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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 24-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18344.060 

Dossiê: Relações Étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Normalistas Negras: formação de professoras em ambiente silenciador

Black schoolteachers: training of black teachers in a silent environment

Normalistas negras: formación de profesoras negras en un ambiente silenciador

Laura Rodrigues Paim Pamplona* 
http://orcid.org/0000-0002-7146-553X

Natalino Neves da Silva** 
http://orcid.org/0000-0002-1746-8713

*Mestre em Educação. Técnica em Assuntos Educacionais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. E-mail: <laura.pamplona@mu.ifsuldeminas.edu.br>.

**Doutor em Educação. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: <natalinosilva@ufmg.br>.


Resumo:

Este artigo é resultado de uma pesquisa que se propôs compreender quais são as possibilidades da construção da identidade étnico-racial no curso de Magistério. Para tal, dialoga-se com três mulheres, negras e normalistas egressas de uma instituição secular localizada na cidade de Muzambinho, Sul de Minas Gerais. Por meio de suas narrativas, buscou-se entender rupturas, possibilidades e conquistas de direitos a partir da formação adquirida. História oral foi a principal abordagem de pesquisa. Os seguintes procedimentos também foram utilizados: análise de fotografias, consulta de documentação escolar no acervo da instituição, revisão de literatura. Os resultados alcançados apontam que as normalistas negras constroem a sua identidade étnico-racial em um ambiente formativo silenciador que é orientado ideologicamente por valores pautados na branquitude.

Palavras-chave: Professoras negras; Identidade negra; Racismo institucional

Abstract:

This article is the result of a research that aimed to understand what the possibilities of the construction of ethnic-racial identity in the Primary and Secondary Teacher Training Courses. To this end, we dialogued with three women, black and schoolteachers, who graduated from a secular institution located in the city of Muzambinho, in the south of Minas Gerais, Brazil. Through their narratives, we sought to understand ruptures, possibilities and conquests of rights from the acquired training. Oral history was the main research approach. The following procedures were also used: analysis of photographs, consultation of school documentation in the institution’s collection, literature review. The results achieved indicate that black schoolteachers build their ethnic-racial identity in a silencing training environment that is ideologically oriented by values ​​based on whiteness.

Keywords: Black teachers; Black identity; Institutional racism

Resumen:

Este artículo es el resultado de una investigación que se propuso comprender cuáles son las posibilidades de construcción de la identidad étnico-racial en el curso de Magisterio. Para ello, se dialoga con tres mujeres, negras y normalistas, egresadas de una institución laica ubicada en la ciudad de Muzambinho, en el sur de Minas Gerais, Brasil. Por medio de sus narrativas, se buscó comprender rupturas, posibilidades y conquistas de derechos a partir de la formación adquirida. La historia oral fue el principal enfoque de investigación. Los siguientes procedimientos también fueron utilizados: análisis de fotografías, consulta de documentación escolar en el acervo de la institución, revisión de literatura. Los resultados alcanzados indican que las normalistas negras construyen su identidad étnico-racial en un ambiente de formación silenciador que es orientado ideológicamente por valores pautados ​​en la blancura.

Palabras clave: Profesoras negras; Identidad negra; Racismo institucional

Introdução

O processo de construção da identidade étnico-racial dá-se em diferentes espaços sociais, sendo as instituições destinadas à formação de professoras um deles. Assim sendo, em uma sociedade em que o racismo institucional vigora, é preciso indagarmos em que medida os centros de formação se constituem como ambientes silenciadores. Afinal, o silêncio é uma das formas de perpetuar a existência desse tipo de racismo (CAVALLEIRO, 2012; GONÇALVES, 1985; SILVA, P. B. G., 2018).

Com Laura López (2012), entendemos que o racismo opera de forma difusa no funcionamento cotidiano de instituições e das organizações, sendo menos identificável, mas não menos destrutivo. O racismo institucional concretiza-se, portanto, de forma diferenciada em relação à distribuição de serviços, de benefícios e de oportunidades.

Partindo desse entendimento, dialogamos com três mulheres, negras e normalistas egressas de uma instituição secular que trabalha com a formação de professoras. Propomos compreender quais são as possibilidades da construção da identidade étnico-racial no curso. Por meio de suas narrativas, buscamos entender rupturas, possibilidades e conquistas de direitos a partir da formação adquirida.

O Curso Normal, atual Magistério, ofertado na Escola Estadual Antonieta de Barros1, localizada na cidade de Muzambinho, Sul de Minas Gerais, foi criada por meio de Lei Municipal em 1901 e regimentada em 1902. A instituição esteve fortemente ligada à vida social e política da cidade e, portanto, a análise do contexto local se intercruza com a história política nacional.

O Curso foi ofertado de modo ininterrupto praticamente todo o século XX, entre os anos de 1906 e 1997. A última oferta do curso foi em 2017. Assim sendo, a Escola Estadual Professora Antonieta de Barros, com seus quase 120 anos de existência, representa, no imaginário social, uma tradicional instituição de ensino.

Considerando o extenso período da oferta, estabelecemos, como recorte temporal, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei Nº 5.692, , de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971) –, visto que ela se apresentou como marco legal para regulamentar a formação de professoras em nível de Magistério. Ademais, a partir desse recorte temporal, pretendíamos identificar e dialogar com egressas que fizeram o curso durante esse período em diante. Os diálogos estabelecidos ocorreram por meio do uso da técnica de entrevistas semiestruturadas (JOVCHELOVICH; BAUER, 2002).

Não obstante, um desafio foi-nos apresentado para mapear essas professoras, pois as informações cadastrais disponíveis nos registros da instituição só poderiam ser acessadas a partir do ano de 1989. Naquele ano, a instituição sofreu uma inundação, e seus dirigentes foram orientados pela Secretaria Regional de Ensino de Poços de Caldas, à qual a escola está vinculada, a descartar toda documentação disponível no acervo, com vista a minimizar riscos de infestações e transmissão de mofo. Por esse motivo, a análise das fontes documentais relacionadas às normalistas negras deu-se de 1989 em diante. Para a seleção das egressas, foram observados os critérios seguintes: a) mulheres que atuam como professoras; b) as que se autodeclaram como negras (pretas e pardas), segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); c) egressas da instituição em diferentes anos.

O uso das redes sociais foi um importante procedimento metodológico utilizado. Foi por intermédio delas que se tornou possível localizar pessoas, identificar histórias, bem como verificar o seu atual status de vínculo profissional. A pesquisa contou ainda como fonte de relações pessoais primárias e secundárias para conseguir chegar até as mulheres negras e que aceitassem compartilhar as suas experiências adquiridas com a formação, bem como as suas histórias de vida.

Posteriormente, percebeu-se que as suas narrativas contribuíram, inclusive, para elucidar mudanças educacionais estabelecidas pela atual LDBEN – Lei Nº 9.394/1996. Nessa perspectiva, a história oral foi um dos principais procedimentos de pesquisa utilizado. Afinal, por meio dela, teríamos a “[…] possibilidade de encontrar, através dos depoimentos de marginalizados, excluídos e vencidos, a verdadeira história. Uma história que rompe com o discurso oficial, e, portanto, capaz de desvendar a outra história oculta e mascarada pelo poder” (RIOS, 2000, p. 10).

Thompson (1992, p. 25) ressalta a esse respeito que “[…] a entrevista propicia também um meio de descobrir documentos escritos que, de outro modo, não teriam sido localizados”. Rosa (2006) acrescenta, ainda, que a entrevista qualitativa é feita por meio de um diálogo orientado para um objetivo definido que, por meio de indagações, leva o(a) interloucutor(a) a narrar temas sociais específicos.

Considerando que a metodologia empregada envolvia seres humanos, todo o protocolo de realização do estudo foi submetido ao Comitê de Ética de Pesquisa (CEP) da instituição, no sentido de salvaguardar os cuidados éticos e proteger as professoras participantes da pesquisa. Além disso, devido ao afastamento social causado pela Covid-192, todas as entrevistas foram realizadas por meio de web conferência na plataforma Meet, devidamente gravadas, transcritas e discutidas posteriormente com cada uma delas. A análise de conteúdo foi à técnica utilizada para fazer a análise e a interpretação dos dados coletados (BARDIN, 2011). Dessa forma, as suas narrativas permitiram-nos desenvolver uma reflexão em torno de suas experiências como profissionais, bem como compreender os enfrentamentos realizados, durante o percurso formativo, relacionados ao processo de de construção da sua identidade.

Além desta introdução e das considerações finais, este artigo está subdividido em duas seções. A seguir, situamos o contexto social e político em que a pesquisa foi realizada e apresentamos o perfil das normalistas negras. E, na sequência, tratamos das experiências do racismo institucional por elas vivenciadas.

Situando o município e as participantes da pesquisa

Localizada no sul de Minas Gerais, Muzambinho faz fronteira com cidades como Guaxupé, Juruaia, Monte Belo, Cabo Verde e a cidade paulista de Caconde. Segundo o último Censo, a cidade conta com a população de 20.430 pessoas (IBGE, 2010). A toponímia Muzambinho é uma homenagem ao rio Moçambo e aos moçambinhos que viviam nessas terras. Segundo Soares (1940, p. 52), “[…] os mocambinhos que beiravam a cidade, além de moradias de escravos daquela localidade, serviam de esconderijos para os que fugiam de outras terras”. O nome da cidade está relacionado, portanto, ao rio Moçambo, onde se localizava comunidades quilombolas.

Desse modo, a formação sociohistórica do município é de caráter colonial-escravocrata, contando com a presença significativa de remanescentes quilombolas. Martins (2018) aponta que o Quilombo Campo Grande, por exemplo, era formado por 27 núcleos ou vilas, sendo um deles o quilombo do Moçambo/Muzambo3. Todavia, alvo de políticas de embranquecimento, a cidade recebeu inúmeros imigrantes europeus com o passar dos anos.

O município possui uma economia fortemente de inclinação agrária e com grande produção cafeeira. Segundo dados do IBGE (2016), ele ocupa o 42º lugar na produção de café na sua região e 70º nacionalmente. O cultivo do café tem uma relação direta com o tempo escolar. Constatamos que, durante o período de colheita, devido à procura por mão de obra barata, diminui a presença de estudantes nos estabelecimentos de ensino.

No brasão da bandeira municipal, constam folhas do café, evidenciando, com isso, a maneira que cultura agro colonial é arraigada em Muzambinho. Dado essa característica socioeconômica, atraiu imigrantes de origem italiana para essa região. Essa tendência também se verifica em regiões próximas, tais como: Mogiana Paulista, Oeste Paulista (região de Campinas e Ribeirão Preto). Castilho (2011, p. 34) ressalta a esse respeito que:

A cafeicultura no Sul de Minas seguiu sua expansão pelos municípios a oeste da região, na divisa com o interior paulista, como Monte Santo de Minas, São João da Fortaleza (hoje Arceburgo), Santa Bárbara das Canoas (Guaranésia) e Cabo Verde, todos estabelecidos como extensão da expansão do Oeste Paulista. Desse modo, a expansão da cafeicultura no Sul de Minas foi o resultado de uma expansão ainda mais voraz em outra região, no caso o Oeste Paulista, processo que implicaria na aproximação comercial das duas regiões.

A substituição da mão de obra das pessoas escravizadas pelos imigrantes é notória, haja vista que “[…] na província de São Paulo a mão de obra escrava vinha sendo substituída pela corrente imigratória europeia, composta principalmente por italianos, devido à Lei do Ventre Livre e os constantes movimentos abolicionistas” (CASTILHO, 2011, p. 33). Em Muzambinho, essa substituição também se fez presente. Ainda hoje é possível percebermos os resultados históricos adotados por essas políticas por meio dos nomes dados às ruas muzambinhenses que, de modo geral, prestam homenagens a personalidades de origem italiana, como: Alfredo Guilherme, Antônio Inacarato e Nicolau Annechini4.

A exaltação do processo imigratório em detrimento da resistência quilombola é, assim, perceptível. Para além da força de trabalho, à imigração significou, entre outras coisas, a normatização do padrão cultural “branco” no que concerne a valorização da autoestima e do autoconceito. Esse padrão é apropriado ideologicamente nas diversas representações simbólicas dispersas nos espaços institucionais da cidade.

Essas dimensões constituem algumas das principais características da branquitude identificadas pela pesquisadora Cida Bento (2002), que as entende como “[…] um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira [...]. Considerando seu grupo como padrão de referência de toda a espécie, a elite fez uma apropriação simbólica fortalecendo a autoestima e o autoconceito do grupo branco em detrimento dos demais” (BENTO, 2002, p. 25).

Consideramos que situar a constituição histórica desse município articulada à formação das normalistas negras significa, portanto, a possibilidade de narrar uma micro-história local e, ao mesmo tempo, tomar conhecimento de histórias de vida que não fazem parte da historiografia oficial (FONSECA; BATISTA, 2019). Nessa perspectiva, passamos a apresentar cada uma delas.

Maria5 nasceu em 1968, sendo a caçula de seis filhos e a única pessoa do seu grupo familiar com formação em nível superior. Seus pais são analfabetos já falecidos. Ela se formou em 1989, portanto anteriormente à LDBEN de 1996. Possui Pós-Graduação lato sensu, é casada, sem filhos e professora efetiva nas cidades de Muzambinho e Cabo Verde. Maria Madalena é casada e tem um filho. Ela nasceu em 1978 e é egressa do curso em 1997, um ano após a promulgação da Lei supracitada. Ela é a filha mais velha e seus pais estudaram até o Ensino Fundamental. Atualmente, atua como professora efetiva na rede municipal muzambinhense e é graduada em Pedagogia. Fátima concluiu o curso em 2017. Ela tem três irmãos, e a sua mãe estudou até o Ensino Fundamental, mas não o concluiu. Nascida em 1986, atualmente é graduanda do Curso de Licentura em Pedagogia, sendo a primeira de sua família a ingressar no curso superior.

Normalistas negras e os desafios da construção da identidade étnico-racial

O Curso Normal em Muzambinho está vinculado ao espírito das demandas políticas expressas com o advento da Nova República ainda em sua gênese. Isso porque a sua criação faz parte de uma série de medidas que buscava aprimorar a civilidade da população brasileira. Regenerar e preparar os futuros cidadãos e cidadãs para o novo país são algumas das ideias contidas nas propostas de ensino. Tais desejos se intensificaram após a proclamação da República, quando um projeto de formação da identidade nacional se intensificou.

Nesse sentido, Muller (2008) afirma que, aos poucos, a escola passou a ser o espaço pensado e planejado para a criação desse povo brasileiro, perpassando sempre por chamados valores morais e físicos. Buscando alcançar esses valores, Silva, J. F. R. (2018) destaca que, regido por mudanças nas relações patriarcais e econômicas, a feminização do magistério transformou-se em um fenômeno mundial. Consequência disso foi que “[…] as mulheres da classe média passaram a ser as responsáveis pela missão de moralização social das classes trabalhadoras. Desse modo, a presença do feminino começou a ser efetivada, a partir do final do século XIX, e seguiu nessa tendência, ao longo do século XX” (SILVA, J. F. R, 2018, p. 83).

Para essas mulheres, a docência era, inicialmente, uma das poucas oportunidades e possibilidades de trabalho. Em contrapartida, se, para esse público, inserir-se no trabalho formal significava também uma maneira de romper com o espaço privado do lar e ganhar a cena pública, já, para as mulheres negras, essa realidade é inerente à sua condição social. Afinal, são elas que desde sempre ocuparam postos de trabalho considerados subalternos, além de que a circulação nos espaços públicos está relacionada à sobrevivência.

Por conseguinte, os significados ser professora são distintos para esses grupos. Nem sempre os estudos que tematizam a feminização docente levam isso em consideração. Não obstante, instiga-nos compreender negociações e agenciamentos necessários de serem feitos para que as professoras participantes da pesquisa concluissem o curso, visto que

[…] toda vivência do espaço privado, destinado à mulher negra, esteve implicada em uma experiência pública, porquanto, depois da abolição formal. Essas mulheres tiveram de ajustar as suas vidas fazendo inúmeras negociações e agenciamentos. Assim sendo, para elas não existem público e privado separado, esse seria um aspecto central de problematização em se tratando de produzir a feminização do magistério. (SILVA, J. F. R., 2018, p. 86).

Retomando a trajetória do Curso Normal, conforme Silva, J. F. R (2018), foi ganhando ares mais tecnicistas mediante reformas educacionais. A carreira docente foi se profissionalizando e, por consequência, um novo público começou a procurá-la. Com o passar dos anos, houve o desprestígio social da carreira, seguido por uma desvalorização salarial. O ingresso das mulheres negras de camadas populares nesses cursos ocorreu gradativamente. Isso porque foram criados mecanismos de exclusão como, por exemplo, o exame de admissão, estabelecido na primeira reforma educacional nacional, conhecida como Reforma Francisco Campos, em 1931. Essa política vigorou por 40 anos, servindo de barreira legalmente instituída em relação ao acesso democrático a esses cursos (VIDAL; FARIA FILHO, 2002). Nesse caso, a existência dessas normas e regras jurídicas pode ser interpretada como sendo uma das principais formas de manutenção de discriminação étnico-racial indireta que se concretiza por meio da criação de obstáculos propícios à efetivação do racismo institucional.

Almeida (2019) argumenta que a discriminação indireta é marcada pela ausência de intencionalidade explícita de discriminar pessoas e, portanto, a norma (no caso o exame de admissão) não leva em consideração, ou não prevê, os efeitos dela. A sutileza por trás desse mecanismo democrático deixa de explicitar que a parcela da população mais atingida por esse tipo de barreira institucional tem sido, ao longo da história, a negra e a indígena.

No caso específico do lócus desta investigação, verificamos, por meio da análise de fotografias, que o aumento de matrículas de mulheres negras no Magistério se dá apenas mediante a aprovação da LDBEN de 1971 – Lei Nº 5.692/1971. Duas das entrevistadas inclusive iniciaram os seus estudos após a sua implementação. No curso, elas não identificam ter vivido situações relacionadas ao preconceito e à discriminação racial. No entanto, percebem ser as únicas mulheres negras de suas turmas. Quando indagadas sobre essa ausência, emerge, então, o trauma sociopsíquico ocasionado pelo racismo institucional em suas trajetórias escolares:

A maioria era branco, acho que tinha só o [...]. Se não me engano o [...] que lembro agora, que estudou comigo e a [...]. Que ela é… como que fala... é mulata? Filha de branco com preto. A [...] é mais clara que eu. Mas eu, ela e o [...] também que era pardo. Mas eu não gosto de lembrar muito não. Desse povo, dessas coisas não. (Fátima, negra, 34 anos, egressa da turma 2017, grifos nossos).

Ah, era bem pouco. Negros foram bem pouco. Foi uma só que eu conheço até hoje. Essa eu guardo sentimento dela, não superei, né? Porque ela me chamava de neguinha e ela era também. Poxa vida, né? O restante da turma eram todos claros. (Maria Madalena, negra, 42 anos, egressa da turma 1997, grifos nossos).

Eu tinha uma amiga [negra] que estudava na mesma sala que eu morava no mesmo bairro. Ela chamava [...]. Ela até já faleceu. Esse meu primo, eu estudei com ele só no primeiro ano, mas não na mesma sala, depois ele abandonou também. Então, lá do bairro eu não tinha crianças que estudavam na escola. Eu era mais só eu. Quase não tinha. (Maria, negra, 52 anos, egressa da turma 1989).

De modo semelhante, constatamos que a socialização na Educação Infantil ocorria por meio de uma baixa interação social com estudantes oriundos do seu grupo étnico-racial. E mais, o sentir-se pouco à vontade de relembrar essa fase da vida ocasiona a baixa autoestima. Essa avaliação subjetiva incide diretamente no processo de construção da identidade étnico-racial. No caso das participantes da pesquisa, tanto a escola quanto a família pouco contribuíram nesse sentido. Constatação que, infelizmente, está em consonância com estudos produzidos no campo das relações étnico-raciais e educação.

O trabalho realizado por Araújo e Dias (2019) mostra que, já durante a infância, as crianças negras apresentam dificuldades de construir uma identidade negra mais positivada, impactando “[…] as identidades infantis, criando, especialmente, para as crianças pretas, extrema dificuldade de reconhecimento positivo de seu pertencimento étnico-racial” (ARAÚJO; DIAS, 2019, p. 11). Isso porque as experiências com seus corpos não ficam apenas circunscritas na esfera familiar e doméstica, sendo a escola o ambiente em que tais conflitos muitas vezes surgem.

[…] teve uma ocasião que me marcou bastante porque eu estava na escola. A gente estava no jardim, chegou a minha colega. Não sei se foi para provocar mesmo ou na inocência. No momento senti, ela falou assim: “Fátima, é verdade que o preto quando fica muito no sol, ele fede?” Então, foi uma coisa assim. Eu fiquei olhando a cara dela e disse: “Olha a roupa preta, pode ser que feda, a não ser que você deixe de lavar tudo”. Aí todo mundo começou a rir. Mas levando na brincadeira tudo. Pensa que não vai machucar, mas machuca. A gente guarda uma lembrança meio constrangedora sabe? E quando chega para falar de escravidão mesmo, quando se é a aluna negra que está dentro da sala, você é a primeira a ser olhada, por todos, tanto por professor quanto pelos próprios alunos. Então, é uma coisa que pode achar que não, mas constrange, sabe? Está contando a história dos negros, aí a pessoa [vê] aquela negra que está dentro da sala. Todo mundo olha. Aí tem gente que compara a foto. “Nossa, olha a foto, igualzinho seu cabelo. Nossa, mas a boca igualzinha [...], igualzinha a de seus ancestrais, né”? Então, a coisa que é destrutiva às vezes. Muitas palavras são destrutivas. É terrível. Eu não gosto muito do meu cabelo não. Vou ser sincera. Mas quando eu era mais nova, minha mãe alisava ele porque eu chorava para ela alisar. Eu falava: “Mãe, compra alisante para o meu cabelo, pelo amor de Deus. Arruma meu cabelo. Eu não gosto de trança”. Tinha pavor de trança. Porque eu não gostava de trancinha. Vou explicar para você. Os apelidos são terríveis. É cabelo de bucha, Dona Pituca, cabelo de Bombril. Então, eu não gostava. (Fátima, negra, 34 anos, egressa da turma 2017, grifos nossos).

Eu acho que [o preconceito e a discriminação racial] deixou até um pouco assim, essa parte introvertida né. Acho que é este medo de tentar também se introduzir ali na comunidade escolar, junto com outras pessoas. Então, você acaba se fechando para não ter que sofrer. Você sendo fechada, ninguém chega tão perto de você. Então, quietinha. Essas brincadeiras que eles falam: cabelinho de Bombril, então essa brincadeira sempre teve, então eu preferi me fechar. Automaticamente, ficar introvertida. (Maria Madalena, negra, 42 anos, egressa turma 1997, grifos nossos).

O apelido que chamavam as pessoas negras era macaco. Mas o cabelo em si, ninguém falava nada. Eu não me lembro de ninguém falar. Porque eu era muito quietinha, mas meu primo que era danadíssimo…Era o apelido que ele recebia. Acho que não chamava muita atenção para mim. E por isso que eu não sofri tanto assim, esse preconceito. (Maria, negra, 52 anos, egressa da turma 1989).

O modus operandi do racismo na escola acontece muitas vezes por meio de brincadeiras, apelidos e reprodução de estereótipos, além de agressões físicas. O que está em jogo é a negação do reconhecimento da humanidade das pessoas negras. Tais práticas configuram um tipo específico de opressão racial nomeado por Adilson Moreira (2019) como racismo recreativo. Assim, as hierarquias raciais manifestam-se por meio de piadas e de brincadeiras ofensivas e/ou até mesmo naquelas recreações consideradas inofensivas, mas que demarcam o lugar e o espaço que pessoas negras deveriam ocupar. No curso, Maria Madalena recorda ser tratada por seus colegas de turma de maneira pejorativa e exótica:

Na minha turma, que eu me recorde, era apenas eu de negra. Tanto é que as meninas me chamavam de Globeleza. Toda vez que eu chegava na sala de aula, elas falavam: “tá chegando a Globeleza” porque era a única chocolate da turma. (Maria Madalena, negra, 42 anos, egressa da turma 1997, grifos nossos).

Por sua vez, Maria pondera que se percebeu como uma mulher negra ao deparar-se com a prática do racismo articulada às condições socioeconômicas no interior de uma instituição escolar:

Tem um momento que eu me percebi da raça negra, né. Eu defino assim. Na escola, no momento das festas juninas. Eu não ia dançar, pois eu não era convidada para dançar. Enquanto todas as outras crianças meninas iam, vestidos e tudo. Eu não ia. Porque eu não tinha vestido. E ninguém me fazia o convite. Então, por quê? Porque eu era negra, né. Eu me percebi uma criança diferente das outras. Às vezes, a pessoa negra não tem condições financeiras para poder comprar vestido bonito. Todas as outras iam dançar, eu não ia. (Maria, negra, 52 anos, egressa da turma 1989, grifos nossos).

O corpo e o cabelo emergem em suas narrativas como alvos privilegiados de práticas racistas. No entanto, a dupla cabelo e cor da pele desempenham o papel central no processo de constituição da identidade negra. Conforme defende a pesquisadora Nilma Gomes (2003, p. 173), dada a importância deles,

[…] sobretudo do cabelo, na maneira como o negro se vê e é visto pelo outro, até mesmo para aquele que consegue algum tipo de ascensão social, está presente nos diversos espaços e relações nos quais os negros se socializam e se educam: a família, as amizades, as relações afetivo-sexuais, o trabalho e a escola. Para esse sujeito, o cabelo carrega uma forte marca identitária e, em algumas situações, é visto como marca de inferioridade. (GOMES, 2003, p. 173).

O campo das relações étnico-raciais é dinâmico e fruto de processos históricos complexos. O racismo concretiza-se no interior da vida social por meio da ambiguidade negação-afirmação (MUNANGA, 2017). Nesse caso, a noção de identidade étnico-racial utilizada no estudo é concebida a partir de quatro dimensões descritas por José Carvalho (2020), que as compreende de maneira relacionada entre si, quais sejam:

a) A teoria contrastiva da identidade é importante, pois os grupos étnicos, povos, ou comunidades não se definem como coletivos isolados, mas por oposição a outros grupos e coletivos; b) A dimensão relacional da identidade que é sempre dinâmica da negociação e da percepção do fenótipo comparece, porém sendo incorporada em uma nova configuração racial que é igualmente marcada por uma estabilidade sócio- histórica contrastiva; c) O binômio “identidade herdada e identidade assumida” enquanto a identidade estável e unificada pode ser concebida como a identidade herdada, a identidade em movimento, ou em devir, pode ser concebida como a identidade assumida; d) A quarta dimensão da identidade racial combina e qualifica as interpretações dos estudos de caráter multidimensional e interseccional. (CARVALHO, 2020, p. 55).

No que concerne a verificar, então, condições e possibilidades capazes de favorecer a constituição dessa identidade, o Curso Normal é um ambiente silenciador. A esse respeito, nenhuma das disciplinas que constam em sua matriz curricular trata a educação para promoção da igualdade racial. O que constatamos, na verdade, é o padrão da normatividade da branquitude. Normatividade que desconsidera as violências simbólica e material ocasionadas pelo racismo, as quais impactam diretamente a subjetividade das professoras participantes deste estudo. Conforme relata Fátima:

Já pegou um Bombril? Que é áspero, tanto que palha de aço às vezes fura o dedo quando a gente vai arrumar a cozinha. Agora você imagina alguém falando que o seu cabelo é igual. Não queira passar. Eu não gosto. Então, isso vem desde pequena. E quando a gente rodava Bombril. Pegar Bombril [colocar fogo] e rodar e tem gente que falava assim: “eu vou pegar o seu cabelo e rodar igual Bombril”. Como assim, Jesus? Então quer dizer que teu cabelo está servindo para ser espinho. E isso ocorre na escola, ocorre claro. Mas isso traz para dentro de casa também. Porque às vezes você acaba refletindo isso dentro de casa com seus irmãos. Hoje em dia, eu tenho essa percepção, entendeu? Essa consciência, mas antes eu não tinha, quando era criança. Eu chegava em casa e eu achava ruim com o meu irmão mais novo, ele é filho de um homem branco e o cabelo dele era todo cacheado, coisa mais linda do mundo. Aí eu falava assim: “esse cabelo ruim teu”; aí eu falava para a minha mãe: “Mãe, você devia ter ficado com gente branca porque o meu cabelo ia nascer bom”. Porque o cabelo dele é bom não é ruim, entendeu? Hoje eu paro e penso onde eu estava com a cabeça. Eu cheguei a brigar demais com meu irmão mais novo, que é filho de branco, que tem cabelo melhorzinho. Eu puxava o cabelo dele e falava assim: “vou arrancar todinho o seu cabelo da cabeça”, porque eu queria ter o cabelo dele, entendeu? Não era para ele ter cabelo daquele jeito, era para mim ter cabelo daquele jeito. Porque eu chegava da escola e ouvia coisas lá do meu cabelo, eu chegava e refletia aqui em casa, entendeu? (Fátima, negra, 34 anos, egressa da turma 2017, grifos nossos).

A Educação das Relações Étnico-Raciais6 (ERER), conforme propõe a Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 20037 e as suas Diretrizes8 (BRASIL, 2003), necessita ser contemplada também na formação das Normalistas. O conhecimento sobre a ERER contribuiria, inclusive, para problematizar a estrutura do curso. Entretanto, as histórias de vida compartilhadas revelam a complexidade que é trabalhar na perspectiva do reconhecimento, do respeito e da valorização da diversidade de gênero e étnico-racial.

Conforme visto, práticas racistas vivenciadas na escola afetam o processo de subjetivação de cada uma dessas professoras. Assim sendo, o trabalho pedagógico condizente com a ERER implica revisitar lembranças e memórias de dor, sofrimento e negação. Emerge, daí, a necessidade de reconhecer, portanto, como cada pessoa-docente lida com o seu processo de construção identitária. Afinal, suas experiências subjetivas das relações étnico-raciais, e não só a dos(as) estudantes, são acionadas na realização desse trabalho (SILVA, 2019a, 2019b).

Ademais, suas narrativas deixam transparecer características sociais que remetem à solidão da mulher negra, verificada tanto no curso quanto no exercimento de suas práticas profissionais. Essa situação é preocupante de ser observada, após quase 20 anos da aprovação da Lei Nº 10.639/2003. A esse respeito, a ausência de professoras negras na região em que atuam é notada por elas, pois, na maior parte das vezes, elas são as únicas em um universo docente majoritariamente branco.

Quando estudava [Curso Normal], eu era a mais pretinha. Mas tinha uma mistura. Uma menina lá que era morena mais clara. Morena mais clara. Então ela não ficou tão escura, ela não tinha o cabelo tão ruim. Eu já sou filha de negro com negra. Aí já aparece os traços, já vem. Então, eu era a mais pretinha dentro da sala. Eu tenho muito orgulho disso, muito orgulho mesmo. (Fátima, negra, 34 anos, egressa da turma 2017, grifo nosso).

Quando indagadas se tiveram professoras(es) negras(os) ao longo de sua formação, Fátima é enfática em dizer: “Na minha lembrança não teve. No magistério não teve”. A mesma percepção é compartilhada pelas outras normalistas.

Não. Nenhum. Tinha uma professora negra, no colégio. Mas ela não dava aula para mim não. Dava aula de manhã, no Ensino Médio. (Maria, negra, 52 anos, egressa da turma 1989, grifo nosso).

Não, no decorrer de todo período escolar nunca tive nenhuma professora negra. (Maria Madalena, negra, 42 anos, egressa da turma 1997, grifo nosso).

A ausência da corporeidade negra na composição do quadro de profissionais da educação que ali atuam não é devidamente problematizada por parte da instituição. O que revela, portanto, outra dimensão silenciadora relacionada à diversidade étnico-racial. O trabalho na perspectiva da ERER, na verdade, busca romper com esses silenciamentos, visto que eles contribuem para perpetuar o racismo institucional. Nesse caso, a proposta de uma educação antirracista no âmbito da formação de professoras contribui inclusive para que essas profissionais saibam lidar com experiências discriminatórias raciais enfrentadas no contexto escolar. Conforme narra Maria:

Agora eu uma mulher negra quando eu passei [processo seletivo] e fui ser supervisora da [Escola Palmares]. [Discriminação racial] Profissionalmente. Por quê? As pessoas chegavam na escola, procurando a diretora e eu estava sentada na sala escrito supervisora e eles perguntavam se tinha alguém responsável pela escola. Então, é assim. Vários momentos são assim, situações. Por que eles perguntavam isso? As pessoas me conhecem, elas sabem o que eu faço. Mas assim a gente vê a discriminação [racial] com as pessoas que não te conhecem, você entendeu. As pessoas que não me conhecem, elas enxergam uma mulher negra. E aí eles perguntam: “O que é que você faz?”. Na pergunta, você percebe. Eu percebo na hora esta discriminação [racial]. Ora, qual é a sua profissão? [Expectativa] de serviço manual, braçal. Porque eu não devo ter estudo, não é? Então, a gente começa a perceber este preconceito que a sociedade tem. (Maria, negra, 52 anos, egressa da turma 1989, grifos nossos).

Ao considerarmos a atuação profissional dessas mulheres negras, compreendemos que elas conseguiram romper com determinado ciclo da baixa escolaridade familiar, porém essa ruptura é sempre parcial em se tratando de entender as desigualdades étnico-raciais brasileiras. Elas são silenciadas na instituição investigada por meio do atributo tradição secular de ensino, por exemplo. E é sob essa marca de distinção social que a ideologia da branquitude se mantém preservada.

A perpetuação dessa tradição é parte de um processo histórico de longa duração, segundo Fernand Braudel (1965). Para o autor, só é possível compreenderm os fatos históricos quando os visualizamos em séculos, uma vez que seus efeitos se tornaram estruturais. Nesse sentido, ele argumenta que “[…] certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações: embaraçam a história, incomodam-na, e assim comandam seu fluxo” (BRAUDEL, 1965, p. 268).

É desse modo que os privilégios simbólico e material impostos historicamente pela hegemonia da branquitude produz-reproduz a dimensão estrutural e estruturante do racismo para além de sua realidade institucional, uma vez que esse tipo de racismo “[...] não é um ato ou um conjunto de atos e tampouco se resume a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados é estruturalmente reproduzida” (ALMEIDA, 2019, p. 45).

A narrativa de Maria Madalena elucida as dimensões institucional, estruturante e estrutural do racismo. Ela expõe uma situação de discriminação racial sofrida por ela em uma escola particular em Muzambinho:

Olha, porque, quando eu fazia [substituição], eu tive uma experiência. Eu fui substituir tal escola particular e quem havia me convidado é uma pessoa que eu estimo muito. Aí [fui] trabalhar para fazer a substituição. Eu cheguei juntamente com a sócia dessa escola e a sua esposa. Assim, acho que uns dois ou três passos atrás dela, ela fez questão de fechar a porta da escola. Antes de eu entrar. Eu era uma substituta. Aí a outra pessoa que estava lá dentro disse: “ela veio substituir”. Mas mesmo assim ela não abriu a porta não. Foi outra pessoa que abriu a porta. Quando eu entrei [...], uma professora negra entrar numa escola particular é […]. Você tem esse sentimento, porque, quando é pobre para pobre, ainda vai lá, né. Agora, quando você vai para uma escola particular, o pai está pagando. Muitas vezes para o professor branco, ele já fala: “Olha, eu estou pagando, você tem que...” Então, na [escola] particular, o receio foi bem grande, o medo. Tanto é que eu recebi uma proposta de outra escola há um tempo e não aceitei por esse medo. O medo de ser discriminada, então, eu não fui [trabalhar] na escola. (Maria Madalena, negra, 42 anos, egressa da turma 1997, grifos nossos).

A percepção de Maria Madalena relacionada à segregação sociorracial não se restringe à instituição escolar. Ela pode ser verificada também na estrutura política da Câmara Municipal. Para se ter uma ideia, a primeira vereadora negra foi eleita somente no ano de 2020, pois, até então, nenhuma pessoa negra havia conquistado o cargo de executivo municipal. Esse fato também pode ser observado no que concerne ao cargo de direção da Escola Estadual Antonieta de Barros.

O mito da democracia racial permanece ainda bastante vivo no imaginário social da população da cidade. Por conseguinte, podemos notar a manutenção de hierarquias sociorraciais e privilégios da branquitude. Daí a necessidade de desenvolver um senso crítico de responsabilidade diante dessa estrutura ideológica e hegemônica de poder. Essa atitude significa, entre outras coisas:

Assumir a sua ação nas desigualdades impostas pela discriminação racial [e] não é culpabilizar o seguimento branco pelo passado e presente, mas desenvolver o senso de responsabilidade que o mesmo tem para com a situação do grupo negro, para que participe na promoção de ações responsáveis e políticas de ação afirmativa, para que os direitos e oportunidades prevaleçam independentes das diferenças étnico/raciais, entre outras. Diferenças essas que não devem instituir-se de formas hierárquicas e submetidas a recalques na sociedade (SILVA, 2007, p. 99).

Romper com o ambiente silenciador na formação de normalistas negras exige, portanto, implementar a Lei Nº 10.639/2003 (atualizada pela Lei Nº 11.645/2008), conforme ressalta Gomes (2002, p. 42), antes mesmo de sua sanção, ao defender que “[…] cabe a nós, educadoras e educadores, a tarefa pedagógica, política e social de desnaturalizar as desigualdades raciais como um dos caminhos para a construção de uma representação positiva sobre o negro e de uma pedagogia da diversidade”.

Considerações finais

Na realização desta pesquisa, a partir dos diálogos feitos com três mulheres, negras e normalistas, buscamos compreender quais são as possibilidades da construção da identidade étnico-racial no âmbito do Curso Normal. Interessava-nos ainda entender os obstáculos impostos pelo racismo institucional.

A investigação revelou que realizar o magistério permitiu a essas mulheres novas e outras oportunidades profissionais jamais antes alcançadas, visto que, em suas histórias de vida familiar, elas foram as primeiras a conquistarem longevidade escolar, inclusive o acesso ao Ensino Superior. Essas oportunidades são ocasionadas, sobretudo, por meio de concursos, devido ao medo de serem vítimas de preconceito e discriminação racial em escolas privadas. A pesquisa evidenciou que práticas racistas em ação afetam sobremaneira as professoras participantes. Em outras palavras, seus efeitos são tão perversos, pois são capazes de bloquear psicologicamente as normalistas negras de cogitarem exercer a docência no setor privado.

Essa segregação sociorracial e psíquica, no entanto, não são problematizadas no curso. Nessa perspectiva, indagamos: Será que normalistas não negras sofrem esse mesmo tipo de intimidação e discriminação? A discussão sobre o racismo é de caráter individual? O que leva uma tradicional instituição que trabalha com a formação de professoras não se implicar com essas questões?

Esses e outros questionamentos fizeram parte das reflexões desenvolvidas neste estudo. Ao selecionarmos uma escola centenária, em um pequeno munícipio do Sul de Minas, permitiu-nos avaliar se os princípios de valorização, respeito e reconhecimento da diversidade étnico-racial, conforme propõe a Lei Nº 10.639/2003 e suas Diretrizes, estavam sendo cumpridos. O que se verificou é que a sua implementação tem sido negligenciada pela instituição. Essa constatação é preocupante por tratar-se da formação de professoras.

A formação social de Muzambinho, bem como de suas características socioeconômicas e culturais, remete à herança patriarcal, colonial e escravocrata que é assentada na exaltação ideológica da branquitude. Por sua vez, a história da Escola Estadual Antonieta de Barros reproduz os valores contidos no projeto moderno de Estado, em que, por meio da formação, seria possível civilizar homem e mulher capazes de se integrarem à nova sociedade emergente.

Observamos, nesse contexto social, portanto, diante de situações de preconceito e de discriminação racial, que as mulheres negras muitas vezes “optam” também por silenciar-se. Esse tipo de comportamento é entendido por elas como uma estratégia que as invisibilizem, buscando, com isso, manter a sua autopreservação. A esse respeito, a investigação evidenciou que as professoras participantes deste estudo lidam, desde a tenra idade, com o trauma causado pelo racismo recreativo sofrido por meio de brincadeiras, piadas e deboches que incidem sobre suas corporeidades negras devido as suas características fenotípicas no interior da instituição escolar.

Essas professoras necessitam, portanto, reconstruir, permanentemente, processos socioafetivos de valorização de si mesmas para construir a sua identidade étnico-racial. Com isso, entender melhor a relação entre subjetivação e docência torna-se cada vez mais necessário. Em outras palavras, é preciso considerar as experiências subjetivas do indivíduo-docente em relação às suas vivências das relações étnico-raciais. Afinal, o trabalho com práticas pedagógicas voltadas à ERER implica que essas profissionais saibam lidar com experiências discriminatórias raciais não só aquelas vivenciadas pelos seus(suas) estudantes como também consigo próprias.

Para cada uma dessas mulheres, negras e normalistas, o exercício profissional suscita superar o seguinte desafio: romper o modus operandi do silenciar-se diante de situações causadas pelo racismo institucional em ambientes silenciadores.

1Esse nome é fictício e presta homenagem a essa normalista negra que muito contribuiu com a educação nacional e pela luta pela emancipação feminina negra.

2O país identificou a primeira contaminação pelo Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2 (SARS – CoV-2) (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) no final de fevereiro de 2020, e, de lá para cá, já são mais de 660 mil mortes (subnotificado).

4De acordo com os registros históricos consultados, a imigração italiana estabeleceu-se na cidade nas primeiras décadas do século XX (FALCUCCI, 2010).

5Para fins éticos de pesquisa, esses nomes são fictícios e foram escolhidos pelas próprias mulheres.

6O termo “raça” é utilizado como uma construção social, política, histórica e cultural.

7A Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, alterou a LDBEN de 1996 – Lei Nº 9.394/1996 –, e prevê a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educação Básica ofertada nos estabelecimentos de ensino públicos e particulares (BRASIL, 2003). Essa Lei foi atualizada, em 2008, para a Lei Nº 11.645, de 10 março, e passou a incluir a História e a Cultura dos Povos Indígenas brasileiros (BRASIL, 2008).

8Após a sanção da referida Lei, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou o Parecer CNE/CP No 3, de 10 de março de 2004, e a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER) (BRASIL, 2004a, 2004b).

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Recebido: 11 de Julho de 2021; Revisado: 09 de Abril de 2022; Aceito: 14 de Abril de 2022; Publicado: 03 de Maio de 2022

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