técnicas de Engenharia encontradas nas ruínas das cidades que compunham grandes impérios africanos.

Mesmo com exemplos como esses e as inúmeras áreas de excelência e vasta produção de conhecimento, a imagem que se fixou nos currículos escolares sobre o continente africano foi a de uma vivência atrasada e miserável. Como consequência, podemos elencar a apropriação da cultura africana por parte de povos europeus e asiáticos, além da exotização de tudo aquilo que vinha da África, definindo seus diversos povos como elementos congelados no tempo em estágios rudimentares de desenvolvimento. Some-se a isso o fato de o continente ter tido sua história contada a partir da perspectiva do invasor ou do colonizador, uma vez que a historiografia até bem recentemente renegava os registros da oralidade como fontes verossímeis (NASCIMENTO, 2008).

No que diz respeito às tradições e aos costumes dos africanos no Brasil, o tratamento de negação epistemológica foi semelhante. Segundo Abdias Nascimento (2016, p. 123), “[...] não é exagero afirmar que desde o início da colonização, as culturas africanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sítio”. O autor vai além e destaca outra faceta do racismo cultural brasileiro:

Desta escamoteação do esvaziamento chegamos ao ponto máximo da técnica de inferiorizar a cultura afro-brasileira: a sua folclorização. Técnica insidiosa e tão entranhada no raciocínio de certos estudiosos que até aquele “analista” bem-intencionado revela, consciente ou inconscientemente, sua adesão a tal elenco de crenças negativas. (NASCIMENTO, 2016, p. 145).

Por isso, a necessidade da recuperação de análises como as feitas por Frantz Fanon (2008, p. 119): “O branco estava enganado, eu não era um primitivo, nem tampouco um meio-homem. Eu pertencia a uma raça que há dois mil anos já trabalhava o ouro e a prata”. Tal posição é também encontrada em King (2017, p. 212, tradução nossa) que defende que “[...] desarmar a negação epistemológica é uma tarefa moral que requer recuperar o conhecimento libertador da herança cultural, memória e consciência histórica”, considerando que a identidade negra na diáspora “[...] se fortalece quando percebemos que ela pertence a uma matriz mais ampla e global: a experiência dos povos de origem africana em todo o mundo.” À vista disso, rememorando esses valores e trazendo-os para os currículos e práticas escolares, é possível recuperarmos a “iniciativa histórica” da educação da população negra na diáspora. Tal movimento é, para Aimé Césaire (2011, p. 269), o caminho pelo qual será possível reaver a “audácia histórica, a confiança em si” pois é “[...] precisamente isto que, desde o primeiro dia, o colonizador tenta retirar, por todos os meios, aos colonizados”.

Esse movimento coaduna com outro importante prisma da reflexão que aqui propomos: se, de um lado, a tentativa de apagamento é uma recorrência; de outro, é concreto o fato de que a resistência das heranças culturais e históricas africanas foram as responsáveis pelas transformações educacionais mais significativas das últimas décadas, como ressalta Gomes (2017), a partir da assertiva de que o Movimento Negro é educador. Isso ressalta a importância do que ela chama de “vivência da raça”: “Significa a intervenção social, cultural e política de forma intencional e direcionada dos negros e negras ao longo da história, na vida em sociedade, nos processos de produção e reprodução da existência” (GOMES, 2017, p. 67). Os atravessamentos do racismo e as estratégias de resistência/enfrentamento dele, aliados à capacidade de “[...] criação, recriação, produção e potência” (GOMES, 2017, p. 67), mobilizaram as lutas do Movimento Negro em torno de uma educação emancipatória. Esse realce é imprescindível para entendermos que as tentativas de apagamento nunca foram exitosas por causa dessa re-existência negra na diáspora.

No Brasil, desde o processo colonial, [a vivência da raça] atravessou o regime da escravidão, se fez presente na República e permanece no Brasil – e em outros países do mundo – até os nossos dias. Desse modo, a raça é vista como uma dimensão estruturante da sociedade brasileira e do processo colonial das américas [...]. (GOMES, 2017, p. 67-68).

Essa mesma noção de vivência da raça é encontrada em propostas epistemológicas como o Alfabetismo da Diáspora, dado seu objetivo de explorar a reeducação das relações étnico-raciais e a história e a cultura africana com vistas tanto a potencializar seu ensino quanto desmantelar “[...] estruturas hegemônicas que impedem tal conhecimento” (KING, 2005, p. 5, tradução nossa). A tal respeito, Gloria Boutte et al. (2017, p. 77, tradução nossa) resumem bem a utilidade desse conceito na educação quando afirmam: “O Alfabetismo da Diáspora pode ser um significativo antídoto que educadores podem e devem oferecer. Os benefícios estendem-se para a humanidade dos povos ao redor do mundo”.

Com o propósito de identificarmos aproximações entre o Alfabetismo da Diáspora em diálogo com a legislação da ERER no Brasil é que, nas seções seguintes, exploramos as características de ambos.

As Diretrizes

Aprovadas pelo CNE, em 10 de março de 2004, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (doravante aqui chamadas de modo abreviado de DCNERER) foram instituídas pelo Parecer CNE/CP Nº 3/2004 (BRASIL, 2004a) e pela Resolução CNE/CP Nº 1/2004 (BRASIL, 2004b). Tendo como relatora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, a única mulher negra a ocupar cadeira como conselheira naquele período, os fatos já mostram a importância histórica de tal instrumento legal. Em pesquisa sobre a história da Lei Nº 10.639/2003, Luiz Carlos Paixão da Rocha (2006) analisou os prenúncios do processo de elaboração das Diretrizes ao recuperar, em textos jornalísticos, discursos de resistência à legislação da ERER por parte de membros do CNE e outros nomes da educação brasileira. Na matéria O Brasil precisa de lei para ensinar a história do negro?, de Antônio Gois (2003), destaca-se, por exemplo, a posição de Ulysses Panisset, ex-presidente da Câmara de Educação Básica do CNE:

Essas medidas se tornam artificiais quando são determinadas de cima para baixo. A LDB deixou os currículos mais flexíveis e deu mais liberdade para as escolas. A liberdade de ensinar, que consta da lei, é baseada num artigo da Constituição. No momento em que você começa a determinar muita coisa, acaba transformando o currículo numa camisa-de-força em que tudo é o governo que diz que tem que ser ensinado. (GOIS, 2003, n.p.).

Em direção semelhante, a conselheira Guiomar Namo de Mello assim refletiu:

Temos uma mentalidade de achar que currículo escolar se faz por legislação. Basta escrever uma lei e ela será aplicada. Currículo é assunto pedagógico. Se não for assim, vira uma árvore de natal. Cada um quer pendurar o que acha importante e sugere o ensino de arte, sociologia ou filosofia, mas ninguém lembra de pensar num currículo harmônico. (GOIS, 2003, n.p.).

Ambas as posições se relacionavam a uma suposta verticalização que o currículo sofreria por conta dessa mudança legal, além de uma tendência política que estaria se sobrepondo à pedagógica. Cabe, contudo, lembrarmos que o currículo é uma instância pedagógica, política e ideológica. Nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2017, p. 147), “[...] o currículo é, definitivamente, um espaço de poder [...]” e o “[...] conhecimento corporificado no currículo carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder”. No entanto, quando qualquer ação, mobilizada por grupos sociais que não ocupam lugar de hegemonia, propõe enfrentar essas relações sociais de poder, a interpretação que se produz é de estar ocorrendo um movimento de verticalização. Ao contrário, contudo, a legislação da ERER representa horizontalização e democratização do conhecimento com vistas à retomada do equilíbrio histórico. E essa ação é destacada por muitos estudiosos e estudiosas, como Gomes (2017), que reconhece a atuação do Movimento Negro como a base de todas essas transformações. Por isso, repetindo, o Movimento Negro é educador (GOMES, 2017). Isso não se trata de uma metáfora, já que representa uma transformação que continua em curso por meio de todo o acúmulo de estudos e de ações práticas, especialmente a partir das últimas décadas do século passado. A questão é que nem sempre tais ações ocupam, no currículo e na sociedade, local propício, como declarou Petronilha Gonçalves e Silva, a relatora das Diretrizes, à referida matéria: “Há vários grupos de pesquisadores e do movimento negro que produziram excelentes materiais para contribuir com o ensino da história e cultura negra. Na maioria das vezes, no entanto, a tiragem dessas publicações é muito pequena” (GOIS, 2003, n.p.). O que a legislação da ERER faz, em especial as DCNERER, é reunir, em pressupostos legais, educacionais e institucionais um conjunto de conhecimentos com vistas a promover a “[...] valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir” (BRASIL, 2004a, p. 2).

No entanto, o debate promovido pela referida matéria, a começar pelo seu título, demonstra uma posição bastante marcada, já que apenas Petronilha representou a defesa dessas modificações legais, ao passo que outros membros do CNE se manifestaram contrariamente. Somado a um quarto entrevistado, Eduardo Chaves, professor da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o grupo demarcou uma posição hegemônica e de resistência à Lei Nº 10.639/2003. Destacamos duas passagens de sua declaração:

Nossos currículos são centrados na transmissão de informações aos alunos e são enciclopédicos. O pior é que a maior parte das informações transmitidas não tem o menor interesse para os alunos. Se a escola já é perto de insuportável sem mais essa carga, imagine com ela. Educar não é encher a cabeça dos alunos de informação. Educar é preparar para viver [...].

Os alemães, os italianos, os japoneses e os árabes vão começar a pressionar para que o ensino de sua história e cultura seja considerado, por lei, obrigatório em todas as nossas escolas. (GOIS, 2003, n.p.).

Dessa posição discursiva, podemos identificar o que Kilomba (2019) denominou de “deslocamento”, que se refere ao processo de transferir a atenção de uma imagem mental para a outra, “[...] desprendendo a atenção da primeira e passando para uma segunda que está, por sua vez, relacionada à imagem inicial, por meio da associação. [...]. O deslocamento também tem uma função defensiva, particularmente dentro da fobia e da censura” (KILOMBA, 2019, p. 130-131). No caso em questão, o deslocamento não foi produzido apenas no nível individual (do entrevistado), mas por parte de todo o texto, já que a disposição e a proporção dos argumentos da matéria demarcam a discordância do fato de que a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 –, passou a incluir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira. Estratégias como essas permitem com “[...] que discursos censurados – discursos racistas – ocorram sem necessariamente serem percebidos como agressivos” (KILOMBA, 2019, p. 131).

Esse breve exemplo coaduna com a experiência de King quando atuou como integrante da Comissão Curricular da Califórnia e se opôs contrariamente aos livros didáticos de História e de Ciências Sociais que estavam sendo examinados para adoção daquele estado. Segundo a autora, os livros continham “[...] flagrantes estereotipagens raciais, imprecisões, distorções, omissões, justificações e trivializações de práticas sociais desumanas e antiéticas, incluindo a escravização racial” (KING, 1992, p. 322, tradução nossa). Com isso, “[...] esses livros falharam em alcançar os padrões estabelecidos pela normativa pedagógica para diversidade cultural, letramento ético, precisão histórica, oportunidades para analisar assuntos controversos e desenvolver o pensamento crítico e habilidades para participação social democrática” (KING, 1992, p. 322, tradução nossa).

A discussão provocada pelo enfrentamento do racismo presente nas instituições de educação do estado da Califórnia foram importantes para que as comunidades escolares (educadoras/es, familiares e estudantes) se atentassem mais para as representações negativas (e colonizadas) presentes naqueles materiais, alertando-as para o fato de que “[...] os currículos e o conhecimento escolar sustentam relações de poder e dominação por meio de narrativas históricas que alienam estudantes Negros e outros estudantes de cor” (KING, 1992, p. 324, tradução nossa).

Mobilizações como essa já estão previstas no Brasil por meio do texto das DCNERER, quando ele se apresenta como uma fonte de orientações para toda a sociedade:

Destina-se, também, às famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos os cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros, para nele buscarem orientações, quando pretenderem dialogar com os sistemas de ensino, escolas e educadores, no que diz respeito às relações étnico-raciais, ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade, isto é, não apenas direito ao estudo, mas também à formação para a cidadania responsável pela construção de uma sociedade justa e democrática. (BRASIL, 2004a, p. 2).

Contudo, outro aspecto em comum com os princípios do Alfabetismo da Diáspora está no fato de a elaboração das DCNERER ter sido após uma intensa mobilização social (coletividade), já que foi feita consulta, por meio de questionário encaminhado a diversos setores sociais como as entidades do Movimento Negro, militantes, docentes que já desenvolviam ações voltadas para a questão racial, conselhos estaduais e municipais de educação, famílias e pessoas empenhadas “[...] com a construção de uma sociedade justa, independentemente de seu pertencimento racial” (BRASIL, 2004a, p. 2).

Encaminharam-se em torno de mil questionários e o responderam individualmente ou em grupo 250 mulheres e homens, entre crianças e adultos, com diferentes níveis de escolarização. Suas respostas mostraram a importância de se tratarem problemas, dificuldades, dúvidas, antes mesmo de o parecer traçar orientações, indicações, normas (BRASIL, 2004a, p. 2).

O que rege a dimensão do Alfabetismo da Diáspora reflete o mesmo senso de coletividade relatado nas DCNERER pois possui, por excelência, a compreensão de que os conhecimentos sobre a história e cultura africana compõem a existência e re-existência africana na diáspora.

Outra aproximação entre ambas as perspectivas se refere ao exercício de desnudar processos de exclusão moral e apagamento simbólico da população negra na diáspora:

A ausência de perspectivas africanas no conhecimento educacional em todos os níveis permite que outros possam agir de acordo com os conceitos da nossa desumanização que a escravização engendrou impunemente, assim, justificando tratamentos menos que humanos – algumas vezes até com a nossa participação. (KING, 2017, p. 14, tradução nossa).

Para tanto, torna-se imprescindível o exercício do reconhecimento, tal como propõe as DCNERER:

Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual. (BRASIL, 2004a, p. 3-4).

Além dessas aproximações, duas outras premissas das Diretrizes serão exploradas, de modo mais detalhado e em diálogo com o Alfabetismo da Diáspora, nas seções seguintes.

A escola e o corpo docente não podem improvisar

Prestes a completar 20 anos a primeira modificação em âmbito da legislação educacional brasileira para instituir a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira7, um dos principais desafios, já destacados no início deste texto, é de estarmos, ainda em grande medida, em processo de sensibilização em torno da importância da legislação da ERER. Por isso, uma das preocupações apontadas pelas DCNERER é de que o trabalho com a ERER não seja improvisado. Para que possamos realizar efetivas transformações que subsidiem adequada e qualitativamente o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, torna-se necessário o reconhecimento dos limites da formação inicial e continuada (também já apontado neste texto). Conscientes dessas limitações, os cuidados passam a ser redobrados com destaque para alguns elementos:

1. Superar o etnocentrismo europeu (BRASIL, 2004a): Sobre isso é possível repetirmos a mesma pergunta de King (2006, p. 337, tradução nossa): o “[...] acesso a um currículo defeituoso representa justiça?”. Não, é a resposta mais do que imediata. Entretanto, é preciso irmos além e ressaltarmos o quanto “[...] as narrativas contidas no currículo, explícita ou implicitamente, corporificam noções particulares sobre conhecimento, sobre formas de organização da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais” (SILVA, 1995, p. 195). Sobre os grupos sociais com poder, o currículo corporifica conhecimentos glorificados; já sobre grupos sociais excluídos simbólica, social, cultural e historicamente, as narrativas do currículo apreendem “distorções e equívocos” (BRASIL, 2004a, p. 15). Assim, o currículo deixa de atender “[...] à precisão histórica e ao fornecimento de oportunidades para se examinar questões controversas e para o desenvolvimento do pensamento crítico e da participação social democrática” (KING, 1996, p. 83), produzindo, entre os/as estudantes negros/as, “uma identidade enfraquecida” (KING, 1996, p. 86).

2. Desalienar processos pedagógicos (BRASIL, 2004a): Pelo já exposto até aqui, é possível afirmarmos que “[...] o currículo e o conhecimento escolar sustenham relações dominantes de poder através de narrativas históricas que alienam os estudantes e as estudantes” (KING, 1996, p. 83), sejam negros/as ou não negros/as. Por isso, o processo de desalienação das práticas pedagógicas se faz urgente para desvelar, inclusive, o racismo operante nos princípios epistêmicos do currículo que, por sua natureza prescritiva, tem o poder de dizer “[...] qual conhecimento é legítimo e qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e quais não o são, o que é certo e o que é errado, o que é moral e o que é imoral, o que é bom e o que é mau, o que é belo e o que é feio, quais vozes são autorizadas e quais não o são” (SILVA, 1995, p. 195).

Sobre esses princípios, uma das grandes ressalvas apontadas por King relaciona-se ao que já exploramos neste texto como uma suposta verticalização ou, nas palavras da autora, de uma tentativa de “parcialidade étnica” (KING, 1996, p. 84). Essa irônica ideia foi levada ao extremo na Califórnia no contexto analisado pela autora, quando representantes de grupos dominantes a acusaram (juntamente a outros defensores/as de um currículo de valorização da história e cultura africana) como sendo grupos “auto-interessados” (KING, 1996, p. 84). O que se pretendia, contudo, era desalienar e denunciar os discursos e fundamentos teóricos:

Os livros didáticos adotados na Califórnia apresentam a assimilação e a integração como o caminho apropriado para o sucesso, ao reificar as experiências dos diversos grupos de etnia europeia que “vieram” através da ilha Ellis e acabaram se tornando americanos “brancos”, fazendo, assim, da experiência imigrante o modelo para todos os outros grupos. A descrição que os livros didáticos fazem da imigração europeia histórica e da assimilação como a experiência americana mais representativa define os americanos africanos como “imigrantes forçados” que “vieram acorrentados” como se “vir para a América” dessa forma fosse, de algum modo, uma experiência análoga à sua imigração. [...] Assim, as “ideias dominantes” substituem a identidade racial pela etnicidade, deixando de questionar a hierarquia racial [...]. (KING, 1996, p. 85).

O que esse desvelamento coloca em xeque, na verdade, é o quanto a resistência ao ensino de história e cultura africana e dos povos da diáspora atua para desviar o conflito central estabelecido (o racismo) e deslocá-lo (KILOMBA, 2019) para um “problema de ‘conflito étnico’” (KING, 1996, p. 84). Contudo, tanto o que defende a autora, nos EUA, quanto o que regem as DCNERER sobre o contexto brasileiro, a posição é a mesma: “[...] não se trata mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira” (BRASIL, 2004a, p. 8). O “balanço das histórias”, a que se refere Chimamanda Adichie (2019), implica o reconhecimento de todos os grupos sociais que, no caso brasileiro, seriam a expressão das “[...] contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e europeia” (BRASIL, 2004a, p. 8).

Resistências a essa luta engendrada e protagonizada pelo Movimento Negro na diáspora africana é a expressão do medo a que se refere Maria Aparecida Silva Bento (2002, p. 25). É um medo que “alimenta a projeção do branco sobre o negro” e os pactos narcísicos:

[...] pactos e contratos inconscientes, por meio dos quais os sujeitos se ligam uns aos outros e ao conjunto grupal, por motivos e interesses superdeterminados. Esse acordo inconsciente ordena que não se dará atenção a um certo número de coisas: elas devem ser recalcadas, rejeitadas, abolidas, depositadas ou apagadas. Mas enfatiza que, ao possuir um ar de falsidade, elas possibilitam um espaço onde o possível pode ser inventado. (BENTO, 2002, p. 46).

Essa projeção, que culmina em pactos narcisos, expressa um “[...] tipo de paranoia que caracteriza frequentemente quem está no poder e tem medo de perder seus privilégios” (BENTO, 2002, p. 38). Todavia, as DCNERER vão no cerne da questão ao promover determinações como o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana,

[...] evitando-se distorções, envolverá articulação entre passado, presente e futuro no âmbito de experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias e realidades do povo negro. É um meio privilegiado para a educação das relações étnico-raciais e tem por objetivos o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, garantia de seus direitos de cidadãos, reconhecimento e igual valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, europeias, asiáticas. (BRASIL, 2004a, p. 11).

Tal determinação aponta para a assunção de um ensino, de práticas pedagógicas e, obviamente, de um currículo que não aceitem como válidos conhecimentos que podem impedir com que estudantes negros/as ou outros grupos “[...] compreendam as causas que estão na raiz das injustiças históricas e contemporâneas que as pessoas continuam a sofrer, nem tampouco pode prepará-los para participar da luta contínua pela transformação social” (KING, 1996, p. 84). Ao contrário, o que pretendem as Diretrizes é “[...] que se conheça a sua história e cultura apresentadas, explicadas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; [...] desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros” (BRASIL, 2004a, p. 3).

Pedagogias de combate ao racismo

Um dos aspectos centrais explorados pelas DCNERER são as pedagogias de combate ao racismo, que se traduzem na necessidade de atenção para “[...] que todos, negros e não negros, além de ter acesso a conhecimentos básicos tidos como fundamentais para a vida integrada à sociedade, exercício profissional competente, recebam formação que os capacite para forjar novas relações étnico-raciais” (BRASIL, 2004a, p. 8).

São princípios estabelecidos com o intuito de promover “educação das relações étnico/raciais positivas”, objetivando “[...] fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra” (BRASIL, 2004a, p. 7). Trata-se, a nosso ver, de uma questão central, pois aponta os impactos dessa reeducação para negros/as e brancos/as de modo distinto e, ao mesmo tempo, complementar: “Entre os negros, poderão oferecer conhecimentos e segurança para orgulharem-se da sua origem africana [...]” (BRASIL, 2004a, p. 7). Isso remonta ao reconhecimento de que, para “[...] interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada” (BRASIL, 2004a, p. 2) é imperativo que a educação brasileira promova “[...] a divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos [...]” (BRASIL, 2004a, p. 2).

Tais princípios também são fortemente defendidos pelo Alfabetismo da Diáspora sob pena de o ensino escolar e seus materiais didáticos privarem estudantes negros e negras do conhecimento de sua herança africana, além de distorcer sua humanidade, “[...] o que constitui uma ‘forma de morte’ [...] da psique [...]” (KING, 1996, p. 93). Por isso, processos críticos de educação das relações étnico-raciais necessitam “decifrar” o conhecimento, tanto para o alfabetismo quanto para a “consciência da diáspora” (KING, 1996, p. 94).

Outro destaque das pedagogias de combate ao racismo direciona-se à população branca:

[...] para os brancos, poderão permitir que identifiquem as influências, a contribuição, a participação e a importância da história e da cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as outras pessoas, notadamente as negras. Também farão parte de um processo de reconhecimento, por parte do Estado, da sociedade e da escola, da dívida social que têm em relação ao segmento negro da população, possibilitando uma tomada de posição explícita contra o racismo e a discriminação racial e a construção de ações afirmativas nos diferentes níveis de ensino da educação brasileira. (BRASIL, 2004a, p. 7-8).

Tal demarcação aponta para duas frentes: o reconhecimento das africanidades na identidade e na cultura das pessoas de origem europeia no Brasil e a explicitação dos benefícios do seu pertencimento racial, elemento historicamente negado pela sociedade, pois, como ressalta Bento (2002, p. 27): “Há benefícios concretos e simbólicos em se evitar caracterizar o lugar ocupado pelo branco na história do Brasil. Este silêncio e cegueira permitem não prestar contas, não compensar, não indenizar os negros: no final das contas, são interesses econômicos em jogo”. Por isso a relevância desse destaque já que o acesso a conteúdos sobre a história e a cultura afro-brasileira e africana “[...] não se restringe à população negra, ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática” (BRASIL, 2004a, p. 8).

Assim, as DCNERER demarcam sua posição extremamente assertiva no que se entende por reconhecimento: “[...] implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira” (BRASIL, 2004a, p. 3). Da mesma forma, “a vivência da raça” (GOMES, 2017) e a “centralidade da raça” (KING, 1996) são assumidas como motriz para a educação das relações étnico-raciais. “Reconhecer é também valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas” (BRASIL, 2004a, p. 4).

Por fim, outro princípio marcante das DCNERER é a responsabilização dos “[...] sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis [...]” (BRASIL, 2004a, p. 4), que converterão as demandas da população negra “[...] em políticas públicas de Estado ou institucionais, ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações, reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à constituição de programas de ações afirmativas [...]” (BRASIL, 2004a, p. 4), com vistas à adoção de medidas “[...] coerentes com um projeto de escola, de educação, de formação de cidadãos que explicitamente se esbocem nas relações pedagógicas cotidianas” (BRASIL, 2004a, p. 4). Tal determinação aponta caminhos ao indicar, ao longo de suas páginas, conteúdos, ações e políticas educacionais a serem instituídas em prol “[...] de acabar com o modo falso e reduzido de tratar a contribuição dos africanos escravizados e de seus descendentes para a construção da nação brasileira” (BRASIL, 2004a, p. 9). Para tanto, engloba a Educação Básica e, especialmente, o Ensino Superior, nível formativo acionado pela primeira vez, já que a redação da Lei Nº 10.639/2003 não o citava, bem como não citou a Educação Infantil.

Art. 1° A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores.

§ 1° As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004.

§ 2° O cumprimento das referidas Diretrizes Curriculares, por parte das instituições de ensino, será considerado na avaliação das condições de funcionamento do estabelecimento. (BRASIL, 2004b, p. 31).

A responsabilização de todos os níveis e de todas as modalidades da educação reitera o compromisso assumido, em âmbito legal, pela sociedade brasileira no combate ao racismo. Embora as diretrizes não visem “[...] a desencadear ações uniformes, todavia, objetivam oferecer referências e critérios para que se implantem ações, as avaliem e reformulem no que e quando necessário” (BRASIL, 2004a, p. 16).

A assunção de políticas como nas DCNERER, que indicam explicitamente a responsabilização das instituições educacionais e todo a gestão do ensino formal no combate ao racismo e na promoção de um efetivo ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, converge com os apontamentos de King (1996) acerca da revisão do conhecimento disponível à formação escolar. Ela toma como exemplo a falta de informações críticas sobre o processo de escravização atlântica e como isso aparece nos materiais didáticos: por meio de “meias-verdades”, reforçando “[...] estereótipos etnocêntricos, particularmente com respeito aos julgamentos e às conclusões que se espera que os alunos façam” (KING, 1996, p. 91). Assim, ela ressalta o papel das políticas educacionais e de intelectuais críticos/as que atuam para “[...] revelar as formas pelas quais a ideologia oculta a dominação e sustenta a alienação nos processos educacionais”, pois isso “[...] fará uma contribuição vital à recuperação da história e da memória” (KING, 1996, p. 94) da população negra na diáspora.

Considerações finais

Na primeira parte deste texto, contextualizamos alguns dos desafios do trabalho de implementação da Educação das Relações Étnico-Raciais no Brasil, destacando as diferentes naturezas e ações ainda empreendidas, sendo muitas delas em fase inicial, de sensibilização. Realçamos que, nesse processo, é imprescindível o conhecimento aprofundado sobre as DCNERER, documento que agrega importantes fundamentos e princípios para a transformação educacional. Como forma de contribuir com sua difusão, anunciamos a intenção do artigo: destacar possibilidades de diálogos de seus princípios com outras perspectivas epistemológicas, no caso em questão com o Alfabetismo da Diáspora.

Na sequência, discutimos suas características, de modo a ressaltar como seus fundamentos dialogam com referenciais teóricos e metodológicos brasileiros, sobretudo por serem, todos, frutos de uma produção diaspórica, que pretendem destacar a “vivência da raça” (GOMES, 2017) como motriz para efetivas transformações educacionais em uma “[...] sociedade multicultural e pluriétnica [...], buscando relações étnico-sociais positivas” (BRASIL, 2004b, p. 1).

Na terceira parte, analisamos dois contextos distintos (os preâmbulos das DCNERER no Brasil e a discussão sobre livros didáticos na Califórnia), no intuito de destacarmos como as resistências a mudanças no currículo foram similares. Demonstramos como essas resistências usaram como estratégia discursiva o “deslocamento”, associando qualquer iniciativa de questionamento do e currículo e do cânone a “‘guerras culturais’ [...]” (KING, 1996, p. 79). Em suma, como analisou a autora: “As contestações feitas ao currículo acadêmico tradicional, na comunidade e nos campos universitários, têm se tornado alvos de uma reação odiosa” (KING, 1996, p. 79).

Por fim, dedicamos as duas últimas partes do texto para evidenciar as aproximações entre o que prevê as DCNERER e os fundamentos do Alfabetismo da Diáspora, em especial sobre a necessidade de não improvisação do trabalho com ERER e sobre a responsabilização dos sistemas de ensino, que devem instituir pedagogias de combate ao racismo como forma de combater a deseducação promovida pelas escolas e seus currículos. Com isso, reafirmamos a relevância de propostas, como aqui defendidas, de aproximação de perspectivas diaspóricas que comungam em interesses de promover mudanças na educação formal, com vistas à transformação social.

1Neste estudo, chamaremos de Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) tanto o conjunto de documentos produzidos em âmbito legal relacionados ao ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, quanto as atitudes e as práticas que impõem, entre os grupos populacionais (especialmente negros e brancos), aprendizagens, “[...] trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade justa, igual, equânime” (BRASIL, 2004a, p. 6).

2Essa pergunta é proposta como mote para pensarmos, especialmente a partir de Gomes (2012), que um dos principais desafios enfrentados no processo de implementação da ERER está na oscilação entre ações mais ou menos comprometidas.

3CNE/CP – Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno.

4Ao fazer um registro de suas constatações após mais de 40 anos envolvido no campo da educação de negros e outros grupos étnico-raciais nos Estados Unidos e ao redor do mundo, Woodson (1933) identificou que os conteúdos escolares oferecidos à população negra não alcançavam o objetivo de educar e, ainda pior, se prestavam à função de deseducá-la. Nesse sentido, ele foi um crítico ferrenho do sistema de ensino estadunidense, por considerar não atingir os objetivos de educar nem mesmo os brancos, mas com efeito ainda mais devastador na vida da comunidade negra, uma vez que a esta não oferecia nenhuma oportunidade de crescimento ou realização pessoal e social (WOODSON, 1933).

5Como informa Tatiane Consentino Rodrigues (2011, p. 138): “A American Education Research Association (AERA), fundada em 1916, é uma das principais e mais importantes organizações internacionais que possui como objetivo principal o desenvolvimento de pesquisas educacionais e sua aplicação. No âmbito desta associação foi criada uma comissão de pesquisa focada na Black Education (Educação Negra) com o objetivo de estimular a elaboração de políticas para melhorar a educação para e sobre a população negra nos Estados Unidos, África e Diáspora”.

6 King (2017), no discurso presidencial na reunião anual da American Educational Research Association (AERA) de 2015, explicou sua opção pela utilização da palavra pouco usual Nihilation, em vez da alternativa mais corriqueira Annihilation. Apesar da proximidade de significado, as palavras denotam ações levemente diferentes, apesar da raiz etimológica comum. O verbo Nihilate aparece no dicionário online Wiktionary com a definição: Encapsular em uma concha de não-ser, ou em termos filosóficos como a ação de consciência, que é a origem da negação do fato. Já o verbete Annihilate significa: reduzir a nada, destruir ou erradicar. Disponível em: https://en.wiktionary.org/wiki/Wiktionary:Main_Page. Acesso em: 20 fev. 2022. Durante o discurso, King explicou que aquilo a que ela se referia como Epistemological Nihilation é uma forma de negação de certo conhecimento, que está associada a Epistemological Annihilation, que seria a destruição da cultura de um povo, porém não são exatamente sinônimos. Assim, na tradução, fizemos a opção por preservar a ideia original da pesquisadora e utilizar a palavra com o sentido de negação. Neste texto, traduziremos, então, o termo Epistemological Nihilation como “Negação Epistemológica”.

7Ressalva-se que, embora no corpo do texto haja a menção sobre o ensino de história da África, a súmula da Lei No 10.639/2003 que alterou os Arts. 26A e 79B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação não menciona a expressão “ensino de história e cultura africana”, somente “afro-brasileira”. Foi apenas com a aprovação das DCNERER que o ensino de história e cultura africana passou a ser vinculado, com destaque, a essa Lei.

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Recebido: 09 de Agosto de 2021; Revisado: 09 de Março de 2022; Aceito: 10 de Março de 2022; Publicado: 15 de Março de 2022

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