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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19366.039 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Formação docente na perspectiva da educação antirracista como prática social

Teacher education from an anti-racist education perspective as a social practice

Formación docente en la perspectiva de la educación antirracista como práctica social

Fausto Ricardo Silva Sousa* 
http://orcid.org/0000-0002-4766-714X

Lizandra Sodré Sousa** 
http://orcid.org/0000-0001-7518-7461

Herli de Sousa Carvalho*** 
http://orcid.org/0000-0003-1503-4468

Francisca Morais da Silveira**** 
http://orcid.org/0000-0002-0325-065X

*Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas (PPGFOPRED) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor da rede pública municipal de Educação de Açailândia, Maranhão. Membro do grupo de pesquisa Diálogos Interculturais e Práticas Educativas (DIPE). E-mail: <fausto.ricardo@discente.ufma.br>.

**Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas (PPGFOPRED) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Psicóloga do Serviço de Assistência Estudantil da UFMA. Membro do grupo de pesquisa Diálogos Interculturais e Práticas Educativas (DIPE). E-mail: <lizandra.sodre@ufma.br>.

***Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas (PPGFOPRED) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Membro do grupo de pesquisa Diálogos Interculturais e Práticas Educativas (DIPE). E-mail: <herli.sousa@ufma.br>.

****Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professora do Programa de Pós-Graduação em Formação Docente em Práticas Educativas (PPGFOPRED) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: <francisca.silveira@ufma.br>.


Resumo:

Com o objetivo de discutir os processos de formação docente para que seja possível desenvolveruma Educação Antirracista, o presente artigo faz uso da pesquisa bibliográfica, tendo como suporte teórico Candau e Lelis (1999), Deus (2020), Gomes (2010, 2017), Munanga (2020) e Pimenta (2007), dentre outros(as). Compreende-se que, para entender a Educação Antirracista, é necessário observar a atuação do Movimento Negro como sistematizador e propagador dos saberes oriundos das vivências dos povos negros. Para que essa educação cumpra sua função de prática social, é preciso refletir sobre o processo de formação docente e acerca de como as teorias e as práticas se relacionam nas formações e se efetivam nas práticas educativas. Entende-se que essa relação precisa ocorrer dentro de uma unidade dialógica, como uma característica observada na própria conformação do Movimento Negro.

Palavras-chave: Educação Antirracista; Formação docente; Prática social

Abstract:

Aiming to discuss the processes of teacher education so that it is possible to develop an Anti-Racist Education, this paper uses bibliographical research, following the theoretical support of Candau and Lelis (1999), Deus (2020), Gomes (2010, 2017), Munanga (2020) e Pimenta (2007), among others. It is acknowledged that, in order to understand Anti-Racist Education, it is necessary to observe the Black Movement performance as a systematizer and propagator of knowledge arising from black people experiences. In order to this education fulfill its function of social practice, it is necessary to reflect on the teacher education process and on how theories and practices are related in training and are effective in educational practices. It is understood that this relationship needs to be within a dialogical unit as a characteristic observed in the very conformation of the Black Movement.

Keywords: Anti-racist Education; Teacher training; Social practice

Resumen:

Con el objetivo de discutir los procesos de formación docente para que sea posible desarrollar una Educación Antirracista, el presente artículo hace uso de la investigación bibliográfica, teniendo como soporte teórico a Candau y Lelis (1999), Deus (2020), Gomes (2010, 2017), Munanga (2020) y Pimenta (2007), entre otros(as). Se comprende que, para entender la Educación Antirracista, es necesario observar la actuación del Movimiento Negro como sistematizador y propagador de saberes oriundos de las vivencias de los pueblos negros. Para que esta educación cumpla con su función de práctica social, es necesario reflexionar sobre el proceso de formación docente y sobre cómo las teorías y las prácticas se relacionan en las formaciones y son efectivas en las prácticas educativas. Se entiende que esta relación necesita suceder dentro de una unidad dialógica, como característica observada en la propia conformación del Movimiento Negro.

Palabras clave: Educación Antirracista; Formación docente; Práctica social

Introdução

A provocação inicial para a construção das reflexões que aqui apresentamos surgiu quando, no percurso de estudos, tivemos contato com a seguinte pergunta feita por Pimenta (2007, p. 20): “Que professor se faz necessário para as necessidades formativas em uma escola que colabore para os processos emancipatórios da população?”. A inquietação que essa pergunta nos trouxe coincidiu com a Educação Antirracista, nosso objeto de estudo no Mestrado. Assim sendo, propomo-nos a responder a seguinte questão no presente texto: Como podemos compreender o processo de formação docente para que seja possível trabalhar/construir uma Educação Antirracista?

Para tanto, nosso objetivo é discutir os processos de formação docente para que seja possível trabalhar/construir uma Educação Antirracista. Diante do grande leque de opções para o início dessa trajetória, decidimos enveredar pelo entendimento de que a Educação Antirracista é uma prática social e de que as formas de formação docente levem em consideração a unidade entre teoria e prática não somente nos saberes pedagógicos, mas também em relação aos saberes oriundos da atuação do Movimento Negro que precisam adentrar os currículos dos cursos de formação inicial e continuada de professores e de professoras, ofertados pelas Instituições de Educação Superior, no processo de autoformação e de formações nas instituições escolares.

Para cumprirmos o objetivo traçado, dividimos o trabalho em três partes. Na primeira parte, apresentamos os subsídios para compreendermos o significado da Educação Antirracista. Para além de conceitos cristalizados, chamamos atenção para o entendimento de que a Educação Antirracista se faz na luta materialista e na luta contra-hegemônica da população negra, e que é sistematizada e propagada pelo Movimento Negro Brasileiro. Dessa forma, compreendemos que a Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003) e demais aparatos legais ganham significado quando entendemos que eles partem da atuação político-pedagógica do Movimento Negro. Por essa perspectiva, a todo momento, inserimos esse movimento social como fundamentador teórico-prático da Educação Antirracista.

Na segunda parte, detemo-nos a discutir as várias facetas da formação docente, quer dizer, a formação inicial e continuada em Instituições de Educação Superior, a autoformação e a formação em instituições escolares. Entretanto, não findamos em expor essas maneiras de formação docente; trazemos, ainda, as formas de como as teorias e as práticas podem relacionar-se. Essa envergadura sobre a relação entre teorias e práticas entra na discussão como alicerce para compreendermos as formações docentes como elemento necessário, a fim de que levem em consideração tanto a realidade social brasileira como a necessária pertinência de que os professores e as professoras sejam formados(as) e se formem para buscarem a unidade entre esses dois elementos.

Na terceira parte, propomo-nos a fazer aproximações entre a formação docente e a Educação Antirracista, entendendo esta como prática social e aquela como momento de fazer com que docentes compreendam sua função social de germinar a transformação da educação para tornar-se antirracista e, assim, gestar a transformação da própria sociedade. Para isso, fazemos referências aos documentos oficiais, mas sem perder a filiação com o percurso do Movimento Negro e apreendendo-o como elemento vivo da unicidade entre teoria e prática.

Para tanto, fizemos uso da pesquisa bibliográfica como recurso metodológico para o trabalho aqui apresentado. Com destaque para o debate sobre a Educação Antirracista, trazemos Arroyo (2003, 2010), Deus (2020), Gomes (2010, 2017), Munanga (2020), Pereira (2011), dentre outros aportes teóricos; acerca da formação docente, citamos Candau e Lelis (1999), Facci (2004), Pimenta (2007), dentre outros(as). Ainda, apresentamos documentos oficiais pertencentes à Educação das Relações Étnico-Raciais e Freire (2015, 2019a, 2019b) como embasamentos de aproximação entre a Educação Antirracista e a formação docente em um entendimento de prática social.

Breve entendimento sobre Educação Antirracista

Tecer conceituações sobre Educação Antirracista não é uma tarefa fácil, mas podemos defini-la como um modelo de educação em que se tem um compromisso real de estabelecer ações políticas de mobilização e de conscientização das práticas antirracistas no contexto escolar. Contudo, compreendemos que tal conceituação não é suficiente para exprimir o amplo sentido que a proposta nomeada de Educação Antirracista possui. No presente trabalho, caminhamos por um percurso muito bem definido para termos um sentido para o conceito de Educação Antirracista: primeiro, trazemos a constituição histórica da sociedade brasileira, depois, a atuação do Movimento Negro, e, por fim, a legislação educacional antirracista.

Kabengele Munanga, africano nascido na República Democrática do Congo e naturalizado brasileiro, professor e estudioso de temas relacionados à realidade racial, cultural, histórica e política brasileira e africana, em seu livro Negritude: usos e sentidos, de 2020, compreende que a sociedade brasileira, desde o período colonial, foi gestada por um Racismo que se fez e se faz estrutural, que se materializa nas práticas e na ideologia de sociedade brasileira, mas que, ao longo do tempo, se invisibiliza.

De acordo com o autor, quando os europeus desembarcaram na África, ainda no século XV, encontraram, por um lado, civilizações altamente organizadas politicamente, de tal forma que as várias camadas sociais possuíam representação junto às monarquias por meio de conselhos populares; por outro lado, devido às formas organizacionais da sociedade e de suas condições ecológicas, não tinham aparato bélico similarmente desenvolvido como o encontrado na Europa, e, ao contrário do que muitos cientistas tentaram comprovar para justificar uma falsa inferioridade, isso não demonstra inabilidades biológicas dos negros e das negras

Enquanto isso, no outro lado do oceano, o continente americano começava a ser invadido sob a argumentação de que os europeus estavam em busca de novas terras – isso quer dizer que estavam em busca de riquezas. Movidos por um princípio de exploração territorial para gerar bens e precisando de mão de obra barata, os europeus encontraram, na África, um contingente de seres humanos que foram escravizados, desafricanizados, expropriados de suas terras e distanciados de seus pertencimentos ancestrais. Assim, trazidos para a América, especificamente para o Brasil colônia, os negros africanos e as negras africanas tiveram sua humanidade violada e descartada em prol de um mercado e de conquistas alheias.

Convencidos de sua superioridade, os europeus tinham a priori desprezo pelo mundo negro, apesar das riquezas que dele tiravam. A ignorância em relação à história antiga dos negros, as diferenças culturais, os preconceitos étnicos entre as duas sociedades que se confrontam pela primeira vez, tudo isso mais as necessidades econômicas da exploração predispuseram o espírito europeu a desfigurar completamente a personalidade moral do negro e suas aptidões intelectuais. (MUNANGA, 2020, p. 22).

Embora seja uma afirmação fértil para discussão em várias perspectivas, trataremos, aqui, as riquezas negras não do ponto de vista material ou econômico, mas a partir da cultura. Em território brasileiro colonial, na condição de escravizados(as), os negros e as negras desafricanizados(as) tiveram de ressignificar suas vivências, de lutar contra as formas de opressão e de silenciamento aos quais foram submetidos(as), fizeram-se resistências e aprenderam a viver em um novo ambiente, diante de uma organização social que não era a deles(as) e, ao mesmo tempo, que os(as) compreendia como mão de obra, como animais desumanizados, sem necessidades, só afazeres, isso em nome da economia de um povo que os(as) sequestraram e roubaram todas as possibilidades de viverem a plenitude que a África os(as) ofertava.

Resumidamente, temos um cenário em que os europeus estavam em um patamar de controle social e os negros e as negras escravizados(as) eram mantidos(as) na base produtiva como mão de obra barata e, ao mesmo tempo, sobretudo, como pertence dos senhores de engenho. Temendo a ruptura com essa organização e esse equilíbrio, a sociedade colonial fez uso de dois mecanismos repressivos: o direto, representado pela força bruta; e o indireto, expresso nos preconceitos raciais e outros estereótipos (MUNANGA, 2020) para buscar a manutenção da estrutura colonial. Gestada, ainda, no contato inicial entre europeus e africanos, mas agora firmada por meio dos mecanismos de repressão, temos as bases para buscarmos entender o Racismo e consequentemente a Educação Antirracista.

O contexto brevemente ilustrado não se restringiu à sociedade colonial. Essa ideia de que os negros e as negras, tanto os(as) africanos(as) como agora os(as) afrodescendentes, são menores e inferiores se prolonga por toda a história da sociedade brasileira e se entranha nas esferas social, política, econômica e, dentre outras, educacional. Todavia, assim como houve forte resistência no período colonial, do mesmo modo temos forte resistência no decorrer da história do Brasil até os dias atuais, resistência que busca ressignificar o valor social da população negra. Agora, temos a atuação do Movimento Social Negro como expressão de luta negra frente a uma sociedade que foi nutrida por meio do Racismo.

Assim como não buscamos uma conceituação objetiva de Educação Antirracista, também não buscamos uma sobre Racismo por entendermos que o contexto narrado fornece condições para percebermos o Racismo como um filtro pelo qual a sociedade brasileira enxerga os negros e as negras, abordando toda uma carga preconceituosa que não tivemos condições de retratá-la completamente, mas que pudemos trazer a noção de sua existência, que marginaliza os povos negros ao impossibilitá-los de participar ativamente da sociedade por terem suas histórias invisibilizadas, suas culturas negativizadas e suas raízes apagadas.

Nilma Lino Gomes, professora, militante e estudiosa do Movimento Negro Brasileiro e da sua atuação político-pedagógica e social, e autora, dentre outras obras, do livro O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação, de 2017, e do texto Diversidade étnico-racial e Educação no contexto brasileiro: algumas reflexões, de 2010, e Zélia Amador de Deus, artista, militante do Movimento Negro, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) e autora do livro Caminhos trilhados na luta antirracista, de 2020, fornecem-nos embasamento necessário para afirmarmos que o Movimento Negro não silenciou frente ao Racismo, assim como os(as) próprios(as) negros e negras não sucumbiram diante de uma sociedade que buscou e ainda busca, por meio de mecanismos diretos e indiretos, silenciá-los(as).

Das várias frentes de atuação que Gomes (2017) trabalha ao falar do Movimento Negro, tratamos de duas: a luta contra o Racismo e a busca por educação escolar. Contudo, antes de argumentarmos sobre essas duas frentes de atuação, precisamos ter clareza de que o Movimento Negro é sistematizador e propagador de saberes produzidos pelas lutas em busca de emancipação protagonizadas por negros e negras afrodescendentes que, atuando em uma sociedade racista, para não dizer sexista, classicista e outras questões discriminatórias, se organizam em forma de coletivos ou agem em seus contextos com o propósito de quebrar visões estereotipadas e ressignificar a atuação negra na história e na cultura brasileira. Dessa forma, um grande objeto de luta do Movimento Negro é a denúncia e a ruptura do Racismo.

De acordo com a autora, se discutimos, vemos e entendemos que o Racismo existe e é estruturante de nossa sociedade, concordando, assim, como o posicionamento de Munanga (2020), devemos isso ao Movimento Negro. Foi esse movimento social que, problematizando as especificidades da vida dos(as) afrodescendentes, se encarregou de conceituar o Racismo. Além disso, foi esse movimento social que trouxe para discussão o mascaramento desse Racismo por meio do Mito da Democracia Racial. Por ser estruturante da sociedade brasileira, o Racismo está inserido em todas as instâncias sociais. Contudo, por muito tempo, ele não foi visto, porque se tinha um movimento de invisibilidade desse Racismo e de sua perversidade com as populações negras, sobretudo, mas não unicamente.

Segundo o Mito da Democracia Racial, ideia que se internaliza no pensamento social e que se concretiza nas ações e nas visões de mundo, não existe Racismo ou discriminação racial no Brasil. O que temos é igualdade de oportunidade a todos(as), naturalizando-se a situação dos(as) afrodescendentes e apagando todo um contexto de opressão e de marginalização sofrido desde o período colonial e que se ramificou no decorrer do tempo. Assim, sendo a luta contra o Racismo e o Mito da Democracia Racial uma das frentes de combate do Movimento Negro, era preciso ter um espaço de discussão que quebrasse com essa tradição, que fosse de encontro à construção da visão social dos indivíduos; assim, a educação foi suscitada como espaço/tempo de lutas emancipatórias negras de combate ao Racismo.

No contexto das lutas emancipatórias negras, a educação sempre esteve presente e tratada, especificamente, em duas dimensões. Inicialmente, enquanto a bandeira de reinvindicação do Movimento Negro era de que os negros e as negras fossem incluídos(as) na sociedade brasileira, pudessem participar ativamente e de forma valorativa das dimensões sociais, a educação era vista como uma forma de ascensão social, como a grande oportunidade de a população negra alcançar a cidadania plena.

Já no período de Ditadura Militar (1964-1985) e com mais força após ele, o Movimento Negro ressignificou-se e passou a reivindicar uma modificação estrutural da sociedade brasileira, além de outras questões. Assim, tendo observado que o adentrar dos negros e das negras na escola, que o acesso dos(as) afrodescendentes à educação não equivalia à inclusão escolar e social e ao mesmo tempo não significava uma compreensão diferenciada de ser negro ou negra pelos demais, houve modificação na bandeira levantada com relação à educação. Nesse sentido, a educação passou a ser suscitada pelo Movimento Negro como espaço/tempo de conquistas e de modificações de visões estereotipadas, ao passo que problematiza o Racismo, o Mito da Democracia Racial e a própria sociedade brasileira (PEREIRA, 2011).

Percebemos que, mesmo que anteriormente tenhamos tratado a luta contra o Racismo e a busca por educação escolar como duas conquistas, não podemos dissociá-las. Os movimentos sociais, de maneira geral, são produtores e articuladores de saberes produzidos pelos grupos não hegemônicos na sociedade. Dessa forma, fazendo-se expressão de coletivos maiores do que eles mesmos, trazem para si uma perspectiva pedagógica fundamentada nas realidades político-sociais vivenciadas pelos indivíduos. Tratando-se do Movimento Negro, ele se insere como pedagogo, nos dizeres de Gomes (2017), por trazer os saberes produzidos pelos negros e pelas negras em uma proposta emancipatória, em um entendimento de reestruturar a sociedade brasileira ao passo que fornece a ela percepções plurais acerca de nossa etnicidade. Por essa razão, a educação escolar não pode estar fora do contexto, ela é incluída aqui por se fazer espaço/tempo de (re)construção de percepções de mundo. Dito de outro modo, ela precisa trazer em seu bojo uma desconstrução histórico-cultural com relação à atuação dos negros e das negras desde quando tivemos a escravização dos(as) africanos(as) até os dias atuais.

Deus (2020) colabora com esse entendimento ao possibilitar-nos a reflexão de que a imagem que se tem da África e dos povos africanos, carregada de estereótipos e deturpações, interfere na construção da Educação Antirracista. A ressignificação da educação passa pela ruptura com a limitada e marginalizante visão que se tem socialmente difundida do continente africano, trazendo para a discussão as históricas contribuições que os povos africanos forneceram para o conhecimento humano, da mesma forma, a pluralidade cultural e ecológica que marca as diversidades e as diferenças africanas. Assim, faz-se necessária a reestruturação dos saberes no currículo escolar, de modo a possibilitar o diálogo intercultural entre os grupos sociais e a ruptura com a hegemonia de uma cultura dominante (PONCE; FERRARI, 2022). É a partir desse diálogo intercultural, embasado nos saberes construídos nas lutas contra-hegemônicas dos vários grupos sociais, que a Educação Antirracista se constrói e reconstrói continuamente.

Entretanto, assim como a educação escolar é bandeira de luta para o Movimento Negro, o fazer-se presente nas escolas também foi e ainda é. Desse modo, discutimos acerca da legislação antirracista. Comumente, vimos trabalhos que trazem a Lei Nº 10.639/2003 como grande marca de luta antirracista ou como início de um pensar ressignificante com relação à história e à cultura africana e afro-brasileira. Não concordamos com esse fazer e, na trajetória de nosso trabalho, buscamos representar o porquê de nosso posicionamento. Compreendemos que a Lei Nº 10.369/2003 bem como outros aparatos legais relacionados à Educação Antirracista são frutos das lutas emancipatórias do Movimento Negro, lutas sociais que fundamentam a Educação Antirracista, dão sentido aos aparatos legislativos e podem ressignificar o fazer pedagógico nas escolas porque produzem e propagam saberes emancipatórios.

Nessa perspectiva, concordamos com Arroyo (2003, 2010), Domingues (2007), Gomes (2010, 2017), Munanga (2020), Pereira (2011) e vários outros (as) estudiosos (as) que se filiam aos estudos acerca da educação, relacionando-a à atuação dos movimentos sociais, especificamente do Movimento Negro, e que fundamentaram nossa compreensão da temática. Contudo, não buscamos, aqui, sucumbir a legislação educacional antirracista a uma visão periférica ou desprivilegiada. O que propomos é o entendimento de que as leis e os demais aparatos legais não se fundamentam e não são capazes de ressignificar a educação sozinhos. Para alcançarem sua plenitude, precisam se articular com os saberes produzidos pelo Movimento Negro, por negros e negras, por indivíduos que sentem, dia a dia, a existência do Racismo e sofrem com as privações vindas do Mito da Democracia Racial.

Poderíamos, largamente, argumentar sobre a Educação Antirracista trazendo definições a partir de autores (as), contextualizando-a com a história de luta de negros e de negras, mas permanecemos na proposta de buscarmos fundamentos para entendê-la. Além disso, entendemos que a Educação Antirracista é uma proposta de educação como prática social que parte da sociedade e que seu fim é a própria sociedade. Essa compreensão é importante para o percurso que faremos posteriormente. Dito isso, buscamos compreender, sumariamente, sobre a formação de professores e de professoras.

Reflexões sobre a formação docente e a relação entre teoria e prática

Quando nos propomos a tecer comentários acerca da formação docente, tanto na dimensão inicial como continuada, procuramos nos firmar na delimitação de um horizonte, visto que a temática agrega uma vasta variedade de posicionamentos, de pontos de partida e de pontos de chegada. Nosso horizonte é definido pela compreensão de que a educação e o fazer pedagógico são práticas sociais, comprometem-se com um entendimento de sociedade, apoiam-se nitidamente em um entendimento de sujeitos aprendentes e, ao mesmo tempo, partem da realidade destes para se (re) fazerem. Dessa forma, traçamos um percurso simples e relevante para entendermos a formação de professores e de professoras na perspectiva da Educação Antirracista: como se dá a formação inicial e continuada; a autoformação e a formação nas instituições escolares; a relação teoria-prática; e a prática social da educação.

Antes de falarmos de formação docente, precisamos ter clareza de que a sociedade fornece à educação, e, consequentemente, ao fazer pedagógico dos professores e das professoras, certas exigências sociais. É compreendendo a sociedade que podemos compreender o perfil de educação desenvolvido nela. Se fizermos uso das palavras de Paulo Freire, um dos maiores pensadores da realidade educacional brasileira e patrono da educação, a partir dos livros Educação e mudança (FREIRE, 2019a) e Pedagogia da autonomia (FREIRE, 2019b), percebemos a filiação da educação escolar voltada às exigências de mercado, fazendo-se com o propósito de formar mão de obra para o sistema capitalista. Dessa maneira, faz-se necessária uma pedagogia decolonial dos acontecimentos históricos para construirmos uma narrativa emancipatória da população negra na historiografia brasileira, de modo a propormos novas posturas educativas e, assim, falarmos de formação docente na perspectiva da Educação Antirracista.

Pimenta (2007), no texto Formação de professores: identidade e saberes da docência, guia-nos a dois entendimentos importantes e que estão vinculados à preparação de professores e de professoras para atuarem no reforço da realidade denunciada por Freire (2019a, 2019b), uma vez que não contribuem para a construção de identidades docentes comprometidas com a transformação social da educação. Com relação à formação inicial, Pimenta (2007) destaca que a atual organização dos cursos de licenciaturas em Pedagogia e nas áreas específicas desenvolve um currículo formal pautado em disciplinas teóricas e estágios que pouco se comunicam durante o processo formativo dos(as) futuros(as) professores e professoras, uma vez que, condicionados em uma perspectiva burocrática, estão distanciados da realidade das escolas e não conseguem trazer para o processo formativo docente as contradições presentes na sua prática social.

Por sua vez, com relação à formação continuada, o que Pimenta (2007, p. 17) nos apresenta é que “[...] a prática mais frequente tem sido a de realizar cursos de suplência e/ou atualização dos conteúdos de ensino”. Contudo, o que observamos é que esse perfil de cursos de formação continuada pouco se relaciona com a modificação das práticas docentes e, consequentemente, pouco se associa a modificações estruturais da educação, isso porque trazem uma valorização para a teoria de conhecimentos das áreas específicas, mas não trazem a prática docente em seus contextos e não problematizam a realidade social escolar em que os professores e as professoras se inserem.

A formação docente engloba, para além da formação inicial e continuada em Instituições de Educação Superior, ainda duas perspectivas apontadas por Pimenta (2007): a autoformação e a formação nas instituições escolares em que atuam. Por autoformação, compreendemos a reflexão constante e a ressignificação permanente dos saberes, a partir de um processo dialético com as experiências no contexto escolar, de modo que incorporamos vivências no campo epistemológico de saberes construídos e em processo de produção por pares em estado de pesquisa e de prática constante, quer dizer, é tomarmos consciência que esse processo nos pertence e vamos persegui-lo com afinco para que seja parte inerente a nossa formação. Já a formação nas instituições escolares em que atuamos se dá por meio da busca coletiva por melhorias no fazer pedagógico da instituição, ao passo que, diante de uma problemática da própria instituição, se fazem reflexões e se propõem modificações teórico-práticas para suprir a demanda social escolar.

Ao que nos parece uma grande problemática, tanto nos cursos de formação docente como na autoformação e na formação das instituições escolares, está na compreensão da teoria e da prática, um entendimento dissociativo que inviabiliza uma compreensão social da prática docente. A esse respeito, Candau e Lelis (1999), no texto A relação teoria-prática na formação de educadores, conduzem-nos ao conhecimento de três grandes formas de visualizar a relação entre teoria e prática na formação docente, são elas: as visões dicotômicas (dissociativa e associativa) e a visão de unidade. Contudo, é preciso analisarmos a relação teoria-prática tendo em mente que ela se manifesta a partir das contradições vivenciadas nas sociedades capitalistas, em que há uma recorrente separação entre o trabalho intelectual, compreendido como teórico, e o trabalho manual, compreendido como prático. É à luz dessa contradição que as visões dicotômicas (dissociativa e associativa) e de unidade podem ser compreendidas.

A visão dicotômica dissociativa diz respeito não simplesmente à separação entre teoria e prática como elementos isolados ou opostos, mas à valorização de uma em detrimento da outra. Assim, em alguns momentos, temos a teoria como fundamento formativo, expressando que, para ser um bom docente, basta ter conhecimentos específicos e teóricos, os práticos são secundários. Em outros momentos, temos a dimensão prática como a baliza da formação docente, trazendo para os cursos um esvaziamento teórico ao criar um entendimento que a prática é suficiente para fazer com que os (as) docentes compreendam o fazer da educação escolar tendo a visão da profissão docente como arte. Quando há essas duas perspectivas no processo formativo docente, por um lado, privilegiando a teoria, e, por outro, a prática, o que ocorre é uma justaposição entre as disciplinas tidas como teóricas e as tidas como práticas, mas sem haver uma comunicação entre elas, sem existir um elo formativo.

Na visão dicotômica associativa, a teoria e a prática permanecem como elementos separados, mas agora deixam de ser opostos. O que se compreende é que a teoria, por ser um exercício intelectual, é maior que a prática, exercício manual; assim, o princípio é que a prática seja a aplicação da teoria. Nisso, tira-se da prática o caráter inovador ou problematizador, pois dela não decorrem situações novas. O que se impõe é a aplicação das teorias de forma fiel, e a teoria que se encarrega de ver situações novas e de observar as necessidades reais. No que tange à formação docente, essa visão considera a prática educativa como aplicação das teorias pedagógicas. As disciplinas comunicam-se em um sentido de que as teóricas fornecem os fundamentos para as práticas; assim, na educação, busca-se minimizar as interferências subjetivas e dotá-la como uma organização racional.

Já a visão de unidade se fundamenta na vinculação dialética entre teoria e prática. Não há separação entre os dois elementos, mesmo que cada um mantenha sua especificidade a partir de um movimento de autonomia e de dependência mútua. Dessa forma, a relação teoria-prática comporta algumas premissas, de maneira geral: é a prática quem fornece objetos de conhecimento e que conduz problemáticas à teoria; é na prática que a teoria se concretiza, compreendendo-se como antecipação ideal de uma intervenção na realidade que ainda não existiu; a prática é compreendida como atividade objetiva e transformadora da realidade; e, por fim, além de ser atividade objetiva, é subjetiva, e, desenvolvida pela consciência. Temos, assim, uma retroalimentação indissociável entre a teoria e a prática.

Com relação à formação docente, a visão de unidade entre teoria e prática faz-se importante por propor uma ressignificação ao entendimento de educação e à atuação docente. A educação é pensada a partir das demandas da realidade, das necessidades concretas do contexto educacional, que também é social, e por uma busca de fundamentos para uma intervenção transformadora. Em relação à atuação docente, a visão de unidade propõe que a ação dos (as) docentes seja resposta a essas demandas da realidade socioeducacional. Assim, a formação docente, nessa perspectiva, deve voltar-se à consciência crítica da educação e da atuação dela na sociedade, implicando uma incessante busca por transformações educacionais em respostas à realidade social.

Nosso ponto de partida para compreendermos a educação como prática social é o entendimento de que a própria educação é um processo de humanização. Seu propósito é fazer com que os indivíduos, além de estarem no mundo, também estejam com o mundo, para fazermos referência explícita a Freire (2015) no livro Educação como prática de liberdade, bem como trazermos para o debate Arroyo (2009), Facci (2004) e Pimenta (2007). Fincados em uma perspectiva ativa e transformadora, visualizamos, na educação, a possibilidade de construir o entendimento de que a sociedade não é um dado imutável, que o percurso histórico-social é passível de modificações a partir do momento em que tomamos consciência de que somos responsáveis pela sociedade e que passamos a agir criticamente nela.

Ao aceitarmos a imobilidade, que as sociedades são como deveriam ser e serão como deverão ser, negamos nossa humanidade, nosso poder de refletir e de agir, nossa possibilidade de transformar. Esse entendimento se faz necessário para a construção do percurso que estamos gestando. Compreendemos que a educação se realiza nas mais diversas instituições sociais e que a educação escolar, processo intencional e sistemático, ocorre em instituições específicas, ambas com demandas próprias para alcançar o processo de humanização. É acerca dessa educação que estamos nos referindo quando destacamos as formas relacionais da teoria e da prática, pois é a partir da articulação entre esses pontos que podemos transformar a educação escolar para humanizar os indivíduos, cumprir sua função de prática social e trazer a necessidade de rever a formação docente.

As formas relacionais entre teoria e prática vistas nos cursos de formação docente e no imaginário de profissionais da educação, que fazem parte da autoformação e da formação nas instituições escolares, afirmam em defesa da visão de unidade. Compreendemos que a teoria e a prática, respeitando suas particularidades, precisam estar em um movimento retroalimentar, uma servindo de embasamento para a outra.

Quando destacamos que o ponto de partida da educação está na sua função social, ou pelo menos deveria estar, quando entendemos que a própria educação escolar precisa, especificamente, se fazer prática social, estamos argumentando que a sociedade precisa ser compreendida como fundamento teórico-prático. Nela, a partir das ações dos vários indivíduos e coletivos que a compõem, são produzidos conhecimentos e saberes que estão a nossa disposição, mas que, muitas vezes, não são praticados nas escolas, não adentram no rol de aprendizagens sistematicamente proclamadas à educação escolar.

Ainda como prática social, a educação escolar precisa cumprir a função ressignificadora de si, de suas práticas para servir de espaço/tempo de construção de oportunidades para repensar a sociedade, para quebrar com as amarras sociais do imobilismo e para gestar a transformação social. Assim, precisamos contribuir com a mediação de saberes a serem construídos na vida concreta dos indivíduos, dos grupos e dos coletivos, dos movimentos sociais, igualmente como conhecimento escolar. A nosso ver, esse posicionamento se torna viável quando praticamos a visão de unidade entre teoria e prática na formação docente e, desse modo, podermos pensar em uma Educação Antirracista.

Aproximações teórico-práticas entre formação docente e Educação Antirracista

Finalizamos nossa breve fundamentação acerca do conhecimento de Educação Antirracista no primeiro tópico do trabalho, argumentando que essa forma de educação se faz necessária como prática social. Da mesma forma, no segundo tópico, finalizamos com o entendimento que a formação docente precisa ter como ponto de partida e como ponto de chegada à realidade social a atuação docente como prática social. Embora essa discussão tenha sido pensada e feita de maneira proposital, não estamos aqui abordando que esse seria o único olhar possível para discutir-se a necessidade da formação docente para o desenvolvimento da Educação Antirracista. Entretanto, por nosso compromisso com a realidade social brasileira e com o propósito de trazermos fundamentos de sua compreensão no contexto escolar para a transformação da educação, foi que o escolhemos, e, portanto, trouxemos a relação teoria-prática para contribuir com a discussão.

Partimos da compreensão de que a Educação Antirracista é uma demonstração da visão de unidade entre a teoria e a prática. No cotidiano, frente a uma sociedade racista, enfrentando situações que marginalizam a cultura e a histórica africana e afro-brasileira, os povos negros produzem saberes contra-hegemônicos que desvelam a realidade social, política, econômica e educacional construída no Brasil. Assim, nesse percurso emancipatório, há um processo de teorização da prática, em que esses saberes são sistematizados e estruturados no combate ao Racismo. Em contrapartida, essa teorização não nasce do nada, pelo contrário, nasce das problemáticas enfrentadas pelos negros e pelas negras na sociedade brasileira, enfim, nasce da materialidade da vida cotidiana que se expressa como resistência.

A Educação Antirracista traz em si a função social de transformar a sociedade brasileira e contribuir com essa transformação. Por ser fruto de atuação político-pedagógica do Movimento Negro como articulador, sistematizador e difusor de saberes construídos pelos (as) afrodescendentes brasileiros(as), a Educação Antirracista transpira ressignificação do conhecimento escolar e das posturas docentes. Para que essa ressignificação seja possível, faz-se necessário revermos a formação de professores e de professoras, inicial e continuada, em autoformação ou em instituições educativas, mas, antes de tudo, é preciso vermos que a Educação Antirracista nasce da realidade brasileira e, por isso, se faz necessária em toda a sociedade, em todo o sistema educacional.

No entanto, como pensar a formação docente na perspectiva da Educação Antirracista? Para respondermos a esse questionamento, inicialmente, tratamos da formação inicial e continuada em cursos superiores e de atualização pedagógica, a partir, sobretudo, dos documentos oficiais. Depois, dedicamo-nos a versar sobre a autoformação e a formação na instituição escolar que o professor ou a professora trabalha. Em ambas as discussões, não deixaremos de lado a relação entre a teoria e a prática que está como pano de fundo de nossa construção nos servindo de guia e de análise constante.

Após 2003, com a promulgação da Lei Nº 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e a Cultura Africana e Afro-Brasileira nas escolas de Educação Básica públicas e privadas, alguns instrumentos normativos foram publicados com o objetivo de regular a Educação para as Relações Étnico-Raciais. Dentre eles, destacamos a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno (CNE/CP), que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004a); o Parecer Nº 003, de 10 de março de 2004, do CNE/CP, que regulamenta a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB) Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, pela Lei Nº 10.639/2003 (BRASIL, 2004b); a Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008, que reafirma a necessidade de abordar a história e a cultura africana e afro-brasileira nas escolas de Educação Básica, mas que também traz a necessidade de trabalhar a história e cultura indígena na perspectiva das relações étnico-raciais (BRASIL, 2008); o livro Orientações e Ações para Educação das Relações Étnico-Raciais, publicado pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2010); e o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, publicado pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2013), ano em que a Lei Nº 10.639/2003 completara dez anos de existência.

De maneira geral, todos esses documentos se ancoram na concepção de reformulação do conhecimento escolar a partir da ressignificação dos saberes docentes. Na contramão de trazer os saberes afrodescendentes como substituição dos saberes já praticados nas escolas, o que implicaria uma nova hegemonia, tais dispositivos legais sinalizam a necessidade de romper-se com a visão eurocêntrica do desenvolvimento brasileiro que apaga todas as contribuições negras e indígenas e que marginaliza e negativiza as expressões culturais que resistiram, trazendo a pluralidade étnico-cultural brasileira para dentro das escolas não somente no acesso à educação, mas que essa pluralidade se torne a base curricular trabalhada nas instituições. Para tanto, os próprios documentos que versam acerca da formação docente alegam a necessidade de que as Instituições de Educação Superior revejam seus currículos, suas práticas e suas concepções para formarem professores e professoras capazes de levar os saberes construídos na luta do Movimento Negro ao encontro da classe discente negra ou não-negra, de modo que as práticas docentes se tornem antirracistas.

Para as Instituições de Educação Superior, o documento Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais destaca seis necessidades formativas. Para o presente trabalho, interessa-nos uma: “[...] capacitar os (as) profissionais da educação para, em seu fazer pedagógico, construir novas relações étnico-raciais; reconhecer e alterar atitudes racistas em qualquer veículo didático-pedagógico; lidar positivamente com a diversidade étnico-racial” (BRASIL, 2010, p. 124). Nesse sentido, essas Instituições necessitam se aproximar dos saberes contra-hegemônicos produzidos na materialidade da vivência em sociedade.

Quando nos referimos à necessidade de trazer os saberes do Movimento Negro Brasileiro como embasamento teórico-prático para a Educação Antirracista, não estamos fincados unicamente em estudiosos (as) da temática, tais como Gomes (2010, 2017), Munanga (2020), Pereira (2011) e vários outros(as), mas também trazemos a visão dos documentos oficiais nos quais a valorização dada ao Movimento Negro está explícita e implícita. A desconstrução do posicionamento eurocêntrico presente nos currículos escolares não se faz sem fundamentação, não se faz sem diálogos de conhecimentos.

Complementar a esse entendimento, a construção de uma Educação Antirracista necessita ter como base uma formação docente que vá ao encontro da teorização da realidade brasileira de forma a categorizar o Racismo e o Mito da Democracia Racial, que traga esses conceitos que se tornam atuações por mediarem as relações sociais étnico-raciais a partir de novas práticas, de outras vivências e da realidade do povo negro que sofre as sanções impostas por essas categorias. Isso nos leva a outras perspectivas com relação à formação docente, à autoformação e à formação nas instituições escolares.

De acordo com Gomes (2017), embora os saberes produzidos pelas comunidades negras e sistematizados pelo Movimento Negro sejam diferentes dos conhecimentos científicos, não podemos compreendê-los como saberes menores ou irrelevantes. A pertinência desses saberes é real na medida em que vêm da materialidade das vivências em sociedade. Assim, tanto a autoformação docente como a formação em instituições, de modo a possibilitar a construção da Educação Antirracista, vêm da capacidade de inquietude inerente à atuação educacional, da compreensão de que a realidade dos alunos e das alunas não pode ser abarcada pelo conhecimento científico, da mesma forma que a realidade dos professores e das professoras também não pode.

Os documentos oficiais chamam a responsabilidade das Instituições para que, revendo os currículos dos cursos de formação docente, possam capacitar os (as) profissionais de educação para o enfrentamento do Racismo e para a desconstrução da visão eurocêntrica preconceituosa em relação à história e à cultura africana e afro-brasileira. Todavia, para além dessa responsabilidade dos cursos de formação inicial e continuada, alicerçados na compreensão de Freire (2015) de que a educação não é um dado estático e que traz como característica inerente a transformação de si e a emancipação humana, temos o entendimento de que professores e professoras precisam buscar conhecimentos que expliquem as vivências dos alunos e das alunas. Da mesma forma, as instituições escolares precisam oportunizar momentos formativos condizentes com as necessidades locais.

Percebemos que os documentos oficiais valorizam os processos formativos que estão além das Instituições de Educação Superior, chamando a responsabilidade também dos sistemas como as Secretarias de Educação dos Municípios e dos Estados, de modo que proporcionem a formação docente a partir das realidades locais, com base nas demandas próprias, valorizando a pluralidade étnico-racial (BRASIL, 2010, 2013). Por essa compreensão, a autoformação e a formação nas instituições escolares levam em consideração as necessidades locais, as demandas específicas observadas para que o fazer docente seja condizente com o perfil transformador da educação escolar antirracista. Entretanto, a partir de quais conhecimentos essas formações podem ser realizadas? A partir dos conhecimentos próprios das populações negras, os saberes sistematizados pelo Movimento Negro, de modo que, inseridos na discussão acerca da autoformação e da formação nas instituições escolares, possam primar pela necessidade de trazer a relação entre teoria e prática em uma perspectiva de unidade.

Não temos como tirar a unicidade entre teoria e prática quando nos referimos aos saberes produzidos, sistematizados e propagados pelo Movimento Negro. Precisamos ter clareza que essa unicidade também esteja inserida nas práticas educativas e nas formações docentes. Em se tratando de Educação Antirracista, ela nasce dessa unicidade, da materialidade teorizada e da teorização alimentada pelas vivências e pelas realidades negras compreendidas como tal no fazer pedagógico das instituições escolares. A temática da história e da cultura africana e afro-brasileira não se insere na perspectiva das relações étnico-raciais como conhecimentos agregados, mas como saberes de confronto frutos de lutas, e nas escolas ainda transpiram lutas e transparece o combate para a ressignificação dos conhecimentos escolares.

A responsabilidade de trabalhar a Educação Antirracista não cabe somente a professores e professoras de Arte, Literatura e História (BRASIL, 2004b, 2010, 2013), mas precisa estar evidente na prática de todos os entes pedagógicos. Por essa questão, a busca por autoformação e a oferta de formação pelas instituições escolares não se restringem a profissionais específicos, da mesma forma que a reformulação curricular dos cursos de formação inicial e continuada ofertados pelas Instituições de Educação Superior não está somente para os cursos das áreas de Letras, Arte, História e Pedagogia. O propósito da Educação Antirracista é rever as práticas e as compreensões do processo educacional de modo amplo, e não de maneira segmentada em disciplinas.

Inspirados no entendimento de Freire (2019a, p. 102, grifos do autor) de que “[...] a educação se re-faz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo [...]”, entendemos que a formação docente precisa estar sendo, precisa se fazer contínua em um entendimento dialético, em um entendimento de unidade, em que teoriza a realidade fundamentando as ações docentes ao mesmo tempo em que é, pela realidade social, questionada em seus propósitos. Assim, comprometendo-se com a unicidade entre teoria e prática, reconhecendo a pertinência da atuação do Movimento Negro para a ressignificação da educação e da visão social brasileira, a formação dos professores e das professoras precisa se fazer contínua para que possamos transformar a educação em Educação Antirracista. Desse modo, podemos compreender que a prática social da educação é de gestar a transformação, de si e da sociedade, é de oportunizar que a pluralidade, se fazendo presente nas escolas, leve os alunos e as alunas a se reconhecerem nas suas especificidades, valorizem suas características étnicas e problematizem suas realidades.

Considerações finais

Diante da construção exposta, destacamos o imperativo da formação docente nas mais diversas formas para o desenvolvimento da Educação Antirracista como prática social. Para tanto, o trajeto aqui percorrido, em que trouxemos para a discussão as formas relacionais entre teoria e prática, se mostrou necessário para compreendermos que a atuação docente, em um movimento de busca por transformação para a emancipação, precisa estar em sintonia com a produção de saberes da materialidade das vivências da população negra para que possamos pensar em Educação Antirracista em um movimento contra-hegemônico de desconstrução do conhecimento escolar. Ainda, o trajeto apresentado não é o único para entendermos a Educação Antirracista como prática social, porém foi o que nos serviu para respondermos à problemática levantada para este trabalho.

A necessidade da Educação Antirracista mostra-se não como um elemento pensado pelas políticas públicas ou oriundo da própria educação escolar, mas vem da realidade social brasileira. O enfrentamento do Racismo e do Mito da Democracia Racial e de suas ressonâncias que marginalizam as populações negras e negam suas culturas e histórias é base para a Educação Antirracista, de maneira que, buscando uma ressignificação da educação escolar, em uma proposta valorativa das relações étnico-raciais, se propõe a ir além, a servir de elemento para a transformação das relações sociais. Nesse sentido, o corpo docente das escolas precisa ser capacitado para essa demanda a partir da formação inicial e continuada, da autoformação e da formação em instituições, para que a Educação Antirracista seja compreendida e se torne realidade nos currículos e nas rotinas escolares.

Pensando o processo formativo docente, tivemos o entendimento de que, além dos cursos de formação inicial e continuada ofertados pelas Instituições de Educação Superior, temos, também, a autoformação e a formação nas instituições escolares que partem das demandas reflexivas sobre a realidade local e as necessidades de perfil de educação que se propõem a desenvolver nas escolas. Contudo, os processos formativos, para terem eficácia, precisam se tornar expressão da unidade entre teoria e prática. Eles precisam declarar que é a realidade e a prática que fornecem problemáticas para que as teorias busquem soluções ou contribuições, ao passo que, dessa forma, as teorias não partem de ideias abstratas, mas de demandas reais colocadas à educação como o enfrentamento do Racismo e do Mito da Democracia Racial.

Assim, para trazermos a dimensão de prática social para a Educação Antirracista, dimensão que lhe é inerente, precisamos ter professores e professoras comprometidos (as) com a transformação, com a emancipação da educação e das populações negras. A Educação Antirracista é expressão da unidade entre teoria e prática, mas essa expressão precisa se fazer presente nas formações docentes, sendo, assim, possível ressignificar o currículo praticado pelas instituições escolares de forma que os saberes contra-hegemônicos, frutos da materialidade das vivências das populações negras e que são sistematizados e propagados pelo Movimento Negro Brasileiro, sirvam de embasamento teórico-prático para revermos os conhecimentos escolares, alcançando as demandas expressas pelas políticas públicas alinhadas à Lei Nº 10.639/2003.

Nesse sentido, compreendemos que alcançamos o objetivo que serviu de base para o presente artigo, que foi discutir os processos de formação docente para que seja possível desenvolver uma Educação Antirracista. Contudo, gostaríamos de declarar duas questões. A primeira é que nosso trabalho é uma pontual contribuição para entendermos a formação docente na perspectiva da Educação Antirracista, não inviabilizando outras contribuições, pelo contrário, nosso desejo é de conhecer mais formas de pensar o mesmo problema. O segundo é que aqui fazemos referência aos saberes produzidos pelas populações negras, mas a postura contra-hegemônica é realidade a todos os movimentos sociais que produzem saberes e que precisam estar na ressignificação dos conteúdos escolares e, consequentemente, das aprendizagens.

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Recebido: 09 de Agosto de 2021; Revisado: 28 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Março de 2022; Publicado: 14 de Março de 2022

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