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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19381.058 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Análise da categoria conteúdo e forma da obra Azur & Asmar: reflexões sobre as relações étnico-raciais dentro e fora da escola*

Analysis of the category content and form of Azur & Asmar workpiece: reflections on ethnic-racial relations in and out of school

Análisis de la categoría de contenido y forma de la obra Azur e Asmar: reflexiones sobre las relaciones étnico-raciales dentro y fuera de la escuela

Suelen Cristina dos Santos Klem** 
http://orcid.org/0000-0002-0971-2704

Sandra Aparecida Pires Franco*** 
http://orcid.org/0000-0002-7205-744X

**Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPEdu) da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: <suelen.cristina@uel.br>.

***Doutora em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) de Marília, São Paulo. Professora do Departamento de Educação da UEL, na área de Didática, e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPEdu) da UEL. Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: <sandrafranco@uel.br>.


Resumo:

Este estudo teve por objeto a obra literária Azur & Asmar, escrita e ilustrada por Michel Ocelot, edição de 2007, e o filme As aventuras de Azur e Asmar, dirigido e animado pelo mesmo autor, em 2006. O objetivo da pesquisa foi o de perceber a relação da categoria de conteúdo e forma presente nessas obras como possibilidade de ampliação da competência leitora e visão de mundo acerca da diversidade humana. Para o desenvolvimento do trabalho, utilizou-se a metodologia de pesquisa bibliográfica com abordagem crítico-dialética. A análise permitiu afirmar que a leitura e a compreensão dos elementos do conteúdo e a forma das obras são indispensáveis para a compreensão global dos sentidos textuais e um importante processo educativo capaz de promover reflexão e equidade racial.

Palavras-chave: Leitura literária; Conteúdo e forma; Educação étnico-racial

Abstract:

This study had as its objects the literary work Azur & Asmar, written and illustrated by Michel Ocelot, 2007 edition, and the film Azur & Asmar: The Prince’s Quest, directed and animated by the same author, in 2006. The objective of the research was to understand the relationship of the category of content and form present in the works as possibility for expanding the reader’s competence and worldview about human diversity. For the development of the work, the bibliographic research methodology with a critical-dialectical approach was used. The analysis allowed to state that reading and understanding the elements of the content and form of the works are essential for the global comprehension of the textual meanings and an important educational process capable of promoting reflection and racial equality.

Keywords: Literary reading; Content and form; Ethnic-racial education

Resumen:

Este estudio tuvo como objeto la obra literaria Azur y Asmar, escrita e ilustrada por Michel Ocelot, edición 2007 y la película, Las aventuras de Azur y Asmar, dirigida y animada por el mismo autor, en 2006. El objetivo de la investigación fue el de percibir la relación de la categoría de contenido y la forma presente en las obras como posibilidade de ampliación de la competencia lectora y visión del mundo sobre la diversidad humana. Para el desarrollo del trabajo se utilizó la metodología de investigación bibliográfica con enfoque crítico-dialéctico. El análisis permitió afirmar que la lectura y la comprensión de los elementos del contenido y la forma de las obras son indispensables para la comprensión global de los sentidos textuales y un importante proceso educativo capaz de promover la reflexión y la igualdad racial.

Palabras clave: Lectura literaria; Contenido y forma; Educación étnico-racial

Introdução

Este trabalho parte da análise da categoria dialética, conteúdo e forma, do filme As aventuras de Azur e Asmar (2006) e do livro Azur & Asmar (OCELOT, 2007). Ambos são os nossos objetos de estudo. Buscamos, com este estudo, perceber como a relação entre a categoria conteúdo e forma, presente nas obras, possibilita compreender melhor os significados durante a leitura, levando a refletir sobre a diversidade de valores, de crenças, de hábitos, de etnias e a igualdade entre os seres humanos expressos em imagens e palavras.

O filme As aventuras de Azur e Asmar é uma obra de animação dirigida e animada pelo autor francês Michel Ocelot, lançado em 2006. Como o filme foi um sucesso, no ano seguinte, em 2007, o mesmo autor produziu e ilustrou o livro com o mesmo enredo intitulado Azur & Asmar. A narrativa conta a história de dois protagonistas que cresceram juntos, criados pela árabe Jenane. O enredo explora o tema da tolerância, da diversidade cultural e étnica, da solidariedade e da superação de dificuldades. Azur é um menino branco, loiro, que tem olhos azuis e filho de um nobre. Asmar é um menino negro, que possui olhos e cabelos pretos e é filho biológico de Jenane, a ama de leite que cria os dois meninos.

É importante ressaltarmos que o autor Michel Ocelot é natural da França, mas viveu por um tempo na África Ocidental, portanto é conhecedor das culturas francesas e africanas retratadas nas obras e representadas pelos personagens principais: Azur (francês) e Asmar (africano). Ocelot dirigiu também o filme de desenho animado Kiriku e a Feiticeira (1998), uma obra de muita repercussão e que valoriza lendas tribais e a temática da cultura africana por meio da arte.

Este trabalho pauta-se na análise da categoria dialética de conteúdo e forma, a qual investiga a questão da leitura e a visão de mundo sobre a diversidade humana. Diante da análise da materialidade histórica e dialética das obras, vislumbramos a possibilidade de compreender a totalidade do fenômeno refletido, perceber as práticas humanas e sociais, como um investigador ativo, analisando as diversas formas de desenvolvimento para descobrir seus nexos internos por meio do pensamento teórico e científico.

A escolha do material teórico pautou-se pela aguçada concepção de homem do materialismo histórico-dialético, o qual percebe o homem como um ser social e histórico, e, também, pela importante conotação de riqueza cultural que as produções humanas (livros, filmes, animações gráficas, esculturas, teatro, músicas, dentre outros objetos culturais) representam para a corrente teórica marxista, pois é fruto da atividade humana, esforço laboral e intelectual desenvolvidos pela humanidade. O homem é matéria da natureza e, diante de suas necessidades, busca apropriar e objetivar os conhecimentos já produzidos e acumulados pelas gerações anteriores e, assim, busca transformar a si e ao meio dialeticamente, superar sua realidade e romper com a própria alienação (MARX, 1978).

Com a apropriação e o contato com a cultura, acontece a objetivação da atividade humana e, por meio das relações sociais, o indivíduo humaniza-se. Negar o contato com a cultura é o mesmo que negar a existência humana. Compreender a prática social do ser humaniza o homem e o torna parte integrante da sociedade a qual pertence. Portanto, com este estudo, intentamos contribuir para as práticas pedagógicas com leitura capaz de emancipar o sujeito leitor.

Considerando que, no contexto atual, determinadas relações étnico-raciais se encontram em processo histórico de constante desgaste e acarretam efeitos danosos ao desenvolvimento da humanidade de sujeitos como professores, alunos, agentes educacionais e gestores, os quais compõem a sociedade e colaboram para a sua melhoria. A visibilidade da estética africana no conteúdo e na forma de livros e filmes chama-nos atenção devido ao seu potencial para o desenvolvimento humano e intelectual. Eles ampliam não somente o debate sobre a diversidade cultural da sociedade brasileira, mas também abrem caminho para a reflexão dessa temática em contexto educacional.

Na busca por compreendermos a dialética entre conteúdo e forma contidos nas obras, com o intuito de ampliar o contato com a cultura e estética africana para os seus leitores como avanço aos processos educativos capaz de promover a equidade racial, procedemos com a análise das obras e levantamos os seguintes questionamentos: Quais são os conteúdos e as formas presentes nas obras (livro e filme dos personagens Azur e Asmar)? A compreensão da relação dialética entre a categoria conteúdo e forma, presente nessas obras, podem ampliar a competência leitora e a visão de mundo sobre a diversidade humana? De que maneira essas obras (livro e filme) podem colaborar juntamente às leis e às políticas educacionais para promover equidade racial e melhorar as relações étnico-raciais dentro e fora da escola? Qual o papel da Arte e da Literatura para a humanização (formação humana) do sujeito leitor?

Diante desses questionamentos, formulamos o objetivo geral desta pesquisa: perceber a relação entre categoria de conteúdo e forma presente na obra literária Azur & Asmar, edição de 2007, e no filme As aventuras de Azur e Asmar, de 2006, , de Michel Ocelot, como possibilidade de ampliação da competência leitora e a compreensão sobre a diversidade humana. Delineamos dois objetivos específicos (abordados nos dois tópicos deste artigo), a saber: 1) Analisar a representação da diversidade cultural e étnico-racial (personagem negro) no enredo das obras, em busca de perceber como a relação entre a categoria conteúdo e forma, presente nas obras, possibilita compreender melhor os significados durante a leitura; e, posteriormente, 2) Perceber como uma visão de mundo diversificada pode contribuir na formação leitora, levando o leitor a refletir sobre a ampla diversidade do gênero humano, contribuindo, por conseguinte, para a sua humanização.

Para o desenvolvimento do trabalho, utilizamos a metodologia de pesquisa bibliográfica com abordagem crítico-dialética. A investigação desenvolveu-se com aproximação aos pressupostos teóricos do Materialismo Histórico-Dialético, da Teoria Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica, por entendermos que essas vertentes teóricas exercem grande contribuição ao viés de análise desta pesquisa, pois concebe o homem como um sujeito histórico e social, desenvolvido para apropriar-se da cultura acumulada e objetivá-la em suas relações sociais (GAMBOA, 1998; MARX, 2003).

Para as contribuições dos dados produzidos sobre o estudo teórico da área de Literatura Infantil, contamos com Candido (2006) e Coelho (2000); sobre a abordagem crítico-dialética, baseamo-nos em Gamboa (1998) e Marx (2003); e sobre o campo da Teoria Histórico-cultural, em Vygotsky (2005), que concebe a linguagem como instrumento de mediação. Por fim, trazemos as contribuições de Bakhtin (1992) em seus estudos sobre o processo de enunciação.

A escolha da obra Azur & Asmar justifica-se por ser um livro selecionado pelo edital do Programa Nacional Biblioteca Escola (PNBE) de 2010 (BRASIL, 2009) – um programa do Governo Federal que, quando vigente (1997-2014), distribuiu milhares de obras literárias com critérios de qualidade e diversidade, objetivando o acesso à leitura e à cultura – e, ainda, por ser uma obra que apresenta personagens negros como protagonistas e, portanto, capaz de colaborar com as determinações da Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003), e valorizar o contato estético com a cultura africana no contexto escolar brasileiro. A escolha do filme decorre da riqueza da linguagem visual, imagética, sonora e dos significados decorrentes dessa forma categórica visual, considerando a recepção do público infantil bem como a contemplação de personagens negros no enredo.

No primeiro tópico desta seção, procedemos à caracterização das obras, à descrição do conteúdo e das formas presentes nos elementos da narrativa (personagens, lugar, tempo, enredo) norteados pela análise teórica da categoria dialética. Percebermos a relação entre a categoria conteúdo e forma presente nas obras é importante, pois ela amplia a compreensão da representação da diversidade cultural e étnico-racial durante a leitura. No segundo tópico, discutimos como a prática da leitura e a mediação docente consciente, intencional e planejada podem colaborar para a percepção de uma visão de mundo diversificada, convidando o sujeito leitor a refletir sobre a ampla diversidade humana e a tomada de consciência individual e social. Nas considerações finais, buscamos evidenciar que, pelo caráter artístico e humanístico da literatura e do filme de animação, é possível desempenhar um importante papel na formação humana e nas relações sociais, haja vista que a estética da cultura africana adequadamente inserida na Literatura Infantil e adequadamente representada nos filmes e desenhos promove uma visão de igualdade racial, auxilia no combate ao racismo e favorece a aceitação identitária.

A importância da categoria conteúdo e forma

Consideramos que as categorias dialéticas são relevantes para o contexto da educação, sobretudo na prática docente com a mediação da leitura, uma vez que permitem uma leitura da realidade mais completa e a compreensão das múltiplas determinações de significados que a obra tem. As principais categorias marxistas de compreensão conceitual da realidade investigada são todo-partes; abstrato-concreto; fenômeno-essência; causa-efeito; análise-síntese; indução-dedução, explicação-compreensão, lógico-histórico, conteúdo-forma, e outras mais (GAMBOA, 1998). Contudo, para atendermos ao objetivo desta pesquisa, usaremos a categoria conteúdo e forma como ferramenta de análise do filme As aventuras de Azur e Asmar e do livro Azur & Asmar como possibilidade de ampliação da competência leitora e compreender melhor a diversidade humana explicitada nos elementos da narrativa.

Toda obra literária ou cinematográfica é rica em significados, conteúdos das objetivações humanas, são produtos do pensamento e que expressam sua visão de mundo. Nessa perspectiva, o homem não se separa do mundo, mas une-se a ele, e, assim, reflete os processos da natureza e da sociedade representados em sua realidade.“Toda obra literária, artística ou científica é a expressão de uma visão de mundo, um fenômeno de consciência coletiva que alcança um determinado grau de clareza conceptual, sensível ou prática na consciência de um pensador, artista ou cientista” (GAMBOA, 1998, p. 25).

Diante da perspectiva materialista dialética, percebemos a importância de trabalhar as obras apresentadas sob a categoria conteúdo e forma, pois tais elementos presentes nas obras correlacionam-se com a totalidade. Precisam ser analisadas juntas porque representam uma unidade inseparável, a unidade do diverso. Apropriar-se da cultura acumulada e objetivá-la em suas relações sociais é a base para a humanização do homem, considerando sua essência histórica (MARX, 2003). Trabalhar atividades com leitura literária é uma tentativa de enriquecer o leitor por meio das múltiplas determinações que uma obra possui. Possibilitar leituras de obras que retratam a diversidade humana e cultural significa convidar o leitor a humanizar-se.

Georg Lukács foi um grande estudioso da teoria materialista histórica e dialética, em busca de compreender a relação entre a realidade social e a arte. Para Lukács (1970), as obras de arte são reflexo da realidade objetiva, das relações recíprocas e do intercâmbio social com a natureza, sendo um importante elemento de mediação, capaz de provocar crescimento nos indivíduos e, portanto, indispensável aos sujeitos em formação. Ainda para Lukács (1970), a arte é um objeto estético que reflete de modo específico a realidade objetiva e precisa ser investigada. Cada obra artística, apesar de refletir a subjetividade do criador, “não são mundos entre si separados”, mas, ao ser analisada, reflete uma realidade em comum, supera a mera particularidade, mas pode “[...] ampliar seus horizontes, ao colocá-l[a] em relações mais estreitas e ricas com a realidade” (LUKÁCS, 1970, p. 240-241).

Corroborando com o autor, Duarte e Assumpção (2012) afirmam que a representação estética da forma artística não se restringe em imitar um conteúdo da realidade; contudo, a obra de arte “[...] é uma forma de representação dos aspectos mais importantes de uma determinada realidade” (DUARTE; ASSUMPÇÃO, 2012, p. 210). Para compreendermos as representações das relações étnico-raciais nas obras e em qual forma e conteúdos foram escolhidas, é que caminhamos para o entendimento de uma determinada realidade expressa nas obras (filme e livro), por meio da leitura e da análise.

O trabalho com formação leitora, mediado pelo professor, pode valer-se dessa análise para ampliar a visão de mundo e compreender melhor os significados e as significações (das palavras e das imagens). Entendemos, aqui, a forma como a expressão artística por meio do literário, da linguagem oral ou escrita, pela forma diversificada da estética e da poética e do encaminhamento dado à leitura para criar a necessidade de apropriação da cultura e das relações humanas.

A arte é uma forma de expressão do campo literário e a possível mediação com leitura, denominada “práxis”, amplia a capacidade de o leitor compreender de maneira abrangente o conteúdo em uma determinada forma artística. Essa práxis com a leitura literária favorece a compreensão leitora, sobretudo com alunos da Educação Básica. Sobre o conteúdo, entendemos como sendo os valores estéticos, culturais, artísticos e humanos, apresentados nas obras, o saber erudito, conceitos, ideias, fatos, conhecimento e aprendizagens diante das leituras. O conteúdo pertence à realidade imaterial, situa-se no campo das ideias, dos conceitos, dos conhecimentos, e, ainda, na consciência do autor e do artista. Portanto, forma e conteúdo, na perspectiva dialética é uma unidade e precisa ser compreendida na sua inter-relação (FRANCO; GIROTTO, 2017).

A forma é um elemento concreto, extrato da realidade. A forma busca, por meio da Arte e de expressões linguísticas variadas, expressar em concretude uma ideia, um pensamento, um sentimento, uma mensagem. A obra literária, os desenhos, os filmes e as animações, as músicas, os sons e as cores fazem parte do rol da forma. A forma é escolhida e trabalhada de acordo com o conteúdo que se pretende transmitir. Nesse caso, a escolha pela expressão da forma artística dos desenhos e das animações justifica-se por seu público leitor, predominantemente infantil.

Conforme Gamboa (1998), as categorias dialéticas marxistas permitem apresentar em forma de pensamento a realidade mais concreta, pois não separam o homem do mundo, mas permitem refletir acerca da sociedade e compreender o seu todo. Assim sendo, compreendemos que toda forma está ligada ao conteúdo, um depende do outro, e essa dependência não é equivalente. Percebermos a essência dos fenômenos é compreendermos como o conteúdo trabalhado e a forma são arquitetados na obra, a fim de alcançar um efeito de sentido ao leitor. Forma e conteúdo estão intimamente ligados na obra literária. Trabalhá-la de modo segmentado desconfigura o seu caráter emancipatório (FRANCO; GIROTTO, 2017).

Assim, sobre o conteúdo do enredo das obras, percebemos que Azur e Asmar foram criados como irmãos. O relacionamento dos dois é marcado por altos e baixos, momentos de companheirismo e conflito permeiam toda a narrativa. Quando eram pequenos, Jenane sempre os tratava como iguais, contava aos meninos a história da fada dos Djins, presa em uma gruta de luz à espera de um lindo príncipe que a resgataria. Separados na infância, os dois se reencontram quando adultos. Por causa das diferenças sociais e étnicas provocadas pela sociedade, os dois tornaram-se rivais e ambos partem em busca da fada. Diante dos inúmeros conflitos e diferenças, eles vão descobrindo como vencer o preconceito e a intolerância, ao mesmo tempo em que descobrem o valor da amizade e do respeito humano.

A escolha do gênero textual “Conto de fadas” como forma para narrar o conteúdo do enredo das obras, que é o mesmo tanto no filme quanto no livro, parece uma escolha acertada, visto que as impossibilidades do mundo real são rompidas no ambiente da narrativa fantástica. Os personagens principais, Azur e Asmar, que, na infância, são criados de forma igualitária pela babá Jenane, mãe de Asmar, vestem-se, comem e dormem da mesma forma. São separados quando ainda pequenos pelo pai de Azur, dado o temor do contato do filho com outras línguas e costumes da cultura árabe e africana de Asmar e Jenane.

O pai de Azur, um rico alcaide, quer que seu filho se eduque como um filho de um nobre. Para tanto, determina que seu filho não se vestirá igual ao filho da empregada, tampouco dormirá no mesmo quarto que ele, obrigando o próprio filho a morar e a estudar na casa do seu professor para que receba a educação de seu país de origem, requisito exigido pela classe social a qual pertence. Azur é, então, vestido com um “magnífico traje branco bordado de ouro” e “terá aula de dança, de espada, de equitação e de latim” (OCELOT, 2007, p. 10). Asmar, por sua vez, fica constrangido e com vergonha da sua humilde roupa.

Nesse início do enredo, vemos explicitado o conteúdo da diferenciação social expresso pela forma da qualidade das roupas e da educação diferenciada. O receio do pai em querer distinguir o seu filho por meio da educação e da aparência de roupas representa de forma ficcional um dado da realidade social, que são os mecanismos de aparência (roupas luxuosas) e habilidades culturais (línguas, dança, esporte) que representam o pertencimento a uma classe social com maior poder aquisitivo. Em oposição, vestir-se, comer e dormir da mesma forma que o filho da babá, compreender a língua árabe, língua ensinada por Jenane durante a contação de histórias e nas músicas de ninar, não parece ser aceitável aos objetivos da realeza. Podemos notar como o conteúdo da diferenciação social e cultural é trabalhado de formas bem evidentes por meio do conteúdo das posturas distintas entre Jenane e o pai de Azur (não há relato do seu nome), entre igualdade e diferença; e, na forma de aparência, entre as roupas luxuosas e simples. É um retrato de relações étnico-raciais que possui muita correspondência na realidade. Interessante notar que até mesmo os meninos, sendo eles ainda crianças, internalizam os conceitos que circulam no seu meio social.

O contexto das obras passa-se em Magreb, nome que se dá à região do Norte da África (os países que a constituem incluem: Marrocos, Tunísia e Argélia), terra natal de Asmar, enquanto Azur é natural de uma província da França. O conto demonstra a relação entre a cultura francesa e africana, destacando como a discriminação étnica separa as pessoas. Durante a narrativa, é demonstrado que as diferenças entre os povos revelam a grandeza da pluralidade cultural e como o respeito e a fraternidade promovem união e compreensão, apesar das diferenças. O cenário detalha a arte, a arquitetura, a gastronomia e os costumes do mundo árabe. O que une as duas culturas entre os dois meninos é o conto da fada e a realização do sonho de infância: encontrar a fada dos Djins. Isso ajuda a superarem as fronteiras da discriminação étnica, social e cultural.

Magreb é predominantemente habitada pelo povo árabe e pelos berberes que são povos do norte da África. Eles se estabeleceram ali antes do domínio árabe e instituíram o islamismo. No filme e no livro, as imagens da religião oficial Islamismo – os vitrais coloridos, as mesquitas com mosaicos, a arquitetura com a cúpula bizantina – são representadas também pela tapeçaria, pela culinária, pela astronomia, pela botânica, que são elementos culturais interessantes e demonstram como formas de representar o mundo.

Ao chegar em Magreb, Azur conhece o personagem Crapoux, o qual, assim como ele, também é francês. Crapoux o acompanha até o mercado local. É importante destacarmos que Azur sofre preconceito nessa região por ter os olhos azuis. Crapoux lhe explica que as pessoas dessa região são supersticiosas e acreditam que os seus olhos azuis trarão desgraça. Apesar de Azur saudar os pobres aleijados polidamente em árabe, como a sua babá lhe ensinara, eles fogem apavorados ao verem seus olhos e tentam lhes agredir com pedras.

Um menino o vê, sorri e vai em sua direção com os braços estendidos. Sua mãe se vira para ele, corre e, aos gritos, pega o menino. Pedras são lançadas em Azur. Toda família grita e foge, menos um velho que não pode se levantar. Ele geme de pavor. Azur se aproxima.

AZUR – Por quê, por quê ? Diga-me! Limadha’ antom jawf?

O VELHO, mostrando os olhos de Azur – laka ouyounon zarqa’.

AZUR – Eu sei, os olhos azuis! E então?...

O VELHO – ’anta mal oun, bika I ayn.

AZUR – Maldito?! O olho do mal?

O VELHO – al ouyoun azarqa’ tajlibou almasa’ib.

AZUR – Eu trago desgraça com meus olhos azuis?!

O VELHO –’idhhab, ’idhhab.

O velho lança insultos para ele. Azur se vai, arrasado. (OCELOT, 2007, p. 20).

Ocelot trabalhou o conteúdo do preconceito, da intolerância e da superstição de maneira sutil, com a imagem do europeu percebido como o destruidor e as reações humanas contra o que é diferente e desconhecido. O personagem Crapoux, mesmo sendo vítima da intolerância, pois, assim como Azur, precisa esconder seus olhos com o uso de óculos escuros para fugir do preconceito, também demonstra superstição e intolerância contra os povos daquela terra, mostra desprezo pelo outro de cultura diferente. As várias formas de figuras, de expressões, de palavras e de gestos (no filme de animação) para representar o conteúdo da intolerância e da discriminação são igualmente prejudiciais e trazem essa significação. São imagens que carregam uma riqueza de detalhes, sons, expressões de sofrimento, ódio e dor, que inspiraram o ilustrador para sensibilizar o leitor sobre a seriedade do conteúdo. Ao mesmo tempo, oportuniza ao leitor pensar em situações similares a esse conteúdo, fazendo-o refletir sobre as outras várias formas que o preconceito e a intolerância podem ser expressos em qualquer realidade social.

As falas em árabe também foram uma opção do autor, fato que compartilha um aspecto cultural importante: a língua. Tanto no livro quanto no filme, as falas não são totalmente traduzidas, episódio que causa estranhamento ao ouvinte ou leitor de outra língua, mas que proporciona uma forma de proporcionar o contato com a cultura árabe original.

Em Magreb, Azur e Crapoux passam por um magnífico palmeiral e as imagens ilustram isso e adentram a cidade. Vão para o mercado de especiarias, proporcionando outro contato cultural potencializado pelas imagens, sons e descrição detalhada. No livro, uma riqueza de cores e de formas preenchem suas páginas e com a descrição do espaço: “Enfim, Azur e Crapoux chegaram à cidade cheia de barulhos e de cheiros, que Azur pode provar, e transbordante de cores”. Com uma fala pessimista Crapoux demonstra os contrastes entre a cultura francesa e a local. No diálogo, Azur pergunta o que é uma palmeira e Crapoux responde: “É uma árvore daqui. É feia, como tudo o que é daqui. Pfff, eles não têm pinheiros”. E continua com suas diferenciações depreciativas, “Pff, eles não têm pistolas!...Pff, eles não têm cinza!... Pff, eles não têm sino!.. Pff, eles não têm flauta!...Pff, eles não têm cassoulet!... Descrevendo a ação dos personagens no mercado: “Eles ziguezaguearam pelas ruelas, aquelas dos tinteiros, dos cesteiros, dos alfaiates, dos oleiros”(OCELOT, 2007, p. 31) .

Novamente, percebemos o movimento que o autor encontrou para tratar sobre o conteúdo do preconceito, explicitado na fala e relacionado aos elementos da cultura local. O personagem Crapoux é preconceituoso com os vários itens da cultura árabe e africana, sem ao menos tentar conhecê-los, simplesmente dizendo que não gosta e que não é bom, por não ser francês.

Diferentemente do livro, no filme, existe um acréscimo da linguagem musical, demonstrado pelo som dos muezins, que são uma espécie de músicos que agitam pedaços de metal e chamam para o momento da prece. No filme, é possível percebermos a grande movimentação do mercado de especiarias que também é descrito no livro, só que em forma de texto descritivo. Na imagem do mercado de especiarias, temos também um panorama não só da cultura, mas também étnico, e percebemos, nela, a ampla representação de personagens negros no enredo. Um dos personagens protagonistas, Asmar, é um menino negro que, na infância, era filho da babá Jenane, mas que, por intolerância cultural, foi despedida, de maneira dura, por seu patrão, o pai de Azur. Jenane voltou para a sua terra, Magreb, e com o passar do tempo, tornou-se a viúva de um rico mercador de especiarias. Vemos, assim, a representação figurativa de Jenane e Asmar atrelada a riquezas.

Azur e Asmar é uma narrativa de um conto que não reforça estereótipos de padrões ocidentais, nem mesmo a rivalidade entre o bem e o mal, mas leva o leitor a refletir sobre o respeito ao outro ser humano e suas particularidades, buscando compreender, por meio da aventura, da imaginação e da ficção, a riqueza das pluralidades culturais descrita em palavras e imagens.

A representação do papel social do negro na Literatura e nas artes em geral é relevante. Constata-se que a Literatura Infantil nacional descrevia os personagens negros de maneira muito estereotipada, sem protagonismo, ocupando somente papéis de subalternidade. Isso é um reflexo sócio-histórico das raízes do preconceito racial da sociedade brasileira. Atualmente, a Literatura Infantil parece atentar-se aos enredos e às representações que valorizam a identidade negra, principalmente após a sanção da Lei Nº 10.639/2003. Essa Lei contribuiu para a inserção de livros de autoria nacional, que defendem a valorização da história e da cultura desse grupo étnico-racial que tanto colaborou para a formação cultural do nosso país.

A negação desse espaço de protagonismo negro na sociedade resiste até os dias atuais. Entretanto, hoje, a partir das lutas e das conquistas, conseguimos olhar para essas histórias de maneira crítica, tomando-as como forma de questionar as estruturas por meio das quais nos constituímos seres humanos. É importante que, desde criança, o aluno perceba as incoerências da sociedade em que está inserido, por meio da leitura e da interpretação crítica, da reflexão e do questionamento dessas obras. Assim, o professor tem um papel fundamental, pois, a partir de um olhar crítico da história, será capaz de construir o entendimento dos aspectos culturais das obras para além da escravidão.

No plano da forma, podemos perceber que as ilustrações são do tipo gráfica e computadorizada, muitos detalhes nas características das personagens, traços fenótipos e expressões faciais, vestimentas típicas carregadas de detalhes (principalmente as vestes reais) com imagens mostrando elementos da cultura francesa e africana. Os traços característicos da população negra são preservados, bem semelhantes ao fenótipo negro, e aparecem bem definidos e nítidos. Embora o enredo problematize tensões raciais e relações discriminatórias, é importante percebermos que o personagem branco, quando presente em outra cultura, sofreu processo de discriminação racial (por ser branco), demonstrando no conteúdo que o preconceito tem caráter universal e atinge todas as culturas. De maneira geral, as representações de personagens negros ou de outras etnias não aparecem descritas na obra de forma caricaturada e estereotipadas.

A obra Azur & Asmar não retrata especificamente no seu enredo a representação da diversidade que compõe a sociedade brasileira, pois apresenta a tensão cultural entre França e África, mas condiz com as muitas realidades encontradas no Brasil. Mesmo assim, elementos da cultura africana são amplamente explicitados, e a tematização dos enfrentamentos e dos conflitos étnicos é bem trabalhada durante o enredo, portanto uma obra com relevância para o trabalho com leitura literária em contexto escolar brasileiro.

Diante da pluralidade étnica da sociedade brasileira, a linguagem literária, por sua capacidade humanizadora, pode contribuir por meio das experiências ficcionais e levar à ressignificação das experiências relacionadas ao povo africano e aos seus descendentes. Ocelot, um ano após o sucesso do seu filme de animação As aventuras de Azur e Asmar (2006), produziu e lançou uma nova forma para trabalhar o mesmo conteúdo. Poderíamos pensar no porquê? Na contracapa do livro Azur & Asmar, o próprio autor explica:

Que emocionante! Ter um lindo livro para recontar a história que me tomava o coração e poder imobilizar imagens tão bem feitas! A velocidade do filme, a rápida aparição dos objetos, o destaque de um só elemento não permitiam imaginar com que cuidado, com que amor, foram elaborados os humildes tesouros no quarto de Azur e Asmar, cada flor dos campos e dos jardins de Jenane, os bordados de ouro, dos trajes suntuosos, as marchetarias de mármore e de pedras preciosas no palácio da Fada...Esses são alguns dos inúmeros detalhes invisíveis que as ilustrações deste livro revelam, deixando ainda mais evidente nossa busca pela beleza. (OCELOT, 2007, n.p.).

A arte busca sensibilizar e refletir o conteúdo da realidade objetiva, e, ao analisarmos algumas das formas (figuras, palavras, gestos, sons) presentes nas obras selecionadas, percebemos com mais profundidade o conteúdo da pluralidade cultural e étnica nas quais temas como o preconceito, intolerância, conflitos, superação e companheirismo também foram explicitados. O próprio autor percebe a importância de utilizar a forma da linguagem literária, pois a literatura, como uma forma artística, é uma importante ferramenta cultural de representação das relações humanas, possibilitando, a partir da leitura das imagens e das palavras, compreender o mundo e a si mesmo, e, ainda, poder refletir sobre o respeito às diferentes identidades, sem proselitismo ou uso utilitarista do conteúdo literário.

Até aqui, procuramos identificar os conteúdos e as formas presentes nas obras, com a descrição do enredo do livro, do filme e algumas ilustrações, em busca de compreendermos a relação dialética entre a categoria de conteúdo e de forma presente nessas obras como recursos artísticos para ampliar a competência leitora e a visão de mundo sobre a diversidade humana.

Leitura do conteúdo e da forma e a sua importância para a construção de relações étnico-raciais, formação cultural e humana

A literatura e os desenhos de animação, como um fenômeno artístico criativo que busca representar o mundo, as pessoas e a vida pela palavra, sons e imagens, expressam uma experiência humana. Para Lukács (1970), o leitor pode encontrar sentido, significado e representatividade na obra lida. O conteúdo e a forma do texto expressam também o movimento dialético do ensino-aprendizagem, por meio da mediação leitora (FRANCO; GIROTTO, 2017). Assim sendo, a literatura pode contribuir para ampliar a formação cultural e humana do sujeito leitor.

Segundo Manguel (1997), as obras literárias como desvendam o mundo nos humanizam, possibilitam liberdade e transformação às ideias e aos pensamentos do leitor. Ler para perceber-se no mundo que está inserido, no intuito de identificar-se, atribuir significados e sentidos às palavras e imagens, decifrá-los, conhecer a si e ao mundo, pertencimento (CUNHA; OLIVEIRA, 2013).

É por meio da Literatura e das Artes em geral que “[...] os homens têm a oportunidade de ampliar, transformar ou enriquecer sua própria experiência de vida” (COELHO, 2000, p. 28) em uma intensidade maior e em uma dimensão que supera o imaginário, o impossível; além de possibilitar ao leitor percorrer o campo do real e do maravilhoso. Candido (2006) destaca que a literatura tem uma função humanizadora, confirma a humanidade do homem na medida em que ao representar uma determinada realidade social e humana possibilita ao leitor compreender melhor a sua realidade. Trabalhar com obras que em seu conteúdo e forma promovam a reflexão de valores de igualdade racial é a base para a formação humana.

A Literatura Infantil tem um caráter peculiar porque se transforma em um ato de aprendizagem para as crianças. Aprendizagem das relações humanas, familiares, suas culturas, pluralidades e contradições, compreendendo, assim, os diferentes sujeitos históricos nos diferentes tempos e espaços. A literatura é uma fonte histórica de espaço, em que as crianças possam refletir sobre os fatos históricos que marcam a sociedade em que vivem, desenvolvendo, assim, um pensamento histórico, em busca de compreender “[...] porque determinadas narrativas foram construídas sobre o passado e porque algumas permanecem mais e outras menos” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 17).

Cabe à literatura também a função social, permitindo o contato de todas as crianças, independentemente de suas etnias, com produções literárias que valorizem a cultura negra. Isso se torna importante para romper com os estigmas raciais que afetam a autoestima das crianças negras brasileiras. Ao mesmo tempo, o contato com a cultura afrodescendente ou outras culturas, por meio da Literatura Infantil, enriquece a formação humana, artística e histórica das crianças, despertando-lhes valores éticos, de justiça, de respeito e de igualdade racial.

De acordo com Vygotsky (1995), o acesso aos objetos culturais, como livros, obras de arte, histórias, filmes, brinquedos, músicas, configura-se como uma ferramenta cultural e meio para a humanização das crianças, além da apropriação da escrita como instrumento cultural complexo essencial para o desenvolvimento da inteligência de cada sujeito (MELLO, 2010). Segundo Vygotsky (1995):

O ensino deve organizar-se de forma que a leitura e escrita sejam necessárias de algum modo para a criança. [...] a criança tem que sentir a necessidade de ler e escrever. [...]. Isso significa que a leitura deve ter sentido para a criança, que deve ser provocada por necessidade natural, como uma tarefa vital que lhe é imprescindível. (VYGOTSKI, 1995, p. 201).

O gosto literário está ligado às vivências e às experiências relacionadas à leitura na vida da criança. Literatura é, portanto, diálogo, interação com o texto, sua estética e sua história (BAKHTIN, 2003). Para Aguiar (2015, p. 57-58), “[...] a escola é um espaço de encontros, de humanização, de descobertas [...]”, lugar de excelência para refletir o que é leitura, escrita e a importância dessas capacidades na sociedade e cultura. Bakhtin (2003) ainda contribui dizendo que a criação verbal funciona como formadora de consciência. A leitura de uma história, conto ou qualquer narrativa oportuniza identificação com as personagens, as sensações, as reflexões, os valores na consciência do leitor infantil e, também, o conhecimento estético e ético.

Nessa mesma perspectiva, Abramovich (1997) revela que o texto literário permite a concentração e a consolidação de valores éticos e estéticos que solidificam padrões culturais e morais. Desse modo, se as obras destinadas ao público infantil demonstrarem somente os valores da cultura eurocêntrica, branca, cristã e ocidental como ideias centrais da cultura clássica e universal, deixará de apresentar os predicativos da estética negra, africana ou outras identidades étnicas e culturais existentes.

Como toda obra de arte e expressão da linguagem, a literatura exerce poder simbólico e denota poder ideológico sobre os grupos sociais. O pensamento verbal é o que torna o ser humano um ser histórico e social. A aquisição da linguagem, por meio de um salto evolutivo, possibilitou à espécie humana verbalizar o seu pensamento e organizar sua própria realidade. O pensamento verbal faz relação com o significado das palavras, pois, para Vygotsky (2005), o pensamento e a linguagem não podem ser compreendidos sem uma estrutura de significado já existente internamente no indivíduo e de natureza psicológica. Sempre que se pensa, utiliza-se a linguagem, sobretudo as palavras como expressão dos pensamentos.

Para Bakhtin (2006, p. 36), “[...] a palavra é o fenômeno ideológico por excelência”. Isso quer dizer que, de todos os signos ideológicos, o de maior destaque e poder condicionante sobre as pessoas é a palavra. Tudo é ideologia. Infere-se, assim, que as pessoas são diariamente cercadas por influências ideológicas diversas. Toda interação acontece por meio de signos da linguagem (palavras, voz, gestos, sons, imagens etc.). Contudo, é a palavra que transmite a significação de modo mais puro e sensível na relação social.

As interações sociais acontecem por meio de símbolos. Na sociedade, determinadas ideias e conclusões não surgem por acaso. As afirmações e as negações dos indivíduos são geradas a partir de uma ordem ideológica, construtora de conceitos sociais. Muitas vezes discursos são exercidos por determinadas classes sociais ou líderes políticos e religiosos como instrumento de poder e dominação sobre as demais classes. Quando um discurso falso e autoritário é imposto, tragicamente contribui para a desumanização das relações sociais. Consequentemente, a liberdade de expressão do indivíduo ou grupo é ameaçada, gerando um desequilíbrio democrático e até mesmo violento. Verifica-se essa tentativa de submissão por meio das ideias e dominação das massas, sendo propagadas por meio de ideias racistas, homofóbicas, misóginas, em ataques antidemocráticos, pseudocientificismo, ideais fascistas, apologia ao terrorismo e muitas outras formas de dominação ideológica. E a criança não está imune a esses ataques.

A palavra, por ser um fenômeno ideológico por excelência, exerce influência no mundo exterior da criança e norteia a sua formação. Nenhum discurso é neutro. Pelo contrário, é sempre carregado de intencionalidade e sentido previamente construído. Portanto, pensando na criança e na sua formação, esses discursos externos ao indivíduo precisam ser equalizados, pois, de acordo com a recepção e aceitação dessas ideias (internalizadas) pelas linguagens é que vão, gradativamente, formando a consciência individual de cada pessoa (BAKHTIN, 2006). De acordo com o autor:

A vida é dialógica por natureza. Viver significa participar de um diálogo, interrogar, escutar, responder, concordar, etc. Nesse diálogo, o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal. (BAKHTIN, 2003, p. 112).

As narrativas e os diálogos já fazem parte da vida da criança desde bebê. Cantigas, canções de ninar, a oralidade dos pais e familiares e a história ou relato do seu próprio nascimento, compartilhamento de experiências e relatos pessoais fazem parte desse universo linguístico que envolve a criança no mundo da linguagem. De acordo com Aguiar (2015), desde o nascimento, cada indivíduo tem contato com a sua cultura e nela fica guardada a história da sociedade. Aguiar (2015) destaca que, para Leontiev (1978), esse processo de aquisição dos objetos culturais é sempre ativo e, também, produto do desenvolvimento histórico. Assim, é necessário desenvolver uma atividade que reproduza esse instrumento cultural da escrita e da leitura para o desenvolvimento das potencialidades humanas.

Ouvir histórias desperta o interesse em todas as idades. A criança interage com as histórias que lhes são contadas. Para Bakhtin (2003), se a criança ouve uma história, será capaz de comentar, indagar, duvidar ou discutir sobre ela, realizando, desse modo, uma interação verbal. Esse confronto de ideias e pensamentos, no ambiente coletivo, será capaz de desenvolver sua linguagem e pensamento, sempre na interação com o outro, por meio do diálogo, garantindo ricas experiências literárias.

As imagens artísticas, portanto, juntamente à leitura literária, entendida como contato com vivências narrativas, já nos primeiros anos de vida, contribui para desenvolver o pensamento lógico e a imaginação. Para Vygotsky (1995), a imaginação e o pensamento realista são inseparáveis. As histórias na forma fictícias (contos maravilhosos, fábulas, poemas) com acréscimo da forma imagética, ao mesmo tempo em que promovem um distanciamento da realidade, possibilitam uma compreensão mais profunda de conteúdos sobre espaços, tempos, elementos culturais, intolerância, preconceito, empatia, ética e respeito, enfim, conhecer as relações humanas e suas culturas. Assim, “[...] o afastamento do aspecto externo, aparente à realidade dada, imediatamente na percepção primária possibilita processos cada vez mais complexos, com ajuda dos quais a cognição da realidade se complica e se enriquece” (VYGOTSKY, 1995, p. 128).

Promover a leitura das obras, tanto na forma do livro quanto do filme de animação nos levam não só a compreender conteúdos das relações humanas, seus encontros e desencontros, mas ainda amplia a visão da pluralidade cultural. A beleza e a função narrativa das palavras, das ilustrações, dos gestos, dos sons levam-nos a lugares distantes. Conhecemos pensamentos, povos e culturas diferentes, as quais estão interligadas pela universalidade do aspecto humano. É uma aventura artística viajar pelas páginas e pelas ilustrações tão detalhadas de paisagens, cenários e emoções humanas que carregam um potencial informativo, perceber seu conteúdo e forma, e instigam o leitor a decifrá-las.

Considerações finais

Findamos esta análise sem esgotar o imenso potencial de leitura que a categoria dialética de conteúdo e forma pode proporcionar. Buscamos cumprir com o nosso objetivo geral que foi perceber a relação entre categoria de conteúdo e forma presente na obra literária Azur & Asmar, edição de 2007, e no filme As aventuras de Azur e Asmar, de 2006, de Michel Ocelot, como possibilidade de ampliação da competência leitora e a compreensão sobre a diversidade humana.

Por meio dos dois tópicos deste artigo, discutimos a questão dos conteúdos e das formas presentes nas obras. Ressaltamos a importância desses recursos da linguagem para ampliar a visão de mundo. O potencial das obras pode levar o sujeito leitor a refletir sobre as etnias, a igualdade e as diferenças humanas enquanto se humaniza, em um contexto educativo, mediados pela literatura, por imagens artísticas e uma prática pedagógica consciente.

Assim, respondemos aos questionamentos levantados neste estudo, sobre quais os conteúdos e as formas presentes nas obras, como a compreensão da relação dialética entre essa categoria que pode ampliar a competência leitora e a visão de mundo de suas culturas. Compreendemos a maneira pela qual essas obras colaboram com as leis e as políticas educacionais para promover equidade racial e melhorar as relações étnico-raciais dentro e fora da escola. E, por fim, qual seria o papel da Literatura e da Arte na formação humana do sujeito leitor.

A Literatura e a Arte têm uma função social, dentro e fora da escola, de permitir o contato de todas as crianças, independentemente de suas etnias, com produções literárias que valorizem a cultura negra e outras. Isso se torna importante para romper com os estigmas raciais que afetam a autoestima das crianças negras brasileiras. Ao mesmo tempo, o contato com a cultura afrodescendente, por meio da Literatura Infantil, enriquece a formação humana, artística e histórica das crianças e desperta valores éticos, de justiça, respeito e igualdade racial.

A presença da criança negra como protagonista na Literatura Infantil é uma conquista recente, a partir da Lei Nº 10.639/2003, a qual tornou obrigatória a inserção do ensino de história da África e da cultura negra no currículo das escolas brasileiras. A representação da imagem da criança negra em um livro infantil torna-se um importante instrumento de aquisição da diversidade cultural. Isso possibilita o combate ao racismo e a conquista de um espaço de direito, pelos princípios da democracia. Por meio da leitura, as crianças e os jovens afrodescendentes sentem-se representados em sua expressão física e na valorização positiva dos seus traços étnico-culturais, que, por muitos séculos, foram desvalorizados e marginalizados.

O papel da Literatura infantil e juvenil na educação das relações étnico-raciais é positivo, uma vez que auxilia na construção identitária das crianças negras, na percepção da diversidade humana e na valorização da história do povo negro. Contudo, essa temática ainda carece de ampla discussão e reconhecimento (CAETANO; GOMES; CASTRO, 2022).

É importante salientarmos que é preciso cuidar da representação do personagem negro na literatura, tanto na linguagem verbal quanto na visual, pois podem, ingenuamente, inserir estereótipos e reforçar elementos pejorativos racistas e preconceituosos ou, ainda, apresentar personagens negras caricaturadas. A sociedade brasileira foi estruturada a partir de um regime escravocrata, e o racismo é estruturante nas relações sociais. Desse modo, a representação positiva das personagens negras como protagonistas pode ser um elemento essencial para a reconstrução de novas aprendizagens, sobretudo no âmbito desgastado das relações étnico-raciais e na construção identitária das crianças brasileiras.

Nas palavras de Arendt (2007, p. 16): “A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha existir” – seja essa pluralidade de qualquer etnia, religião, cor, classe social, será sempre um ser humano, com direito de existir.

*Este artigo é parte constitutiva da pesquisa de Mestrado da autora sob orientação da coautora, cujo título é Atividade de Estudo com Literatura Afro-brasileira: Experimento didático-formativo com alunos do Ensino Fundamental (Anos Finais). A leitura e análise da obra Azur & Asmar resulta na sintetize de conhecimentos construídos durante as aulas da disciplina de Pós-Graduação Stricto Sensu: Leitura e Educação, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Paraná.

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Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 14 de Abril de 2022; Aceito: 16 de Abril de 2022; Publicado: 26 de Abril de 2022

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