SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17Normalistas negras: formación de profesoras negras en un ambiente silenciadorConfluencias afro-pindoramicas: por una formación humana contra-colonialista índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Práxis Educativa

versión impresa ISSN 1809-4031versión On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 30-Mayo-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18337.067 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Youtubers indígenas brasileiros: interfaces entre cultura e educação

Brazilian indigenous youtubers: interfaces between culture and education

Youtubers indígenas brasileños: interfaces entre cultura y educación

Lia Machado Fiuza Fialho* 
http://orcid.org/0000-0003-0393-9892

Márcia Cristiane Ferreira Mendes** 
http://orcid.org/0000-0002-6219-7182

1Docente da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC)

2Docente do Centro Universitário INTA (UNINTA). Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).


Resumo

Objetiva-se identificar os conteúdos educacionais/culturais veiculados em canais de youtubers indígenas brasileiros. Realizou-se uma pesquisa virtual sobre canais de youtubers indígenas brasileiros na rede mundial de computadores com os descritores “youtubers” e “educação indígena”. Foram localizados 15 canais no YouTube produzidos por youtubers indígenas. A análise considerou os conteúdos acerca da educação e da cultura indígenas, bem como a maneira como esses conhecimentos eram disseminados no ambiente virtual. Identificaram-se três categorias temáticas: músicas e literatura; cotidiano; e política. Estas explicitavam as diversas formas de vida indígena, valorizando suas artes e culturas, desmistificando estereótipos preconceituosos e fortalecendo a luta pelo reconhecimento da história e dos direitos indígenas. Constatou-se que os canais no YouTube são importantes veículos para propagação, valorização e preservação da cultura indígena, inclusive possibilitando, no âmbito educativo, o melhor conhecimento da diversidade cultural, fortalecendo uma prática multicultural com aprendizagens mais significativas.

Palavras-chave: Youtubers; Educação indígena; Culturas indígenas

Abstract

The objective is to identify the educational/cultural content broadcast on channels of Brazilian indigenous Youtubers. A virtual survey was conducted on channels of Brazilian indigenous Youtubers on the worldwide web, with the descriptors “Youtubers” and “indigenous education”. Fifteen channels were found on YouTube and produced by indigenous Youtubers. The analysis of the channels considered the contents about indigenous education and culture, as well as how this knowledge was disseminated in the virtual environment. Three thematic categories were identified: music and literature, daily, and politics. These sought to explain various forms of indigenous life, valuing their arts and cultures, demystifying prejudiced stereotypes, and strengthening the struggle for the recognition of indigenous history and rights through music, dances, handicrafts, interviews, videos, political mobilizations, etc. It was found that the channels on YouTube are essential vehicles for the propagation, valorization, and preservation of indigenous culture, including making it possible, in the educational scope, to better understand cultural diversity, strengthening a multicultural practice with more significant learning.

Keywords: Youtubers; Indigenous education; Indigenous cultures

Resumen

Se objetiva identificar el contenido educativo/cultural transmitido en canales de youtubers indígenas brasileños. Se realizó una investigación virtual sobre los canales de youtubers indígenas brasileños en internet, con los descriptores “youtubers” y “educación indígena”. Se encontraron 15 canales en YouTube producidos por youtubers indígenas. El análisis consideró los contenidos sobre educación y cultura indígenas, así como la forma en que este conocimiento fue difundido en el entorno virtual. Se identificaron tres categorías temáticas: música y literatura; cotidiano; y política. Estos explicaron las diferentes formas de vida indígena, valorando sus artes y culturas, desmitificando estereotipos prejuiciosos y fortaleciendo la lucha por el reconocimiento de la historia y los derechos indígenas. Se encontró que los canales en YouTube son vehículos importantes para la difusión, valorización y preservación de la cultura indígena, inclusive posibilitando, en el ámbito educativo, comprender mejor la diversidad cultural, fortaleciendo una práctica multicultural con aprendizajes más significativos.

Palabras clave: Youtubers; Educación indígena; Culturas indígenas

Introdução

As novas tecnologias1 têm se ampliado rapidamente, e é notório como estas alteram a vida das pessoas, envolvendo mudanças nos comportamentos pessoal, social e profissional (BERRIBILI; MILL, 2018). O seu uso proporciona o acesso à informação de forma rápida, especialmente por meio de redes sociais e canais de interatividade, conectando pessoas de países diversos, pois, como descreve Mello (2012, p. 102), “[...] os avanços e descobertas, quando anunciados, não ficam restritos a uma comunidade, como antigamente, agora a população mundial tem conhecimento sobre as questões de todo o planeta”.

O acesso à informação, por intermédio da internet2, efetiva-se de várias maneiras e por diversos canais. Este estudo centra foco em um veículo específico, o YouTube3, mais delimitadamente acerca dos canais produzidos por youtubers4 indígenas brasileiros que veiculam informações sobre os povos originários do Brasil. Nesse viés, a pesquisa objetiva identificar os canais de youtubers indígenas brasileiros e os conteúdos veiculados a respeito da educação e cultura indígenas. Levanta-se a hipótese de que esses canais no YouTube, por possibilitar a participação ativa dos indígenas, ainda que não sejam muitos, podem ser uma ferramenta tecnológica viável para o fomento de uma educação decolonial5.

O interesse por este trabalho emergiu da participação no grupo de pesquisa Práticas Educativas, Memórias e Oralidades (PEMO), chancelado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculado à Universidade Estadual do Ceará, que realiza pesquisas biográficas sobre mulheres educadoras (CARVALHO; FIALHO; LIMA, 2021; FIALHO; SANTOS; FREIRE, 2020; PEREIRA; SOUSA; FIALHO, 2021), no qual foi possível conhecer histórias de professoras índias que relatavam utilizar canais do YouTube como recurso didático. Percebeu-se que as novas tecnologias estavam inseridas em diversas aldeias e faziam parte das rotinas diárias dos indígenas, por exemplo, no uso dos celulares, computadores, notebooks e redes de interatividade via internet (MENDES; FIALHO; MACHADO, 2019). Mediante a constatação das mídias digitais divulgando conhecimentos concernentes à educação indígena, emergiu o problema central da pesquisa: quais são os canais no YouTube que tratam da educação indígena e que conteúdos sobre essa temática estão sendo veiculados nos endereços de domínio “BR”?

Importa inferir que o ideário universalizante e preconceituoso, disseminado no imaginário social por séculos de história, segundo Schmidt e Cainelli (2004), aferiu a todos os indígenas a condição de pessoas rudes, pouco evoluídas, que vivem da caça, pesca, agricultura e artesanato, as quais não se desenvolvem tecnologicamente, inclusive reproduzindo tal percepção nas escolas de educação básica por intermédio dos livros didáticos. Na contramão, Silva K. e Silva M. (2010) asseveram que cada sociedade indígena tem uma estrutura própria, com cultura específica, sendo dinâmica e crítica; com efeito, não é possível ignorar a história indígena ou falar dos povos originários de maneira generalista, invisibilizando suas especificidades.

Em 10 de março de 2008, foi sancionada a Lei nº 11.645, na qual se instituiu a obrigatoriedade de o ensino sobre a cultura e a história indígena ser incluído no currículo oficial das instituições públicas e privadas de ensino do país. Tal iniciativa, como destaca Mignolo (2007), é importante para o reconhecimento e valorização dos povos indígenas, desde que os conhecimentos não sejam trabalhados na vertente eurocêntrica, mas a partir da lógica decolonial, para produzir uma energia de descontentamento e de desconfiança ao poder colonial (LOUREIRO, MORETTI, 2021), pois, segundo Fialho, Machado e Sales (2014), já não se admite mais uma proposta de ensino que abstrai as realidades vividas pelos sujeitos históricos sociais, em detrimento da mera descrição tendenciosa, relegando as relações sociais e culturais dos agentes históricos, que efetivamente são os autores da história, a segundo plano de importância.

A relevância social desta pesquisa sustenta-se não apenas no fato de possibilitar perceber que as novas tecnologias também estão fortemente presentes em muitas comunidades indígenas, o que já tensiona paradigmas colonialistas, mas de conhecer como essas tecnologias estão veiculando conhecimentos para possibilitar ampliar discussões acerca das concepções de educação e cultura indígenas, suscitando a reflexão para a viabilidade ou não da utilização do YouTube como ferramenta tecnológica educativa, especialmente com mote em uma educação decolonialista. Pelo fato de o YouTube ser espaço de amplo acesso, utilizado por professores e alunos da educação básica e do ensino superior, interessa conhecer a existência de canais específicos para tratar a educação indígena, bem como analisar criticamente seus conteúdos, antes de utilizá-los como ferramentas educativas sobre povos indígenas.

Tecnologias, youtubers e educação indígena

No Brasil, vivem mais de 250 povos indígenas, segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), somando uma população de 817.963 pessoas, sendo que 315.180 habitam o meio urbano e 502.783 habitam o meio rural. Esse dado permite inferir que, ainda que a maioria da população indígena se concentre em regiões rurais, uma parcela considerável está inserida no meio urbano, com maior contato com as tecnologias digitais. Os indígenas representam cerca de 0,5% da população brasileira, possuindo uma riquíssima diversidade étnica, cultural e educacional, no entanto eles são pouco conhecidos, compreendidos e respeitados pelos não indígenas (DELGADO; JESUS, 2018).

Segundo Ginsburg (1994), na contramão de reforçar uma história eurocêntrica, a tentativa de produzir a história dos povos indígenas, considerando os aspectos educacionais, culturais, religiosos e mitológicos, é um movimento internacional que perpassa necessariamente pela consideração da visão de mundo indígena, isto é, uma história constituída por eles e com eles. Dessa maneira, com os povos indígenas posicionados atrás das câmeras, é possível ensejar protagonismo e visibilidade às suas vozes, tornando factível que eles narrem suas próprias histórias.

Os primeiros filmes etnográficos buscavam explicitar os povos indígenas como exóticos e atrasados, que poderiam vir a atingir maior grau de civilização se houvesse ação do Estado para educá-los a deixar sua selvageria, como leciona Castro (2005, p. 13):

Aplicada à antiga questão da enorme diversidade cultural humana, percebida tanto nas sociedades que existiram no passado como nas que conviviam contemporaneamente no espaço, a perspectiva evolucionista em antropologia baseava-se num raciocínio fundamental: reduzir as diferenças culturais a estágios históricos de um mesmo caminho evolutivo.

Tal perspectiva, além de não priorizar a narrativa dos povos indígenas brasileiros, ainda colaborava para o fomento de uma percepção equivocada e preconceituosa, que associava os indígenas a selvagens que precisavam ser domesticados, inculcando neles os moldes da cultura ocidental. Dentre outros fatores, prepondera-se o fato de que até recentemente os filmes etnográficos e as outras produções audiovisuais que envolviam os povos indígenas não eram elaborados por seus integrantes. Delgado e Jesus (2018) explicitam que, nas últimas décadas, essa perspectiva midiática tem sido questionada e o movimento indígena tem conseguido travar embates, sensibilizar comunicadores e produzir novos conteúdos audiovisuais com temáticas envolvendo os povos indígenas a partir de suas ópticas.

Nesse sentido, os avanços tecnológicos têm revolucionado o mundo e não tem sido diferente com muitos dos povos indígenas. Castells (1999) leciona que essa revolução tecnológica tem provocado mudanças nas bases materiais da sociedade como um todo, apresentando-se numa velocidade que, por vezes, é difícil de acompanhar. De acordo com Vermelho et al. (2014, p. 182), “[...] as novas tecnologias permitiram a criação de meios de comunicação mais interativos, liberando os indivíduos das limitações de espaço e tempo, tornando a comunicação mais flexível”.

A evolução tecnológica vem rompendo paradigmas e modificando a forma como o ser humano se relaciona com o ambiente nas diversas áreas, desde o mundo do trabalho, as relações humanas e, por que não dizer, a aquisição do conhecimento. A onipresença dos recursos das tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC) está cada vez mais arraigada nos nossos hábitos cotidianos modificando a forma como interagimos e nos informamos. (SOARES et al., 2018, p. 1).

Importa perceber que, por meio dos avanços tecnológicos, foi possível se constituir canais de youtubers no Brasil, alguns destes não apenas contam com a participação de indígenas, mas são produzidos por eles, o que merece destaque. Tais canais sinalizam tanto a utilização das tecnologias digitais pelos povos indígenas como a importância desses youtubers, mostrando a diversidade cultural e educacional não apenas para outras comunidades indígenas, mas também para todos os não indígenas que acessam os canais.

Salienta-se ainda que a maior parte dos acessos no YouTube é efetivada por crianças e jovens. Conforme asseveram Silva, Fagundes e Menezes (2018), no manual Saúde de crianças e adolescentes na era digital, criado pela Sociedade Brasileira de Pediatria, há dados e indicadores referentes à pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet e o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, a TIC Kids Online - Brasil de 2015, que mostram que há 29,7 milhões crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos no Brasil, dos quais 23,7 milhões (80%) são usuários da internet de maneira intensa. Tal assertiva permite inferir que crianças e jovens em processo de desenvolvimento possuem contato com conhecimentos mediados pela web, e a forma como estes são significados e apreendidos interfere na sua percepção de mundo (FIALHO; SOUSA, 2019).

Conforme Castells (1999), as novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais de instrumentalidade e já não podem mais ser ignoradas, pois interferem no desenvolvimento da humanidade. A comunicação mediada por computadores gera uma gama de comunidades virtuais, a exemplo dos canais no YouTube, que possibilitam a rapidez ao acesso ao conteúdo que se quer veicular. Os youtubers, inclusive, não raro, são sujeitos desconhecidos; não sendo pessoas públicas, no sentido de não ter marcante presença midiática nos meios de comunicação de massa, são relegados a segundo plano de importância, pelo menos até que consigam destaque na propagação de suas postagens.

Os vídeos produzidos pelas pessoas comuns, como é caso dos vídeos elaborados pelos indígenas, são geralmente gravados com webcam, sem edição complexa e sem uma ampla equipe de produção, como se observa nos meios de comunicação de massa ou em canais mais sofisticados. Nesses vídeos, os protagonistas geralmente falam para a câmera, em primeiro plano, comentando sobre os temas da pauta de seu canal. Ainda que sem um rigor profissional, Oliveira e Viggiano (2018) inferem que os youtubers democratizam o acesso à educação, pois tornam amplamente acessível o conhecimento de maneira gratuita.

Berribili e Mill (2018) explicam que os youtubers foram se tornando importantes em vários setores, especialmente no setor comercial, para divulgação de produtos, no entanto há uma vasta variedade de canais que é utilizada para propagar os trabalhos individuais e coletivos e até mesmo a vida pessoal. Independentemente do objetivo para o qual foram constituídos, esses canais acabam por difundir práticas cotidianas, artes, valores, costumes, relações sociais, dentre outros aspectos que compõem o arcabouço de culturas plurais.

Como afirma Martino (2009, p. 3):

O líder de opinião difunde as mensagens (digamos, uma função propagação), mas ao fazerem isto não podem deixar de exercer uma função de selecionar aquelas que julgam pertinentes (função filtro), além disso, também podem, e frequentemente o fazem, ‘editam’, recortam, comentam, avaliam e, portanto, transformam estas mensagens.

Em se tratando da difusão da educação e da cultura, essa realidade é bem marcante, pois cada sujeito vai transmitir aquilo que concebe como oportuno, imbuído de valores, crenças e opiniões, que são subjetivos (ARAÚJO; SOARES, 2019). Dessa maneira, o canal no YouTube torna-se um espaço de formação do sujeito, possibilitando novos aprendizados, que perpassam pela seleção e edição do youtuber (SOARES et al., 2018). Inclusive, como as crianças, jovens e adultos poderão ter acesso aos vídeos do YouTube desde computadores, tablets, smartphones, dentre outros, permite-se uma informação rápida (SILVA; FAGUNDES; MENEZES, 2018).

Os youtubers indígenas, em geral, fabricam vídeos caseiros, que incluem aulas, documentários, diários pessoais, eventos de militância, dentre outros. Faculta observar que tal recurso digital é utilizado pelos indígenas como espaços interativos, dinâmicos e mobilizatórios, ou seja, como uma ferramenta para promover a consciência para a preservação, valorização e respeito da cultura indígena. A educação indígena não está alheia ao processo de modernização tecnológica, ao contrário, em muitos casos, tornou-se uma ferramenta importante na divulgação de suas ideias, e os canais de YouTube indígenas podem ser utilizados didaticamente para fomentar conhecimento sobre a história e cultura indígenas a partir do que é propagado por eles próprios, de maneira decolonial.

O conhecimento acerca da história e cultura indígenas é inserido, mediante legislação educacional, como obrigatório nas escolas de educação básica e nos cursos superiores de licenciaturas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394/1996, no Capítulo II, artigo 26, assegura que o conteúdo ministrado de História do Brasil deve se referenciar também à História Indígena, como também de outros povos: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”. Também assevera, no artigo 32, § 3º, que “[...] o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

A educação indígena no Brasil tornou-se obrigatória, com relevância reconhecida, e não pode ser propagada à luz do ideário eurocêntrico e da perspectiva colonizadora. Os youtubers indígenas, por meio de seus canais, podem facilitar a mediação educativa do conhecimento para indígenas e não indígenas, desde a utilização responsável das informações veiculadas pelos docentes (LUCHETTA; PIOVEZANA, 2011). Resta, todavia, conhecer quais são os canais do YouTube que produzem informações sobre os povos indígenas que podem ser utilizados com fins educativos, com o protagonismo de youtubers indígenas. Para isso, elaborou-se um percurso investigativo, descrito na próxima seção.

Metodologia

A pesquisa foi iniciada com uma busca on-line realizada em 9 de janeiro de 2020, nestas bases de dados científicas: Scientific Electronic Library Online (SciELO), Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), para conhecer as produções prévias que inter-relacionavam a educação indígena ao YouTube.

Na SciELO, em busca por artigos com o descritor “educação indígena”, foram encontrados 22 artigos, no entanto, quando refinado com o descritor “YouTube”, nenhum registro foi encontrado. No Portal de Periódicos da Capes, em “buscar assunto”, com tipo de material “artigos”, no campo “assunto”, foram encontrados 211 artigos para o descritor “educação indígena”, mas, ao realizar o acréscimo do termo “YouTube”, também não se localizou nenhum registro. Na BDTD, em “busca avançada”, no campo “assunto”, localizaram-se 371 resultados com o descritor “educação indígena”, mas, ao adicionar “YouTube”, novamente nada foi encontrado.

Cogitou-se a possibilidade de que YouTube fosse um termo muito específico, então refizeram-se as pesquisas nas três bases de dados supramencionadas, combinando os termos: “educação indígena” e “novas tecnologias”; “educação indígena” e “tecnologia digital”; e “educação indígena” e “vídeo”, seguindo os mesmos percursos já descritos para a busca com “educação indígena” e “YouTube”. Na SciELO e no Portal de Periódicos da Capes, não houve registro de artigo para as três novas combinações. Na BDTD, o mesmo ocorreu com as combinações utilizando “novas tecnologias” e “tecnologia digital”, todavia apareceram cinco registros com a combinação “vídeo”. Esses trabalhos foram compilados na expectativa de que pudessem colaborar com a fundamentação teórica da pesquisa; com efeito, após analisar os títulos, resumos e palavras-chave, foi constatado que nenhum tratava da utilização, produção ou discussão de vídeos envolvendo indígenas.

Essa busca inicial, mesmo que não tenha oferecido bons subsídios teóricos, foi importante para compreender que ainda são poucos os estudos publicados no Brasil que abordam, ainda que superficialmente, a educação indígena, afinal com esse descritor localizaram-se apenas 604 produtos, oriundos de teses, dissertações e artigos científicos. Sobre o uso das novas tecnologias associado à educação indígena, o mais alarmante é que nenhum estudo foi publicado. Essa constatação não apenas confere originalidade e ineditismo à pesquisa em tela, mas aponta para a necessidade de se refletir como as comunidades indígenas vêm se apropriando das tecnologias digitais e como estas estão sendo trabalhadas na educação.

Após a exploração prévia nas bases de dados, iniciou-se a pesquisa epicentral, com o objetivo de identificar os canais de youtubers indígenas brasileiros, para posteriormente conhecer os conteúdos veiculados atinentes à educação indígena disseminados por intermédio do YouTube. O estudo, dessa maneira, foi desenvolvido em meio eletrônico no dia 09 de julho de 2021, por intermédio da rede mundial de computadores, visto que as informações no Youtube são fornecidas por meio digital.

Mais detalhadamente, para encontrar os canais de youtubers indígenas brasileiros, foi colocado no campo de pesquisa do Google o assunto: “canais de youtubers indígenas”, aparecendo o canal de “Wariu” como primeira opção. Pelo canal de Wariu, no ícone “canais”, outras indicações de youtubers indígenas foram apresentadas, possibilitando o encontro dos divulgadores de conteúdos indígenas, como “Benilson Pitaguary” e “Vlog Katú”. Dessa maneira, foram realizadas novas buscas nos ícones desses canais, até que as indicações se repetissem, mostrando o esgotamento da coleta. Ao final desse processo, foram identificados 15 canais de youtubers indígenas.

Os critérios de inclusão foram três: 1) ser produzido por um/a indígena; 2) possuir autodefinição escrita no canal como divulgadores de conteúdos sobre indígenas; e 3) disseminar assuntos consoante a educação e cultura indígenas de maneira direta ou indireta. Como todos os canais atendiam aos critérios de inclusão, os 15 foram considerados para análise.

Após a seleção dos canais que seriam investigados, iniciou-se a observação sistemática das postagens, a leitura flutuante e aprofundada dos conteúdos veiculados e a exportação de informações pertinentes, o que possibilitou a organização do banco de dados com os resultados encontrados.

Importa esclarecer, no que concerne aos aspectos éticos desta pesquisa, que, como não foi realizado estudo envolvendo seres humanos, pois apenas trabalhou-se com conteúdo de acesso aberto publicamente divulgado, não houve a necessidade de aprovação do projeto de pesquisa no Comitê de Ética, no entanto primou-se pela ética no desenvolvimento do estudo, expressa em diversos aspectos: no cuidado com a definição e descrição do problema e objetivo da pesquisa; na fiel coleta de dados apoiada na metodologia selecionada; na análise e interpretação dos resultados, que prezaram o rigor e compromisso com as ideias dos autores; e na redação e divulgação da pesquisa, tanto no que concerne à linguagem científica clara e direta como no que concerne à efetiva participação e responsabilidade autoral dos pesquisadores que assinam este artigo (CRESWELL, 2007).

Apresentação e discussão dos resultados

Constatou-se que a tecnologia tem sido utilizada também pelos indígenas, e tal apropriação, no tocante especificamente ao uso do YouTube, decorreu da necessidade de alguns indígenas mostrar aos seus pares e ao mundo que sua cultura importa, que suas vidas possuem valor, que o povo indígena é diverso e plural e que produz história. Mendonça, Lima e Gusmão (2015, p. 42), sobre a necessidade do uso da tecnologia, inferem que, “[...] em aldeias e comunidades indígenas, esta realidade não é diferente, também existe a demanda por acesso à informação e o uso de recursos da TI (computadores, smartphones, Internet etc.)”.

Optou-se por mostrar os resultados encontrados nesta pesquisa identificando os youtubers brasileiros localizados expostos em um quadro, que também traz o endereço eletrônico do seu canal, uma breve descrição de cada canal, os principais conteúdos veiculados e as possibilidades de interação com o público. Esse quadro torna factível obter uma visão geral dos achados e uma percepção específica de cada canal.

Quadro 1 Youtubers indígenas com domínio “BR” 

Nome Endereço Descrição Conteúdo Interatividade
Daniel Munduruku
https://www.youtube.com/user/dmunduruku
Inscreveu-se em 31 de janeiro de 2011 e possui 13,8 mil inscritos. Há 347 vídeos, com 275.163 visualizações no canal.. Exibe postagem que traz informações de literatura indígena, sugestões de trabalhos e convidados que compartilham as tradições indígenas. Dessa forma, possibilita a criação de uma consciência cidadã, uma compreensão da diversidade e da identidade indígena. Possibilita comentários, clicar em “gostei” e “não gostei” e fazer compartilhamento dos vídeos. Não há discussões e não apresenta indicações para outros canais indígenas.
Crônicas Indigenistas - Música Indígena
https://www.youtube.com/channel/UCAomI3aHQWA2svF2nnogGNg
Inscreveu-se em 28 de dezembro de 2017 e possui 8,84 mil inscritos. Há 45 vídeos publicados, com 1.199.545 visualizações, no canal. Compartilha músicas com tradições e cultura literária indígenas. Possibilita comentar as letras das músicas, clicar em “gostei” ou “não gostei” e fazer compartilhamentos de vídeos. Não há discussões e não apresenta indicações para outros canais indígenas.
Wariu
https://www.youtube.com/channel/UCZFj_5-VLQRddUKouwCSpbA
Inscreveu-se em 22 de agosto de 2013 e possui 35,9 mil inscritos. Há 28 vídeos e 1 na playlist, com 614.741 visualizações, no canal. Busca compartilhar a ideia do que é ser indígena no século XXI, mostrando as modificações nas aldeias com as novas tecnologias. Busca valorizar a identidade indígena. Possibilita comentar as letras das músicas, clicar em “gostei” ou “não gostei” e fazer compartilhamentos de vídeos. Há indicações para outros canais indígenas.
Vlog Katú
https://www.youtube.com/channel/UCDWpUyt09FuAidkMZAlVEVg
Inscreveu-se em 7 de dezembro de 2017 e possui 3,55 mil inscritos. Há 2 vídeos, com 2.401 visualizações no canal. Exibe postagens direcionadas à valorização da cultura indígena, de forma irônica e bem-humorada, fazendo crítica aos estigmas que são propagados sobre indígenas. Busca fomentar o empoderamento indígena proporcionando uma desconstrução de estereótipos na perspectiva decolonialista. Possibilita o compartilhamento dos vídeos, mas não torna possível realizar comentários. Há indicações para outros canais indígenas.
Anápuáka
https://www.youtube.com/user/anapuaka
Inscreveu-se em 28 de fevereiro de 2008 e possui 1,2 mil inscritos. Há 11 vídeos e 2 vídeos na playlist, com 43.747 visualizações no canal. Exibe postagens sobre políticas públicas e músicas indígenas. Possibilita comentar as letras das músicas, clicar em “gostei” ou “não gostei” e fazer compartilhamentos de vídeos. Há indicações para outros canais indígenas.
Benício Pitaguary
https://www.youtube.com/channel/UCMde3zcWeLRiPRmeV1fOB5Q
Inscreveu-se em 6 de janeiro de 2015 e possui 1,87 mil inscritos. Há 65 vídeos, 12 vídeos na playlist, com 71.256 visualizações no canal. Exibe postagens sobre a cultura indígena, descrevendo as aldeias, a arte, a música, a culinária e a educação. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Há indicações de canais indígenas.
Kunumi6 MC Oficial
https://www.youtube.com/c/KunumiMCOficial/about
Inscreveu-se em 14 de novembro de 2013 e possui 8,85 mil inscritos. Há 20 vídeos e 10 na playlist, com 46.129 visualizações. Expressa o ativista político na luta pelos direitos indígenas. Ficou conhecido por estender a faixa vermelha escrita “Demarcação Já” na Copa do Mundo de 2014. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Há indicações para outros canais indígenas.
Djuena Tikuna
https://www.youtube.com/user/djuenatikuna/videos
Inscreveu-se em 21 de abril de 2012 e possui 3,52 mil inscritos. Há 79 vídeos e 4 na playlist, com 176.112 visualizações no canal. Exibe postagens voltadas para a divulgação artística da música indígena de Djuena, cantada na língua tupi, e compartilha aspirações. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Há indicações para outros canais indígenas.
Rádio Yandê
https://www.youtube.com/channel/UCLMgRZ4O12fCZjJK7qeysQw/about
Inscreveu-se em 1º de setembro de 2015 e possui 242 inscritos. Há 18 vídeos, 1 na playlist, com 3.390 visualizações no canal. Exibe postagens de comunicação Yandê com o objetivo de difundir essa cultura indígena. A grade da programação contempla informáticos sobre a realidade indígena. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Há indicações para outros canais indígenas.
Daiara Tukano
https://www.youtube.com/channel/UCnDJldEDEgwGtCJur6GnuUw
Inscreveu-se em 30 de setembro de 2011 e possui 1,61 mil inscritos. Há 62 vídeos, 3 na playlist, com 3.298 visualizações no canal. Um canal de resistência e luta na aquisição dos direitos indígenas. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Há indicações para outros canais indígenas.
Katú Mirim
https://www.youtube.com/channel/UC27r9YhkT2hyRl9jmXj2mTA
Inscreveu-se em 17 de março de 2017 e possui 5,08 mil inscritos. Há 14 vídeos, com 89.249 visualizações no canal. Exibe postagens de uma artista independente e músicas de autoria própria que retratam as questões indígenas. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Há indicações para outros canais indígenas.
Oz Guarani
https://www.youtube.com/channel/UCFS1sv6slO9HvHw58zsZ1Tw
Inscreveu-se em 26 de julho de 2017 e possui 2,4 mil inscritos. Há 16 vídeos, com 73. 742 visualizações no canal. Exibe postagens de um grupo de rap Guarani, “M’bya”, formado na terra indígena Jaraguá. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Não há indicações para outros canais indígenas.
Denilson Baniwa
https://www.youtube.com/user/DBaniwa
Inscreveu-se em 8 de março de 2007 e possui 2,07 mil inscritos. Há 17 vídeos, com 25.437 visualizações no canal. Expressa o ativismo pelos direitos indígenas, trazendo à baila a cultura, a arte, a culinária e especialmente os assuntos políticos. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Não há indicações para outros canais indígenas.
Ysani Kalapalo
https://www.youtube.com/user/YsaniTV
Inscreveu-se em 28 de abril de 2012 e possui 640 mil inscritos. Há 614 vídeos, com 59.316.515 visualizações no canal. Exibe postagens de vídeos promovendo a paz e ensejando visibilidade à cultura indígena, perpassando pela arte, música, dança e assuntos políticos. Também trata da homossexualidade indígena. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Não há indicações para outros canais indígenas.
Mobilização Nacional Indígena
https://www.youtube.com/channel/UCIDiCgobjud78vGgHsMWmjQ/about
Inscreveu-se em 1º de abril de 2015 e possui 4,44 mil inscritos. Há 27 vídeos, com 279.774 visualizações no canal. Exibe postagens sobre mobilizações nacionais, defende os direitos dos indígenas e estimula as manifestações indígenas. Possibilita comentar os vídeos e fazer compartilhamentos. Não há indicações para outros canais indígenas. Instiga para mobilizações.

Fonte: Elaboração própria (2021).

Demonstrou-se que os 15 canais foram criados entre 2007 e 2017 e que havia, ao todo, aproximadamente 733.130 mil inscritos, com uma média aproximada de 48.875 mil inscritos por canal. Havia um único canal com apenas 242 inscritos - a Rádio Yandê -, enquanto a maioria já havia sido visitado por milhares de inscritos, sendo o canal mais popular - Ysani Kalapalo - chegando a registrar 640 mil inscritos. Ao todo, os canais haviam postado 1.397 vídeos, somando cerca de 62.220.500 mil de visualizações. Importa ressaltar que esses quantitativos são referentes à consulta realizada em 09 de julho de 2021, pois a atualização dos canais é constante e, com efeito, os números crescem.

Havia sete canais geridos por youtubers homens, seis por mulheres e dois - Mobilização Nacional Indígena e Radio Yandê - possuíam caráter mais coletivo, impossibilitando considerar apenas um youtuber como responsável por alimentar esses canais. Os principais conteúdos produzidos pelos indígenas eram referentes às músicas, às danças, à culinária, à literatura, à rotina nas aldeias, à educação e à mobilização política. Percebeu-se que tais assuntos não apenas propagavam as várias facetas da cultura indígena, mas objetivavam disseminá-la como uma maneira de reconhecimento das nuances que perpassavam pela vida dos indígenas, mediante a valorização do seu povo, a conscientização para o respeito às múltiplas formas de viver e a sensibilização para a necessidade de assegurar direitos aos indígenas.

Ao buscar o reconhecimento do povo indígena, informava-se sobre o cotidiano nas aldeias e, para isso, ressaltava-se o fazer artístico dos indígenas, bem como suas rotinas e lutas políticas. Foi possível assistir aos indígenas professores, alunos, músicos, dançarinos, curandeiros, agricultores, artesãos, militantes políticos, dentre outros, o que tornou factível uma aproximação virtual com diferentes modos de viver, ou seja, com um arcabouço cultural plural de valor inestimável. Ritos, mitos e costumes variavam entre povos indígenas, mostrando a diversidade cultural na forma de se vestir, de se alimentar, de pintar o corpo, de elaborar rituais religiosos, de se comportar diante do mundo, evidenciando a necessidade de preservação e valorização da vida humana e do patrimônio material e imaterial produzido (FIALHO; FERREIRA; SILVA, 2020).

Cabe destacar que os youtubers investigados não se apresentam como educadores, tampouco seus canais são definidos com a finalidade específica educacional, todavia seus canais configuram-se como espaços formativos, porque disponibilizam conteúdos importantes por retratar a história e a cultura indígenas na interface com suas lutas políticas.

Para a realização de uma sistematização mais detalhada dos canais dos youtubers indígenas, dividiram-se os canais por grupos temáticos categóricos que se aproximavam nas suas informações centrais, em suma, que se assemelhavam pela temática mais postada no canal. Segundo Malheiros (2011), as categorias que emergem dos dados apresentam a grande vantagem de permitir uma análise mais rica, já que não há a limitação de um desenho prévio. Nessa perspectiva, a análise dos 15 canais mostrou que os temas de destaque dos canais eram quatro: música, literatura, vida cotidiana e assunto político. Como apenas um canal centrava ênfase na literatura, optou-se por fazer um processo de regressão e organizar os dados em três categorias emergentes, quais sejam: 1. músicas e literatura; 2. cotidiano; e 3. política.

As categorias, para Minayo et al. (1994, p. 70), “[...] se refere[m] a um conceito que abrange elementos ou aspectos com características comuns ou que se relacionam entre si”. Essa classificação favorece que os conteúdos sejam cruzados e comparados para perceber suas similitudes e realizar as análises; dessa maneira, elaborou-se o quadro abaixo, destacando os canais de youtubers e relacionando-os à sua categoria temática:

Quadro 2 Youtubers classificados por categorias temáticas 

Categoria temática Youtubers
Músicas e literatura Daniel Munduruku
Crônicas Indigenistas - Música Indígena
Djuena Tikuna
Katú Mirim
Oz Guarani
Cotidiano Vlog Katú
Wariu
Benício Pitaguary
Rádio Yandê
Ysani Kalapalo
Política Anápuáka
Kunumi
Daiara Tukano
Denilson Baniwa
Mobilização Nacional Indígena

Fonte: Elaboração própria (2021).

A congruência mais enfática entre os conteúdos veiculados nos canais dos youtubers indígenas pesquisados foi a busca pelo reconhecimento e valorização da cultura indígena, já que ensejar luz aos seus cotidianos, suas músicas, suas literaturas e seus anseios políticos era algo realizado com o mote de apresentar aos seus telespectadores formas de vida diferentes, que se expressavam através da música, da arte, dos costumes, do reconhecimento da língua nativa, da necessidade da demarcação das suas terras e da garantia dos demais direitos indígenas. Constituíam-se como uma possibilidade de mostrar que modos de vida distintos existem e precisam ser respeitados e valorizados, afinal a sociedade brasileira é multicultural e heterogênea, o que não permite massificação via massacre de vidas e de formas de viver que não se adéquam aos padrões socioculturais normalizadores instituídos pelos brancos colonizadores (ABU-EL-HAJ, 2019; ABU-EL-HAJ; FIALHO, 2019).

Os canais de Daniel Munduruku, Crônicas Indigenistas - Música Indígena, Djuena Tikuna e Katú Mirim apresentavam a literatura indígena descrevendo a sua importância para a preservação das tradições e valorização dos literatas indígenas. Esses youtubers ressaltavam que a literatura branca não é a única existente, ainda que ocupe majoritariamente os espaços comerciais. Também inferiam que o indígena pode e deve produzir conhecimentos e literatura que ressaltem a história contada pelos indígenas, considerando sua maneira de perceber o mundo, narrativa esta que por séculos, segundo Antunes e Bergamaschi (2012), foi desprezada, desvalorizada e invisibilizada. Vale ressaltar que boa parte da literatura divulgada nos canais analisados era transformada em melodia, fomentando canções musicadas originais, que simbolizavam ritos e contavam a história do povo indígena.

A música para os indígenas era considerada como um elemento importante no processo formativo, sendo algumas passadas de pais para filhos hà várias gerações, contribuindo não apenas para manter os mitos vivos no imaginário da comunidade, mas para a aprendizagem da própria língua nativa (BASTOS, 2007). Também era possível observar a música, como os raps7, sendo utilizada para denunciar as desigualdades sociais e reivindicar a inclusão dos direitos dos indígenas nas políticas públicas brasileiras.

O Vlog Katú, Wariu, Benício Pitaguary, Rádio Yandê e Ysani Kalapalo centravam ênfase em divulgar a maneira como os indígenas transcorriam suas vidas cotidianas. Eram filmadas as casas, as comidas, as festividades, as artes manuais, as pinturas corporais, enfim, o dia a dia nas comunidades: determinados padrões de socialização compartilhada, combinados com um sistema de reforço de seus valores ou do seu comportamento adquirido (FEATHERSTONE, 1999). Eles também transmitiam notícias e lançavam lume à cultura indígena, de modo a valorizar suas múltiplas formas de expressão, inclusive ressaltando o uso da língua original, bem necessária para a compreensão histórico-etnográfico-linguística (PESSOA, 2004). Por intermédio desses canais, era possível desenvolver maior aproximação e sensibilidade com a vida indígena ante uma imersão virtual na naturalidade com que a vida indígena transcorria sem montagens ou retoques que alterassem o panorama indígena.

Os canais de Anápuáka, Kunumi, Daiara Tukano e Denilson Baniwa buscavam principalmente defender os direitos indígenas e fortalecer a união dos povos na luta por uma mobilização política nacional. Discutiam o histórico conflito pela posse e demarcação das terras indígenas dificultadas pela burocracia legal e pela falta de interesse político, como denunciado por Kujawa (2015). Questionavam a ausência da regularização das terras indígenas e, em consequência, o aumento da pressão de madeireiros, mineradores, grileiros e demais aproveitadores que se apropriam indevidamente dos terrenos, explorando-os e acentuando conflitos que não apenas destroem a natureza, mas levam à morte inúmeros indígenas (SILVA, 2018).

No canal de Wariu, indígena Xavante com ascendência Guarani, ele traz informações sobre o fato de os indígenas também se apropriarem da cultura digital; no vídeo denominado “O que é ser indígena no século XXI”, reflete sobre os estereótipos que a sociedade relaciona aos indígenas, como se eles não pudessem evoluir e fossem obrigados a viver como há 400 anos. Segundo Wariu, ser indígena é também ser moderno e ser parte do povo brasileiro, sem desprezar as suas características próprias. Ao buscar romper estereótipos e paradigmas constituídos pela visão eurocêntrica dos indígenas, Wariu, no vídeo “Povos indígenas no Brasil”, questiona os equívocos apresentados em torno da palavra “índio’”. Como afirma Caleffi (2003, p. 21), “[...] esta identidade foi atribuída por Cristóvão Colombo aos habitantes do território posteriormente conhecido como América. Acreditando haver chegado nas índias orientais, percorrendo rotas marítimas pelo Ocidente”. A forma correta, conforme Wariu, deve ser a palavra “indígena”, porque traduz o que é nativo da terra.

Caleffi (2003) acrescenta que ser indígena é ser portador de direitos legais, é fazer parte de um povo que tem sua cultura própria. Assim, “[...] sob a categoria ‘indígena’, como dissemos, encontram-se diferentes grupos étnicos, diferentes tanto entre si, como das sociedades nacionais, os quais reivindicam parte de seus direitos baseados no princípio dos ‘Direitos Originários’” (CALEFFI, 2003, p. 21). Outro equívoco histórico denunciado por Wariu seria denominar o território indígena por “tribo”, pois esse termo foi utilizado pelos europeus para hierarquizar os diferentes povos, logo advoga o uso dos construtos “aldeias”, “povos” ou “comunidades”.

Os canais de Daniel Munduruku e Djuena Tikuna publicam temáticas que envolvem a literatura e cultura indígenas. Defendem que o sentimento de exclusão e preconceito por ser indígena só pode ser sentido pelo próprio indígena, no entanto a sororidade é possível. Segundo Thiél (2006), por meio da literatura indígena, permite-se observar e melhor compreender o conflito entre as construções identitárias criadas para os indígenas e aquelas criadas pelos próprios indígenas.

As Crônicas Indigenistas assim como o canal de Benício Pitaguary - criados por artistas indígenas que produzem músicas evidenciando a cultura, as tradições e a natureza - elaboraram canções - “Sonho do Beija-Flor Benki”, “No meio dessa floresta”, “Tarondê - Canto Yawanawá”, dentre outras que possuem variados estilos de músicas -, inclusive adaptando letras e melodias para a sua própria língua. O Vlog Katú, por exemplo, utiliza o rap para denunciar o descaso e o preconceito com o povo indígena e os massacres ocorridos na tentativa de tomada das terras indígenas. Ele conclama a união dos povos que tiveram sua história marcada pela escravidão e violência para se unirem e serem resistência contra a força do governo e grandes empresários e usineiros que os tentam dominar.

O Oz Guarani também é um canal com músicas indígenas, no estilo rap, evidenciando como os indígenas são fortes em meio às dificuldades que atravessam, como a luta para a posse de suas terras. No rap “O índio é forte”, a última imagem expõe uma parte do manifesto dos povos indígenas da Amazônia em apoio aos Guarani do Jaraguá, publicado em 2017: “[...] conclamamos toda a sociedade brasileira e internacional a impedir que este governo siga destruindo nossos territórios, nossas florestas e nossas vidas [...]. Toda força aos povos indígenas! Demarcação já! Nenhum direito a menos”. Com a música, o Oz Guarani tenta combater a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215/2000, que transfere do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. O texto é encarado pelos diversos povos tradicionais brasileiros e ativistas como uma ameaça aos direitos indígenas. Sobre esse fato, cabe transcrever nota publicada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em outubro de 2015:

A Fundação Nacional do Índio - Funai vem a público manifestar sua irrestrita oposição à PEC 215/00, que tramita no Congresso Nacional. Tal proposta representa uma grave ameaça não apenas aos direitos indígenas, mas a toda a sociedade, uma vez que é inconstitucional por vários aspectos. A PEC 215/00 propõe a transferência de responsabilidades sobre a demarcação de terras indígenas do Poder Executivo para o Legislativo, desrespeitando a Constituição de 1988, cujos direitos ali expressos representam uma conquista de todo o povo brasileiro. Na prática, essa transferência significa que a definição sobre as terras onde os indígenas poderão exercer seu direito à permanência física e cultural está sujeita às maiorias políticas de ocasião. Sabemos que hoje esta maioria representa interesses pessoais e financeiros e atua para que não seja demarcada nenhuma terra indígena, como foi dito explicitamente por parlamentares membros da Comissão Especial, que ontem aprovou a PEC 215/00. [...] Sobretudo, a PEC 215/00 afronta a cláusula pétrea contida no artigo 60 da Constituição de 1988, ao tentar abolir direitos e garantias individuais de toda a sociedade. Caso se concretize, sua aprovação representará um grave retrocesso para a democracia, a sociedade e os povos indígenas do Brasil.

Nessa direção, o canal Anápuáka tem em seus conteúdos assuntos sobre políticas públicas e opiniões, com vídeos que foram produzidos por ele ou reportagens que mencionam sobre as aldeias indígenas que foram televisionadas. As denúncias sobre o desmatamento e a negligência com os indígenas em todos os canais são evidentes. O canal de Daiara Tukano, por exemplo, tem como principal foco denunciar os descasos dos governantes com os indígenas e a apropriação indevida de suas terras.

O canal Mobilização Nacional Indígena divulga vídeos das mobilizações indígenas, dos acampamentos terra livre e da Câmara dos Deputados com pautas indígenas. Está articulado a um site chamado Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que reúne o Acampamento Terra Livre, uma mobilização nacional que é realizada todo ano, desde 2004, para tornar visível a situação de negação dos direitos indígenas e para reivindicar do Estado brasileiro o atendimento das demandas dos povos indígenas. Essa luta por direitos perpassa pelas postagens de Denilson Baniwa - publicitário, artista plástico, ilustrador, comunicador e ativista indígena. Ele indica livros com conteúdo indígena, como O diário e Kaxi, acrescenta dicas de filmes, como Quem quer saber sobre cultura?, realiza entrevistas e divulga projetos indígenas.

Ysani Kalapalo disponibiliza vários vídeos publicados sobre assuntos atuais: como os indígenas tratam as doenças, como evitar gravidez na aldeia, sexualidade, conflitos indígenas, além de desmistificar alguns mitos: fumo do cachimbo, contagem da idade, nascimento de um pajé, casamento com homem/mulher branco/a.

Constataram-se que, ainda que não se identifiquem como canais educativos, os conteúdos produzidos e transmitidos em canais do YouTube pelos indígenas, em geral, ressaltaram as formas de viver dos indígenas com mote na preservação e valorização cultural, na desconstrução de paradigmas preconceituosos e na formação e organização política em defesa dos povos indígenas. Tais conteúdos, mostrados sob a perspectiva indígena, possibilitam conhecer aspectos educacionais e culturais indissociáveis das questões históricas, sociais e políticas, que perpassam pela vida indígena no Brasil, configurando-se como importante veículo divulgador de saberes e como uma ferramenta passível de ser utilizada no campo educacional, especialmente por estar destituída de concepções colonizadoras.

Ao contrário de veicular a diversidade ético-racial e as identidades indígenas propagadas de maneira preconceituosa, estrutural e estruturante, na sociedade brasileira; o cotidiano desses povos, retratados nos canais do YouTube por eles produzidos, oportunizam destituir os racismos em suas diferentes manifestações e trazer à tona informações relevantes para combater concepções retrogradas e estigmatizantes que relegam os povos indígenas à segundo plano de importância. Ademais, propagar a existência desses canais e sua possibilidade de utilização no âmbito educativo fortalece o enfretamento às formas de opressão que naturalizam os silenciamentos dos indígenas, a invisibilidade de suas narrativas e o histórico apagamento de seus discursos.

Realizar a leitura da literatura indicada, ouvir as músicas, ver as danças e pinturas corporais na interface com seus significados, assistir às entrevistas, conhecer ritos e mitos, adentrar virtualmente no cotidiano indígena e, acima de tudo, poder debater coletivamente sobre todo esse material postado nos canais de youtubers indígenas é não apenas uma maneira profícua de apreender novos conhecimentos, mas também uma possibilidade para colaborar com a transmissão desses conhecimentos.

Os canais, inclusive, possuem uma característica em comum, mostrar aos indígenas e não indígenas aspectos que dizem respeito à vida indígena de maneira crítica, com o objetivo de colaborar com a formação da consciência cidadã. Nessa esteira, os canais investigados se apresentam como ferramentas com rica possibilidade de trabalho educativo, que não devem ser ignorados pelos educadores brasileiros, ao contrário, devem ser valorizados e fortalecidos.

O estudo, todavia, traz, de maneira copilada, uma apresentação dos canais disponibilizados no YouTube que podem colaborar para a ampliação dos conhecimentos acerca dos indígenas brasileiros, inclusive apontando os principais assuntos tratados em cada um deles, respondendo ao objetivo proposto. E, para além disso, ainda demonstra objetivamente que muitos indígenas já possuem o domínio e utilizam as ferramentas tecnológicas e digitais para produzir conhecimentos, o que deve ser considerado no ensino das questões indígenas, sugerindo-se, inclusive, que essa ferramenta seja utilizada no campo educacional.

Nesse sentido, a aprendizagem, conforme os povos indígenas, escolar ou não, perpassa por uma prática educativa que pauta os conhecimentos científicos ocidentais para tornar factível a emancipação da tutela não indígena, assim como os saberes tradicionais das etnias que habitam o território brasileiro para o fortalecimento de suas culturas (SILVA; ARAÚJO, 2014). Os canais no YouTube produzidos por indígenas permitem não apenas conhecer as várias culturas e formas de viver desses sujeitos, mas a importância de fortalecer a luta pela garantia de direitos violados, reconhecendo a interculturalidade, como abordagem que se posiciona contrária a um discurso meramente retórico que desrespeita as identidades étnico-culturais.

Os educadores que se comprometem com uma proposta de mudança substancial no padrão cultural tradicional e dominante de formação educacional para galgar maior justiça social compreendem que é inadmissível que um país como o Brasil, “[...] com tamanha diversidade étnica e cultural, permaneça fincado em um modelo único de educação, fundamentado na história, cultura e valores anglo-saxônicos da população branca [...]” (ABU-EL-HAJ, 2019, p. 211-212).

Para finalizar, cabe lembrar que algumas comunidades indígenas optaram por viver isoladas, longe dos avanços tecnológicos e medicinais, pois acreditam que o próprio conhecimento indígena, como o da cura vinda da natureza, é suficiente para a sua existência. Conforme Arisi (2007, p. 32), os termos “indígenas isolados” ou “em isolamento” são redutos de povos maiores que optaram pelo isolamento da sociedade nacional, por vezes em decorrência de experiências traumáticas anteriores:

Longe das discussões que os envolvem, estes povos vivem embrenhados na mata ou outros lugares de difícil acesso por diversos motivos, entre eles, escapar de doenças, ter melhor caça e pesca ou controlar em certa medida os encontros com os brancos. Como aponta o Instituto Socioambiental: ‘o isolamento representa, em muitos casos, uma opção do grupo, que pode estar pautada pelas suas relações com outros grupos, pela história das frentes de atração na região e também pelos condicionantes geográficos que propiciam essa situação’.

Desse modo, não são todos os indígenas que buscam acesso à tecnologia; quanto aos que optam por estilos de vida mais isolados, importa fomentar compreensão, admiração e respeito. Afinal, como lecionam Souza e Di Gregório (2016), este é o objetivo do ensino da história e cultura indígenas: respeitar e valorizar as identidades culturais, ou seja, a diversidade cultural existente no Brasil. Os canais de youtubers indígenas, nessa direção, podem colaborar com esse escopo tanto no que concerne à educação escolar no Brasil como no que diz respeito à educação não formal, lançando luz às múltiplas facetas das diversidades de etnias que compõem os territórios etnoeducacionais.

Considerações finais

A pesquisa partiu de uma inquietação acerca de quais canais no YouTube seriam produzidos por indígenas para tratar sobre a educação e cultura indígenas e que conteúdos sobre essas temáticas estariam sendo veiculados nos endereços de domínio “BR”. Essa inquietação fez emergir um estudo com o objetivo de identificar os canais de youtubers indígenas brasileiros e os respectivos conteúdos disseminados a respeito da educação e cultura indígenas.

Percebeu-se, a priori, que ainda são poucas as pesquisas brasileiras com ênfase na educação indígena, especialmente no tocante ao uso de vídeo para a formação educacional indígena, pois, nesse caso, não foi localizado nenhum estudo na SciELO, no Portal de Periódicos da Capes e na BDTD. Ante a ausência de pesquisas científicas concernentes a canais indígenas brasileiros no YouTube, constatou-se a necessidade de investigar essa temática, já que se partia da hipótese de que os referidos canais poderiam ser uma ferramenta factível para o fomento da educação decolonial, por possibilitar conhecer as histórias e formas de viver à luz das percepções indígenas.

Para se chegar aos youtubers indígenas, foi preciso iniciar uma busca livre no Google com a expressão “canais de youtubers indígenas”. A partir do primeiro canal identificado, foi possível localizar os demais mediante as indicações que possuíam em suas páginas on-line, procedimento realizado até o esgotamento, quando as indicações já não inferiam novos canais. Esse movimento permitiu localizar 15 canais, os quais todos atenderam aos critérios de inclusão - ser produzido por indígenas, possuir autodefinição escrita no canal como divulgador de conteúdos sobre indígenas e disseminar assuntos pertinentes à educação e cultura indígenas de maneira direta ou indireta.

A identificação dos canais respondia apenas parcialmente ao objetivo proposto, tendo sido necessário realizar uma análise para averiguar os principais assuntos disseminados. Esse procedimento permitiu organizar os canais em três categorias temáticas, segundo o tema principal tratado em cada um deles: 1) músicas e literatura, com os canais Crônicas Indigenistas - Música Indígena, Djuena Tikuna, Katú Mirim e Oz Guarani; 2) cotidiano, com os canais Vlog Katú, Wariu, Benício Pitaguary, Rádio Yandê e Ysani Kalapalo; e 3) política, com os canais Anápuáka, Kunumi, Daiara Tukano, Denilson Baniwa e Mobilização Nacional Indígena. Verificou-se que as postagens diferiam quanto ao foco, pois havia canais que apresentavam o desenrolar da vida cotidiana nas aldeias; alguns se dedicavam mais à arte - música indígena, literatura, artesanato, pintura e culinária; e outros possuíam viés político, denunciando irregularidades e articulando mobilizações para lutas por garantia de direitos. No entanto, havia congruências nos seus cernes que interligavam os canais, dado que, além de serem produzidos por indígenas, buscavam: valorizar as identidades indígenas; descortinar paradigmas preconceituosos que relegam os povos indígenas ao atraso, à selvageria e à ignorância; mostrar a história e as experiências de vida dos povos indígenas como produtores de arte, literatura, conhecimento, dentre outros.

Após conhecer os canais de youtubers indígenas, foi possível defender a tese de que eles se constituem como espaços de propagação da educação e cultura indígenas, sob um olhar decolonial, por serem produzidos pelos próprios indígenas em suas experiências diárias, ensejando lume à preservação, à valorização e à promoção da efetivação de direitos. Isso porque todo o conteúdo veiculado não era neutro, ao contrário, permeado por subjetividades e interesses particulares, coletivos e políticos, retratam uma produção crítica que colabora para a destruição de preconceitos e para o melhor conhecimento referente às comunidades indígenas e suas lutas.

De modo geral, os seus criadores não tinham uma formação específica em educação, não sendo os seus canais de cunho pedagógico, contudo possuíam a finalidade de informar, sensibilizar e mobilizar o povo indígena e não indígena sobre o respeito às diferentes formas de viver. Todavia, é possível afirmar que os canais podem ser uma ferramenta não apenas viável, mas muito fértil para o fomento à educação étnico-racial na perspectiva multicultural, pois os conteúdos propagados com fácil acesso, em muitos casos de maneira interativa, permitem adentrar virtualmente nas culturas indígenas, ampliando a compreensão sobre esses povos, conhecimento necessário para desenvolver um olhar crítico e sensível, consoante as histórias e formas de viver à luz das percepções indígenas.

Salienta-se também a autonomia no processo de aquisição do conhecimento tecnológico por parte dos indígenas youtubers, para criar e gerir canais no YouTube. Aspecto esse que pode e deve ser investigado em pesquisas futuras como proposta de continuidade nos estudos sobre a temática do uso das tecnologias em comunidades tradicionais.

Conclui-se que os canais de youtubers indígenas são ferramentas permeadas por um importante arcabouço de conhecimentos que pode ser utilizado inclusive como recurso didático por educadores com o mote de promover: a democratização do acesso à informação sobre indígenas; um espaço não formal para a realização de pesquisas; e uma conscientização por intermédio de análises e debates críticos sobre os conteúdos publicados.

Este artigo colabora para a ampliação do conhecimento científico na área, na medida em que oferece para a sociedade, de maneira compilada, o endereço eletrônico dos principais canais no YouTube produzidos por indígenas no Brasil, com uma síntese dos principais conteúdos veiculados. A partir deste estudo, é possível desenvolver outras pesquisas, ao tornar factível inventariar uma parte considerável da produção audiovisual em que os indígenas não são apenas protagonistas, mas produtores, bem como possibilitar um caminho inicial para a realização de estudos sobre obras literárias específicas, ritmos e letras musicais, formas de organização política, dentre outros aspectos concernentes às culturas indígenas brasileiras.

1Entende-se por novas tecnologias os métodos e as tecnologias utilizados na comunicação, emergentes no cenário da Revolução Informacional na segunda metade da década de 1970, que vão se desenvolvendo e se aperfeiçoando ao longo dos anos (VELLOSO, 2014).

2Compreende-se por internet um sistema global de redes de computadores interligadas que utilizam um conjunto próprio de convenção que controla e possibilita, desde esse protocolo, conexão, comunicação e transferência de dados entre sistemas computacionais (CASTRO; MARANHÃO; SOUZA, 2013).

3Youtube é um site de compartilhamento de vídeos enviados que são postados por seus usuários via internet. O termo procede do inglês, no qual “you” significa “você” e “tube” significa tubo, canal; ou seja, um canal por onde se veiculam vídeos.

4Youtuber é uma terminologia utilizada para fazer referência a uma pessoa usuária frequente do site Youtube para compartilhamento de vídeos, especialmente para alguém que produz e aparece nesses vídeos em um determinado canal.

5Na perspectiva decolonial, percebem-se as ideias que pressupõem essências preestabelecidas e fixas para possibilitar que as diferenças sejam reinventadas e também loci enunciativos, de onde são formulados conhecimentos a partir das perspectivas, cosmovisões ou experiências dos sujeitos subalternos (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016).

6O nome do Canal Kunumi Mc Oficional foi substituído por Owera, permanecendo com a mesma autoria. Como informa no canal “[...] OWERÁ, antes conhecido como Kunumi MC, indígena do povo Guarani mbya”. OWERÁ é o nome artístico de Werá Jeguaka Mirim, indígena do povo Guarani Mbyá, escritor de literatura nativa, cantor e compositor de rap nativo. O novo link do Canal é: https://www.youtube.com/c/Ower%C3%A1.

7“O rap é uma linguagem intermidial para a qual convergem elementos não apenas da música, como também de outras linguagens e modos de expressão. Isso fica explícito em seu próprio nome, pois rap significa rhythm and poetry - portanto, ritmo e poesia -, numa alusão à síntese de palavra e som que o caracteriza” (SALGADO, 2015, p. 151).

Referências

ABU-EL-HAJ, M. Multiculturalismo e educação multicultural: o debate sobre as políticas de identidade na sociedade americana. Educação & Formação, Fortaleza, v. 4, n. 10, p. 195-213, 2019. DOI: https://doi.org/10.25053/redufor.v4i10.847Links ]

ABU-EL-HAJ, M. F.; FIALHO, L. M. F. Formação docente e práticas pedagógicas multiculturais críticas. Revista Educação em Questão, Natal, v. 57, p. 1-27, 2019. DOI: https://doi.org/10.21680/1981-1802.2019v57n53ID17109Links ]

ANTUNES, C. P.; BERGAMASCHI, M. A. Formação de professores indígenas numa perspectiva intercultural. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 7, Número Especial, p. 107-131, 2012. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.7iEspecial.0005Links ]

ARAÚJO, A.; SOARES, E. L. Identidade e relações étnico-raciais na formação escolar. Práticas Educativas, Memórias e Oralidades, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 1-14, 2019. DOI: https://doi.org/10.47149/pemo.v1i1.3628Links ]

ARISI, B. M. Matis e Korubo: contato e índios isolados no Vale do Javari, Amazônia. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2007. [ Links ]

BASTOS, R. J. M. Música nas sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul: estado da arte. Mana, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 293-316, 2007. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-93132007000200001Links ]

BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado, Brasília, v. 31, n. 1, p. 15-24, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100002Links ]

BERRIBILI, E.; MILL, D. Impacto cognitivo do uso intensivo da internet: a autonomia dos estudos com dispositivos na adolescência. Educação & Formação, Fortaleza, v. 3, n. 9, p. 177-188, 2018. DOI: https://doi.org/10.25053/redufor.v3i9.862Links ]

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, 21 dez. 1996. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de maio de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, 11 mar. 2008. [ Links ]

CALEFFI, P. O que é ser índio hoje? A questão indígena na América Latina/Brasil no início do século XXI. Revista de Diálogos Latino-Americanos, Aarhus, n. 7, p. 20-42, 2003. [ Links ]

CARVALHO, S. O. C.; FIALHO, L. M. F.; LIMA, A. M. DA S. Irmã Maria Montenegro como gestora escolar: da escolarização elitista à educação dos pobres no Ceará (1969-1987). Acta Scientiarum. Education, v. 43, n. 1, nov. 2021. DOI: https://doi.org/10.4025/actascieduc.v43i1.55406Links ]

CASTELLS, M. Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. [ Links ]

CASTRO, C. Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. [ Links ]

CASTRO, D.; MARANHÃO, L.; SOUSA, J. O conceito de internet na pesquisa em comunicação no Brasil. Razón y Palabra, Quito, n. 84, p. 1-22, 2013. [ Links ]

CRESWELL, J. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2007. [ Links ]

DELGADO, P. S.; JESUS, N. T. (org.). Povos indígenas no Brasil: perspectiva no fortalecimento de lutas e combate ao preconceito por meio do audiovisual. Curitiba: Brazil Publishing, 2018. [ Links ]

FEATHERSTONE, M. Cultura global: uma introdução. In: FEATHERSTONE, M. (org.). Cultura global: nacionalização, globalização e modernidade. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 183-205. [ Links ]

FIALHO, L. M. F.; FERREIRA, E. M. B.; SILVA, J. F. L. E. Grafismo corporal indígena: tecendo memórias Tucuns. Educação e Cultura Contemporânea, Rio de Janeiro, v. 17, p. 213-237, 2020. DOI: http://dx.doi.org/10.5935/2238-1279.20200032Links ]

FIALHO, L. M. F.; MACHADO, C. J. S.; SALES, J. A. M. As correntes do pensamento geográfico e a Geografia ensinada no ensino fundamental: objetivos, objeto de estudo e a formação dos conceitos geográficos. Educação em Foco, Belo Horizonte, v. 17, p. 203-224, 2014. DOI: https://doi.org/10.24934/eef.v17i23.432Links ]

FIALHO, L. M. F.; SANTOS, H. F.; FREIRE, V. C. C. Biografia da Professora Raquel Dias Araújo: um olhar sobre a docência universitária e a militância política. History of Education in Latin America - HistELA, v. 3, p. 1-14, 2020. DOI: https://doi.org/10.21680/2596-0113.2020v3n0ID20562Links ]

FIALHO, L. M. F.; SOUSA, F. G. A. Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Revista Exitus, Santarém, v. 9, n. 1, p. 202-231, 2019. DOI: https://doi.org/10.24065/2237-9460.2019v9n1ID721Links ]

FUNAI. Nota da Funai sobre a PEC 215/00. Brasília: Funai, 2015. [ Links ]

GINSBURG, F. Embedded aesthetics: creating a discursive space for indigenous media. Cultural Anthropology, Arlington, v. 9, n. 3, p. 365-382, 1994. DOI: https://doi.org/10.1525/can.1994.9.3.02a00080Links ]

IBGE. Informações sobre a distribuição da população autodeclarada indígena no território brasileiro, com base nos resultados censitários. População residente, segundo a situação do domicílio e condição de indígena - Brasil 1991/2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010. [ Links ]

KUJAWA, H. A. Conflitos envolvendo indígenas e agricultores no Rio Grande do Sul: dilemas de políticas públicas contraditórias. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, v. 51, n. 1, p. 72-82, 2015. DOI: https://doi.org/10.4013/csu.2015.51.1.08Links ]

LOUREIRO, C. W.; MORETTI, C. Z. Paulo Freire em Abya Yala: denúncias e anúncios de uma epistemologia decolonial. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 16, p. 1-19, 2021. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.16.16634.059Links ]

LUCHETTA, F. L.; PIOVEZANA, L. Educação indígena e os processos de ensino-aprendizagem escolar. Revista Pedagógica, Chapecó, v. 2, n. 27, 2011. DOI: https://doi.org/10.22196/rp.v13i27.1314Links ]

MALHEIROS, B. T. Metodologia de pesquisa em educação. Rio de Janeiro: LTC, 2011. [ Links ]

MARTINO, L. C. Dois estágios da comunicação versus efeitos limitados: uma releitura. In: ENCONTRO DA COMPÓS, 18, 2009, Belo Horizonte. Anais [...]. Belo Horizonte: PUC, 2009. [ Links ]

MELLO, E. F. F. Tecnologia em rede como potencializadora de uma condição de leitor-autor em oficinas de inclusão digital. Espaço Acadêmico, Maringá, v. 11, n. 130, p. 101-112, 2012. [ Links ]

MENDES, M. C. F.; FIALHO, L. M. F.; MACHADO, C. J. S. Argentina Pereira Gomes: disseminação de “inovações” didáticas na educação primária na década de 1930. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 19, n. 61, p. 527-550, 2019. DOI: https://doi.org/10.7213/1981-416X.19.061.DS02Links ]

MENDONÇA, D. G.; LIMA, J. F.; GUSMÃO, C. A. O uso das tecnologias no auxílio à preservação do idioma indígena: o caso Xakriabá. Revista de Informática Aplicada, São Caetano do Sul, v. 12, n. 1, p. 41-51, 2015. DOI: https://doi.org/10.5753/desafie.2015.10041Links ]

MIGNOLO, W. D. Delinking: the rhetoric of modernity, the logic of coloniality and the grammar of de-coloniality. Cultural Studies, London, v. 21, n. 2-3, p. 449-514, 2007. DOI: http://dx.doi.org/10.1080/09502380601162647Links ]

MINAYO, M. C. S. et al. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994. [ Links ]

OLIVEIRA, A. J.; VIGGIANO, G. Youtubers democratizam o acesso à educação: conheça principais canais. Revista Galileu, São Paulo, 22 mar. 2018. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2018/03/youtubers-democratizam-o-acesso-educacao-conheca-principais-canais.html. Acesso em: 9 maio 2022. [ Links ]

PEREIRA, A. S. M.; SOUSA, A. C. B. de.; FIALHO, L. M. F. Helena Potiguara: biografia da educadora indígena (1954-2009). Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 16, Número Especial 3, p. 1386-1403, 2021. DOI: https://doi.org/10.21723/riaee.v16iesp.3.15288Links ]

PESSOA, M. S. O esboço histórico-etnográfico-linguístico de um povo indígena. Revista A Cor das Letras, Feira de Santana, v. 5, n. 1, p. 130-145, 2004. DOI: https://doi.org/10.13102/cl.v5i1.1703Links ]

SALGADO, M. R. Entre ritmo e poesia: rap e literatura oral urbana. Linguística e Literatura Scripta, Belo Horizonte, v. 19, n. 37, p. 151-163, 2015. DOI: https://doi.org/10.5752/P.2358-3428.2015v19n37p153Links ]

SCHMIDT, M. A.; CAINELLI, M. Ensinar História. São Paulo: Scipione, 2004. [ Links ]

SILVA, E. C. A. Povos indígenas e direito à terra na realidade brasileira. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 133, p. 480-500, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/0101-6628.155Links ]

SILVA, K. V.; SILVA, M. H. Dicionário de conceitos históricos. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2010. [ Links ]

SILVA, P. F.; FAGUNDES, L. C.; MENEZES, C. S. Como as crianças estão se apropriando das tecnologias digitais na primeira infância?. Renote, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 1-10, 2018. DOI: https://doi.org/10.22456/1679-1916.86023Links ]

SILVA, P. T. B.; ARAÚJO, M. I. O. Diálogos sobre interculturalidade, conhecimento científico e conhecimentos tradicionais na educação escolar indígena. Práxis Educacional, Vitória da Conquista, v. 11, n. 18, p. 153-176, 2014. [ Links ]

SOARES, A. B. et al. Construindo saberes nas redes sociais. Renote, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 1-10, 2018. DOI: https://doi.org/10.22456/1679-1916.85991Links ]

SOUZA, L. C.; DI GREGÓRIO, M. F. Ensaio sobre a História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena trabalhadas nas salas de aulas do ensino fundamental das escolas públicas no Nordeste do Brasil: entre desafios dos livros didáticos e docência. Revista Tempos e Espaços em Educação, São Cristóvão, v. 9, n. 19, p. 63-74, 2016. DOI: https://doi.org/10.20952/revtee.2016vl9iss19pp63-74Links ]

THIÉL, J. C. Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e norte-americana na literatura. 2006. 376 f. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federa do Paraná, Curitiba, 2006. [ Links ]

VELLOSO, F. Informática: conceitos básicos. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. [ Links ]

VERMELHO, S. C. et al. Refletindo sobre as redes sociais digitais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 35, n. 126, p. 179-196, 2014. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73302014000100011Links ]

Recebido: 10 de Julho de 2021; Revisado: 05 de Maio de 2022; Aceito: 06 de Maio de 2022; Publicado: 12 de Maio de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.