SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17Movimento Negro no Brasil: aprovação da Lei Nº 10.639/2003 e educação para as relações étnico-raciaisFormação docente na perspectiva da educação antirracista como prática social índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19359.041 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Sujeitos não hegemônicos na Pós-Graduação no Brasil e em Portugal: indígenas, angolanos, moçambicanos e timorenses*

Non-hegemonic subjects in Postgraduate courses in Brazil and Portugal: Indigenous, Angolans, Mozambicans and Timorese

Sujetos no hegemónicos en el Posgrado en Brasil y en Portugal: indígenas, angoleños, mozambiqueños y timorenses

**Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado e Doutorado da Universidade Católica Dom Bosco. Bolsista Produtividade CNPq – 1D. E-mail: <backes@ucdb.br>.


Resumo:

Este artigo analisa conhecimentos do currículo da Pós-Graduação em Educação que interessam aos sujeitos não hegemônicos do Brasil e de Portugal. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas com 14 sujeitos, sendo sete de uma universidade brasileira (indígenas de diferentes etnias) e sete de uma universidade portuguesa (angolanos, moçambicanos e timorenses). A análise mostrou que os sujeitos não hegemônicos do Brasil vêm para a Pós-Graduação, sobretudo, para fortalecer os conhecimentos autóctones, ao passo que os sujeitos não hegemônicos que estão na Pós-Graduação em Portugal se preocupam em construir conhecimentos que atendam suas necessidades profissionais, articulados ao Estado nacional de sua proveniência.

Palavras-chave: Currículo; Conhecimento; Sujeitos não hegemônicos

Abstract:

This paper analyzes knowledges of the curriculum of Postgraduate courses in Education that interest non-hegemonic subjects in Brazil and Portugal. Data were obtained by means of semi-structured interviews with 14 subjects, seven of them were students of a Brazilian university (Indigenous from different ethnicities), and seven were attending a Portuguese university (Angolans, Mozambicans and Timorese). The analysis showed that the non-hegemonic subjects in Brazil attend Postgraduate courses especially to strengthen autochthone knowledges, while non-hegemonic subjects attending Postgraduate courses in Portugal are concerned with building knowledges to meet their professional needs, in articulation with the nation State from which they are.

Keywords: Curriculum; Knowledge; Non-hegemonic subjects

Resumen:

Este artículo analiza conocimientos del currículo del Posgrado en Educación que interesan para los sujetos no hegemónicos de Brasil y Portugal. Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas semiestructuradas con 14 sujetos, siendo siete de una universidad brasileña (indígenas de diferentes etnias) y siete de una universidad portuguesa (angoleños, mozambiqueños y timorenses). El análisis mostró que los sujetos no hegemónicos de Brasil llegan al Posgrado, sobre todo, para fortalecer los conocimientos autóctonos, mientras que los sujetos no hegemónicos que están en el Posgrado en Portugal se preocupan por construir conocimientos que atiendan sus necesidades profesionales, articulados al Estado nacional de su procedencia.

Palabras clave: Currículo; Conocimiento; Sujetos no hegemónicos

Introdução

O acesso à Pós-Graduação stricto sensu, ainda que mais tardiamente do que a Educação Básica e a Educação Superior, tem aumentado nos últimos anos, sobretudo nos países que estão do outro lado da linha, com suas epistemologias do sul (SANTOS, 2007, 2008a, 2008b, 2019, 2017). Esse aumento tem possibilitado a presença de sujeitos não hegemônicos na Pós-Graduação, seja em seus países, seja em outros, por meio de um processo de internacionalização.

Por sujeitos não hegemônicos, entendem-se os sujeitos que não possuem as características que a epistemologia ocidental instituiu como referência para pensar o ser humano. Conforme sistematicamente os estudos culturais, feministas, pós-coloniais e pós-estruturalistas vêm apontando, o sujeito hegemônico é o sujeito branco, ocidental, eurocêntrico, masculino, heterossexual, cristão. Como efeito dessa invenção ocidental que foi naturalizada (SILVA, 2004), os sujeitos que não possuem essas características ou algumas delas são sujeitos não hegemônicos. Na hegemonia da cultura ocidental, “[...] se encontram ausentes outras vozes, particularmente as que se referem às culturas originárias do continente americano, à cultura negra e de outros grupos marginalizados” (MOREIRA; MACEDO, 2001, p. 133).

Tanto o grupo hegemônico quanto o grupo não hegemônico não são homogêneos, e é possível identificar inúmeras diferenças e assimetrias em seu interior em função das relações sociais de poder inerentes aos seres humanos. No entanto, de modo geral, pode-se dizer, recorrendo a Santos (2007, 2008a, 2008b, 2017, 2019), que os grupos não hegemônicos estão do outro lado da linha da epistemologia ocidental, que se caracteriza por ser abissal e fascista, com tendência a provocar epistemicídios. A epistemologia ocidental, no contexto da modernidade colonizadora, dividiu o mundo em dois (metrópole e colônias) por meio de uma linha abissal: “Dividiu-o de tal modo que as realidades e práticas existentes do lado de lá da linha, nas colónias, não podiam pôr em causa a universalidade das teorias e das práticas que vigoravam na metrópole, do lado de cá da linha” (SANTOS, 2019, p. 43). Essa linha abissal não foi eliminada com o fim do colonialismo. Ela continua presente sob diferentes formas, destacando-se a desqualificação dos conhecimentos dos grupos não hegemônicos. Nesse sentido, além de dividir o mundo em dois, ao ver como legítimo apenas os conhecimentos de um (o mundo da metrópole), a epistemologia ocidental é também fascista. Segundo Santos (2008a, p. 28), “[...] chamo fascismo epistemológico porque constitui uma relação violenta de destruição ou supressão de outros saberes”. Ao desqualificar, ignorar e destruir os conhecimentos dos grupos não hegemônicos, a epistemologia ocidental é também geradora de epistemicídios.

Neste artigo, faz-se referência a sujeitos não hegemônicos que frequentam a Pós-Graduação em Educação no Brasil, e em Portugal. Do Brasil, foram escolhidos os sujeitos indígenas, pois, no contexto brasileiro, desde a colonização, são os que mais têm sido produzidos como incapazes, incultos e indolentes ou, como afirmam Moreira e Macedo (2001), são vozes ausentes na hegemônica cultura ocidental.

Em relação aos sujeitos não hegemônicos que frequentam a Pós-Graduação de Educação em Portugal, foram escolhidos sujeitos de Angola, Moçambique e Timor Leste, todos países colonizados por Portugal que passaram pelo processo de independência mais recentemente do que o Brasil. Recorrendo novamente a Moreira e Macedo (2001), esses também são sujeitos que não estão contemplados na cultura hegemônica ocidental.

Para saber quais conhecimentos interessam aos sujeitos não hegemônicos do Brasil e de Portugal, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 14 sujeitos, sendo sete de uma universidade do Brasil e sete de uma universidade de Portugal. Durante a realização das entrevistas, esteve presente a percepção de que elas exigem uma abertura “[...] à escuta do que é inédito. Este é um grande desafio, pois frequentemente somos capturados em lógicas de repetição que nos fazem ouvir o que sempre ouvimos, perguntar o que sempre perguntamos e pensar o que sempre pensamos” (SOUSA, 2015, p. 87).

Os sujeitos do Brasil são identificados por sua etnia aliada a um número quando tem mais de um por etnia: Tuyuca; Terena 1 e Terena 2; Guarani/Kaiowá 1, Guarani/Kaiowá 2, Guarani/Kaiowá 3 e Guarani/Kaiowá 4. Os sujeitos de Portugal são identificados por sua nacionalidade aliada a um número: Angolano 1, Angolano 2 e Angolano 3; Moçambicano 1 e Moçambicano 2; Timorense 1 e Timorense 2. Além de não identificar a universidade, também como forma de preservar o anonimato dos sujeitos1, optou-se por não se identificar o gênero de cada um, embora os dois grupos sejam formados por homens e mulheres. A idade dos sujeitos varia de 28 a 48 anos.

Situando a análise

Com apoio nos estudos pós-coloniais, pode-se dizer que o processo de colonização, apesar das relações abissais de poder, foi também um processo de tradução e hibridismo (BHABHA, 2001) e, como tal, agonístico, isto é, houve e há uma tensão permanente – é um processo sempre inconcluso. A tradução não significa que no encontro entre as culturas há transparência; há sempre coisas que não são passíveis de tradução, e há sempre um espaço de indecidibilidade. Entretanto, nos encontros culturais, ainda que nem tudo seja traduzível, todos os sujeitos são traduzidos. Somos, portanto, todos sujeitos traduzidos. A tradução envolve a produção de outros sujeitos.

Como destaca Bhabha (2001), a percepção de que há questões intraduzíveis entre as culturas desloca tanto o sonho assimilacionista quanto o pesadelo racista. Nos encontros culturais, os sujeitos são traduzidos, não no sentido de um grupo simplesmente impor sua cultura ao outro, mas de que ambos vão se hibridizando, se traduzindo, produzindo outros sujeitos culturais. Para Bhabha (2001, p. 308), “[...] a posição minoritária dramatiza a atividade da intraduzibilidade da cultura; ao fazê-lo, ela desloca a questão da apropriação da cultura para além do sonho assimilacionista, ou do pesadelo racista, de uma ‘transmissão total do conteúdo’”.

Ao reconhecer-se que nos encontros culturais não houve e não há apenas uma lógica bipolar entre quem domina e é dominado, entre quem impõe a assimilação e quem é assimilado, mas que ambos são hibridizados e traduzidos, não se está, como muito bem lembra Skliar (2003, p. 111), deixando de reconhecer que no encontro da cultura europeia com as outras culturas houve “[...] traumas sobre traumas, violências sobre violências, negação sobre negação do outro”.

Por meio da tradução, percebe-se que não há identidades fixas, essenciais e universais. Com seu uso, é possível salientar a luta e a força dos diferentes grupos culturais, mostrando que, mesmo em situações abissais de relações de poder, como foram os processos de colonização, os sujeitos não são simplesmente assimilados, eles afirmam suas identidades e culturas em um contexto de tradução e hibridização (BHABHA, 2001). Da mesma forma, o sujeito, mesmo que só tenha a intenção de impor a sua cultura, acaba sendo traduzido e hibridizado.

Assim como o conceito de tradução, o conceito de hibridismo mostra o caráter construído de todos os sujeitos e de suas identidades, em um contexto de relações de poder entre culturas – às vezes relações abissais de poder –, que dá visibilidade à luta e à capacidade do sujeito que está do outro lado da linha (SANTOS, 2007) de resistir aos processos de dominação cultural e à imposição de conhecimentos. “O hibridismo permite que outros saberes ‘negados’ se infiltrem no discurso dominante e tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de reconhecimento” (BHABHA, 2001, p. 165).

Da mesma maneira que a tradução, a hibridização é um processo agonístico, sempre inconcluso, incompleto, sem solução final. O hibridismo não é, por conseguinte, uma forma de opor sujeitos híbridos a sujeitos tradicionais e modernos, mas um “[...] processo de tradução cultural, agonístico, uma vez que nunca se completa, mas que permanece em sua indecidibilidade” (HALL, 2003, p. 74).

Os sujeitos desta pesquisa trazem histórias e culturas diferentes. Nem os sujeitos nem suas histórias e culturas são hegemônicas, mas se infiltram nos contextos hegemônicos. Frequentar um currículo de Pós-Graduação representa a possibilidade de ter acesso a outros conhecimentos e ao processo de construção de um modo específico de conhecimento científico, no caso em questão, voltado ao campo da educação e do currículo, campos marcados pela multiplicidade, pelo dissenso e pela complexidade. Além disso, no caso dos indígenas:

A obtenção de títulos de mestres e doutores impacta positivamente sobre as escolas indígenas, na medida em que amplia, para os titulados, as possibilidades de desenvolvimento de pesquisas, expande o potencial de eles ocuparem cargos de direção (considerando, desse modo, as especificidades socioculturais), ou em instâncias de planejamento, execução, controle e avaliação de políticas públicas destinadas a essas coletividades. (BONIN, 2022, p. 7).

Pinar (2007b, p. 293) tem defendido a ideia de que o currículo “[...] é uma conversação contínua, ainda que complexa”. Com isso, mostra-se que o currículo é muito mais do que um documento, um resumo, uma lista de conteúdos, uma determinação legal, um guia de atividades e sequências a serem seguidas por professores e alunos; enfim, é muito mais do que um documento institucional e burocrático.

Segundo Pacheco (2009), Pinar (2007b) mostra que o currículo envolve a subjetividade, o cosmopolitismo e a internacionalização. Um currículo implica uma transformação do sujeito em um contexto de mundialidade e interculturalidade. Portanto, “[...] a educação e o currículo são projetos de questionamento, construídos na diversidade e pluralidade de marcas pessoais e sociais, compreensíveis na base de uma conversação complexa” (PACHECO, 2009, p. 398).

A mundialidade, como aponta Pinar (2009), lembra-nos de que não temos razões para procurar em um lugar além do nosso mundo – um mundo transcendental que desvaloriza as experiências individuais – por supor que o lugar a ser buscado é um além-mundo. Ao invés da busca do transcendental, experiências mundanas autobiográficas, pois “[...] um envolvimento honesto com o mundo amplia nossas concepções do cosmopolitismo do legal até incluir o vivido” (PINAR, 2009, p. 155).

Um vivido que, apesar de dar-se em um contexto da identidade, precisa também considerar a dimensão subjetiva, sob pena de limitar a ação do sujeito que possibilita a transformação da ordem hegemônica. A identidade “[...] é um símbolo, não um substituto, para a complexidade subjetiva que ela resume” (PINAR, 2009, p. 161). Ao mesmo tempo, como afirma Laclau (2011), se um sujeito ou um grupo cultural não conseguir ir além de sua dimensão individual ou identitária (grupal), a luta pela transformação tornar-se-á inviável. A história mostra que é a luta de indivíduos organizados coletivamente, com algo em comum (defesa da escola pública, por exemplo), como salienta Pinar (2007a), que é capaz de provocar uma ruptura com a ordem hegemônica.

A história mostra também que, se o sujeito na luta perder sua individualidade, em vez de contribuir para modicar as relações assimétricas de poder, delas se tornará refém, “[...] excluindo, assim, um futuro não anunciado pela ordem hegemônica” (PINAR, 2009, p. 161). Enfim, enfatizar o contexto da mundialidade faz lembrar nossa condição humana mundana, ao mesmo tempo individual e coletiva, reconhecendo que nenhum indivíduo pode falar em nome do coletivo, tampouco um coletivo tem o direito de silenciar o indivíduo.

Contudo, um sujeito reduzido à sua dimensão individual é incapaz de produzir mudanças significativas. Reduzir o ser humano à sua dimensão individual (dobrar-se ao individualismo) significaria acreditar que “[...] nossa felicidade depende apenas da nossa competência pessoal, mas que somos [...] pessoalmente incompetentes ou não tão competentes como deveríamos e poderíamos ser se nos esforçássemos mais” (BAUMAN, 2001, p. 87).

Além do contexto da mundialidade, como destacado a partir de Pacheco (2009, 2011, 2013, 2016), a transformação do sujeito por meio do currículo também se dá no contexto da interculturalidade. Embora esse conceito tenha surgido no campo indígena, nos últimos anos, foi apropriado por grupos com outros interesses, assumindo por vezes um caráter conservador e assimilacionista. Em função disso, Walsh (2009) argumenta em favor de uma interculturalidade crítica, preocupada em mostrar sistematicamente o caráter histórico das identidades e das diferenças, em romper com as estruturas de discriminação, racismo e exclusão, rumo à construção de uma sociedade com justiça social e igualdade. Em se tratando de uma pesquisa com sujeitos não hegemônicos, esse é, portanto, o sentido de interculturalidade adotado neste artigo.

Em uma conversação complexa, em termos teóricos ou práticos, não raras vezes, há a imposição dos conhecimentos dos grupos hegemônicos, seja no contexto da mundialidade, “[...] não deixando de existir, no caso dos estudos curriculares, o superdiscurso norte-americano, canadiano, britânico e australiano” (PACHECO, 2013, p. 161), seja nos âmbitos nacional e locais, cujos conhecimentos selecionados e vistos como importantes para o currículo são os do grupo hegemônico. Assim sendo, o currículo “[...] é sempre parte de uma tradição seletiva, resultado da seleção de alguém, da visão de algum grupo acerca do que seja conhecimento legítimo” (APPLE, 1995, p. 59).

Como já destacado, nesse processo, não há só imposição, os grupos não hegemônicos não se dobram passivamente ao discurso hegemônico. Mesmo nas condições mais adversas, eles vão também modificando o currículo e o sujeito hegemônico e se modificando, mas não como uma simples cópia, nem uma cópia malfeita do currículo hegemônico – eles vão traduzindo e hibridizando suas identidades e conhecimentos. Nesse sentido, Gomes (2020, p. 366) afirma que “[...] há, aos poucos, o reconhecimento de que as negras e os negros são sujeitos políticos e de conhecimento e têm competência para falar sobre a questão racial, no Brasil, e sobre os mais variados temas”.

De acordo com Pinar (2009), há de ter-se um cuidado especial para que o debate em torno da identidade, o qual surgiu como forma de combater o eurocentrismo patriarcal e defender a inclusão das questões de classe, raça e gênero no currículo, não se transforme em uma defesa de identidades essencializadas, congeladas. Na expressão de Pinar (2009), que não se transforme em um multiculturalismo malicioso, pois, quando se ignoram as diferenças internas de cada grupo cultural, criando-se um estereótipo, ainda que com conotações positivas, acaba-se, mesmo que não seja essa a intenção, por criar um discurso abstrato e totalizante que não contribui para a defesa dos interesses dos grupos não hegemônicos. “Por meio da indignação arrogante das políticas contemporâneas de identidade, a ‘cultura’ concreta que alguém reivindica para se representar desaparece em abstrações, totalizada em generalizações que recapitulam, se invertidas, os estereótipos fabricados pelos colonizadores” (PINAR, 2009, p. 151).

Não é o caso das populações indígenas do Brasil. Como será visto mais adiante, para os indígenas, acessar os conhecimentos ocidentais, longe de ser uma forma de perder a sua cultura, tem sido uma estratégia fundamental para defendê-la na sua diferença. Também não é o caso dos sujeitos de Moçambique, de Angola e do Timor Leste. De modo semelhante aos indígenas, eles apostam na possibilidade do sujeito de interpretar e hibridizar os conhecimentos e colocá-los a serviço de seus país.

Se a busca dos conhecimentos ocidentais estiver baseada na suposta superioridade de tais conhecimentos, tornar-se-á uma postura reacionária, servindo para perpetuar a epistemologia abissal e fascista (SANTOS, 2007, 2008a, 2019), que, como destaca o autor, produz outros fascismos, com destaque para o fascismo social, “[...] um regime social de relações de poder extremamente desiguais, que concedem à parte mais forte poder de veto sobre a vida e o modo de vida da parte mais fraca” (SANTOS, 2007, p. 80).

Os grupos culturais não hegemônicos estão sempre com situações-dilema, e a autocrítica é fundamental para que os conhecimentos ocidentais (hegemônicos), ao mesmo tempo em que são vistos como necessários no contexto atual, não se tornem uma nova forma de colonialismo, um neocolonialismo ou, na expressão de Quijano (2002), a manutenção da colonialidade. Nesse sentido, é importante reconhecer os nexos entre currículo, conhecimento e poder. Apple (2017, p. 905) nos lembra que um dos aspectos mais importantes para as discussões curriculares críticas contemporâneas “[...] a ser conquistado na educação é a transformação da pergunta ‘Qual conhecimento tem mais valor’ em ‘O conhecimento de quem tem mais valor?’”. Saber quais sujeitos têm poder para incluir seus conhecimentos como verdadeiros nos currículos é, portanto, crucial. Não há dúvidas que o campo da educação indígena, sobretudo os intelectuais indígenas e negros, tem contribuído de forma significativa para o campo do currículo colocar em xeque o poder do sujeito epistemológico hegemônico e seus conhecimentos, principalmente sua suposta superioridade epistemológica. Ao mesmo tempo, os sujeitos não hegemônicos reconhecem a importância de dialogar com os conhecimentos ocidentais dos currículos para fortalecer a luta pelos próprios conhecimentos. No entanto, eles estão atentos para não verem os conhecimentos ocidentais como mais verdadeiros ou como universais.

Da mesma forma, precisam ficar atentos para que a defesa de sua cultura e identidade não seja baseada em uma essência identitária e cultural. Pinar (2009, p. 154) argumenta que uma estratégia fundamental é a reflexão autobiográfica, pois o “[...] reconhecimento da própria diferença, que uma autobiografia da alteridade testemunha, é pré-requisito para a representação da multivariada complexidade da experiência e da identidade. Ao fazê-lo, a autobiografia deixa claro que o Outro é outra pessoa”.

Refletir sobre o próprio processo de construção da identidade sem essencializá-la, sem dobrar-se ao sujeito hegemônico e aos seus interesses, e pensar efetivamente sobre como os conhecimentos dos outros podem ser uma forma não de negar a identidade do sujeito, mas de torná-la mais potente para situar-se e interagir no contexto particular, mundial e cosmopolita, parece ser o grande desafio de qualquer sujeito, mas principalmente daqueles que passaram historicamente por processos de colonização em que, além de relações abissais de poder, houve muita violência, massacre, genocídio e epistemicídio. Cabe destacar que tanto as filosofias africanas quanto as afrodiaspóricas vêm demonstrando “[...] a falaciosidade que é a ideia de que o pensamento deva ser universal. O universalismo científico gerou e tem gerado conflitos em todos os âmbitos da sociedade ao impor um modelo específico a ser seguido por todas as sociedades” (MACHADO; OLIVEIRA, 2022, p. 8).

A seguir, um pouco do que os sujeitos não hegemônicos buscam ao irem ao encontro dos conhecimentos de outras culturas, especificamente em um Programa de Pós-Graduação no Brasil e em Portugal.

A presença de sujeitos não hegemônicos em Portugal: quais conhecimentos interessam?

Portugal tem recebido cada vez mais alunos de Mestrado, Doutorado e Pós-doutoramento de diferentes países, com destaque para Brasil, Moçambique, Angola, Guiné Bissau, Timor Leste, Chile, Índia e Cabo Verde. Esses sujeitos vêm às universidades portuguesas, em grande parte, porque, em seus países, ainda não há Programas de Pós-Graduação ou porque a temática que pretendem investigar tem nas universidades portuguesas uma tradição consolidada. Em se tratando dos sujeitos desta pesquisa, como já destacado, são provenientes de três desses países, todos ex-colônias de Portugal: Moçambique (independência em 1975), Angola (independência em 1975) e Timor Leste (independência em 2002), portanto um acontecimento ainda muito presente na memória desses povos.

Os dados obtidos na pesquisa realizada por Cabecinhas (2019), por meio de uma pergunta aberta, feita aos universitários de ex-colônias portuguesas, mostram o quanto está viva na memória dos jovens a independência de seus países. Ela foi o acontecimento mais mencionado por 86% dos jovens angolanos e 82% dos jovens moçambicanos. Os timorenses citaram dois acontecimentos ligados à sua independência como mais marcantes: a restauração da independência em 2002 (46%) e o principal acontecimento que a precedeu, o Referendo de 1999 (44%).

Cabe lembrar que, apesar de o processo de colonização ter sido pautado na violência física e simbólica, no saque e na expropriação das riquezas, de forma paradoxal, também criou vínculos entre os países e as possibilidades de intercâmbios acadêmicos. São vínculos mais percebidos, talvez, pelos países colonizados, como apontam Cabecinhas e Feijó (2013) com base em uma pesquisa realizada com jovens estudantes de Moçambique e Portugal. Os autores salientam que, embora os moçambicanos vejam a colonização de forma mais negativa que os portugueses, “[...] tendem a concordar que ‘A colonização criou laços de amizade entre os países europeus e as suas ex-colónias’, aspecto relativamente ao qual os portugueses manifestam menor grau de concordância” (CABECINHAS; FEIJÓ, 2013, p. 15).

Uma das questões que emergiram na pesquisa, sobretudo com os angolanos, é a preocupação em investigar os processos de gestão e de administração escolar, considerando que, em seu país, há problemas nesse âmbito da educação. Os problemas da educação escolar em Angola, segundo Liberato (2014), vêm desde o período da colonização, quando foi introduzida por Portugal, por um lado, para atrair mais portugueses, e, por outro, para “civilizar” os angolanos, com o apoio das Igrejas Cristãs. Com a independência em 1975, o Estado assumiu a educação, mas o país, envolto em guerras civis até 2002, não conseguiu atingir os objetivos propostos. Nesse sentido:

Apesar desses esforços consideráveis na formação de recursos humanos, que acompanha o igualmente considerável crescimento económico, constatamos que, trinta e seis anos depois da independência, a situação social de Angola continua muito precária, não tendo as políticas de educação atingido os objetivos inicialmente previstos. (LIBERATO, 2014, p. 1026).

A colonização bem como a destruição e a divisão que a guerra civil provocou em Angola foram citadas pelos três angolanos entrevistados. Especificamente quanto à questão do conhecimento, os três mencionaram os conhecimentos relacionados à gestão das escolas. Como afirma o Angolano 1:

Eu vim estudar nessa universidade porque é a universidade que mais, mais me encantou em termos do seu currículo. [...]. Espero construir conhecimentos, em primeira instância, para saber como administrar uma escola. Meu sonho é que um dia eu gostaria de ser um gestor da escola. (ANGOLANO 1).

Como salienta Pacheco (2011), não é possível dissociar o currículo da gestão e da administração. Assim, considerando que não há apenas uma forma de expressar a relação entre currículo e gestão/administração, aprofundar-se nesse campo, como pretende o Angolano 1, é fundamental para tornar-se um gestor da escola. Essa administração pode dar-se na lógica da Tyler Rationale, baseada em uma “[...] visão tecnicista do currículo em que as decisões políticas são tomadas em nível macro, com o reconhecimento do papel centralizador da administração central e da linguagem especializada dos consultores curriculares” (PACHECO, 2011, p. 379). Nesse caso, aos gestores escolares e professores, cabe apenas implementar o currículo, pois não são vistos como atores políticos. Não há dúvidas de que, no contexto atual, no âmbito nacional ou internacional, é essa racionalidade que tem dominado as políticas curriculares.

Para além da racionalidade tecnicista, há uma perspectiva crítica de gestão e de administração que fica mais no nível teórico, não tendo conseguido impactar muito os currículos. Segundo essa perspectiva, as políticas curriculares “[...] resultam de complexas decisões que derivam tanto do poder político oficialmente instituído, quanto dos actores com capacidade para intervir, directa ou indirectamente, nos campos de poder em que estão inseridos” (PACHECO, 2011, p. 380). Nesse caso, gestores e professores não são simples aplicadores de um currículo pensado no contexto macro, mas têm capacidade de decisão e de intervenção.

Nesse sentido, a fala de Angolano 2, assim como a de Angolano 1, que também pretende ser gestor, pauta-se na perspectiva de que o gestor tem certo poder de intervir, tem “certo nível de tomada de decisão”, como afirma, e acredita até poder implantar algo novo:

A minha expectativa de vir para cá é ter mais experiências sólidas, querer implementar algo novo, ter a experiência dos outros, o que fazem aqui, para fazer uma comparação, e ver também o que que é bom, o que a gente pode melhorar em certos aspectos e quais são as práticas que eles usam, quais são os sucessos, talvez dessa área, ou aquela, quais são os conhecimentos. [...]. Tem certos aspectos que talvez eu consiga aplicar na escola, em termos de gestão. [...]. Através de uma transparência da gestão das coisas. Ou, nos critérios das seleções, aquela parte, aqueles regulamentos internos, pelo menos possa dar outra visão, desde que eles vão concordar, até o nível em que eu estiver, até o nível de tomada de decisão em que eu estiver. (ANGOLANO 2).

Angolano 3 também acredita que há espaço no campo da gestão e da administração onde pode intervir nas escolas para que melhore a aprendizagem dos alunos. Salienta que, quando começou o Mestrado em Portugal, não havia Mestrado em seu país e, quando começou o Doutorado, também não havia. Assim, a Universidade de Portugal é um dos espaços possíveis para fazer Pós-Graduação, pois “os poucos doutorandos que frequentam estão matriculados nas universidades portuguesas, por causa da língua” (Angolano 3). Como os demais, o foco é a construção de conhecimentos voltados para a gestão e a administração das escolas:

Então, eu penso em conhecer para melhorar um pouco as escolas, a questão da gestão das escolas, a organização das escolas, a questão da organização dos espaços, criar as condições possíveis, que não precisa da interferência do Estado, a escola pode fazer, a questão da falta de iniciativa das pessoas. Penso que há muitas aprendizagens para o gestor da escola para melhorar aquilo com o pouco que se tem e fazer. [...]. Estou aprendendo muito. Só melhoramos quando vemos outras coisas. Nós vivemos de comparações. Ninguém pode negar isso. Vejo muitas coisas positivas que podemos aprender, há muitas experiências que podemos adotar em nosso país. (ANGOLANO 3).

Já Timorense 1 e Timorense 2 são de um país colonizado por Portugal até 1975. No mesmo ano, o país foi invadido pela Indonésia e, em 1976, foi declarado sua 27ª província. Somente em 2002 alcançou sua independência. Conforme os dois sujeitos afirmaram, o país está, neste momento, apostando na construção de um currículo nacional capaz de promover a união do povo, vendo no uso da língua portuguesa um dos instrumentos para construir essa união. Como em seu país não há Programas de Pós-Graduação, a Universidade de Portugal é vista como uma alternativa, seja pelo uso da língua portuguesa, seja por ter um programa de educação voltado para o campo do currículo:

Eu e os meus colegas, cinco pessoas que fazem o Mestrado de Desenvolvimento Curricular, temos por objetivo, é claro, para o futuro, daqui a três ou quatro anos, regressar ao nosso país para rever o currículo que neste momento está sendo implementado no nosso país. O currículo já é bom, mas o programa e os manuais escolares utilizados no nosso país ainda não condizem com o contexto, com a condição de Timor Leste. [...]. Ainda não tem Mestrado no nosso país. Algumas universidades fazem cooperação com outras universidades de outros países, como Indonésia, mas é escola privada. [...] Quero também aprender melhor a língua portuguesa, [...] tentar aprender aqui nos dois ou três anos, aperfeiçoar meu conhecimento na ciência da educação e, também, na língua portuguesa para dar uma contribuição para o nosso país na área da educação. (TIMORENSE 1).

Salienta-se que Timor Leste tem uma realidade plurilinguística. “São aproximadamente 16 línguas nativas faladas em seu território, entre as quais o tétum, que é a mais utilizada na capital do país e que também foi reconhecida como oficial pela legislação, ao lado da língua portuguesa” (GUEDES; PAULINO, 2016, p. 382), além da língua indonésia, o que faz com que a construção de um currículo nacional se torne extremamente complexa. “O fato é que todas essas línguas circulam no interior das escolas, desde a educação básica ao ensino superior, ao lado da língua portuguesa, que é considerada a língua de ensino pela legislação educacional” (GUEDES; PAULINO, 2016, p. 370). O grande desafio colocado é, por consequência, como construir um currículo nesse contexto, qual conhecimento considerar mais importante, que, neste momento, parece ser, segundo a política educacional do Estado, um conhecimento articulado fortemente à língua portuguesa, o que contribui para explicar a busca do Mestrado em Portugal. Esse entendimento tem levado o Estado de Timor Leste a estabelecer parcerias internacionais com os países de língua portuguesa, especialmente Portugal, que tem contribuído sistematicamente na implementação de um currículo nacional e recebido professores para cursarem a Pós-Graduação em suas universidades (CABRITA, 2015).

De modo semelhante ao de Timorense 1, Timorense 2 aponta o estudo do currículo, sobretudo o conhecimento dos diferentes currículos, como central na sua formação para que possa voltar e ajudar o seu país:

Espero que com esse curso nós possamos melhorar mais o nosso currículo e capacitar a nós próprios como professores. Conhecer bem sobre o currículo, qual currículo que é melhor, qual o método que é bom para implementar esse currículo. Espero que possa capacitar-me e, quando regressar, possa ajudar e contribuir para a nossa nação. Por isso, busco o conhecimento aqui. (TIMORENSE 2).

Timorense 2, ao dizer que deseja conhecer qual currículo é melhor, de certa forma, refere-se à questão central de qualquer currículo, que Pacheco (2011, 2016) traduz como sendo a questão de qual é o conhecimento mais valioso, posto que todo currículo invariavelmente lida com conhecimento. Essa questão, ainda que dificilmente seja respondida de forma definitiva, é fundamental, sobretudo em um país com uma história de colonização, de invasão e de independência tão recente. Para procurar dar uma resposta qualificada, estudar as diferentes teorias curriculares torna-se um caminho necessário, embora sem garantia de que seja feita a melhor escolha.

Já os alunos de Moçambique, assim como os alunos de Angola e de Timor Leste, também estão no Programa de Pós-Graduação em Portugal para estudar um aspecto da realidade de seu país, aprofundá-lo e, depois, retornar para o seu país e contribuir com a educação. Moçambicano 1 busca esse aprofundamento na sua área, a área de literatura oral de Moçambique:

Estou conseguindo superar muitas lacunas que eu tive, principalmente porque aqui consigo bibliografia considerável. [...]. Também consigo uma maior interação com pessoas ligadas à minha área de pesquisa [...]. Estou a pesquisar sobre mitos sobre a literatura oral. [...]. Esses conhecimentos vão ser utilizados em meu país, pois estou a dar aulas numa universidade; na universidade, há um pouco mais de abertura. Esses vão ser utilizados logo na literatura oral porque estou a dar literaturas africanas. Então, temos aqui uma boa parte da literatura. A literatura africana começa mesmo com a literatura oral. E eu estou a pesquisar sobre isso. (MOÇAMBICANO 1).

O movimento de valorização da tradição oral na África está relacionado a um processo de afirmação de sua identidade, que, durante a colonização, foi vista como necessitada de um projeto civilizatório, e um dos argumentos utilizados foi que seu estatuto de conhecimento se baseava na tradição oral. Nesse sentido, há mais de um século, vários esforços têm sido feitos pelos africanos para pôr em xeque a lógica eurocêntrica, “[...] que relegava a uma parcela substancial do conhecimento africano o estatuto de não existente, baseada numa obscura justificativa de que seu suporte de produção e transmissão não era predominantemente material e visual” (SILVA; SOUZA, 2015, p. 95), porque não era baseado na lógica escrita.

Por fim, temos o aluno Moçambicano 2, que deseja construir conhecimentos no campo da Educação a Distância (EAD) para que possa contribuir com esse projeto educativo em seu país:

A universidade onde eu atuo está a preparar a sua migração para o suporte de tecnologia para cursos EAD. Em nível de país, não temos cursos que habilitam os graduados à percepção de competências para trabalhar em EAD. Então, o que mais me trouxe aqui foi vir aprender, buscar novas competências que possam me permitir trabalhar mais ou menos à vontade com as tecnologias. [...]. Vamos buscar mesmo umas competências, como utilizar as tecnologias para os cursos EAD e perceber também em que condições eu devo aplicar a tecnologia. [...]. Quero sair de um pensamento mais instrumental para um pensamento mais teórico. A teoria aborda em função de certo contexto, que nem sempre se enquadra para nós. Mas eu tento relacionar o quadro teórico com o quadro empírico. (MOÇAMBICANO 2).

No contexto atual, é impossível não considerar as possibilidades tecnológicas na educação, não só quanto ao seu uso, mas também quanto às transformações que produziram e continuam produzindo na educação. Como aponta Moçambicano 2, é preciso estudar a questão teoricamente para saber como e em quais contextos as tecnologias podem ser utilizadas.

A fala de Moçambicano 2 lembra Selwyn (2008) quando aponta que é preciso ter uma visão muito crítica em relação ao uso das tecnologias e desconfiar das certezas que, hoje, são colocadas nesse campo, por exemplo: os seres humanos, sobretudo os jovens, “[...] estão naturalmente em sintonia com as novas tecnologias; o uso das TIC é uma atividade que dá inevitavelmente mais poder; [...] as pessoas atualmente julgadas como digitalmente excluídas vão necessariamente beneficiar-se do uso das TIC” (SELWYN, 2008, p. 830). Para o autor, embora não se possa negar as transformações produzidas pelas tecnologias, elas não têm a dimensão e não ampliam a participação e a democratização apregoadas nas políticas educacionais. Há poucas pessoas que as utilizam para esses fins, e, “[...] mesmo quando as pessoas usam esses aplicativos de ponta, as realidades costumam ser menos transformadoras do que se pode imaginar” (SELWYN, 2008, p. 831). Nesse sentido, Moçambicano 2, ao mostrar sua preocupação com a formação para lidar com a EAD, priorizando a questão teórica, e não simplesmente uma formação instrumental, sinaliza para o campo complexo da EAD e o necessário aprofundamento teórico para lidar com ela.

Como a pesquisa demonstrou, todos os sujeitos entrevistados, ao virem para Portugal, por meio do processo de formação, procuram construir conhecimentos ligados a demandas associadas à sua trajetória profissional ou à sua expectativa profissional (sua identidade), articulados com as demandas de seus países, pois todos pretendem construir conhecimentos que serão importantes em seus contextos nacionais. Esses são conhecimentos que interessam para eles.

A presença de sujeitos não hegemônicos na universidade no Brasil: quais conhecimentos interessam?

Os conhecimentos, como ressalta Pacheco (2016), independentemente da concepção de currículo, são sempre um dos seus elementos centrais: “[...] qualquer noção sobre currículo é sempre um modo concreto de referenciar uma dada abordagem do conhecimento” (PACHECO, 2016, p. 100). Não há currículo que não lide com o conhecimento. Desde os estudos críticos e pós-críticos, sabe-se que sempre se trata de uma seleção de conhecimentos. Sabe-se também, principalmente com os estudos pós-críticos e seu entendimento de que o sujeito não é unificado, coerente e estável, mas fragmentado, híbrido e nômade, que todo currículo produz identidades e diferenças.

Por essa razão, em um processo educativo, por mais que haja prescrições e objetivos curriculares, os sujeitos, ainda que seja possível identificar tendências hegemônicas, não se dobram simplesmente ao currículo, nem lidam uniformemente com os conhecimentos. As características culturais, históricas, sociais e individuais resultam em processos diferentes de construção de conhecimentos e afetam de diferentes formas os sujeitos, contribuindo na sua constituição.

Como afirma Hall (2003), há algo no sujeito, mesmo que não natural, mas construído historicamente, que o torna único e faz com que, diante de uma mesma interpelação e, pode-se dizer, diante de um mesmo currículo, haja sujeitos que o aceitam, outros que o negam e outros, ainda, que o aceitam parcialmente. Segundo o autor, por não se saber o que há no sujeito que o faz re(agir) de diferentes formas, ainda é possível experimentar práticas de liberdade.

Nesse sentido, salienta-se que, pela pesquisa efetuada, uma diferença profunda foi observada entre os conhecimentos que os sujeitos não hegemônicos que estudam em Portugal e do Brasil desejam construir. Os sujeitos não hegemônicos do Brasil que compõem o corpus da pesquisa, sem exceção, estabelecem uma relação direta dos conhecimentos construídos no Programa com a afirmação da sua cultura e de sua identidade. Nesse processo, para esses sujeitos, a intenção não é só construir um conhecimento aproximando-se da cultura do outro, que parece ser a perspectiva dos sujeitos não hegemônicos que estudam em Portugal (uma forma de gestão mais qualificada, aprender mais sobre como lidar com a EAD, como construir um currículo, aprofundar-se na literatura oral), mas, sobretudo, encontrar formas de afirmar seus conhecimentos, suas culturas e suas identidades. Como mostra a fala do indígena Guarani/Kaiowá 1:

Cheguei, assim, bem calmo, com bastante atenção, com bastante respeito. Eu cheguei aqui e comecei o Mestrado, onde a gente defende os nossos saberes, a gente defende a nossa história, a oralidade, a teoria que a gente usa, que a gente tem métodos. Eu aprendi que o guarani, que o índio guarani tem muito a contribuir, a gente tem mais para contribuir com a sociedade não-indígena, e isso me deu, assim, o sentido, o Mestrado vai me ajudar. O mais importante é que vai me ajudar a realizar o sonho que a gente tem na memória, os saberes. Eu vou estar cavando, registrando alguns pontos importantes sobre o meu povo. (GUARANI/KAIOWÁ 1).

Como se observa, a intenção está também em contribuir com os não-indígenas e registrar os conhecimentos orais para que não se percam no contato com os não-indígenas. A escrita, nesse sentido, mesmo que tenha sido por muito tempo um instrumento de dominação cultural, ao ser apropriada e ressignificada pelos indígenas, passa a ser utilizada como forma de registrar conhecimentos para que os saberes, a cultura e a identidade possam manter-se vivos não só no contexto do próprio povo, mas também para as demais culturas. Observa-se, ainda, que o indígena não estabelece uma hierarquia entre os conhecimentos indígenas e ocidentais. Refere-se aos conhecimentos de seu povo, como tendo teoria, método e história. Mesmo após mais de 500 anos de imposição de uma epistemologia abissal (SANTOS, 2017), para Guarani/Kaiowá 1, trata-se de conhecimentos diferentes (e não inferiores), com os quais um pode contribuir com o outro.

Guarani/Kaiowá 2 revela que se identifica com os autores trabalhados no Programa (Hall, 2003; Bhabha, 2001; Bauman, 2001, 2003, e um conjunto de autores da interculturalidade crítica) e que eles servem para desconstruir verdades absolutas e refletir sobre a escola indígena. De forma semelhante à de Guarani/Kaiowá 1, além de mostrar os conhecimentos que obteve no Programa, preocupa-se em registrar os conhecimentos (matemáticos) de seu povo para que circulem na academia:

Muitas vezes, a gente utiliza na Matemática linguagens que não batem com a questão indígena, é muito diferenciado o conceito. Eu vim para o Mestrado na intenção mesmo de conhecer mais a educação e, também, trazer para a universidade aquilo que eu vou registrar. Registrar os conhecimentos matemáticos da minha aldeia. [...]. Eu me identifico, muitas vezes, com os autores que são trabalhados no Mestrado porque me parece que os textos que são trabalhados fazem parte da minha realidade, ou aquilo que eu vivi, ou aquilo que eu vivo ainda. E nisso o conhecimento é muito bom, de poder dialogar com a minha realidade. [...]. O Mestrado desconstruiu verdades absolutas que eu trouxe. [...]. Me fez repensar e refletir nas necessidades mesmo, por exemplo, da educação escolar indígena. (GUARANI/KAIOWÁ 2).

Como Guarani/Kaiowá 1 e 2, Terena 1, após relatar que passou em um Programa de Pós-Graduação em Antropologia em uma universidade pública, mas não o cursou, pois nele os conhecimentos de sua comunidade não poderiam ser pesquisados, explica por que optou pelo Programa de uma Universidade Particular:

E aqui eu podia estudar minha cultura, porque, no meu entendimento, a minha construção enquanto sujeito depende da minha construção étnica. E eu pude escrever sobre isso. E lá fora não podia. Podia até pensar, mas não incorporar na tese. Então, para mim, a experiência do Mestrado e do Doutorado me deu bastante subsídio para eu até me autoafirmar enquanto indígena mesmo e enquanto sujeito de movimento. Porque antes, eu era um sujeito de movimento, mas eu só era mais um sujeito do movimento. No movimento indígena, por exemplo, eu ia e participava, mas eu não me posicionava. E a experiência do Mestrado e Doutorado me fez eu ser uma das pessoas que hoje discutem as políticas públicas indígenas, e vou escrever uma deliberação para o Conselho Estadual e Resoluções para a Secretaria de Estado em nome do movimento indígena. Esse conhecimento tem contribuído muito conosco. (TERENA 1).

Observa-se a importância que Terena 1 atribui para o conhecimento que a sua cultura tem e o quanto está voltado para a afirmação da identidade. Assim como Guarani/Kaiowá 1, não é que o conhecimento ocidental não interesse – ele interessa na medida em que é necessário ter acesso a ele para afirmar a própria cultura. Como se percebe, Terena 1 menciona as políticas públicas indígenas, mas, para poder escrevê-las, precisa ter o domínio da legislação nacional. Isso fica bem mais claro quando, em outro momento da entrevista, diz que os indígenas precisam estudar Vygotsky e Piaget para poderem mostrar aos não-indígenas que suas teorias não servem para educar as crianças indígenas, porque foram pensadas em outros contextos e para outra crianças. Contudo, sem conhecê-las, como afirma, torna-se impossível argumentar com os agentes públicos sobre a sua não-pertinência. Desse modo, assim como na fala de Guarani/Kaiowá 1 e 2, observam-se a possibilidade e a necessidade de transitar entre os conhecimentos, o que para os indígenas tem sido denominado de interculturalidade, por meio da qual buscam desconstruir “[...] a exclusão, negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados” (WALSH, 2009, p. 23).

O diálogo entre conhecimentos (e não simplesmente a busca de um conhecimento) também é ressaltado por Terena 2:

A vinda para o Mestrado aqui foi mais por questão de adquirir, trocar conhecimento, porque às vezes... Às vezes não. Sempre as comunidades, sempre dependem de algumas lideranças. E nós, enquanto indígenas, sendo educadores, já somos lideranças. Nós não passamos por um processo de eleição nem indicação. Você trabalha em comunidade. A comunidade é o bem-estar. Todo mundo conhece todo mundo, não existe a questão do muro, a questão da cerca. (TERENA 2).

Importante esclarecer que os professores nas comunidades se tornam lideranças porque os indígenas sabem que, no contexto atual, precisam relacionar-se com a cultura ocidental, conhecê-la, não para se dobrarem a ela, conforme já foi dito anteriormente, mas para poderem negociar a sua identidade e cultura. Nesse sentido, os professores tornam-se lideranças, mas sem substituir as lideranças tradicionais, como os rezadores, o cacique, os anciãos. Os professores são os que mais conhecem a cultura ocidental e, portanto, podem dialogar com esse conhecimento, por exemplo, com os agentes públicos, no caso, ligados à educação, para defender a escola indígena, intercultural, bilíngue e diferenciada. Também em razão disso, muitos indígenas têm buscado o Mestrado para, com o diálogo entre os conhecimentos, fortalecer a comunidade e sua diferença, pois sabem que “[...] os índios que ‘sobreviveram’ o fizeram exatamente por terem mantido a sua diferença cultural e não terem se diluído no caldeirão da sociedade nacional” (CAMARGO; ALBUQUERQUE, 2003, p. 343).

Também na fala de Tuyuca, percebe-se a preocupação com o seu povo, sua cultura e identidade:

Eu vim com o projeto de estudar as práticas educativas da escola dos meus parentes Tuyuca. Depois, durante o Mestrado, principalmente, é que a gente estuda muito questões culturais, estudos culturais. Foi abrindo para questões de fronteira, fronteiras étnicas, questão entre a fronteira da educação Tuyuca e educação escolar. Fui aprofundando e propus que a educação escolar indígena não é nem escolar, nem Tuyuca, ela é um terceiro espaço. Então, todas as disciplinas, a questão da interculturalidade, a questão do método de pesquisa, me ajudaram muito, mas, como eu já vinha com isso na alma, eu me dediquei ao máximo. Eu escrevia muito, queria mostrar que o que eu pensava era muita coisa. Meu orientador me incentivou a usar também os teóricos do meu povo, meus avós, meus avôs, minha avó, o mestre de danças, o pajé... (TUYUCA).

Tuyuca apropriou-se do conceito de fronteira em Bhabha (2001), para quem a fronteira cultural não significa separação e limite rígido entre culturas, mas lugar de negociação, tradução e hibridização, mostrando que não há culturas nem identidades puras. Tuyuca pensa a escola do seu povo como uma escola que não é Tuyuca nem escola (ocidental); ela é uma criação que surgiu dessa fronteira. Chama atenção que ele lembra que foi incentivado a usar os teóricos do seu povo (pajés, avós, mestre das danças) e que não estabelece qualquer hierarquia em relação aos teóricos não-indígenas. Com isso, faz com que os saberes negados se infiltrem no saber hegemônico (BHABHA, 2001).

Outro elemento que mostra como os indígenas se movem na perspectiva de que os conhecimentos não são hierárquicos pode ser observada na fala de Guarani/Kaiowá 3, que afirma, entre outras coisas, que veio ao Mestrado para aprofundar-se na discussão da interculturalidade e que o curso tem servido para mudar a sua prática. O aspecto que mostra a não-hierarquização aparece quando diz que usa os textos discutidos no Mestrado com seus estudantes de Ensino Médio. Desse modo, diferentemente da cultura ocidental, que supõe que cada nível de ensino tem textos específicos que só podem ser entendidos por quem já passou por estágios anteriores, Guarani/Kaiowá 3 não vê problema em discutir os textos do Mestrado com seus alunos de Ensino Médio que estão se formando para serem professores indígenas.

Eu vim para o Mestrado porque eu não participei de toda essa questão da interculturalidade, da educação escolar indígena. Eu fiz minha graduação em Matemática. Em 2013, começou o Programa Ação Saberes Indígenas na Escola. A gente tinha grupo de estudos sobre identidade, interculturalidade. Aí, eu percebi que tinha que me aprofundar e vim para o Mestrado. [...]. Até porque, para poder corresponder, passar para os alunos, você precisa compreender diversas discussões e entender o que está acontecendo. O Programa me ajudou bastante nessas questões, inclusive, tem textos que nós estudamos aqui que eu estou pensando em dar para os alunos da formação em nível médio. [...]. Eu fico refletindo. As práticas que eu fiz, hoje, faria diferente. Até mesmo na questão da avaliação, porque a forma como eu fui preparado até o curso superior é totalmente diferente do que eu penso hoje. (GUARANI/KAIOWÁ 3).

Nas falas dos sete indígenas entrevistados, não se percebe em nenhum momento uma referência a uma cultura como fixa ou fechada sobre si mesma, nem a ideia de uma identidade essencializada. Pelo contrário, eles sempre se mostram abertos ao diálogo com outros conhecimentos. Nesse sentido, é interessante trazer a fala de Guarani/Kaiowá 4, que mostra como os conhecimentos do Mestrado foram relevantes para sua identidade e cultura, sobretudo para entender as diferenças presentes no seu povo:

O Mestrado contribuiu muito para a minha identidade, minha cultura. No primeiro momento, as discussões teóricas, de fronteira, elas ficaram meio assim, sem uma lógica. No segundo semestre, já foi dando uma alinhada. Os teóricos, Bauman, Bhabha, me ajudaram muito a pensar a identidade e a cultura. A gente sofria muito, pensava que a comunidade tinha que ser igual, mas não é igual, havia muitas tensões, mas a gente buscava, pela escola, homogeneizar. Aí, com as reflexões teóricas, fez a gente sofrer menos, entender, melhorar e ter uma estratégia para perceber que somos diferentes. Há um elemento que aglutina, mas as famílias são diferentes. A gente sofria muito porque via como divisão, mas hoje a gente entende como diferença, não precisa buscar uma coisa só. [...]. O Programa, com suas reflexões teóricas de comunidade, identidade, interculturalidade, contribuiu muito. Não é que esses conceitos resolvam tudo. Isso aprendi também. Não é o conceito que vai salvar, ele não é uma lei universal. Ele nos ajuda a entender um aspecto. (GUARANI/KAIOWÁ 4).

Nota-se que, ao mesmo tempo em que ele vai atribuindo importância ao conhecimento de autores como Bhabha (2001) e Bauman (2001, 2003), que o ajudaram a entender as diferenças como constitutivas de qualquer comunidade, portanto também da sua, faz questão de lembrar que um conceito não resolve tudo, mas ajuda a compreender um aspecto. Dessa forma, observa-se novamente que não é porque esses autores contribuíram para entender alguns aspectos de sua comunidade que eles vão passar a ser mais importantes do que os conhecimentos construídos pela cultura do seu povo.

Ao reiterar-se que nenhum dos sete indígenas entrevistados mostrou uma concepção essencialista de cultura e de identidade, infere-se que sabem que a identidade é um símbolo que não substitui a complexidade subjetiva (PINAR, 2009). Sabem também que a comunidade, constituída com suas diferenças, e a afirmação de sua identidade, e não a pura individualidade, é que tornaram e continuarão tornando possível a sua existência como sujeitos, povos e culturas e de seus conhecimentos.

Algumas aproximações possíveis e observações finais

Ao trazer-se para o centro da pesquisa a questão dos conhecimentos que interessam aos sujeitos não hegemônicos de Portugal e do Brasil, desde o início, a intenção não foi buscar semelhanças, mas manter a heterogeneidade dos sujeitos, de seus interesses e conhecimentos. A pesquisa pautou-se epistemologicamente na diversidade e na multiplicidade de perspectivas de conhecimento, portanto na manutenção das diferenças e não na desqualificação ou na eliminação das diferenças, como faz a epistemologia fascista e abissal (SANTOS, 2007, 2017).

Nesse sentido, fazem-se algumas aproximações e observações finais, pois, de alguma forma, como apontam Laclau (2011) e Santos (2017), reconhece-se que a pura particularidade e a individualidade não levam a uma resistência capaz de criar alternativas em relação à cultura hegemônica. A resistência, se individualista e incapaz de estabelecer alianças, torna-se politicamente impotente e socialmente conservadora, porque se fecha sobre si mesma e, desse modo, condena seus sujeitos e suas culturas à subalternidade.

Uma aproximação possível diz respeito ao entendimento de identidade cultural dos dois grupos de sujeitos que formaram o corpus da pesquisa. Ainda que não tenha sido o foco do estudo, pela forma que se colocaram em relação aos conhecimentos em contextos culturais distintos dos de sua origem, percebe-se que não se mobilizam em torno de uma identidade essencial, congelada, naturalizada, percebendo a identidade como resultado de processos de negociação, de tradução e de hibridização. Como diz Laclau (2011, p. 105), a “[...] hibridização não significa necessariamente declínio decorrente de uma perda de identidade. Também pode significar o fortalecimento das identidades existentes pela abertura de novas possibilidades”. Em outras palavras, a complexidade subjetiva não se perde em nome da identidade. Nesse sentido, tanto os sujeitos não hegemônicos do Brasil quanto os de Portugal compartilham a ideia de que o espaço da universidade representa novas possibilidades que, longe de apagarem suas identidades, servem para fortalecê-las no contexto de sua cultura nativa, no caso brasileiro, e no contexto do Estado-Nação, no caso dos sujeitos não hegemônicos que estudam em Portugal. Esse processo se dá cotidianamente, pois “[...] orgulhar-se de si, de sua história e de sua cultura é muito difícil e, mesmo, doloroso para aquelas e aqueles que foram ensinadas e ensinados que suas tradições deveriam ser abandonadas porque eram inferiores e, até mesmo, não plenamente humanas” (VICENZI; PICOLI, 2022, p. 10).

Cabe lembrar que os três países (Angola, Moçambique e Timor Leste) dos sujeitos entrevistados que estudam em Portugal se tornaram independentes recentemente. Depois de intensas lutas contra suas metrópoles, passaram ainda por guerras civis e, neste momento histórico, estão em processo de construção de uma unidade (identidade) nacional, na qual a educação é vista como central. Isso explica a recorrente menção à construção de conhecimentos que ajudem na educação dos seus países, seja em termos de gestão (Angola), de currículo (Timor Leste), de EAD (Moçambique) ou de literatura oral (Moçambique).

Ao mesmo tempo em que há uma aproximação, há também uma diferenciação na relação que estabelecem com os conhecimentos: os sujeitos não hegemônicos do Brasil vêm para a universidade, sobretudo, como forma de afirmar seus conhecimentos, que sabem que não são inferiores, mas diferentes, mas, pela lógica da epistemologia abissal, foram inferiorizados e desqualificados. Ao virem para o espaço da universidade, traduzem e hibridizam seus conhecimentos como forma de fortalecê-los, mantê-los vivos pelo registro escrito e torná-los acessíveis para as outras culturas, inclusive para a cultura hegemônica, que insiste em desqualificá-los. Nesse processo, como afirma Bhabha (2001), seus conhecimentos infiltram-se na lógica hegemônica e, de alguma maneira, perturbam-na. Já os sujeitos não hegemônicos que vêm para Portugal não mostraram a preocupação de afirmar os próprios conhecimentos, mas de construir conhecimentos que atendam às suas necessidades profissionais, articulando-os ao Estado nacional.

Tanto para um grupo quanto para o outro, não há, portanto, pura individualidade, mas um sentimento de pertença a uma comunidade: no caso brasileiro, a uma comunidade étnica; no caso de Angola, Moçambique e Timor Leste, a uma comunidade nacional. Esses interesses comunitários, como mostrou a pesquisa, têm sido fundamentais, seja no processo de afirmação dos conhecimentos (sujeitos não hegemônicos do Brasil), seja no processo de construção de conhecimentos específicos (sujeitos não hegemônicos que estudam em Portugal). Assim, tanto em um grupo quanto no outro, a reposta para a questão qual conhecimento interessa para os sujeitos não hegemônicos está atravessada pelo sentimento de pertença a uma comunidade.

Por fim, cabe destacar que esses sujeitos, ao frequentarem os currículos de Pós-Graduação, além de serem produzidos por eles, também os produzem. Uma questão central do currículo, em uma perspectiva da teoria crítica, como salientado, é qual o conhecimento que é mais importante. O currículo, lidando com um determinado conhecimento, não permanece o mesmo, assim como o conhecimento também não – seja porque são apropriados de diferentes formas pelos sujeitos, seja porque passam a ser selecionados de outra forma, em função dos sujeitos. Enfim, a presença desses sujeitos tem feito com que o currículo se torne sistematicamente uma conversação mais complexa, forjando uma interculturalidade em um contexto de mundialidade e de cosmopolitismo.

*O presente artigo é fruto de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Bolsa Produtividade em Pesquisa.

1Declaro que em todos os momentos da pesquisa (definição do problema, contato com os sujeitos, realização das entrevistas, análise e interpretação dos dados) foram seguidos rigorosamente todos os princípios e procedimentos éticos da pesquisa.

Referências

APPLE, M. W. A luta pela democracia na educação crítica. Revista e-Curriculum, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 894-926 out./dez. 2017. DOI: https://doi.org/10.23925/1809-3876.2017v15i4p894-926Links ]

APPLE, M. W. A política do conhecimento oficial: faz sentido a idéia de um currículo nacional? In: MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. (org.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 1995. p. 39-57. [ Links ]

BAUMAN, Z. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. [ Links ]

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. [ Links ]

BHABHA, H. K. O local da cultura. Tradução Myriam Avila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Glaucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001. [ Links ]

BONIN. I. T. “Demarcar as universidades”: povos indígenas e ações afirmativas na Pós-Graduação brasileira. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 17, e2219422, p. 1-26, 2022. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.17.19422.009Links ]

CABECINHAS, R. Luso(A)fonias: memórias cruzadas sobre o colonialismo português. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 45, n. 2, p. 16-25, maio/ago. 2019. DOI: https://doi.org/10.15448/1980-864X.2019.2.32857Links ]

CABECINHAS, R.; FEIJÓ, J. Representações sociais do processo colonial - perspetivas cruzadas entre estudantes moçambicanos e portugueses. Configurações, Braga, n. 12, p. 117-139, dez. 2013. DOI: https://doi.org/10.4000/configuracoes.2053Links ]

CABRITA, I. Projeto Timor: desafios do Ensino Secundário Geral. Indagatio Didactica, Aveiro, v. 7, n. 2, p. 111-127, out. 2015. DOI: https://doi.org/10.34624/id.v7i2.2803Links ]

CAMARGO, D. M. P. de; ALBUQUERQUE, J. G. de. Projeto pedagógico xavante: tensões e rupturas na intensidade da construção curricular. Cadernos Cedes, Campinas, v. 23, n. 61, p. 338-366, dez. 2003. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-32622003006100006Links ]

GOMES, N. L. A força educativa e emancipatória do movimento negro em tempos de fragilidade democrática. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 21, n. 62, p. 360-371, jul./set. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/teias.2020.49715Links ]

GUEDES, M. D.; PAULINO, V. Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e Educação: um estudo preliminar sobre os desafios e possibilidades a partir da experiência compartilhada entre Brasil e Timor-Leste. Perspectiva, Florianópolis, v. 34, n. 2, p. 365-389, ago. 2016. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-795X.2016v34n2p365Links ]

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Tradução Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Claudia Alvares Francisco Rüdiger e Sayonara Amaral. Belo Horizonte: UFMG, 2003. [ Links ]

LACLAU, E. Emancipação e diferença. Tradução Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2011. [ Links ]

LIBERATO, E. Avanços e retrocessos da educação em Angola. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 19, n. 59, p. 1003-1031, dez. 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-24782014000900010Links ]

MACHADO, A. F.; OLIVEIRA, L. S. Memórias ancestrais e filosofias africanas forjando caminhos para uma educação afrorreferenciada. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 17, e2219478, p. 1-15, 2022. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.17.19478.011Links ]

MOREIRA, A. F. B.; MACEDO, E. F. de. Em defesa de uma orientação cultural na formação de professores. In: CANEN, A.; MOREIRA, A. F. B. (org.). Ênfases e omissões no currículo. Campinas: Papirus, 2001. p. 117-146. [ Links ]

PACHECO, J. A. Currículo: entre teorias e métodos. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 137, p. 383-400, maio/ago. 2009. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742009000200004Links ]

PACHECO, J. A. Currículo e gestão escolar no contexto das políticas educacionais. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Goiânia, v. 27, n. 3, p. 361-588, dez. 2011. [ Links ]

PACHECO, J. A. Estudos curriculares: gênese e consolidação em Portugal. Educação, Sociedade e Culturas, Porto, n. 38, p. 151-168, ago. 2013. [ Links ]

PACHECO, J. A. Para a noção de transformação curricular. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 46, n. 159, p. 64-77, mar. 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/198053143510Links ]

PINAR, W. A reconceptualização dos estudos curriculares. In: PARASKEVA, J. M. (org.). Discursos curriculares contemporâneos. Mangualde, Portugal: Edições Pedago, 2007a. p. 201-227. [ Links ]

PINAR, W. O que é a teoria do currículo. Tradução Ana Paula Barros e Sandra Pinto. Porto, Portugal: Porto Editora, 2007b. [ Links ]

PINAR, W. Multiculturalismo malicioso. Currículo sem Fronteiras, [s. l.], v. 9, n. 2, p. 149-168, dez. 2009. [ Links ]

QUIJANO, A. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Revista Novos Rumos, Marília, v. 17, n. 37, p. 4-25, ago. 2002. [ Links ]

SANTOS, B. S. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 80, p. 11-43, mar. 2008a. DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.691Links ]

SANTOS, B. S. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2008b. [ Links ]

SANTOS, B. S. As bifurcações da ordem: revolução, cidade, campo e indignação. Coimbra: Almedina, 2017. [ Links ]

SANTOS, B. S. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. In: SANTOS, B. S.; MARTINS, B. S. (org.).O pluriverso dos direitos humanos: a diversidade das lutas pela dignidade. Coimbra: Edições 70, 2019. p. 41-66. [ Links ]

SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos, São Paulo, v. 3, n. 79, p. 71-94, dez. 2007. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-33002007000300004Links ]

SELWYN, N. O uso das TIC na educação e a promoção de inclusão social: uma perspectiva crítica do Reino Unido. Educação e Sociedade, Campinas, v. 29, n. 104, p. 815-850, out. 2008. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73302008000300009Links ]

SILVA, R. V. R.; SOUZA, U. R. B. Literatura moçambicana e oralidade: uma postura crítica e uma fundamentação teórica. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 95-117, dez. 2015. DOI: https://doi.org/10.5752/P.2358-3428.2015v19n37p97Links ]

SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. [ Links ]

SKLIAR, C. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Tradução Giane Lessa. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. [ Links ]

SOUSA, E. L. A. Entrevistar. In: FONSECA, T. M. G.; NASCIMENTO, M. L.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 87-88. [ Links ]

VICENZI, R.; PICOLI, B. A. Escola, ressignificação, descolonização: narrativas de estudantes Kaingang na fronteira Sul do Brasil. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 17, e2219356, 1-23, 2022. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.17.19356.017Links ]

WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, V. M. (org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 12-43. [ Links ]

Recebido: 09 de Agosto de 2022; Revisado: 04 de Março de 2022; Aceito: 05 de Março de 2022; Publicado: 15 de Março de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.