SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17O que nos ensinam as professoras ganhadoras do Prêmio Educar para a Igualdade Racial?Relações étnico-raciais e suas produções na área da Educação: uma análise na plataforma SciELO índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18432.070 

Dossiê: Relações Étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Limitações da política educacional antirracista implementada pela Divisão Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação de Macapá-AP

Limitations of anti-racist education policy implemented by the Ethnic-Racial Division of the Macapá Municipal Secretariat of Education-AP

Limitaciones de la política educativa antirracista implementada por la División Étnica-Racial de la Secretaría Municipal de Educación de Macapá -AP

Cleidiane Colins Gomes* 
http://orcid.org/0000-0001-6798-7039

Piedade Lino Videira** 
http://orcid.org/0000-0001-5325-9073

*Graduada em Licenciatura Plena em Letras-Português pela Faculdade de Macapá, Pós-Graduada em Política Educacional pela Universidade Federal do Amapá (Unifap). Mestranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integra o Grupo de Estudo, Pesquisa, Extensão e Intervenção Pedagógica em Corporeidade, Artes, Cultura e Educação para as Relações Étnico-Raciais com ênfase em Educação Quilombola.

**Mestra e Doutora em Educação Brasileira pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (Faced/UFC). Atua como docente e pesquisadora nos cursos de Pedagogia e Mestrado em Educação (PPGED) da Universidade Federal do Amapá (Unifap). Líder do Grupo de Estudo, Pesquisa, Extensão e Intervenção Pedagógica em Corporeidade, Artes, Cultura e Educação para as Relações Étnico-Raciais com ênfase em Educação Quilombola.


Resumo

Este artigo contextualiza a aplicabilidade da legislação educacional antirracista nas escolas, por intermédio da Divisão Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação de Macapá/Amapá, a qual tem como função institucional preparar a própria instituição, bem como as escolas, corpo técnico, professores/as e estudantes para o cumprimento e a promoção de políticas educacionais que garantam o direito à educação pública à população negra e a grupos historicamente excluídos. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa, e, para a coleta de dados, realizou-se entrevista semiestruturada com a direção da Divisão sobredita. O estudo revelou que as crenças e as mentalidades preconceituosas e racistas colaboram para que, no âmbito da gestão pública municipal, a Lei No 10.639/2003 não seja efetivada nas/pelas escolas do Município de Macapá.

Palavras-chave: Lei No 10.639/2003; Divisão Étnico-Racial; Formação de professores/as.

Abstract

This article contextualizes the applicability of anti-racism legislation in schools, through the Ethnic-Racial Division of the Municipal Education Secretariat of Macapá, state of Amapá, Brazil, which has the institutional function of preparing the own institution, as well as schools, staff, teachers and students for the fulfillment and promotion of education policies that guarantee the right to public education for the black population and historically excluded groups. The methodology used was qualitative research and, for data collection, the semi-structured interview with the director of the above division was used. The study revealed that prejudiced and racist beliefs and mentalities collaborate so that, within the scope of the municipal public management, Law no. 10.639/2003 is not enforced in/by schools in the Municipality of Macapá.

Keywords: Law no; 10.639/2003; Ethnic-Racial Division; Teacher training.

Resumen

Este artículo contextualiza la aplicabilidad de la legislación educativa antirracista en las escuelas, por intermedio de la División Étnico-Racial de la Secretaría Municipal de Educación de Macapá/Amapá, Brasil, que tiene como función institucional preparar la propia institución, así como la escuelas, personal técnico, profesores/as y estudiantes para el cumplimiento y la promoción de políticas educativas que garanticen el derecho a la educación pública de la población negra y grupos históricamente excluidos. La metodología utilizada fue la investigación cualitativa, y para la recolección de datos se realizó una entrevista semiestructurada con la dirección de la mencionada División. El estudio reveló que las creencias y las mentalidades prejuiciosas y racistas colaboran para que, en el ámbito de la gestión pública municipal, la Ley No 10.639/2003 no sea implementada en / por las escuelas del Municipio de Macapá.

Palabras clave Ley No 10.639/2003; División Étnico-Racial; Formación de professores/as.

Introdução

Este artigo contextualiza a aplicabilidade da legislação educacional antirracista nas escolas municipais de Macapá, estado do Amapá, Brasil, por intermédio da Divisão Étnico-Racial, intitulada Divisão da Diversidade da Secretaria Municipal de Educação (DIDI/Semed), a qual tem como meta preparar a própria instituição, bem como escolas, corpo técnico, professores/as e estudantes para o cumprimento de políticas educacionais que garantam o direito à educação pública à população negra como um dos grupos sociais historicamente excluídos do sistema educacional brasileiro (MACAPÁ, 2015).

Por legislação educacional antirracista, entendemos o conjunto de Leis e de documentos mandatários que respaldam o trabalho com a diversidade étnico-racial nas Unidades de Ensino, a saber: a Lei No 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003); o Parecer No 3, de 10 de março de 2004, do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno (CNE/CP), que apresentou as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER) (BRASIL, 2004a); a Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004, que instituiu as DCNERER (BRASIL, 2004b); e o Plano Nacional para Implementação da Lei No 10.639/2003 (BRASIL, 2009).

Este artigo é resultado de uma pesquisa de Pós-Graduação lato-sensu em política educacional da Universidade Federal do Amapá (Unifap), cujo objetivo foi analisar como a Semed atua, por meio da Divisão Étnico-Racial, na qualidade de ente público para a implementação e a promoção de políticas educacionais de combate ao racismo nas escolas municipais, com vistas à implementação da Lei No 10.639/2003. O estudo teve como lócus de investigação a DIDI/Semed do município de Macapá. Utilizou-se como metodologia a pesquisa qualitativa, a qual, segundo Gonzales (2014 p. 103) é “[...] o método que possibilita narrativas ricas e se preocupa com a qualidade das informações e respostas”, uma vez que buscamos um entendimento mais aprofundado sobre o trabalho, realizado no âmbito da administração pública pela DIDI/Semed, quanto à efetivação da Lei No 10.639/2003 nas escolas do referido município.

Para este estudo, realizamos uma entrevista semiestruturada com a chefia da Divisão Étnico-Racial, por ser o instrumento mais adequado e viável para coletar informações sobre a DIDI/Semed. Para tanto, antes da realização da entrevista, o projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Unifap, registrado com o número 4.200.623. Em atendimento à Resolução No 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013b), optamos por preservar a identidade do/da entrevistado/a e utilizar a função pública para referência da fonte de informações acerca do lócus de investigação.

Teoricamente, o estudo apoia-se na legislação educacional (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDBEN, Base Nacional Comum Curricular - BNCC, Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN, Plano Municipal de Educação - PME) e nas referências de intelectuais e pesquisadores/as negros/as e não negros/as que têm seus estudos voltados à temática e à problemática das relações étnico-raciais brasileiras: Abdias Nascimento (1980), Beatriz Nascimento (2007), Débora da Cunha (2020), Kabengele Munanga (2005), Nilma Lino Gomes e Petronilha B. Gonçalves e Silva (2002) e Piedade Lino Videira (2014).

Este texto, além desta introdução e das considerações finais, está subdividido em três seções principais. Na primeira, apresentamos a Lei No 10.639/2003, com destaque para as atribuições da referida Divisão, a qual é responsável por promover a política educacional antirracista no âmbito do município de Macapá. Na segunda seção, discutimos a formação e a capacitação de profissionais sobre a temática racial que envolve professores, gestores e corpo-técnico pedagógico das escolas. Nessa seção, enfatizamos a aquisição e a produção de materiais pedagógicos para a melhor aplicabilidade da Lei No 10.639/2003, haja vista ser essa uma das atribuições das Secretarias de Educação conforme previsto no Parecer CNE/CP No 3/2004 (BRASIL, 2004a). Na terceira seção, destacamos as dificuldades enfrentadas pela DIDI/Semed para implementar a Lei No 10.639/2003 nas escolas municipais de Macapá.

Limitações da política educacional antirracista implementada pela Divisão Étnico-Racial da Secretaria Municipal de Educação

A Lei N° 10.639/2003, para além de um documento normativo, representa os anseios de um projeto de sociedade mais equânime e livre de racismo.

Petronilha Gonçalves e Silva (informação verbal)1.

Iniciamos esta seção com essa citação de Petronilha Gonçalves e Silva sobre a Lei No 10.639/2003, pois ela nos remete à dimensão histórica, social, cultural e educacional, com vistas a dimensionar a atuação da Semed de Macapá, por intermédio da Divisão Étnico-Racial, na qualidade de ente público responsável por sua implementação. É imperativo ressaltarmos que a referida Lei é fruto das pressões sociais que demandam por igualdade, equidade e, sobretudo, por acesso à educação, como pauta política reivindicatória da população negra.

Nessa perspectiva, em 9 de janeiro de 2003, o então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei No 10.639/2003, a qual alterou o Art. 26-A da LDBEN - Lei No 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para incluir a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileira (BRASIL, 2003). O Art. 26-A dispõe:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira e incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra. (BRASIL, 2003, p. 1).

A inclusão do estudo da história da África e dos africanos constitui uma ferramenta primordial na luta antirracista e pelo respeito à diversidade étnico-racial que compõe a sociedade brasileira, além de reconhecer as contribuições fundamentais dos povos africanos e afro-brasileiros para o desenvolvimento do nosso país nos campos político, econômico e social, no intuito de desconstruir as mentalidades preconceituosas que foram construídas sobre negros e negras durante a colonização. Essas mentalidades perduram e produzem efeitos negativos como pobreza, marginalização e defasagem educacional.

A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 205, declara que a educação é um direito de todos e deve visar o desenvolvimento pleno da pessoa (BRASIL, 1988). Inferimos, portanto, a escola como um ambiente acolhedor onde todos os grupos étnicos possam se desenvolver com base em uma pluralidade de conhecimentos, lugar que fora negado à população negra por séculos, e essa realidade ainda persiste com os corpos que não se encaixam no “padrão” europeu.

Nessa direção, Cunha (2020) ressalta que o racismo impede que educadores/as entendam a dimensão racial como um problema histórico, estrutural e estruturante das relações sociais em nosso país. Isso dificulta a percepção no que tange às manifestações racistas no ambiente escolar, que vêm se mantendo e revestindo-se de discursos e de atitudes que interferem, atrapalham e impedem que ocorra a efetiva implementação da Lei No 10.639/2003 no chão das escolas. Dessa feita, à medida que reconhecermos o racismo como um fenômeno estruturante da sociedade que produz e se reproduz nas instituições e nas redes de ensino, é que será possível transformar as escolas em espaços estratégicos para se trabalhar as relações étnico-raciais e combater as formas de preconceito e racismo lá existentes.

Assim, extraímos das bases teóricas supracitadas que o racismo deve ser enxergado como um problema de toda a sociedade, e não apenas exclusivo das pessoas negras, pois quanto mais distantes estamos de alcançar uma equidade racial, mais se agravam as desigualdades socioeconômicas. Assim sendo, a Lei No 10.639/2003 pretende introduzir uma prática educacional inclusiva prevista e amparada legalmente pela Constituição Federal de 1988, a qual visa garantir o direito de todos e todas à educação, cultura e arte, sem distinção de qualquer natureza.

Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei No 8.069, de 13 de julho de 1990 - reforça, em seu Art. 53: “A educação deve proporcionar o desenvolvimento humano na sua plenitude, em condições de liberdade e dignidade, respeitando e valorizando as diferenças” (BRASIL, 1990, n.p.); e no seu Art. 58: “No processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura” (BRASIL, 1990, n.p.). Assim, o ECA e as DCNERER caminham na construção de uma sociedade inclusiva e equânime que, por intermédio da educação intercultural, seja capaz de propiciar aos estudantes trocas de aprendizagens, conhecimentos, quebra de estereótipos, desconfianças entre negros/as e não negros/as.

Por isso, reconhecermos a necessidade da educação antirracista é essencial para implementar a Lei No 10.639/2003 nas escolas, além de oportunizar a toda sociedade a tão sonhada transformação social por intermédio da educação, o que torna fundamental incluir nos currículos e nos processos educacionais o estudo da história da África e dos africanos como ferramenta para discutir o racismo e reconhecer que sua permanência atrofia e impede a sociedade brasileira de avançar como país pluriétnico e pluricultural.

Divisão da Diversidade (DIDI) e a Educação para as Relações Étnico-Raciais

O sonho acabou, imaginávamos que com a Lei tudo seria diferente. A gente tem a Lei, mas não o ambiente favorável para sua implementação, [por isso nos deparamos com] a implementação precária da Lei.

Amauri Mendes (informação verbal)2.

Esse discurso de Amauri Mendes, no lançamento online da campanha pela efetiva implementação das Leis No 10.639/2003 e No 11.645/2008, em 2020, demonstra que a Lei No 10.639/2003 não tem encontrado um ambiente capaz de suprir a proposta de levar a todos/as os brasileiros/as o direito de conhecer sua história, e, assim, proporcionar uma educação intercultural e antirracista. É fundamental, portanto, verificarmos quais as ações da DIDI/Semed para a implementação da referida Lei, em face ao seu objetivo de

[...] atender as Metas 07 e 15 do Plano Municipal de Educação - PME, pautada em uma Política Educacional baseada nas solicitações feitas pela sociedade civil, propõe uma educação para as relações étnico-raciais pautada na igualdade, conscientização, construção e orientações para a implementação e o fortalecimento das ações direcionadas a sociedade educacional. Dentre as suas atribuições, oferece ao educando e educador propostas de atividades baseadas nas Leis 10.639/03 e 11.645/08 no contexto escolar, com o olhar para a diversidade da sociedade afro- amapaense [...]. (MACAPÁ, 2020, n.p., grifos do autor).

Essa informação é importante haja vista que, em 2015, a Prefeitura Municipal de Macapá aprovou o PME e estabeleceu suas metas e estratégias para implementar políticas de ações afirmativas direcionadas aos setores desfavorecidos e historicamente excluídos da sociedade. A Divisão Étnico-Racial foi instituída logo após a aprovação do PME, como programa étnico-racial. Em 2020, passou a ser denominada Divisão da Diversidade (DIDI). Até o presente ano, a Divisão era composta por dois membros com conhecimento acerca das relações étnico- raciais, religião de matriz africana e gênero.

A missão da DIDI/Semed visa atender ao referido PME, nas Metas 7: “[...] fomentar a qualidade da educação em todas as etapas do ensino” (MACAPÁ, 2015, p. 19) e 15: “[...] promover uma educação para as relações étnico-raciais pautada na igualdade” (MACAPÁ, 2015, p. 33). Trata-se de um desafio para o sistema educacional municipal quando propõe uma educação de qualidade e integradora, em conflito com o currículo praticado nas instituições de ensino que é monocultural, cujo conteúdo didático é baseado, quase exclusivamente, nos valores civilizatórios europeus.

Sendo a DIDI um setor criado para contribuir com uma educação pautada na equidade racial, fez-se necessário conhecermos suas ações e sua missão institucional no que tange à implementação da Lei No 10.639/2003 nas escolas municipais de Macapá, como também daquelas voltadas à educação quilombola e indígena. Diante desse público, há a necessidade de políticas que garantam a permanência desses grupos na escola em todas as etapas de ensino. De acordo com o Parecer CNE/CP No /2004:

Políticas de reparações voltadas para a educação dos negros devem oferecer garantias a essa população de ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino. (BRASIL, 2004a, p. 3).

Tais políticas visam garantir à população negra o direito de uma educação intercultural assegurando-lhes ingresso e permanência. Para tanto, as instituições devem oferecer políticas educacionais efetivas, professores/as qualificados/as, e o financiamento se faz primordial nesse conjunto. Quanto ao recurso financeiro, a Divisão alega que:

Tem, mas não específico do programa. Assim como se acha [recursos financeiros] para fazer uma cantata natalina, que dá visibilidade para o gestor maior [Prefeito], deveria disponibilizar para a Divisão Étnico-Racial. Tem [recurso financeiro], mas não específico da divisão. Mas a Secretaria tem, porque tem para os outros, né! [Na Divisão] até uma resma de papel para produzir material para os alunos é complicado. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

Diante da ausência de recursos financeiros específicos da Divisão, indagamos: Como garantir a permanência de educandos/as negros/as na escola sem uma política educacional que atenda a eles/as como sujeitos de direitos e herdeiros/as do legado cultural de seus ancestrais, os quais foram fundamentais para a construção e o desenvolvimento econômico, social e cultural do nosso país, sem que tais conhecimentos façam parte do currículo e do ambiente escolar? Sobretudo quando considerado que a Divisão enfrenta inúmeras dificuldades financeiras, tecnológicas e de legitimidade, entre outras, que inviabilizam o cumprimento de sua atribuição. Segundo a DIDI: “Não existe um trabalho direcionado para a implementação da Lei 10.639/03 de fato. Isso acontece só com [a] Divisão Étnico-Racial, hoje Divisão da Diversidade, esse descaso, essa invisibilidade, está entendendo? Esse racismo institucional acontece com maior frequência com a Divisão da Diversidade” (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

A narrativa da entrevistada, responsável pela Divisão, indica que, apesar de haver uma política educacional voltada à implementação da Lei No 10.639/2003 nas escolas do município de Macapá, a falta de investimento com a temática racial, por parte da Semed, caminha na contramão de seu papel como ente responsável em promover políticas educacionais inclusivas. Tal constatação suscita à seguinte ponderação: Se há recursos financeiros, por que a Divisão não tem acesso, uma vez que é um setor imprescindível para a implementação, orientação e fiscalização da Lei nas escolas?

Fica evidenciado no discurso depreendido pela DIDI que o racismo institucional tem sido um imenso obstáculo para que a divisão cumpra com efetividade sua missão e consiga dar materialidade às políticas educacionais antirracistas nas escolas municipais de Macapá.

Nesse diapasão, é válido recorrermos ao conceito de racismo institucional adotado pelo Programa de Combate ao Racismo Institucional (CRI):

O racismo institucional é o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações. (CRI, 2006, p. 22).

Aqui, fica evidente o racismo institucional voltado à Divisão, visto que ela, na qualidade de instituição, não recebe os mesmos recursos que os demais setores da Semed. Ainda de acordo com a DIDI, “[...] o trabalho do programa étnico-racial, hoje intitulado Divisão da Diversidade só não fluiu mais por conta desse preconceito, por conta dessa invisibilidade que encontramos dentro da Secretaria” (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

Essa invisibilidade concorre para que políticas de ações afirmativas não cheguem às escolas, e contribui, segundo Munanga (2005), para que muitos educandos, negros e negras, abandonem o espaço escolar, pois são ignorados/as e subalternizados/as em detrimento de outras etnias. Como exemplo, Alex Ratts (2007), na obra intitulada Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento, traz à luz o pensamento da intelectual negra Beatriz Nascimento ao denunciar o racismo vivenciado por ela na escola, o qual por similaridade afeta outras infâncias negras:

Eu estudava numa escola que era num terreno arrendado de minha avó, era em frente à casa dela; pois bem, eu muitas vezes inventava uma dor de barriga e fugia, sabe por quê? Porque tinha pouquíssimas crianças negras, iguais a mim na escola. Acho que muita criança negra tem esse mesmo problema e é por isso que não estuda, muitas vezes não passa de ano, tem dificuldade na escola por causa de um certo tipo de isolamento que não é facilmente perceptível. É aquela mecânica de educação que não tem nada a ver com esses grupos de educação familiar, a mecânica da leitura, onde você não sabe quem é, porque não está nos livros. (NASCIMENTO,1982, p. 197 apudRATTS, 2007, p. 48-49).

Dessa feita, educandos/as negros/as passam a sentirem-se desmotivados/as, prejudicando seu aprendizado e impedidos/as de permanecer na escola, bem como de continuar os estudos e finalmente chegar às universidades, uma vez que esse ensino não tem sido pautado em uma educação antirracista, plural e inclusiva.

Na trilha da narrativa de Beatriz Nascimento, as educadoras Renata Oliveira e Marilia Abdulmassih (2019, p. 281) afirmam que “[...] o preconceito racial dificultou o acesso e permanência do negro no sistema educacional. Como consequência tem uma população negra menos escolarizada”. As autoras ainda reiteram que “[...] nessa perspectiva não é difícil entender o desconforto dos alunos negros em sala de aula, pois, toda vez que se transmitiam os conteúdos dos livros de história, a posição de subalternidade do negro era ressaltada” (OLIVEIRA; ABDULMASSIH, 2019, p. 282).

O exposto pela Divisão mostra o quanto é difícil implementar a Lei, a despeito de todo o esforço que se denota para que tal feito seja levado a êxito. Mesmo com recursos escassos, limitados pela falta de investimentos, a Divisão ainda oferece formação continuada a respeito da temática. O intuito é despertar a consciência e a sensibilização dos professores e das professoras da Rede Municipal de Ensino para que possam promover uma educação para as relações étnico-raciais pautada na equidade de direitos, no acesso à educação pública de qualidade, inclusiva, intercultural e antirracista para todos e todas.

O racismo que afeta a Divisão interfere também na Secretaria, a qual é tolhida de cumprir sua missão institucional de forma eficiente, ocasionando impactos nas escolas que recebem uma implementação precária da Lei No 10.639/2003 ou ausência dela. Dessa forma, fica impedida de avançar, tornando-se inábil na construção da identidade cultural de pessoas negras e não negras livres de ideologias racistas.

Formação e capacitação de profissionais da educação sobre a temática racial

Sem que a dimensão racial faça parte dos estudos sobre a sociedade brasileira, os resultados serão insuficientes, parciais, estéreis.

Amauri Mendes (informação verbal, grifo nosso)3.

Amauri Mendes, em sua fala, ressalta a urgência de a temática étnico-racial estar incluída nos estudos inerentes à sociedade, a fim de lograr resultados consistentes. Isso significa que a escola deve estar aberta à diversidade, com professores/as devidamente habilitados/as e capacitados/as para lidar com tensas relações produzidas pelo racismo e pela discriminação racial no ambiente escolar, como orientam as DCNERER (BRASIL, 2004a, 2004b). Destarte, é oportuno mencionarmos que é possível observarmos a recorrência de pensamentos contrários a essa orientação vicejar em muitos educadores/as, como podemos assinalar com a narrativa intelectual da pesquisadora Nilma Lino Gomes:

Ainda encontramos muitos(as) educadores(as) que pensam que discutir sobre relações raciais não é tarefa da educação. É um dever dos militantes políticos, dos sociólogos e antropólogos. Tal argumento demonstra uma total incompreensão sobre a formação histórica e cultural da sociedade brasileira. E, ainda mais, essa afirmação traz de maneira implícita a ideia de que não é da competência da escola discutir sobre temáticas que fazem parte do nosso complexo processo de formação humana. (GOMES, 2005, p. 146).

Conforme asseverado por Gomes (2005), vale reiterarmos que a Lei No 10.639/2003 e o Parecer CNE/CP No 3/2004 pressupõem, para além do ensino da história e cultura afro-brasileira, que a educação escolar é estrategicamente capaz de contribuir com a adoção de relações humanizadas e livres de preconceitos de toda ordem, entre diferentes grupos étnicos, que formam a heterogênea e complexa sociedade brasileira. Assim sendo, sem que haja a efetiva implementação de uma política educacional mais ampla, torna-se um grande desafio a materialização de uma educação antirracista nas escolas municipais de Macapá que seja capaz de atender às diversidades humanas, culturais, identitárias e religiosas, como propõe a estratégia 15.4 do PME:

Elaborar Diretrizes Curriculares próprias para o sistema de ensino municipal, voltadas aos setores desfavorecidos e historicamente excluídos da sociedade, assegurando alternativas pedagógicas que considerem a interlocução entre os processos culturais, éticos e identitários, de gênero, raça, credo dos sujeitos, com a produção do conhecimento necessário ao desenvolvimento humano, profissional e socioeconômico dos alunos. (MACAPÁ, 2015, p. 33).

Outrossim, a Resolução Nº 1/2004, a qual instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004b), deixa evidente a necessidade de termos nas escolas/na educação profissionais capacitados/as para lidar com todas as formas de preconceito e racismo entre negros/as e não negros/as, bem como sejam capazes de refletir sobre sua prática pedagógica em observação e em prol de uma resposta didático-pedagógica qualificada atendendo à diversidade dos/as educandos/as. Nessa direção, o Plano para a implementação da Lei No 10.639/2003 declara que as secretarias devem:

Promover formação para os quadros funcionais do sistema educacional, de forma sistêmica e regular, mobilizando de forma colaborativa atores como os Fóruns de Educação, Instituições de Ensino Superior, NEABs, SECAD/MEC[Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade/Ministério da Educação], sociedade civil, movimento negro, entre outros que possuam conhecimento da temática. (BRASIL, 2009, p. 36).

A formação para a Educação Básica é garantida pela LDBEN (BRASIL, 1996) e deve estar fundada em políticas que valorizem os/as profissionais para que estes/as estejam capacitados/as e habilitados/as às demandas escolares. Nessa perspectiva, Santos (2016) afirma que é de fundamental importância que, no espaço dedicado à formação continuada de professores/as, a temática racial se faça presente. Quanto a essa formação, a DIDI alega:

Ofertamos cursos específicos direcionados para a educação das relações étnico-raciais, mas é o mínimo de professores que participa. No primeiro momento, foi o Neab quem trouxe. A segunda vez foi pela Semed, porém é o mínimo de professores/as que participaram. Apresentamos os palestrantes, as oficinas sempre pautando na educação para as relações étnico-raciais, mas, infelizmente, é complicado porque eles ainda não descobriram a importância que [a Lei No 10.639/2003, as DCNERER, Parecer No 3/2004 e tais conhecimentos] têm para a educação. Eles não têm conhecimento algum, pois 80% dos professores da rede municipal acham que a Lei é uma invenção do Movimento Negro. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

Os eventos promovidos pela DIDI/Semed, ainda que não tenham sensibilizado os professores e as professoras da rede em sua totalidade, buscam agregar a consistência do conjunto dos princípios que orientam as Diretrizes Curriculares sobre Formação e a Formação Continuada de professores/as, apresentado no Art. 6º da Resolução No 2, de 20 dezembro de 2019:

I - A formação docente para todas as etapas e modalidades da Educação Básica como compromisso de Estado, que assegure o direito das crianças, jovens e adultos a uma educação de qualidade, mediante a equiparação de oportunidades que considere a necessidade de todos e de cada um dos estudantes; VI - a equidade no acesso à formação inicial e continuada, contribuindo para a redução das desigualdades sociais, regionais e locais; VIII - a formação continuada que deve ser entendida como componente essencial para a profissionalização docente, devendo integrar-se ao cotidiano da instituição educativa e considerar os diferentes saberes e a experiência docente, bem como o projeto pedagógico da instituição de Educação Básica na qual atua o docente; IX - a compreensão dos docentes como agentes formadores de conhecimento e cultura e, como tal, da necessidade de seu acesso permanente a conhecimentos, informações, vivência e atualização cultural [...]. (BRASIL, 2019, p. 3).

A postura desinteressada de alguns profissionais diante das formações que são realizadas a partir do projeto “Marabaixo e batuque no fazer pedagógico” denuncia o desconhecimento de uma riqueza histórica e cultural de suma importância para a educação e a valorização de negros/as do Estado do Amapá. Isso posto, vale ressaltarmos o que enfatizam as educadoras Nilma Lino Gomes e Petronilha B. Gonçalves e Silva sobre o assunto:

O trato da diversidade não pode ficar a critério da boa vontade ou da intuição de cada um. Ele deve ser uma competência político-pedagógica a ser adquirida pelos profissionais da educação nos seus processos formadores, influenciando de maneira positiva a relação desses sujeitos com os outros tanto na escola quanto na vida cotidiana. (GOMES; SILVA, 2002, p. 29-30).

A temática racial deve fazer parte da prática pedagógica de todos os profissionais da educação, haja vista que se trata de uma Lei Federal em vigor desde 2003, que alterou o Art. 26-A da LDBEN - Lei No 9.394/1996 -, e como norma vigente da política educacional brasileira deve ser implementada, independentemente de “achismos” e pontos de vista individuais de professores/as e demais profissionais da educação contrários à Lei No 10.639/2003.

A esse respeito, questionamos a DIDI/Semed sobre o motivo pelo qual a gestão, corpo técnico das escolas e de professores/as têm tanta resistência e dificuldade em trabalhar essa temática. Em resposta, foi informado que: “De 86 escolas que a Prefeitura tem, 80% não trabalham a lei. A maioria desses professores, do corpo técnico das escolas são evangélicos e eles batem de frente. Tudo eles atrelam pejorativamente: “Ah! coisa de preto é macumba, só ensina o que não presta [...]”; é isso” (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

A ausência da Lei No 10.639/2003 nas escolas impede que estudantes experienciem o contexto histórico, cultural e humano dos povos negros e de outros povos subalternizados na historiografia brasileira, que são invisibilizados nos currículos e nos cotidianos das instituições de ensino brasileiras e locais, que seguem deliberadamente na contramão do que orienta o arcabouço teórico da educação. Nesse cenário, as educadoras Eliane Barbarani e Nélia Cavalcante apontam dois grandes entraves para a implementação da legislação educacional antirracista:

A falta de esforço das gestões públicas na construção de políticas públicas norteadoras para um efetivo trabalho com Africanidades nas escolas e, na resistência de gestores e professores em abordar o tema, pautando-se no mito da democracia racial brasileira e no preconceito em relação a africanidades entendidas como fomento das religiões de matizes africana, cercada de ideias preconcebidas e pouco conhecidas em sua essência pelos professores. (BARBARANI; CAVALCANTE, 2019, p. 96).

A ideia de uma democracia racial ainda viceja e impede que os órgãos se empenhem na criação de políticas educacionais que visem abordar as africanidades no chão das escolas. São ideias preconcebidas e preconceituosas que culminam para a resistência de muitos profissionais da educação em não inserir a temática em seus componentes curriculares. Tais falhas colaboram e impedem que a Lei No 10.639/2003 seja efetivada.

Em consonância com as autoras, Abdias do Nascimento (1980), um dos destacados intelectuais negros que passou sua vida denunciando o racismo e lutando por igualdade racial, afirma que a “Democracia Racial” é uma técnica que tem conseguido confundir o povo afro-brasileiro, prejudicando o conhecimento e o estudo da realidade afro-brasileira. Nesse diapasão, segundo o antropólogo Kabengele Munanga,

[...] alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional. (MUNANGA, 2005, p. 15).

O despreparo de profissionais tanto impede que as escolas sejam um espaço para se trabalhar a multiculturalidade, quanto para implementar a Lei No 10.639/2003. Segundo o psicólogo Marcos Silva (2015), essa Lei é uma forte ferramenta de combate ao racismo, de ressignificação e de valorização cultural de matriz africana que forma a diversidade cultural brasileira e traz em sua estrutura a potência de rever estereótipos já preestabelecidos desde o Brasil colônia. Isso oportuniza e reforça o debate por mudanças reais no sistema educacional brasileiro, que perpassa pela formação de professores/as, pela destinação de mais recursos financeiros para a educação pública, pela produção de materiais didáticos que venham registrar a contribuição da população negra em todas as esferas da sociedade, pelo reconhecimento e pela valorização das africanidades.

Em sintonia com o pensamento de Silva (2015), a pesquisadora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2005) afirma que estudar as Africanidades brasileiras significa:

Tomar conhecimento, observar, analisar um jeito peculiar de ver a vida, o mundo, o trabalho, de conviver e de lutar pela dignidade própria, bem como pela de todos descendentes de africanos, mais ainda de todos que a sociedade marginaliza. Significa também conhecer e compreender os trabalhos e criatividade dos africanos e de seus descendentes no Brasil, e de situar tais produções na construção da nação brasileira. (SILVA, 2005, p. 156).

São conhecimentos que precisam ser respeitados e valorizados pelo conjunto da sociedade, por meio da educação, em todos os níveis de ensino, da Creche ao Ensino Superior, acerca do papel fundamental dos/as africanos/as e de seus descendentes para o desenvolvimento econômico, social e cultural do nosso país. Entretanto, a pedagoga Nilma Lino Gomes (2008) afirma que a discussão acerca da diversidade étnico-racial como uma questão que deveria fazer parte da formação docente continua ocupando lugar secundário. Isso contribui sobremaneira para a ausência da aplicação da Lei No 10.639/2003 em muitas escolas municipais de Macapá, pois ela tem sido descumprida pela ação deliberada dos/as profissionais da Educação - conforme demonstrado no decorrer do texto e reafirmado à luz do excerto que segue:

Muitos projetos ficaram pelo caminho, como o projeto “Convivendo com as Diferenças” que abordava sobre gênero, educação sexual que a criança precisa ter dentro da escola; falava do preconceito e de uma gama de coisas. E aí o professor espernega aqui, é uma forma de não deixar a coisa acontecer e impedir que um projeto se realize porque professor A ou B está questionando. E aí para não haver confusão, nós paramos. Temos facilidade de conseguir parcerias boas para fazer esse trabalho, mas infelizmente pelo conhecimento deles [dos/as professores/as] direcionados à importância que é tudo isso [legislação antirracista], é muito limitado. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

Depreendemos que a narrativa da/do responsável pela Divisão evidencia a necessidade de intensificar a qualificação do/a o professor/a quanto à temática racial. Oliveira e Abdulmassih (2019, p. 294) afirmam que “[...] a qualificação é um mecanismo essencial na mudança de comportamento pedagógico e até mesmo pode auxiliar os professores em seus preconceitos, oportunizando-os a construir um novo caminho para a educação”. Assim, é preciso que haja uma mudança de mentalidade interna da Secretaria de Educação por meio da capacitação dos/as profissionais da Educação e de toda a estrutura educacional municipal, pois é imperativo que haja a descolonização dos currículos, e que estes sejam pluriétnicos e interculturais para que espelhem todos os povos e grupos humanos sem quaisquer distinções nas escolas (BRASIL, 2004a).

Projeto político pedagógico como ferramenta de emancipação

Neste estudo, foi possível identificarmos, a partir de levantamentos realizados pela DIDI/Semed que a maioria das escolas municipais de Macapá não apresentam um Projeto Político Pedagógico (PPP) em conjunto à comunidade. Todavia, as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 2013a) afirmam que o currículo deve difundir os valores fundamentais do interesse social, porém atitudes e discursos contrários a tais diretrizes são recorrentes:

Em relação à construção do PPP, [gestores, corpo técnico-pedagógico e os(as) professores(as)] não estavam pegando as informações diretamente na comunidade. Eu disse: “Isso não pode acontecer assim, vocês têm que chamar a comunidade”. Fui dando algumas orientações, que eles poderiam estar aproveitando as pessoas mais velhas da comunidade para estar levando esse entendimento para dentro da sala. E tem mais a maioria das escolas municipais, elas não têm PPP. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

As Orientações e ações para educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2006) adotam o PPP como uma ferramenta emancipatória. A falta de construção do PPP, na maioria das escolas municipais em conjunto à comunidade, gera implicações no currículo, na prática pedagógica, no cotidiano escolar e coopera para a falta de políticas educacionais e ausência de temas que abordem a diversidade étnico-racial. Nessa perspectiva, a arte/educadora Piedade Videira (2013) ressalta a importância de a cultura afro amapaense estar inserida nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, os quais devem ser construídos de forma colaborativa entre escola e comunidade. Ademais, a BNCC (BRASIL, 2017) assevera que os sistemas e redes de ensino devem se planejar com objetivo na equidade, que pressupõe reconhecer que as necessidades dos/as estudantes são diferentes.

Depreendemos, portanto, da BNCC, que as escolas devem abarcar nos currículos as culturas e as histórias de diferentes grupos étnicos que compõem a sociedade brasileira. No entanto, os dados empíricos revelam uma postura contrária ao que postula a legislação educacional, quando não há a existência de um PPP na maioria das escolas municipais de Macapá, construído em conjunto à comunidade.

Materiais pedagógicos sobre a temática racial

Na Conferência de Durban, ocorrida entre o dia 31 de agosto e 8 de setembro de 2001, em Durban, na África do Sul, enfatizou-se a importância da revisão dos livros, dos textos e dos currículos para a eliminação de quaisquer elementos que venham promover o racismo (BRASIL, 2001). Assim, é imperativo que ocorra a revisão e a produção de materiais didáticos.

Segundo o antropólogo Kabengele Munanga (2005), muitos materiais didáticos distorcem de forma preconceituosa a imagem do negro e sua cultura. Além disso, contribuem para que o cenário pedagógico não se torne um espaço democrático de produção e de divulgação de conhecimento, tampouco abrem caminhos para abordar a multiculturalidade, caminhando na contramão do que afirma as DCNERER. Nesse aspecto, buscamos averiguar se a DIDI/Semed produz ou recebe materiais que desconstroem a mentalidade racista, a qual inferioriza e rebaixa os negros/as por seu pertencimento étnico-racial, e trabalhem com livros que ressaltam a luta, a cultura e a verdadeira história de afrodescendentes. Segundo a DIDI:

A divisão disponibiliza de um acervo; entretanto, a maioria desses materiais são adquiridos da Fundação Palmares, Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial] e materiais de escritores amapaenses que fizeram doações de seus exemplares para a secretaria, mas a compra desses materiais para a aquisição e distribuição para as escolas não foi realizada. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

É oportuno salientarmos que a Fundação Palmares e a Seppir são órgãos fundamentais nesse processo, mas a narrativa da DIDI denuncia um agravante, uma vez que as escolas não estão recebendo materiais didáticos específicos para trabalhar essa política afirmativa.

O Plano para a implementação da Lei No 10.639/2003 deixa evidente que as redes de ensino devem: “Produzir e distribuir regionalmente materiais didáticos e paradidáticos que atendam e valorizem as especificidades (artísticas, culturais e religiosas) locais/regionais da população e do ambiente, visando ao ensino e à aprendizagem das Relações Étnico- raciais […]” (BRASIL, 2009, p. 36). Em consonância com o Plano, Videira (2014) traz à luz o pensamento que dialoga com Silva (2005) no que tange às africanidades: “A efetivação da Lei n. 10.639/03 pode inicialmente ocorrer nas escolas do Estado e município de Macapá, tendo como ponto de partida, a dança do Marabaixo, por esta ser um documento ancestral da nossa História e cultura” (VIDEIRA, 2014, p. 21).

O Marabaixo é uma dança que fora preservada pela comunidade afro-amapaense e ganha reconhecimento no livro de “Registro das Formas de Expressão” como patrimônio cultural imaterial do Brasil em 2018, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Depois de passar por um processo de estudos e de pesquisas, reconheceu-se que essa dança carrega em sua forma de expressão valores ancestrais e, por certo, traz em si a potência de reconhecer a história e a luta dos/as afrodescendentes, como consta no Art. 26-A da LDBEN (BRASIL, 1996).

Faz-se necessário, assim, uma educação para as relações étnico-raciais nas redes de ensino que atendam a diferentes grupos, que promova uma educação humanizadora, intercultural e pluriétnica, em que os diversos povos e sistemas culturais sejam de amplo conhecimento de todos/as, no intuito de superar a visão eurocêntrica e etnocêntrica dos currículos e dos conteúdos. É valido ressaltarmos que, conforme o PME de Macapá, a Semed deve:

Acompanhar a efetivação dos currículos escolares, relativos aos conteúdos sobre a história, culturas afro-brasileira e implementar ações educacionais, nos termos das Leis n.10.639/2003 e n. 11.645/2008, assegurando-se a implementação das respectivas diretrizes curriculares nacionais por meio de ações [...]. (MACAPÁ, 2015, p. 23).

Assim sendo, buscamos verificar junto à DIDI/Semed, o processo de implementação da Lei No 10.639/2003 nas escolas municipais de Macapá e os avanços percebidos pela Divisão:

Você chega hoje na escola, Velho Chico, você se encanta com a decoração. já percebes as crianças te olhando de frente. Porque dentro do projeto eles incluíram, esse trabalho da estética Negra, da autoestima, então deu resultado. Mesma coisa escola Goiás, mas é como estamos dizendo, apenas 20 por cento das escolas trabalham [a implementação da Lei No 10.639/2003], talvez nem isso. [...]. Fizemos uma pesquisa, em algumas escolas para fazer um levantamento de quais escolas estavam trabalhando a Lei dentro desse projeto político pedagógico, mas dificilmente as escolas trabalham. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

Como depreendido no discurso, há algumas mudanças nas escolas onde a Lei tem sido implementada. No entanto, a execução dessa política tem se demonstrado insuficiente, sobretudo por ela não estar sendo implementada em um número significativo de escolas. Essa realidade, no que concerne às instituições de ensino em áreas Quilombolas, é ainda mais preocupante em face às especificidades dessas comunidades, que exigem uma pedagogia própria, materiais didáticos e paradidáticos específicos, como define a Resolução CNE/CEB No 8, de 20 de novembro de 2012 (BRASIL, 2012).

Gomes (2005) levanta questões no que tange à formação da identidade negra e sobre as escolas incorporem, ou não, essa realidade de maneira séria e responsável nas formações de professores/as em relação à importância da diversidade cultural. Em vista disso, a divisão informou que:

A maioria das escolas, só faz de conta. Na época do planejamento pedagógico, a Divisão Racial é muito requisitada. Foi quando descobrimos que a maioria dos professores tem dificuldade de trabalhar a Lei 10639/03, porque eles são totalmente alheios ao que a Lei pede. Tem professores que não querem ser contrariados. Você percebe que a pessoa está alheia aquele assunto, a partir do momento que pergunta como ela vai levar isso para o chão da escola, e ela não sabe como fazer, por estar totalmente perdida. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

A Lei No 10.639/2003 não será implementada com faz de conta, trabalhando apenas em datas comemorativas, com a escola se mantendo neutra sobre as questões étnico-raciais e silenciando o que precisa fazer parte das discussões dentro da instituição de ensino e ignorando a necessidade de uma capacitação sólida e consistente de professores/as. Segundo Garcia e Silva (2018, p. 17), quando nos referimos à Lei No 10.639/2003, “[...] ainda nos deparamos com o desconhecimento da mesma e com questionamentos relativos à ausência de informações e de materiais específicos para sua inserção no ambiente escolar”.

Podemos perceber que o discurso dos autores é reafirmado na narrativa da entrevistada da DIDI, no que tange ao despreparo de profissionais da Educação, os quais não sabem como proceder em sua prática pedagógica, realidade que permanece quase inalterada ao longo dos anos, mesmo com um conjunto de documentos norteadores, como o Parecer CNE/CP No 3/2004, o Plano Nacional de implementação da Lei, bem como de referências de trabalhos científicos e produção didático-pedagógica sobre a temática racial. Tais despreparos e/ou falta de interesse contribuem para uma implementação precária da Lei No 10.639/2003 ou ausência dela em muitas escolas municipais de Macapá. Fica latente, portanto, a premência de mais investimentos em uma capacitação sólida/consistente, bem como o reconhecimento da necessidade do fortalecimento dos setores voltados à diversidade étnica para a elaboração de projetos que promovam interações com os demais setores da Semed e que esses projetos tenham continuidade.

O projeto “Marabaixo e batuque no fazer pedagógico” se baseia, conforme informações da DIDI, em um projeto pessoal e não de uma ação pautada na instituição, o que evidencia a necessidade de projetos pedagógicos próprios da Semed que venham interagir com outros setores no intuito de promover o intercâmbio pedagógico, produtivo, criativo e diversificado sobre as diversas correntes teóricas relevantes para a formação humanística nos ambientes escolares. Nesse sentido, compreendemos, com base na legislação educacional vigente e nos dados coletados durante a entrevista, que a Semed precisa de ações mais específicas para atender a Meta 15 do PME de Macapá, bem como apoiar de forma efetiva o trabalho da DIDI para que esta cumpra sua missão institucional com êxito.

As dificuldades enfrentadas pela divisão da diversidade para a implementação da Lei No 10.639/2003

Nas escolas, tem gente que segura, amarra a Lei, impede a implementação da Lei.

Amauri Mendes (informação verbal)4.

Amauri Mendes, em seu discurso, deixou evidente os desafios e as dificuldades que a Lei No 10.639/2003 ainda encontra para ser efetivada nas escolas. Dezenove anos após ser sancionada, a resistência, o preconceito, o racismo e o senso comum permanecem como impedimentos para sua efetivação.

Implementar uma política antirracista nas instituições educacionais é desafiador, pois, na medida em que a escola é um espaço oportuno para se trabalhar a educação para a relações étnico-raciais, a fim de propiciar a emancipação dos grupos historicamente excluídos, é também um lugar de diputas onde sua estrutura se desenvolve por interesses políticos e sociais eurocêntricos, os quais não priorizam a equidade prevista na legislação educacional.

O Plano Nacional para a implementação da referida Lei visa colaborar para que todo o sistema de ensino cumpra as determinações legais e torne-se habilitado e qualificado a enfrentar todas as formas de preconceito, racismo e discriminação inerentes às relações sociais e raciais vivenciadas em nosso país, as quais impedem que, de maneira universal, negros e não negros tenham garantido seu direito de aprender. Ademais, deparamo-nos com a omissão das instituições e com a perpetuação e a legitimização da hegemonia cultural eurodescendente, prevalecendo no ambiente escolar, em desfavor de outras visões de mundo não europeias, como é o caso dos povos africanos e de seus descendentes, de povos indígenas, asiáticos, ciganos, dentre outros.

Com relação às dificuldades da DIDI em promover a implementação da legislação educacional antirracista, obtivemos a seguinte resposta:

O próprio presidente do Instituto Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [Improir] disse que, por ele, aquele conselho [Conselho Municipal de Igualdade Racial - COMIGUALDADE] não ia mais dar em nada, e não deu, porque ele ligava para as pessoas não irem nas reuniões. A DIDI montou a comissão, inclusive para a construção da matriz curricular e para sair o decreto com o nome dessa comissão, e isso nunca foi feito. Aonde você chega? Você se depara com a Lei, mas porque no Estado do Amapá é essa dificuldade? Porque os professores não têm conhecimento do que essa Lei pede, acham que isso é modismo. Porque o trabalho tanto do programa étnico-racial como da Divisão da diversidade não fluiu mais por conta desse preconceito, por conta dessa invisibilidade que encontramos dentro da Secretaria. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 21/08/2020).

O Improir tem como uma de suas atribuições institucionais contribuir para a implementação no currículo escolar das escolas a pluralidade étnico-racial brasileira e afro-amapaense. Na prática, o Instituto é um dos primeiros a desconsiderar a ação do setor étnico-racial, sendo um órgão fundamental para a gestão, fiscalização e promoção das políticas públicas por equidade racial em Macapá, o que gera sérios prejuizos pela falta de ação integrada, colaborativa e estratégias entre DIDI e Improir, para a implementação da Lei nas escolas municipais. Essas posturas administrativas depõem e criam obstáculos para o avanço da referida pauta histórica, e, assim, também prejudicam a defesa do direito social de negros/as a terem acesso à educação de qualidade e as instituições atuarem de forma colaborativa e articulada a fim de alcançar êxito na implementação dessa política afirmativa, a qual, até o presente momento, tem sido precária e incapaz de responder às diversidades presentes nas escolas.

Como é de conhecimento público, as legislações educacionais antirracistas são regulamentadas e fundamentais no processo educacional e devem ser adotadas, aplicadas e promovidas por todas as instituições de ensino públicas e privadas. A esse respeito, de acordo com Piedade Videira:

As leis antirracistas visam corrigir a narrativa de fatos e momentos históricos que produzem e reproduzem distorções sobre a formação racial do Povo Brasileiro e, finalmente, colocar em condição de igualdade e relevância os povos indígenas, negros, brancos e asiáticos, ao longo da História do Brasil do passado e do presente. (VIDEIRA, 2019, p. 25).

Decerto, a Lei No 10.639/2003 é um avanço significativo na luta por uma educação antirracista, e a todas as formas de preconceito contra a população negra e, dessa feita, contribui sobremaneira para a valorização do legado e dos sistemas culturais afro-amapaenses, incluindo a dimensão da religiosidade afro-amazônica no currículo oficial vigente nas escolas.

Devido às dificuldades apresentadas pela DIDI, fez-se oportuno indagarmos quais estratégias o setor tem lançado mão para superar os entraves quanto à implementação da Lei. Em resposta, alegou-se:

O que está ao nosso alcance, porque tem coisas que é preciso recurso para fazer, né? Mas eles não me dão suporte para isso. Assim, na medida do possível, continuo dizendo para vocês que temos esse olhar, da necessidade de tudo isso, por que qual é o olhar que se tem dentro da secretaria? Que isso tudo é besteira. Você percebe que o corpo técnico da Semed não tem interesse nenhum em trabalhar, em implementar a Lei 10.639/03. (Entrevista com a chefia da Divisão Étnico-Racial, 12/08/2020).

Diante de tais posturas, uma educação de qualidade, prevista na Constituição de 1988, o que pressupõe uma educação equânime, continuará sendo apenas utopia nas escolas municipais de Macapá quando se observam profissionais que são fundamentais nesse processo totalmente alheios/as e indiferentes a uma Lei que se apresenta com grande potencial de mudança no sistema educacional, a qual objetiva mudar o paradigma educacional brasileiro eurocentrado, por meio do ensino e da aprendizagem, pautados na diversidade étnica e, principalmente, na descolonização dos currículos escolares.

Fica latente que a Lei No 10.639/2003 não será efetivada nas instituições de ensino do municipio de forma pacífica, pois a mentalitade racista ainda persiste, sendo refletida nos currículos, bem como nas atitudes e nos comportamentos dos/as profissionais ligados/a à educação pública ofertada em Macapá, gerando, com isso, conflitos e tensionamentos na Semed e no cotidiano escolar. Assim, percebemos a urgência do ente público municipal debruçar-se sobre essa problemática estrutural, cuja premência de uma fiscalização mais rígida e sistemática para a sua aplicabilidade nas redes públicas e privadas de ensino torna-se imprescindível.

A esse respeito, suscitamos o que enfatiza o CNE, em seu Parecer No 3/2004, que apresentou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da Cultura Afro-Brasileira e Africana:

Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente. (BRASIL, 2004a, p. 5).

Para emergirem as dores e os medos, é preciso conhecermos a história, a luta e a cultura dos/as afro-brasileiros/as, romper com o racismo, combatê-lo por meio de políticas públicas efetivas, como afirma a antropóloga Laura López (2012) e, principalmente, com o conhecimento, pois é a sua ausência a todos/as os brasileiros/as que tanto tem afetado a realidade de afrodescendentes e mantido os privilégios sob a marginalização de outros grupos étnico-raciais, impedindo a construção de uma sociedade mais justa e equânime. Assim, constatamos, com base nos aportes teóricos e dados empíricos obtidos na pesquisa, que o racismo institucional e as mentalidades preconceituosas e racistas têm sido uns dos inúmeros impedimentos para a aplicabilidade da política educacional antirracista nas escolas municipais de Macapá, mesmo a despeito de todo o esforço empreendido pela DIDI.

Considerações finais

Este estudo revelou uma realidade preocupante quanto à aplicabilidade da Lei No 10.639/2003 nas escolas municipais de Macapá. A falta de ações e de estratégias direcionadas à sua implementação contribui para que, no âmbito da gestão pública, a política educacional antirracista não seja efetivada. Ademais, faz-se necessário um investimento maior em formação e em capacitação de professores/as voltadas ao ensino da história e cultura afro-brasileira, uma vez que a maioria dos/as docentes se encontram resistentes em relação à efetivação da legislação educacional antirracista.

Outra constatação foi a de que, por falta de apoio da Semed, há uma ausência em relação à produção de materiais didáticos voltados à temática étnico-racial. Considerando que a DIDI é um setorial que abarca questões referentes à diversidade, identificamos, por meio das declarações obtidas em entrevista, que essa Divisão está desprestigiada na estrutura administrativa da Secretaria em face ao contexto das relações interpessoais e do racismo institucional presente no órgão. Como exemplo, tem-se o projeto intitulado “Convivendo com as diferenças”, que, por resistência de professores/as e falta de apoio da Secretaria e dos profissionais da Educação, não obteve êxito em seus objetivos. Nesse sentido, a invisibilidade, a resistência e o desinteresse com a temática em âmbito educacional concorrem para uma implementação precária da Lei No 10.639/2003. Em outras palavras, a omissão da Secretaria e o desinteresse dos/as professores/as, do corpo técnico e demais profissionais da Educação contribuem incisivamente para a sua não aplicabilidade nas escolas municipais de Macapá.

Assim sendo, as Leis e as Diretrizes estão normatizadas local e nacionalmente e devem ser implementadas em todas as instituições de ensino, sejam elas públicas ou privadas. Todavia, uma educação de qualidade não se concretizará sem a emancipação de grupos étnico-raciais excluídos, sem equidade, sem a devida formação de professores, com currículos eurocêntricos e silenciando o que precisa ser discutido. Por fim, ressaltamos que as referências de intelectuais negros/as, como Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento entre outros/as que discutem a temática étnico-racial, permanecem atuais e denunciam uma realidade que ainda reflete nas práticas pedagógicas de professores/as bem como nas instituições de ensino.

1Evento virtual sobre o lançamento da campanha pela efetiva implementação das Leis No 10.639/2003 e No 11.645/2008 realizado em 9 dezembro de 2020. Mais informações em: https://www.institutobuzios.org.br/campanha-fazer-valer-as-leis-10-639-e-11-645-live-de-impulsao-nacional/#:~:text=A%20Campanha%20Nacional%20Fazer%20valer,Nacionais%20para%20a%20Educa%C3%A7%C3%A3o%20das. Acesso em: 19 maio 2022.

2O Prof. Dr. Amauri Mendes participou na qualidade de palestrante na programação do evento virtual (live) sobre o lançamento da campanha pela efetiva implementação das Leis No 10.639/2003 e No 11.645/2008 realizado no dia 9 de dezembro de 2020.

3Fala proferida no evento virtual de lançamento da campanha pela efetiva implementação das Leis No 10.639/2003 e No 11.645/2008 realizado no dia 9 de dezembro de 2020.

4Fala proferida no evento virtual sobre o lançamento da campanha pela efetiva implementação das Leis No 10.639/2003 e No 11.645/2008 realizado no dia 9 de dezembro de 2020.

Referências

BARBARANE, E. R.; CAVALCANTE, N. A. S. Poesia na quebrada: possibilidades de transformação social e o empoderamento cultural de crianças negras periféricas. In: SPIGOLON, N. I. et al. (org.). Tambores, Urucuns e Enxadas: práticas e saberes contribuindo para a formação humana. Ituiutaba: Barlavento, 2019. p. 276-296. [ Links ]

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. [ Links ]

BRASIL. Lei No 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [1990]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, [1996]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Durban, 31 de agosto a 8 de setembro de 2001. Brasília: Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, 2001. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/declaracao_durban.pdf. Acesso em: 19 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 8, p. 1, 10 jan. 2003. [ Links ]

BRASIL. Parecer CNE/CP No 3, de 10 de março de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional da Educação, [2004a]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/cnecp_003.pdf. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Resolução Nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional da Educação, [2004b]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Orientações e ações para educação das relações étnico-raciais. Brasília: SECAD, 2006. [ Links ]

BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10098-diretrizes-curriculares&Itemid=30192. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL, Resolução Nº 8, de 20 de novembro de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica. Brasília: Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Básica, [2012]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=11963-rceb008-12-pdf&category_slug=novembro-2012-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013a. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=13448-diretrizes-curiculares-nacionais-2013-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 19 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 12, p. 59-62, 13 jun. 2013b. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. Disponível em: http://.mec.gov.br/images/bncc_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 10 maio 2022. [ Links ]

BRASIL. Resolução No 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Brasília: Conselho Nacional de Educação; Conselho Pleno, [2019]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-rcp002-19/file. Acesso em: 20 jun. 2020. [ Links ]

CUNHA, D. A. da. (org.). Educação, negritude e interculturalidade: pesquisas e contribuições metodológicas. Castanhal: Editora DAC, 2020. [ Links ]

CRI. Programa de Combate ao Racismo Institucional. Articulação para o combate ao racismo institucional: identificação e abordagem do racismo institucional. Brasília: CRI, 2006. [ Links ]

GARCIA, M. de F.; SILVA, J. A. N. da. Africanidades, afrobrasilidades e processo (des)colonizador: contribuições à implementação da Lei 10.639/03. João Pessoa: Editora da UFPB, 2018. [ Links ]

GOMES, N. L. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal n° 10.639/03. Brasília: Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 39-62. (Coleção Educação para Todos). [ Links ]

GOMES, N. L. Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo emancipatório. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 95-108, jan./dez. 2008. DOI: https://doi.org/10.22420/rde.v2i2/3.127Links ]

GOMES, N. L; SILVA, P. B. G. (org.). O desafio da diversidade: experiências étnico-culturais para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p. 13-33. [ Links ]

GONZALES, W. Técnica de pesquisa. In: MAZZOTTI, A. J. (org.) Metodologia científica. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Estácio de Sá, 2014. p. 86-106. [ Links ]

LÓPEZ, L. C. O conceito de racismo institucional: aplicações no campo da saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 121-34, jan./mar. 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000004Links ]

MACAPÁ. Secretaria Municipal de Educação. Plano Municipal de Educação. Macapá: Semed, 2015. [ Links ]

MACAPÁ. Secretaria Municipal de Educação. Diversidade. 2020. Disponível em: https://sites.google.com/view/semedmacapa/not%C3%ADcias/diversidade. Acesso em: 10 jun. 2020. [ Links ]

MUNANGA, K. (org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. [ Links ]

NASCIMENTO, A. do. O quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980. [ Links ]

OLIVEIRA, R. C. S.; ABDULMASSIH, M. B. F. Reflexões sobre a proposta de uma educação antirracismo no Brasil: um olhar sobre a Lei n.10.639/2003. In: SPIGOLON, N. I. et al. (org.). Tambores, urucuns e enxadas: práticas e saberes contribuindo para a formação humana. Ituiutaba: Barlavento, 2019. p. 276-296. [ Links ]

RATTS, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Instituto Kuanza, 2007. [ Links ]

SANTOS, S. F. S. dos. A Lei Nº 10.639/2003 e a formação continuada para a discussão das relações étnico-raciais do 6º ao 9º ano em uma escola pública estadual de Campo Grande - MS com alto IDEB. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, 2016. [ Links ]

SILVA, M. A. B. da. Discursos étnico-raciais proferidos por pesquisadores/as negros/as na Pós-Graduação: acesso, permanência, apoios e barreiras. 2015. Tese. (Doutorado em Psicologia Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015. [ Links ]

SILVA, P. B. G. e. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In: MUNANGA, K. (org.). Superando o racismo na escola. 2. ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. p. 155-172. [ Links ]

VIDEIRA, P. L. Batuques, folias e ladainhas: a cultura do quilombo do Cria-ú em Macapá e sua educação. Fortaleza: Edições UFC, 2013. [ Links ]

VIDEIRA, P. L. O marabaixo do Amapá: encontro de saberes, histórias e memórias afro-amapaenses”. Revista Palmares, Brasília, v. 10, n. 8, p. 16-21, nov. 2014. [ Links ]

VIDEIRA, P. L. Apresentação. In: VIDEIRA, P. L.; FERREIRA, N. I. de B.; FONSECA, K. de N. S. (org.). Mulheres negras: fortalezas tecidas de dores, resistências e afetos. Macapá: Unifap, 2019. p. 20-27. [ Links ]

Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 30 de Abril de 2022; Aceito: 02 de Maio de 2022; Publicado: 23 de Maio de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.