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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19417.072 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

A obra infantil de Monteiro Lobato: do racistês ao pretuguês

Monteiro Lobato’s children’s books: from racistês to pretuguês

La obra infantil de Monteiro Lobato: del racistês al pretuguês

Anamaria Ladeira Pereira* 
http://orcid.org/0000-0003-1459-3508

Camila Santos Pereira** 
http://orcid.org/0000-0002-6149-0520

*Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ). Integrante do Grupo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Geni) e do Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros (Degenera), ambos na UERJ.

**Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ProPEd/UERJ). Integrante do Grupo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Geni) e do Grupo de Estudos em Educação e Transgressão (Geetrans). Bolsista do Programa Nota 10 - Mestrado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).


Resumo

Este trabalho apresenta uma análise bibliográfica de 15 livros infantis de Monteiro Lobato a partir de uma perspectiva antirracista. Como base para as argumentações, os estudos sobre relações raciais, sexismo e branquitude, desenvolvidos por diversas intelectuais negras, entre elas Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Nilma Lino Gomes e Conceição Evaristo, permeiam o texto visando transgredir as formas mais tradicionais de reflexão científica. O rigor teórico, contudo, não deixa de ser traçado nestas linhas em que urgentes indagações driblam o silenciamento e se expõem. Conclui-se que instigar novas concepções de realidade e confrontar um país racista faz parte de uma educação comprometida com o desmantelamento das injustiças e da indiferença destinadas às populações negras e indígenas.

Palavras-chave: Monteiro Lobato; Racismo; Literatura infantil.

Abstract

This work presents a bibliographical analysis of 15 children’s books by Monteiro Lobato from an anti-racist perspective. As a reference for the arguments, studies on race relations, sexism and whiteness developed by several black intellectuals, including Lélia Gonzalez, Grada Kilomba, Nilma Lino Gomes and Conceição Evaristo, permeate the text aiming to transgress the most traditional forms of scientific reflection. However, the theoretical rigor is outlined along these lines in which urgent questions evade the silences and expose themselves. It is concluded that instigating new conceptions and confronting a racist country is part of an education committed to dismantling injustice and indifference towards black and indigenous populations.

Keywords: Monteiro Lobato; Racism; Children’s Literature.

Resumen

Este trabajo presenta un análisis bibliográfico de 15 libros infantiles de Monteiro Lobato, a partir de una perspectiva antirracista. Como base para los argumentos, los estudios sobre relaciones raciales, sexismo y blanquitud desarrollados por diversas intelectuales negras, entre ellas Lélia González, Grada Kilomba, Nilma Lino Gomes y Conceição Evaristo, permean el texto mirando a transgredir las formas más tradicionales de reflexión científica. El rigor teórico, sin embargo, no deja de ser trazado en estas líneas en las que indagaciones urgentes eluden el silenciamiento y se exponen. Se concluye que instigar nuevas concepciones de la realidad y enfrentar a un país racista hace parte de una educación comprometida con el desmantelamiento de las injusticias y de la indiferencia destinada a las poblaciones negras e indígenas.

Palabras clave: Monteiro Lobato; Racismo; Literatura infantil.

Introdução

Quem pode falar? O que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?

Grada Kilomba (2019, p. 33).

adesvio:

em caso de emergência, quebre o protocolo.

tatiana nascimento (2017, p. 6).

Durante séculos, no Brasil, devido a políticas específicas e toda uma legislação desenvolvida por homens brancos, discriminar e violentar pessoas negras e indígenas era algo socialmente aceito e propagado por pessoas brancas. Como a discriminação e a violência faziam parte do que se considerava normal, hoje, há quem afirme que não existia racismo naquela época, pois ninguém falava sobre isso ou sequer se pensava sobre racismo, em determinado período histórico brasileiro. Essas justificativas representam o que chamamos de racistês1, no intuito de explicitar desculpas racistas defendidas por pessoas brancas que se esforçam ao máximo para evitar admitir o próprio racismo.2

Tais alegações, nem sempre compreendidas como racistas, muito embora contribuam com a permanência da estrutura necessária para que o racismo se fortaleça, serão, aqui, traduzidas a partir do que Lélia Gonzalez (2020) descreve como “pretuguês”. Traduziremos, assim, as relações de dominação subliminares que categorizam pertencimentos raciais brancos como superiores (o racistês) para a resistência por meio da fala e da ação que valoriza a “[...] marca de africanização do português falado no Brasil”, o pretuguês (GONZALEZ, 2020, p. 128).

Vale pontuarmos que este texto nasceu da mescla de dois lugares de fala distintos: o de uma pessoa branca e o de uma pessoa negra. Em que pese todas as nossas diferenças, empenhamo-nos no desmantelamento desse sistema chamado de meritocrático, mas com base na expropriação, que prejudica, constantemente, uma de nós, ao passo que privilegia, o tempo inteiro, a outra (BENTO, 2022). E se bem que as diferenças não nos tornam, obrigatoriamente, adversárias, ambas sabemos que o ato de escrever um texto antirracista não imuniza uma pessoa branca do seu próprio racismo, nem a torna imediatamente uma aliada.

Sobre antirracismo, Djamila Ribeiro (2019) nos convoca a refletir a respeito da responsabilização que pessoas brancas precisam desenvolver em direção à criação de espaços aos quais pessoas negras tenham acesso. Nesse sentido, compreendemos a necessidade de que pessoas brancas se responsabilizem e encarem os incômodos, sem tornar o sentimento de culpa uma nova fuga confortável (RIBEIRO, 2019). “Dizer que determinada atitude foi racista é apenas uma forma de caracterizá-la e definir seu sentido e suas implicações. A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos - mais grave é não reconhecer e não combater a opressão” (RIBEIRO, 2019, p. 21-22).

Por considerarmos os sentimentos e a autoestima de crianças negras, algo que as classes dominantes de nosso país insistem em espezinhar, opomo-nos, sob qualquer pretexto, à leitura de textos racistas em sala de aula, em especial na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Arriscamos estimar que grande parte das pessoas que se manifestam favoravelmente ao uso, nas escolas, de livros infantis de Lobato jamais os leram. Parecem defender algo que desconhecem. Lendo, talvez se indignassem, embora entre as pessoas que garantem tê-lo lido há muitas que afirmam que não é nada, não é nada, era um homem de seu tempo, deixemos quieto seu legado, ninguém se tornou agressor de gente negra por ler Monteiro Lobato na infância, não é mesmo? Veremos. E sem o desejo de soar contundentes em demasia, complementamos, em resposta, que “[...] o neurótico constrói modos de ocultamento do sintoma porque isso lhe traz certos benefícios. Essa construção o liberta da angústia de se defrontar com o recalcamento” (GONZALEZ, 2020, p. 84). Por exemplo, um trecho de Memórias da Emília, no qual a protagonista tece comentários sobre o que é uma vaca para o anjinho, que desconhece o animal, tem sido, comumente, ocultado por teóricos e teóricas especialistas na obra de Lobato: Emília, de repente, fala o seguinte: “[...] se você comparar a mais suja negra da rua com uma vaca, dizendo: ‘Você é uma vaca’, a negra rompe num escândalo medonho e se estiver armada de revólver dá tiro” (LOBATO, 1957g, p. 21).

Como justificar a defesa da leitura de atrocidades como essas a crianças e pré-adolescentes de hoje? Questionamento motivador deste artigo.3 Em vez de nos concentrarmos em analisar se trechos racistas lobatianos estavam adequados na época em que foram escritos, que tal nos atermos ao tempo presente? Queremos saber como se sentem, diante de passagens como a anterior, aquelas pessoas sempre dispostas a disseminar a inverdade de que a violência em livros infantis lobatianos não existe em uma única frase. Isso que apontamos como agressividade era, na verdade, a pura irreverência da Emília, a bonequinha língua de trapos, que se expressa da maneira que quiser, visto que, nesse mesmo tomo, ela se intitula “a Independência ou Morte”, olha que definição incrível!

Incrível, no sentido de inacreditável, é a defesa da obra infantil lobatiana, quando o que transborda em Memórias da Emília pode ser traduzido como a independência de pessoas brancas para dizerem o que lhes der na veneta e a morte da dignidade de pessoas negras. Se compreendemos como algo inaceitável atacar a dignidade de pessoas negras em leituras para crianças, na contemporaneidade, como defender que se leia para elas as seguintes expressões: “a mais suja negra da rua”, “comparar [...] com uma vaca”, “se estiver armada de revólver dá tiro”, “negra da rua”, “você é uma vaca”, “a mais suja negra”, “se estiver armada”, “negra da rua [...] armada de revólver”...?

Por que é tão difícil reconhecer que, nos livros de Lobato, as personagens representam símbolos de uma tradição aristocrática marcada pelo preconceito e pelo sentimento de superioridade? Regina Dalcastagnè articula uma leitura crítica sobre o campo literário brasileiro, em relação ao exotismo. A autora argumenta que “[...] o ‘outro’ aparece com as feições que a tradição lhes deu - deformadas pelo nosso medo, pelo nosso preconceito, nosso sentimento de superioridade” (DALCASTAGNÈ, 2002, p. 43-44). Quem defende o uso de livros de Monteiro Lobato com crianças já parou para refletir que essa tradição branca, esse medo branco, esse preconceito branco, que formam a supremacia branca, permanecem disseminados, nas escolas, com o apoio da literatura lobatiana? Ou encontram algum propósito, além de instigar a superioridade branca, em ler falas que definem mulheres negras como “sujas” e “da rua”, brutas e insanas: “se estiver armada de revólver dá tiro”?

Em outro momento do mesmo livro, ignorando o choro alto da insultada, em vez de interromper as agressões, a boneca explica à Dona Benta o que está acontecendo, agredindo Tia Nastácia ainda mais: “Esta burrona teve medo de cortar a ponta da asa do anjinho. Eu bem que avisei. [...]. E ela com esse beição todo: Não tenho coragem... É sacrilégio... Sacrilégio é esse seu nariz chato” (LOBATO, 1957g, p. 104). Quem pretende blindar Monteiro Lobato de críticas e incentivar a leitura de seus livros nas escolas não se ofende com os diversos trechos nos quais Tia Nastácia é duramente humilhada? Esse trecho nos recorda que “[...] a educação escolar tem sido um dos principais meios de socialização de discursos reguladores sobre o corpo negro” (GOMES, 2017, p. 95). Assim sendo, urge confrontarmos as próprias palavras do autor, retiradas de sua obra, de maneira contextualizada, e o que elas são capazes de acionar no momento presente que vivemos.

Será que as crianças negras não convivem, diariamente, nas escolas e fora delas, com incontáveis situações de agressão para que, ainda por cima, a esses ataques reais sejam somados os ataques da ficção (também bastante reais)? Nossa hipótese é a de que o racismo não arde na pele e/ou no âmago da maioria das pessoas que advogam pelo uso da obra de Lobato em sala de aula com estudantes do Ensino Fundamental. Vale evidenciarmos que quem fala em nome da Educação, da Literatura, das novas gerações leitoras e do quanto pode ser prejudicial privar as crianças do contato com “os clássicos”, parece menosprezar o fato de que esses mesmos “clássicos” classificam mais da metade da população brasileira como inferior às pessoas brancas.

Não, não pretendemos jogar fora todos os livros de literatura da história da humanidade nos quais haja trechos racistas. A questão aqui é sobre a obra infantil do patrono da literatura para crianças, em nosso país, justamente como diz o título. Distorcer o que está bem explícito não seria uma estratégia para se esquivar da própria responsabilidade pelo andar da carruagem? Pessoas brancas persistem em sua negação contínua em reconhecer a opressão provocada por seus ancestrais, durante séculos; e perpetuada por si, na atualidade. Seria surpreendente tamanha negação, se não partíssemos do entendimento de que “[...] se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à condição de objetos utilitários ou a semoventes, também é difícil descobrir-se descendente dos escravizadores, temer, embora veladamente, revanche dos que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados” (BRASIL, 2013, p. 136).

Ainda assim, impressiona-nos a falta de disponibilidade em perceber que, dada a impossibilidade de apagar as violências, absolutamente desumanas, do passado, devemos debater a urgência de reparações históricas. Como promovermos transformações essenciais, visando um convívio mais igualitário, sem admitirmos a necessidade premente de “[...] reparar o mal causado pelo racismo através da mudança de estruturas, agendas, espaços, posições, dinâmicas, relações subjetivas, vocabulário, ou seja, através do abandono de privilégios” (KILOMBA, 2019, p. 46)?

Claro, é bem mais fácil dizer que o racismo não existia e, se hoje existir (existe?), racistas são os outros. Como aponta a pesquisa do Instituto Data Popular, 92% da população brasileira acredita que há racismo no país, porém, curiosamente, apenas 1,3% se considera racista (MEDEIROS; POMPEU, 2014). A seguinte indagação não é retórica, realmente queremos saber “[...] o que acontece todos os dias [...] em um país que naturalizou e, paradoxalmente, nega o seu racismo?” (GONÇALVES, 2011, n.p.). Já sabendo dos usuais artifícios escamoteadores, mergulhamos, previamente, nas obras de Lélia Gonzalez e Grada Kilomba, que ousaram e ousam contestar a branquitude, a qual também contestamos. Entendemos que

[...] a branquitude é um construto ideológico, no qual o branco se vê e classifica os não brancos a partir de seu ponto de vista. Ela implica vantagens materiais e simbólicas aos brancos em detrimento dos não brancos. Tais vantagens são frutos de uma desigual distribuição de poder (político, econômico e social) e de bens materiais e simbólicos. (SILVA, 2017, p. 27-28).

Inspiradas pelos posicionamentos de Gonzalez e Kilomba, não buscamos contemporizar nem afirmar somente aquilo que o mercado científico espera que seja dito, portanto exporemos inúmeros trechos racistas presentes na obra infantil de Lobato e os analisaremos, sem rodeios. Nosso objetivo principal centra-se em propor uma reflexão sobre tema tão polêmico quanto costumeiramente driblado por defesas mirabolantes, com as quais pensamos em estabelecer um diálogo. No entanto, sejamos francas, como é possível conversar com pessoas que, diante do investimento público em produções literárias reforçadoras da mentalidade de subalternização e inferioridade de pessoas negras, não apresentam um pingo de constrangimento?

Aqui, inquirimos o seguinte: Posturas racistas devem seguir sendo toleradas ou precisam ser combatidas? Partimos do pressuposto de que há combates necessários. Tendo em vista uma academia historicamente insistente em ecoar as mesmas vozes, como em uma sala de espelhos, é provável que um movimento que mostre outras facetas da realidade, e se recuse a aceitar o que vem sendo acatado como “a verdade”, seja recebido como agressivo. Importante buscarmos saber: Em que contextos essas vozes dominantes se transformarão em ouvidos e se disponibilizarão a escutar as que permanecem silenciadas? Será que o farão por livre e espontânea vontade ou artigos desagradáveis como este contribuirão, de alguma forma, para que repensemos, coletivamente, práticas racistas que insistimos em não enxergar? É preciso reconhecer que, na literatura, “[...] muito além de estilos ou escolhas repertoriais, o que está em jogo é a possibilidade de dizer sobre si e sobre o mundo, de se fazer visível dentro dele” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 13).

Temos consciência de que tratar do racismo na obra infantil de Monteiro Lobato suscita as maiores controvérsias, e estas não serão rejeitadas, pois o que é um texto acadêmico se não um convite ao pensamento? O que gera perturbação, em vez de ser empurrado para debaixo do tapete, será questionado em busca de uma possível compreensão do problema e das atitudes em relação a ele. Nessa toada, interessa-nos saber a quem serve uma intelectualidade homogênea, segundo a qual apenas se pode repetir, com outras palavras, o que já foi dito e pensado? A quem serve um espaço de saber, em que as perplexidades do ser humano, após leitura reflexiva de uma extensa obra, à luz das contradições da sociedade, não podem ser levantadas?

Por acreditarmos nesse espaço como propício para defender pontos de vista nem sempre palatáveis, porém embasados em fundamentos plausíveis, na intenção de enriquecer antigos debates ou fomentar novos, lançamos nossa garrafa ao mar. As numerosas citações e subsequentes comentários de 15 volumes infantis lobatianos, listados nas referências bibliográficas, tornam cada parágrafo merecedor de um olhar também atencioso para verificar se a ideia central provocadora de sua escrita tem sentido ou não.

Consideramos que Monteiro Lobato escreveu pensando que seria lido para e por crianças brancas, netas e bisnetas de outras donas Bentas. Hoje, nas escolas públicas brasileiras, seus livros são lidos também para crianças que são netas e bisnetas de outras tias Nastácias, classificadas por ele como parte da barbárie humana e da decadência social; crianças que Lobato nem queria que nascessem (GONÇALVES, 2011). Sim, seus ideais eugenistas (LEAL, 2020) previam que, em um século, a população negra seria eliminada do nosso país, restando a raça pura e superior, à qual ele acreditava pertencer. O que será que os livros do Sítio do Picapau Amarelo, no século XXI, dizem à meninada negra e indígena, que, para os eugenistas era preferível que jamais tivesse existido? E por que devemos nos importar com isso?

Histórias que não queremos ler?

Um ano antes do começo da pandemia de Covid-19, a obra de Monteiro Lobato entrou em domínio público. Há ou não racismo nas falas da boneca Emília? Deve-se suprimir esses trechos e manter o resto ou simplesmente deixar como está e seguir oferecendo às crianças? Dúvidas, que fizeram parte dos debates mais recentes, retomaram a gigantesca polêmica ocorrida uma década antes, a respeito do suposto racismo em Caçadas de Pedrinho, contenda na qual nos aprofundaremos mais adiante. Lendo diversos livros infantis lobatianos, questionamo-nos sobre que proveito traria, para as crianças de hoje em dia, o contato com textos que reforçam uma mentalidade estagnada no tempo. Investigamos, também, as raízes de um país atormentado, que insiste em esconder suas correntes colonizadoras, em vez de dissolvê-las com conhecimento, distribuição de renda e partilha dos espaços de liderança e decisão. Especialmente, focaremos na linguagem usada pelo narrador, por Dona Benta, seus netos e, sobretudo, por Emília ao se referirem à Tia Nastácia, Tio Barnabé e outros coadjuvantes representantes do povo. Povo do qual os personagens principais creem distanciar-se, orgulhosamente, como elite cultural, social e econômica branca. A violência racista e o elitismo permeiam a obra infantil lobatiana por completo. É essencial fazermos referência aos “[...] aspectos pouco explorados da influência negra na formação histórico-cultural do continente como um todo (sob) véu ideológico do branqueamento [...] recalcado por classificações eurocêntricas do tipo ‘cultura popular’, ‘folclore nacional’ etc. que minimizam a importância da contribuição negra” (GONZALEZ, 2020, p. 128).

Trechos de Histórias da Tia Nastácia são bem ilustrativos: “Emília torceu o nariz./- Essas histórias folclóricas são bastante bobas. Por isso é que não sou nada ‘democrática’! Acho o povo muito idiota...” (LOBATO, 1957f, p. 13). O povo, ao qual a personagem se refere, é o de origem não branca, cujas histórias, segundo os livros infantis lobatianos, deveriam servir apenas para entreter. Observamos o recorte de uma possível visibilidade da cultura afro-brasileira reduzida ao folclore, o que é apontado por Conceição Evaristo (2020) como algo recorrente na literatura de autoria branca nacional. Quase a totalidade das 40 narrativas que a idosa negra conta, é enxovalhada pelo “exigente público” (nas palavras do autor). Ah, dirão, mas a Emília, uma boneca de pano desbocada, nem humana é. O que representa uma defesa bem pouco convincente, visto que, para quem a lê na infância, Emília é tão humana quanto todos os outros personagens. De qualquer forma, há exemplos em que as falas humilhantes são proferidas pela doce Dona Benta: “Que é o povo? São essas pobres tias velhas como Nastácia, sem cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais adulterados ainda” (LOBATO, 1957f, p. 29).

Os saberes da Tia Nastácia são profundamente desvalorizados, desde que não tenham relação com os ofícios domésticos. Apenas nas funções de serviçal, é elogiada, afinal, Monteiro Lobato a descreve como uma “criatura ignorante sem cultura nenhuma”. Nem sequer no único livro reservado às suas histórias, a personagem foi apresentada como narradora, com voz ativa. Quem justifica esse tratamento como adequado na época em que foi escrito teria a bondade de nos explicar o que está em jogo ao reforçar a mensagem de inferioridade “do povo”, nos dias atuais? Além disso,

[...] a ideia de uma subalterna silenciosa pode também implicar a alegação colonial de que grupos subalternos são menos humanos do que seus opressores e são, por isso, menos capazes de falar em seus próprios nomes. Ambas afirmações veem os colonizados como incapazes de falar, e nossos discursos como insatisfatórios e inadequados e, nesse sentido, silenciosos. Elas também vão ao encontro da sugestão comum de que grupos oprimidos carecem de motivação para o ativismo político por conta de uma consciência falha ou insuficiente de sua própria subordinação. No entanto, grupos subalternos - colonizados - não têm sido nem vítimas passivas nem tampouco cúmplices voluntárias/os da dominação. (KILOMBA, 2019, p. 48-49, grifo da autora)

Logo na primeira página do primeiro tomo da série do Sítio do Picapau Amarelo, Reinações de Narizinho, há as seguintes passagens: “Tia Nastácia, negra de estimação”, e, em seguida, as pedras negras de limo são chamadas por Lúcia de “as tias Nastácia do rio” (LOBATO, 1957l, p. 3). Em uma primeira leitura, é possível que, sobretudo para pessoas brancas, as frases possam parecer envoltas em afetividade, derivada da tão propalada quanto inverídica relação de igualdade entre pessoas brancas e negras, a tal democracia racial. Esta, segundo Lélia Gonzalez (2020, p. 80), é um disfarce do neocolonialismo racista no Brasil e “[...] exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra”.

No quinto capítulo do mesmo livro, “O circo de cavalinhos” (LOBATO, 1957l, p. 240), antes do começo do espetáculo, Pedrinho alega: “Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta”. Ao que Narizinho responde: “Que não seja boba e venha. Eu dou uma explicação ao respeitável público”. Defensoras e defensores de Monteiro Lobato insistem em que, em seu contexto histórico, a explicação de Narizinho estava ajustada. É bom lembrarmos que vivemos em outro contexto histórico, e é nesse contexto em que vivemos que essas mesmas pessoas insistem em defender a leitura de trechos racistas a crianças pequenas. Neste artigo, interessa-nos questionar se há qualquer justificativa plausível para que estudantes, na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, sigam lendo ou ouvindo trechos como este: “Apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel, na barriga de um certo peixe. Então, o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura” (LOBATO, 1957l, p. 240).

Por mais que a menina o tenha dito com as melhores intenções, a passagem não deixa de ser uma agressão a pessoas negras. As brancas poderiam ofender-se junto, caso duvidassem de sua suposta “superioridade natural” dentro da lógica colonizadora. Mas a Narizinho só estava tentando ajudar e ainda chamou Tia Nastácia de princesa... Então, para ultrajar, o racismo precisa de fúria e xingamentos óbvios? “Uma fada [...] a pretejou condenando-a a ficar assim” dito com toda a doçura do mundo deixa de ser racista? Sabemos que atitudes racistas, muitas vezes, parecem inofensivas aos olhos de pessoas brancas, o que ocorre, simplesmente, porque estas não se ofendem ou porque compactuam com as atitudes em questão.

Poderíamos perguntar: O que o autor pretendia, na época em que escreveu o livro, ao reforçar que a pele negra é uma maldição, um motivo de vergonha?. Em vez disso, queremos saber o que as pessoas que defendem a leitura de seus livros, em sala de aula, com crianças, pretendem reforçar. Não lhes causa qualquer mal-estar que a personagem principal do livro passe a informação de que a pele negra é uma condenação? Será que não se dão conta de que, em livros como esses, “[...] a criança [negra] é forçada a criar uma relação alienada com a negritude, já que os heróis desses cenários são brancos e as personagens negras são personificações de fantasias brancas”? (KILOMBA, 2019, p. 154, grifos da autora).

Em diversos trechos, o racismo na obra de Lobato se manifesta de maneira bem clara e evidente. É impossível disfarçar sua violência com eufemismos, como na ira de Emília: “Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo” (LOBATO, 1957g, p. 104). Ou sutilmente, nas palavras da própria Nastácia: “Isto de cozinhar, menina, tem seus segredos. Só mesmo para uma criatura como eu, que nasci no fogão e no fogão hei de morrer...” (LOBATO, 1957g, p. 88). Não são poucas as vezes em que o autor coloca na boca da personagem negra palavras que ajudam a humilhá-la. Nessa perspectiva, poderíamos dizer que “[...] no mundo conceitual branco é como se o inconsciente coletivo das pessoas Negras fosse pré-programado para a alienação, decepção e trauma psíquico, uma vez que as imagens da Negritude às quais somos confrontados(as) não são nem realistas nem gratificantes” (KILOMBA, 2019, p. 37).

Justamente o que motivou a elaboração deste texto foi o impacto de percebermos como o autor consegue dar voz e vez às crianças (brancas, é óbvio), que, naquele tempo, deviam absoluta obediência aos mais velhos (brancos), não podiam respondê-los nem recusar-se a cumprir suas ordens. Simultaneamente a toda essa libertação infantil (branca), segue acorrentando a mulher negra e o homem negro ao confinamento da cozinha ou de uma cabana isolada no Sítio, e o que é pior: invisibiliza-os, ridiculariza-os e tece, de forma subliminar ou escancarada, o seu lugar de personagens secundárias, cujas histórias têm um valor menor ou nulo, e cujo papel e único destino é servir aos seus senhores e fazê-los rir do que consideram “ignorância”. As crianças negras, como nos explica Lélia Gonzalez (2020, p. 182), “[...] sofrem o estigma do pecado de serem negras, pois o discurso pedagógico as submete a diferentes maneiras de se envergonharem de si mesmas”. Será que não se pode perceber, nitidamente, a crueldade de impor a crianças pequenas, nas escolas, narrativas que as depreciam?

Inclusive a afirmação: “Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, Sinhá!” que encerra Caçadas de Pedrinho, na análise aqui defendida, parece ter sido incluída mais como algo burlesco, irônico e caricato do que para reflexão. Esse trecho é lido como prova irrefutável de quão amigável com aquelas que ele considerava “raças inferiores” era o escritor em questão. Algumas análises da obra lobatiana mencionam o fator discriminatório, sem, no entanto, nomeá-lo como racista, ao contrário, há uma persistente apaziguação, caracterizando o racismo nos livros de Lobato, como, até mesmo, uma homenagem do autor às tradições culturais afro-brasileiras. Urge que nos questionemos de onde vem o desespero da branquitude em interpretar e manipular “[...] textos ficcionais de Lobato para provar que ele não era racista, ou que era apenas um homem do seu tempo” (GONÇALVES, 2010, n.p.).

Para quem não leu Caçadas de Pedrinho, basta imaginar o seguinte: uma empregada doméstica, já idosa, andando em um carrinho de brinquedo e não deixando a “sua Sinhá” tomar o seu lugar. No volume inteiro, debocham da empregada em inúmeros momentos. Nastácia afirma que negro também é gente; no entanto, ela não é assim tratada. Emília, nos Serões de Dona Benta, mostra como a veem: máquina de cozinhar: “Tia Nastácia está chamando para o café. Emília disse: Está ali uma qualidade de máquina bem importante: a máquina de fazer comida. Sem ela, que seria de nós?” (LOBATO, 1957m, p. 97).

Em Peter Pan, Dona Benta ensina que a palavra cinegética “significa o mesmo que caçada” e Pedrinho, aproveitando que Tia Nastácia não estava presente, “saíra para ferver a água do chá”, usa com ela a palavra recém aprendida, na intenção de deixá-la com cara de boba. A empregada mostra a sua incompreensão, descrita pelo narrador como: “A palavra tonteou a negra, fazendo-a piscar três vezes” e, como de costume: “Todos riram-se da pobre preta” (LOBATO, 1957k, p. 220-222). Detalhe nada pequeno: depois do episódio, ninguém ensina a ela o significado da palavra, deixando bem claro que a graça consiste em bobear alguém. Infelizmente, o alvo é sempre o mesmo. Ah, mas naquela época era assim que as mulheres negras que trabalhavam como domésticas eram tratadas... E será que isso significa que as crianças negras da contemporaneidade, muitas delas filhas ou netas de mulheres que exercem esse ofício, não devem ser poupadas de trechos como esses?

Sem a pretensão de esgotarmos tão complexo assunto, faz-se necessário expormos os seus trechos, nada ingênuos, diante dos quais é preciso muito esforço para não ver racismo e elitismo. Trechos que não encontramos elencados, em qualquer outro trabalho do tipo, da forma como nos propusemos a fazer neste artigo. Esperamos, sinceramente, que venha a ser lido e encoraje outras produções a desmascarar, como diz tatiana nascimento (2020), “o antirracismo cínico”, da branquitude brasileira e que mobilize a sociedade a pensar sobre o uso de tais livros nas escolas.

Como compreender que não vejam o racismo explícito em frases como as já mencionadas? Repetimos uma delas, proferida por Emília: “Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo” (LOBATO, 1957g, p. 104). Como compreender que alguém defenda a leitura com crianças de algo tão violento e abusivo? Diante de tamanha agressão, Dona Benta a repreende com o célebre “respeite os mais velhos”, e Emília se retira batendo a porta. O fim da cena é o murmúrio da dona da casa sobre como a boneca está ficando insolente. Mais nada. Lembremos que a Emília, que diz: “a culpa não é nossa - é da negra beiçuda” (LOBATO, 1957g, p. 117), é a grande heroína do Sítio, sua personagem central, muito querida pelas crianças. Enfim, é preciso pôr em evidência “[...] a irracionalidade do racismo que [...] coloca [pessoas negras e indígenas] sempre como a/o “Outra/o”, como diferente, como incompatível, como conflitante, como estranha/o e incomum” (KILOMBA, 2019, p. 40).

Claro que sempre há as partes nas quais as pessoas brancas se agarrarão para não afundar na lama da brutalidade armada pelo poderio hegemônico de sua própria raça. A seguir, transcrevemos um trecho, que vem sendo boia de salvação da branquitude, do último capítulo de Memórias da Emília:

Tia Nastácia, essa é a ignorância em pessoa. Isto é... ignorante, propriamente, não. Ciência e mais coisas dos livros, isso ela ignora completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sábia. Para um tempero de lombo, um frango assado, um bolinho, para curar uma cortadura, para remendar meu pé quando a macela está fugindo, para lavar e passar roupa - para as mil coisas de todos os dias, é uma danada! Eu vivo brigando com ela e tenho-lhe dito muitos desaforos - mas não é de coração. Lá por dentro gosto ainda mais dela do que dos seus afamados bolinhos. Só não compreendo porque Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta como carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que a tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há essas diferenças de cor. Se houvesse, como havia de ser preta a jabuticaba que para mim é a rainha das frutas? (LOBATO, 1957g, p. 145, grifo nosso).

Podemos perceber, facilmente, que o livro é destinado a crianças brancas e explica o desconforto diante do que é diferente delas. O autor, por meio da fala da boneca, ressalta que “a cor preta desmerece as pessoas neste mundo”, quando devia evidenciar que pessoas brancas desmerecem pessoas negras por conta de sua cor. A cor preta não desmerece ninguém. Uma cor não tem esse poder. As pessoas brancas, sim, como detêm o controle sobre o poder político e os dispositivos de legitimidade do conhecimento científico e da cultura, têm o poder de desmerecer, e, ainda, podem responsabilizar a cor alheia pelo “desmerecimento”, muito cômodo. Tia Nastácia - afirma Lobato por intermédio da fala de Emília - “uma criatura tão boa e prestimosa” nasceu “preta como carvão”, o que lhe é incompreensível. “Porque Deus f[e]z [isso]”? Afinal, transparece o seguinte: ser bom e prestimoso são qualidades apenas de pessoas brancas, portanto, causa estranhamento que seja “preta como carvão” e, ao mesmo tempo, “boa e prestimosa”. O trecho conciliatório anterior só é amigável para quem acha que não é racista ser uma pessoa branca e considerar-se superior a pessoas negras. Quem não vê racismo na condescendência diminuidora, provavelmente é condescendente de forma racista e sequer se dá conta.

Segundo Gonzalez (2020, p. 141), o sistema ideológico de dominação faz parte do sistema patriarcal racista e “[...] suprime nossa humanidade precisamente porque nos nega o direito de ser sujeitos não apenas de nosso próprio discurso, mas de nossa própria história”. A empregada, a quem ainda tratam com numerosos resquícios da escravização, serve para fazer, não para pensar, recusar-se, sentir, dizer. Quando não se limita ao seu papel, é ridicularizada. Não tem sobrenome, família ou história, ao menos esta não é contada. Não tem descendência e sua ascendência é um mistério. Em um livro, dizem que veio de Angola, em outro, de Moçambique. Fica claro que ninguém sabe ao certo, e para cúmulo, uma fera africana tem extremamente mais espaço para falar e expressar-se do que os descendentes de povos de África presentes em livros infantis de Lobato. Trata-se de Quindim, o rinoceronte especialista em gramática, que, por ter nascido em Uganda, fala inglês e traduz conversas no Poço do Visconde.

O rinoceronte é retratado como sábio. Tia Nastácia, por sua vez, é costumeiramente humilhada ou autodepreciada. Imaginamos que parte do nosso público leitor branco já esteja cansado, mas, e quem enfrenta o racismo todos os dias e ainda precisa escutar que esses livros são maravilhosos e tem mais é que ser muito e muito lidos, como fica? Mais exemplos do que há quem chame de maravilhoso: “ - Que é que está fazendo, Emília? / - Estou vendo se faço uma munheca de gancho como a do Capitão. / - E para que, bobinha? / - Para assustar tia Nastácia. Quero ganchar aquele beição dela...” (LOBATO, 1957k, p. 199). Dessa maneira, termina um capítulo de Peter Pan. Dona Benta não a repreende nem diz nada. Parece ser a coisa mais corriqueira do mundo que a boneca queira “ganchar” o lábio de tia Nastácia.

O próprio narrador assim se manifesta: “Veja, Sinhá - dizia ela com o beiço pendurado” (LOBATO, 1957k, p. 217) e “No outro dia tia Nastácia apareceu com beiço ainda mais caído” (LOBATO, 1957k, p. 239). Impressionante notar que, após inúmeras vezes chamar a empregada de “negra beiçuda”, como um insulto, Emília a corrige, em O Poço do Visconde, quando Nastácia diz: “meu gosto é quando faço um prato e vejo a criançada lamber os beiços de gosto. / - Beiço é de boi - aparteou Emília. Gente tem lábios...” (LOBATO, 1957j, p. 242).

Peter Pan é a única história contada, nos 15 livros analisados, da qual Tia Nastácia participa por vontade própria, perdendo apenas algumas partes devido aos seus afazeres:

- Espere, Sinhá! Não comece ainda - gritou lá da copa tia Nastácia. Eu também faço questão de conhecer a história desse pestinha. Estou acabando de lavar as panelas e já vou. / Dona Benta esperou que a negra chegasse, apesar do protesto da Emília que disse: ‘Bobagem! Para que uma cozinheira precisa saber a história de Peter Pan?’. (LOBATO, 1957k, p. 151).

Em outra das sagas, após ter sido escravizada pelo Minotauro e passado longo tempo fazendo bolinhos para ele, a empregada é resgatada e, em seguida, Dona Benta ordena: “E leve tia Nastácia pra dentro e que ela faça uns bolinhos daqueles” (LOBATO, 1957h, p. 251), pois “[...] você está salva, Nastácia, e vai voltar para o Picapau, e vai continuar por toda a vida a fazer bolinhos para nós” (LOBATO, 1957h, p. 227). Ela apenas volta a seus antigos opressores, cuja violência é disfarçada por incontáveis camadas de falsa amabilidade.

Um exemplo de como Dona Benta, além de elitista, mostra-se eurocêntrica, em História do mundo para as crianças: “Tenho notado uma coisa - disse Pedrinho. A senhora só fala dos países da Europa, como se o mundo fosse apenas a Europa. E as outras terras? / - As outras terras não nos interessam tanto como as da Europa, ou do Ocidente” (LOBATO, 1957e, p. 205). Igualmente, a “humanidade” a que Emília se refere em A Chave do Tamanho, a humanidade que verdadeiramente importa, é a nascida há várias gerações na Europa e nos Estados Unidos, principalmente neste último. Desse modo, observamos como “[...] a sociedade brasileira como um todo é uma sociedade culturalmente alienada, culturalmente colonizada, na medida em que todos os valores de um pensamento, de uma arte, enfim, de tudo que vem da Europa, do mundo ocidental, é o grande barato” (GONZALEZ, 2020, p. 291).

Uma das falas da boneca a respeito das pessoas que morrem asfixiadas pelo peso de suas próprias roupas, quando viram miniaturas de si mesmas, no livro A Chave do Tamanho: “Morrem muitos, bem sei. Morrem milhões, mas basta que fique um casal de Adão e Eva para que tudo recomece. O mundo já andava muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso - gente demais, como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza” (LOBATO, 1957a, p. 99).

E por que, para se acabar com “os canhões e tanques e pólvora e bombas incendiárias” (LOBATO, 1957a, p. 99), tantíssima gente inocente teve de morrer? Emília diminui toda a humanidade e demonstra bem pouca preocupação com as mortes que causa nessa brincadeira. Parece, ao contrário, muito orgulhosa de ter feito “uma limpeza”. E o livro termina com Tia Nastácia preocupada com as roupas da “Sinhá”, como se fosse muito cômico que a empregada não tivesse qualquer preocupação própria depois de toda a aventura que vivenciaram.

Claros sinais de chacota burlam-se de Tia Nastácia a cada momento, e apenas quando Emília grita é repreendida. Se diz as coisas como se fossem engraçadas, tudo passa naturalmente como piada inofensiva: “- Nossa bússola vem vindo! [...]. Tia Nastácia também aponta sempre para o estômago... / - O chá está na mesa, disse a boa criatura, muito admirada ao receber o nome de ‘bússola beiçuda’ que lhe deu Emília” (LOBATO, 1957e, p. 213).

O trecho, a seguir, de Caçadas de Pedrinho, ficou conhecido devido à polêmica, em 2010 (GONÇALVES, 2010), quando Antônio Gomes da Costa, técnico em gestão educacional, solicitou à Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) que a “[...] Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal se abstenha de utilizar livros, material didático ou qualquer outra forma de expressão que contenha expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual [...]” (BRASIL, 2011, p. 1). A obra em questão fomentaria práticas racistas junto ao público infantil. Na denúncia de Costa, havia a observação de que a nova edição de Caçadas de Pedrinho acrescentava uma nota sobre como as práticas de caça mudaram devido à extinção de onças, o que levou à sugestão do acréscimo de uma nota sobre o racismo presente em suas páginas, como no trecho a seguir: “Tia Nastácia, esquecida de seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão, pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros” (LOBATO, 1957b, p. 55).

Mesmo com todos os avanços sociais e constitucionais, nenhuma das medidas propostas (para evidenciar as práticas racistas naturalizadas dentro e fora das páginas do livro) foi acolhida, naquele momento. Nesse cenário, contudo, podemos observar um movimento que combate a perpetuação dos apagamentos da branquitude e seu constante esforço para não se responsabilizar pela diminuição das vidas negras. Temos, como exemplo de enfrentamento das práticas de manutenção da supremacia branca, as posições tomadas por Nilma Lino Gomes, reconhecida como a primeira reitora negra do Brasil e ex-Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2015) e do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos (2015-2016).

A intelectual, na época, integrante da Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação (CNE), foi relatora do Parecer CNE/CEB Nº 6, de 1º de junho de 2011 (BRASIL, 2011). Nilma Lino Gomes acolheu e analisou as declarações realizadas por Antônio Gomes da Costa e propôs orientações para que as instituições de ensino realizassem uma revisão crítica dos materiais que reproduzem estereótipos racistas, assim como indicou o dever do poder público em capacitar a formação histórica e política nas escolas sobre esse tema. Após a repercussão nas instituições governamentais e nas redes sociais, que fizeram de tudo para aparecer que havia uma tentativa de censura e um atentado à liberdade de expressão, argumentou que

[...] o alerta e a denúncia em relação à adoção desse livro e de outras obras que apresentem estereótipos raciais devem ser entendidos como parte do processo democrático e integra o debate público e o exercício do controle social da educação realizado pela comunidade escolar em relação à política e às práticas educacionais quer sejam adotadas em nível federal, estadual, municipal ou distrital. (BRASIL, 2011, p. 6).

Como podemos observar, em documentos oficiais, propor a revisão e crítica dessas obras engloba um compromisso democrático em relação ao futuro da educação nacional. Censurar e diminuir esse esforço demonstra o contrário. Silenciar as vozes que apresentam argumentos que comprovam o teor degradante, em particular para as crianças negras, do conteúdo presente nas obras infantis de Monteiro Lobato, simboliza uma filiação ao retrocesso, à estagnação. Os exemplos são inúmeros de como as mensagens retratam a submissão atribuída aos corpos negros.

Mesmo perigando não fazer o menor sentido, o autor repisa a diferença, de forma ferina: “[Tia Nastácia é] uma advérbia preta como carvão, que mora no sítio de Dona Benta. Isto é, Advérbia só para mim [diz Emília], porque só a mim é que ela modifica. Para os outros é uma Substantiva que faz bolinhos muito gostosos” (LOBATO, 1957c, p. 59). “Uma advérbia preta como carvão” - onde estão as pesquisadoras e os pesquisadores de sua obra, pessoas dispostas a defender Lobato a qualquer custo, para explicar o que significa isso em Emília no País da Gramática? “Uma advérbia preta como carvão” - com que propósito o autor frisa a cor de pele de Tia Nastácia ao explicar o que são os advérbios?

De fato, causa-nos espécie que um artigo de Camara (2015), que se dedica a analisar “o ludismo lexical de Monteiro Lobato” e apresenta o trecho em questão, passe por cima do “preta como carvão”, como se nem estivesse ali ou não tivesse a mínima relevância. Então, “[...] as criações neológicas lobatianas, cuja expressividade na produção de sentido recai, quase sempre, no humor” (CAMARA, 2015, p. 266) têm o poder de apagar por completo o racismo estampado no diálogo entre Emília e o verbo Ser? Ao que tudo indica: sim, pois, para a docente, na passagem que inclui “uma advérbia preta como carvão”, há apenas o neologismo a ser destacado, “um encontro prazeroso com palavras inventadas” (CAMARA, 2015, p. 268). Acontece que não podemos nos esquecer que

[...] a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana (KILOMBA, 2019, p. 14, grifos da autora).

Camara (2015, p. 259), além de não mencionar racismo em uma única linha de seu texto, afirma: “Considerado o universo literário brasileiro, nada se mostra mais saudável e adequado do que aproximar a criança da obra de Monteiro Lobato”. Quem seria “a criança” a quem a pesquisadora se refere?

“Uma advérbia preta como carvão”. Se faz algum sentido e se traz qualquer benefício para a infância atual o contato com esse tipo de frase, por favor, não hesitem em nos explicar. Já basta de passar por cima, fazer de conta que não existe, ignorar. Traduzimos Como Monteiro Lobato foi muito criativo, não é mesmo? Ele realmente revolucionou a literatura para crianças! para: Revolucionou a literatura para crianças brancas; as crianças negras nem sequer aparecem nas histórias e têm a sua cor comparada a carvão o tempo inteiro e suas diferenças apontadas como representativas do que o autor considerava como inferioridade. Não são só os neologismos a fonte do humor lobatiano, mas a ênfase em diálogos em que a empregada é repreendida, o que ocorre muito amiúde, enfatizando a sua suposta ignorância.

Em O Picapau Amarelo, por exemplo, Nastácia comete um engano (propositalmente encaixado na história, pelo autor, para fazer rir) e toma uma chuva de imperativos de Dona Benta, que a manda consertar o erro, sem qualquer cuidado: “- Mas isso não é gamela, Nastácia. É escudo - uma arma. Tire a linguiça daí. Lave. Enxugue. / Tia Nastácia obedeceu suspirando: Que pena, que pena! Uma gamela tão boa!...” (LOBATO, 1957i, p. 117). Qual mensagem é passada, subliminarmente, após a leitura de diversas narrativas nas quais uma mulher negra e idosa4 tem seus traços físicos ridicularizados e a sua suposta ignorância, constantemente, apontada? Como em O Poço do Visconde, em que Lobato escolhe a própria personagem como algoz de si mesma, reforçando, novamente, o que marca como sendo o lugar dela: “Todos concordaram que a lição do Visconde fora boa, exceto Tia Nastácia. A negra dormira o tempo inteiro. E quando Narizinho a censurou por causa disso, respondeu com a maior sinceridade:/ - Pra que ouvir, menina? Não entendo nada mesmo...” (LOBATO, 1957j, p. 18).

Vários capítulos de O poço do Visconde, aliás, terminam com algo “engraçadinho”, sempre tendo a empregada como protagonista do momento cômico, de modo que a personagem é estereotipada e destituída de sua profundidade. A “[...] pessoa negra vista como um objeto de entretenimento” (GONZALEZ, 2020, p. 69) e não como sujeito. Ao explicar como personagens negros são escritos, via de regra, Conceição Evaristo elucida que estes seriam

[...] moldados sob um olhar que os define dentro de uma ou outra característica, tal como estas: preguiçosos, adultos infantis, desorganizados em seus ambientes sociais e culturais, extremamente sexualizados com seus corpos infecundos, sujeitos incapazes de pensar ou viver sentimentos como o amor, o afeto. (EVARISTO, 2020, p. 28).

A descrição de Conceição Evaristo traduz como são omitidas características positivas de identificação, quando falamos de personagens negras. Tia Nastácia está presente em todos os livros e todos a tratam com muito carinho é o tipo de comentário expresso por quem entende a condescendência diminuidora como manifestação de afeto a pessoas negras. Talvez pensem que o “carinho” com o qual Nastácia é tratada já está de bom tamanho. Seguindo essa lógica, a população negra deveria se contentar com o afeto que lhe é oferecido, independentemente se este a inferioriza? Como dissociarmos tais pensamentos do legado colonial que ainda assombra nossa sociedade?

Ao tecer comentários sobre a África, em Geografia da Dona Benta, a avó das crianças afirma: “Este infeliz continente é habitado [...] pelos Negros, gente de pele preta como carvão e cabelo pixaim” (LOBATO, 1957d, p. 211). A senhora branca conta alguns detalhes sobre a exploração desumana a que foram submetidas/os as africanas e os africanos. Obviamente não retrata para as crianças nem como exploração nem como desumana, ao contrário, conta de forma a pintar as pessoas negras escravizadas como dóceis em relação às indígenas. Sem mencionar qualquer forma de resistência do povo negro contra a escravização, explica, à sua maneira, a partilha das colônias africanas pelos europeus.

Nesse momento, Narizinho pergunta “- E os africanos com que ficaram? / - Com a mosca tsé-tsé - respondeu Emília. Dona Benta achou graça”. Diante de tamanha violência contra o povo negro, a senhora branca ri e explica: “- Sim, ficaram com essa mosca e a honra de serem explorados pelos povos da mais alta civilização do mundo ocidental. Devem estar satisfeitíssimos” (LOBATO, 1957d, p. 216). E o pior: não há ironia em sua explicação. Dona Benta passa às crianças a informação de que pessoas negras escravizadas deveriam “estar satisfeitíssimas”. Ser explorado não é tão ruim se são os povos “da mais alta civilização” os exploradores, certo, crianças?

Especialistas em Lobato, ajudem-nos a entender: é um modismo ideológico preocupar-se com as mensagens racistas que chegam às crianças ou o trecho que destaca que descendentes de povos escravizados “devem estar satisfeitíssimos” evidencia, de fato, o escárnio direcionado ao povo africano e seus descendentes? Povo que “[...] plantou, alimentou e colheu a riqueza material do país para o desfrute exclusivo da aristocracia branca” (NASCIMENTO, 1978, p. 49). Muito provavelmente, Monteiro Lobato acreditava que as pessoas descendentes de povos africanos deviam, realmente, agradecer pelas atrocidades vividas por seus e suas ancestrais, durante séculos, e ainda vivenciadas por si mesmas na atualidade, visto que

[...] no mundo conceitual branco, o sujeito negro é identificado como o objetoruim”, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e transformado em tabu, isto é, agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por coincidir com a ameaça, o perigo, o violento, o excitante e também o sujo, mas desejável - permitindo à branquitude olhar para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa, em controle total e livre da inquietude que sua história causa. (KILOMBA, 2019, p. 37).

Para encerrar esse tópico, vale ressaltarmos que Tia Nastácia é levada à Lua pela meninada do Sítio, contra a sua vontade, em Viagem ao Céu, quando confabulam entre si, decidindo o que fazer: “Pois levêmo-la à força - sugeriu Emília” (LOBATO, 1957n, p. 33). Na Lua, mas que gigantesca coincidência! Tia Nastácia é, novamente, escravizada. Dessa vez, por São Jorge. E, enquanto as crianças conhecem as maiores maravilhas do espaço sideral, ela fica na Lua, apesar de morrer de medo do Dragão, fritando bolinhos para o santo guerreiro, porque... Ainda resta alguma dúvida? Seu destino e o de todos como ela, os livros lobatianos mostram, é acabar no fogão, seja o do Labirinto de Creta, seja o do Sítio do Picapau Amarelo, seja o de uma cozinha de cratera...

Agora, que coisa espantosa: essa mesma imaginação que pode tudo, tudo, tudo mesmo, que leva a criançada do Sítio a todas as partes em um passe de mágica, não dá conta de levá-la aonde exista igualdade racial. Aí é pedir demais, nem uma tonelada de pó de pirlimpimpim resolve! Narizinho vai até Tia Nastácia, que funga, triste por ter de ficar na Lua: “[...] o meu coração está que é uma pontada atrás da outra”, diz a idosa. E a menina lhe mostra quem é a sinhazinha e quem deve obedecer ali, dizendo-lhe assim: “comporte-se, hein?” (LOBATO, 1957n, p. 74).

Quem não vê racismo nos livros de Lobato?

Apesar de o racismo permear toda a obra infantil de Monteiro Lobato, como mostramos, há quem julgue as leituras parciais e desinformadas como as responsáveis pela simplificação do debate. Cilza Bignotto (2021), por exemplo, defende que “[...] existem passagens racistas nas histórias do ‘Sítio do Picapau Amarelo’ mas também existem as antirracistas”, posicionamento que entendemos como nem um pouco razoável. O “conto antirracista”, citado nesses termos pela docente, apresenta uma violeta que se acha superior por ser branca e termina murchando de tristeza quando o Visconde lhe conta que as violetas roxas têm mais pigmentação do que ela, a orgulhosa, na qual a pigmentação está ausente. O sabugo indaga: “[...] quem é MAIS - quem tem, ou quem não tem?” (LOBATO, 2018, n.p., grifos do autor).

Inexiste a possibilidade, entretanto, de que tal conto seja antirracista não apenas pela mensagem em si (as que têm mais são superiores “pois eram mais ricas”), como pela forma como começa: “O quintal era onde Tia Nastácia batia roupa, ensaboava-a e punha-a no gramado para quarar”. O narrador substitui, então, o nome da empregada por “a boa negra” e, em seguida, substitui o nome da patroa branca por “a boa senhora”. Quem enxerga antirracismo nesse conto não compartilha do que acreditamos como antirracismo, como defendemos neste trabalho.

Há, inclusive, quem seja simpatizante da leitura de livros de Lobato, nas escolas, com crianças, mesmo reconhecendo o racismo em sua obra. Nesse caso, afirmam que “[...] descartar Monteiro Lobato do currículo escolar seria anular traços da historicidade brasileira, tendo em vista que através das obras literárias é possível (re)conhecer o contexto histórico de uma sociedade” (MENEZES; BUSSONS, 2021, p. 1440-1441). Os autores mencionam a importância de “repensar abordagens”, visando uma “educação antirracista”. Como se fosse possível resumir o problema a uma questão de abordagem...

Será que, realmente, acreditam na possibilidade de construir uma sociedade antirracista a partir de falas racistas? Qual a cor da pele da maioria das pessoas que pensam que as falas racistas devem ser lidas para crianças com a mediação da professora, do professor? Qual é a cor da pele da maioria das pessoas que acreditam que há mediação possível para as expressões “negra beiçuda”, “a mais suja negra da rua”, “macaca de carvão”, “sacrilégio é o seu nariz chato”, “quando Deus preteja uma criatura é por castigo”5 e muitíssimas outras, que se repetem, incessantemente, em toda a obra infantil de Monteiro Lobato?

Sabem como é fácil não reconhecer o racismo nos livros infantis em questão? Basta a pessoa tampouco admiti-lo em si. Se as pessoas não admitem que são racistas, haverá alguma maneira de perceber o racismo onde quer que este se assemelhe ao que são capazes de demonstrar? A nós nos parece impossível que tal percepção possa surgir espontaneamente. Ser uma pessoa branca significa ser beneficiada pelo racismo estrutural de nosso país, portanto, por mais que o compreendamos como uma estrutura social, isso não dispensa a necessária responsabilização individual (ALMEIDA, 2020). Dessa forma,

[...] consciente de que o racismo é parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável. (ALMEIDA, 2020, p. 52).

A respeito do silêncio, talvez, o que mais nos intrigue sejam pesquisadores e pesquisadoras que veem e sinalizam diversas passagens violentas nos livros de Lobato e, ainda assim, defendem o uso de sua obra em turmas de crianças. Com base em que argumentos o contexto histórico de nossa sociedade deve ser conhecido, pela meninada, por meio dos impropérios de uma heroína que expõe os ideais eugenistas de seu criador?

As afirmações Ninguém falava sobre isso e Sequer se pensava sobre racismo, quando Lobato escreveu seus livros, mencionadas no início deste texto, serão traduzidas para “Até onde se sabe, naquela época, não havia grupos de homens brancos debatendo a questão”. Vamos e venhamos, eles eram (e são) os maiores beneficiários do sistema patriarcal racista e de suas “[...] políticas sádicas de conquista e dominação” (KILOMBA, 2019, p. 33). Por que nomeariam tal sistema como negativo e o entenderiam como desumano? Muito mais conveniente acreditar que as pessoas negras e indígenas eram menos humanas, sem alma, moldadas para o trabalho pesado; muito mais conveniente silenciar violentamente as suas vozes, de modo que, várias décadas depois, uma parcela da população, sobretudo a que viesse a herdar as propriedades e o poder seguisse proclamando que as coisas eram assim mesmo, era só o jeito de viver naquele período... e julgar o passado com olhos do presente não passa de anacronismo...

Certo, não cometamos anacronismos, por favor. E racismo? Pelo visto, podemos, sim. O fato de ser crime inafiançável e imprescritível (BRASIL, 1988) preocupa bem pouca gente, visto que o enquadramento é algo praticamente impossível em uma Nação em que, tomando um exemplo recente, pode-se acusar de ladrão de bicicleta um jovem negro, constrangendo-o publicamente, aos gritos, e ter o caso arquivado (G1, 2021). Quem julga é branco e quem se safa é branco também (que casualidade, hein?), mas o que importa é que não houve calúnia e nem foi baseada na cor da pele, afinal, eles não tinham a intenção de caluniar; teriam acusado da mesma forma uma pessoa branca, não eram racistas... O que nos leva a uma situação insólita: faça o que fizer, pessoa branca alguma, no Brasil, é racista. Racistas defendem-se entre si, sem economizar no racistês, o que Cida Bento (2022, p. 19) define como o “pacto narcísico da branquitude”. Monteiro Lobato pode ter “declarado admiração à Ku Klux Klan” em uma carta a um amigo (LEAL, 2020, p. 92) e isso não faz dele um racista, ora essa... foi uma carta só, entre todas as muitíssimas que ele escreveu...

Como podemos caracterizar o papel de quem insiste em manter Monteiro Lobato como intocável? Por que será que não mostram as passagens de sua obra infantil que expõem o racismo ou as exibem fazendo malabarismos para que a violência contida em seus diálogos torne-se “denúncia da violência”? Tal esforço pode ser conferido em Lajolo (1998) quando a autora cita a “[...] dramática denúncia do narrador lobatiano do racismo”, ou seja, segundo a autora, o texto não é violento: exibe a violência para denunciá-la. Mais de duas décadas depois, a defesa de Lajolo (1998) é corroborada por Bignotto (2021), que afirma haver [em certos textos de Lobato] “[...] advertência dos perigos de discursos racistas, e não [a] panfletagem desses discursos”.

Nem mesmo o Atlas da Violência de 2020 (VASCONCELO, 2020) mostrando que, de 2008 a 2018, o número de homicídios de pessoas brancas diminuiu 12,9%, enquanto o de pessoas negras aumentou 11,5%, é suficiente para considerar o Brasil discriminatório contra vidas negras, visto que deve ser apenas coincidência! Ninguém falava sobre racismo na época de Monteiro Lobato, dizem teóricas e teóricos que o protegem de ser encarado como o que de fato era. Isso não existia, asseguram. O que nos faz pensar que, se não existia “na época dele”, por que existiria hoje, menos de um século depois? Será que os fatos passam a existir, apenas, a partir do momento em que são nomeados e/ou estudados pelos que se consideram os verdadeiros representantes da humanidade, os homens brancos?

Vamos partir de um consenso geral (na verdade, na torcida para que ao menos isso o seja): comportamentos discriminatórios em relação a pessoas negras eram comuns quando Monteiro Lobato viveu e escreveu sua obra. Esta reflete aquele tempo e, portanto, recheia-se de passagens agressivas contra personagens negras; agressividade que não desapareceu, com um toque de mágica, da sociedade brasileira, como bem aponta Conceição Evaristo (2020). Ao virar do avesso esses estereótipos, a escritora nos instiga a refletir sobre o fato de que, em grande parte da literatura de autoria branca, “[...] dificilmente se encontra a construção de uma personagem negra que represente a potência do ser humano com toda a sua dignidade” (EVARISTO, 2020, p. 28). Evaristo nos convoca a pensar que o cenário racista das representações literárias não é subvertido pela presença de personagens negras, ao contrário do que quem defende Lobato afirma. Qual o propósito, na atualidade, de apresentar às crianças na escola a figura da “boa negra” como retrato de um papel social?

Essas problematizações nos levam a desconstruir argumentos que anulam ou diminuem a presença do racismo nas obras infantis de Monteiro Lobato. A seguinte declaração de Bignotto (2021, p. 5) sobre a personagem Tia Nastácia, por exemplo: “[...] muitas referências a ela como ‘boa negra’ parecem ressaltar que Nastácia não é invisível, como negras costumavam ser, e que é ‘boa’, qualidade que, em outras obras [da mesma época], era incompatível com a pele negra”.

Em primeiro lugar, discordamos de que as mulheres negras costumavam ser invisíveis. E, vale indagarmos, invisíveis para quem? Foram invisibilizadas. Os termos “invisível” e “invisibilizada” não são intercambiáveis. O primeiro representa uma condição, uma característica, enquanto o último é resultado de uma ação. No caso, uma ação promovida intencionalmente por pessoas brancas; ascendentes daquelas que não encaram a própria “herança escravocrata” (BENTO, 2022, p. 14).

Em segundo lugar, com os avanços dos estudos e políticas públicas para educação em relações étnico-raciais, compreendemos que defender como algo positivo que alguém seja a “boa negra” não constitui sequer um argumento válido. Precisamos questionar um legado permanente que nos lembra de que a posição das pessoas negras na sociedade brasileira foi forçosamente inferiorizada, domesticada. Não seria a imagem de “boa negra” (aquela que está pronta para servir a outros sujeitos e nunca a suas próprias vontades e ambições) uma representação que a branquitude sempre quis impor, seja no século XIX, XX, XXI ou nos primórdios do Brasil? Assim sendo, não subestimamos o alcance da literatura infantil na formação da identidade das crianças, especialmente das crianças negras, pois

[...] as obras literárias podem motivar relações étnico-raciais igualitárias que permitam a apropriação, pelas crianças negras e não-negras, do legado histórico-cultural africano e afro-brasileiro, o combate ao racismo e às discriminações presentes na escola e na sociedade como um todo [...]. (CAETANO; GOMES; CASTRO, 2022, p. 4).

Quando Lobato começou a publicar seus livros infantis, os resquícios da escravização, que durou quase quatro séculos, em nosso país, e havia sido legalmente extinta pouco antes, ainda eram bem visíveis. “Dominação e exploração se modificam, mas não acabam após a abolição” (GONZALEZ, 2020, p. 302). A discriminação contra pessoas negras, algo comum e corriqueiro, podia, inclusive, ser incentivada nos livros feitos para crianças. E isso é comprovado por Bignotto (2021), muito embora discordemos da autora quando esta retira a obra de Lobato do conjunto de obras infantis do passado que elenca como racistas.

Em nossa análise, a obra de Lobato permaneceu até os dias de hoje, diferentemente de outras infantis publicadas na mesma época, devido à inventividade, à força de seu potencial narrativo, a despeito do racismo entranhado em suas páginas. Como negar que são pessoas brancas a imensa maior parte das que ocupam cargos de poder e decidem a continuidade e a interrupção de publicações? Pessoas brancas que promovem e perpetuam o racismo, ao passo que sequer o admitem em si e em livros. Ou, quando o admitem, não o reconhecem como violência inaceitável.

A quem escreve rechaçando a possibilidade de racismo exacerbado na obra de Monteiro Lobato e afirma que ele merece respeito, brandindo suas décadas de dedicação ao legado do escritor, como se isso fosse uma espécie de salvo-conduto que imunizasse qualquer pessoa de ser racista, respondemos: “[...] exigimos o respeito que exigem de nós. E a nossa solidariedade se dá na crítica, para que possamos crescer todos juntos” (GONZALEZ, 2020, p. 261) E inquirimos: “Por que será que o racismo brasileiro tem vergonha de si mesmo? Por que será que se tem ‘o preconceito de ter preconceito’ e ao mesmo tempo se acha natural que o lugar do negro seja nas favelas, cortiços e alagados?” (GONZALEZ, 2020, p. 90).

Racismo, muito mais do que desrespeito, é crime, como pontuamos anteriormente. Todavia, apontar racismo na obra de alguém em momento algum é desrespeitá-la, simplesmente porque, para fazer isso, é preciso primeiro lê-la. Uma pessoa autora escreve para ser lida. Quem lê analisa de acordo com as ferramentas que possui, sua leitura de mundo, estudos e vivências. Para que não nos acusem de exagerar, eis um excerto de uma carta de Lobato a Godofredo Rangel, que o próprio patrono da literatura infantil escolheu para ser publicada - não era, assim, exatamente algo secreto ou de foro íntimo:

Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral - e no físico, que feiúra! Num desfile, à tarde, pela horrível Rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, que perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas - todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português de maneira mais terrível - amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. E vão apinhados como sardinhas e há um desastre por dia, metade não tem braço ou não tem perna, ou falta-lhes um dedo, ou mostram uma terrível cicatriz na cara. “Que foi?” “Desastre na Central.” Como consertar essa gente? Como sermos gente, no concerto dos povos? Que problema terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança! (LOBATO, 1944, p. 133, grifos nossos).

Após a leitura desse trecho, como não pensar nos escritos de Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira mulher a publicar um romance no Brasil. Uma mulher negra que nasceu e viveu a maior parte de sua vida em um país que condenava à escravização legalizada pessoas que tinham a mesma cor de sua pele. Recordamos sua obra literária Úrsula, publicada originalmente em 1859, décadas antes do nascimento de Monteiro Lobato. Em um dos trechos da produção abolicionista, uma das personagens lembra das atrocidades enfrentadas nos navios negreiros e proclama: “É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!” (REIS, 2018, p. 68). Um exemplo de que a desumanidade vivenciada por pessoas negras já era denunciada muito antes das consideradas discussões contemporâneas. Quem são as pessoas que persistem em não escutar? Presenciamos a defesa entusiasmada da leitura da obra de Maria Firmina dos Reis, com adolescentes, nas escolas brasileiras?

Quando se trata de “imortais intocáveis”, a ética onde fica?

A quem fala sobre o papel da professora e do professor como mediadores de leitura, perguntamos: Como contextualizar uma obra que xinga as crianças negras presentes na classe? É errado xingar o colega, mas o livro consagrado pode? Ah, naquela época podia. Hoje é crime. Hoje é crime, mas seguimos lendo os xingamentos para crianças em sala e explicamos que “era assim e hoje não é mais”? Não é mais?! As crianças negras não continuam sendo xingadas a torto e a direito? Não é apenas (como se fosse pouco!) o “macaca de carvão” proferido em Caçadas de Pedrinho e que abriu a discussão, são todas as passagens listadas neste trabalho e as muitíssimas outras que não transcrevemos aqui. Centenas de trechos racistas. Hoje em dia, criminosos, inclusive.

É preciso ter tempo e disposição para ler seus livros infantis por completo, isso explica porque muita gente o defende com base no seriado em diversas temporadas na televisão, que exclui sumariamente as falas mais violentas. Por que impor representações tão negativas a turmas dos anos iniciais, quando pesquisas atestam o quanto as representações positivas encontradas na escola são importantes para construção da autoimagem das crianças negras? (SILVA; MARTINS, 2022; CAETANO; GOMES; CASTRO, 2022). Ações encorajadoras vivenciadas no ato

[...] de olhar para o livro e se ver como é ou como se quer ser, se identificar com os autores e os personagens, descritos e ilustrados de forma positiva; conscientes de suas origens, sua história e sua cultura; do valor, da sabedoria e da luta de seus ancestrais; orgulhosos de sua cor e de seus cabelos. São elementos que motivam o desejo de ser igual e contribuem para a afirmação identitária das crianças negras. (CAETANO; GOMES; CASTRO, 2022, p. 18).

Inspiradas pela coragem de Nilma Lino Gomes, convocamos a academia (e a quem não faz parte dela) a pensar, a refletir, de mãos dadas com Lélia Gonzalez (durante décadas, relegada ao ostracismo; por mais brilhantes que tenham sido seus textos, sua vida acadêmica e militante). De mãos dadas também com Conceição Evaristo e com Grada Kilomba, pois são mulheres negras que escrevem o que precisa ser lido e ousam quebrar os protocolos acadêmicos quando isso as aprisiona. Aprendemos com elas e com Cida Bento, Ana Maria Gonçalves, Djamila Ribeiro, que igualmente nos inspiram. Aprender é preciso. Ouvir e muito, sobretudo as vozes que, por muito tempo, foram caladas. E não nos deixar silenciar.

Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para as Relações Étnico-Raciais, deve-se prezar pela “[...] superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os negros, os povos indígenas e também as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratados” (BRASIL, 2013, p. 140). Nesse sentido, não seria antiético usar, em sala de aula, livros que ofendem não apenas estudantes crianças, ainda no desenvolvimento de sua maturidade para questionar o que está escrito, como as suas famílias?

Analisamos como os debates sobre ética se originaram em relação à produção de conhecimento. O universo científico passou por uma mudança drástica no âmbito da autoanálise e autocrítica de suas práticas. Isso ocorreu depois dos crimes hediondos da Segunda Guerra Mundial, protagonizados pelo nazismo. Após os julgamentos dos crimes de guerra e da publicização dos atos desumanos cometidos pela ciência nazista, a valorização da integridade da vida humana passa a obter um papel mais importante nos debates acadêmicos (GUILHEM; DINIZ, 2008). No entanto, o que isso teria a ver com a Educação, com a leitura de livros infantis que propagam narrativas racistas?

Consideramos, neste trabalho, o papel docente atrelado à pesquisa, contribuindo, a partir de suas próprias perspectivas, com as competências e os objetivos que suas turmas devem atingir de acordo com a etapa de ensino. Tais profissionais confeccionam e selecionam materiais, escrevem e reescrevem planos de aula, participam em diversas reuniões anuais, de modo que seria injusto diminuir o potencial pesquisador que essas atividades implicam. Segundo o trabalho de Bernardete A. Gatti, publicado no primeiro volume de Ética e pesquisa em Educação: subsídios, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), “[...] respeito total à dignidade humana deve ser a preocupação básica no trabalho de pesquisadores em educação” (GATTI, 2019, p. 36). Dessa forma, destacamos que perpetuar histórias racistas infringe preceitos éticos, além de humanos e criminais. Assim sendo, é importante reiterarmos: interrogar essas práticas faz parte de um engajamento democrático contra o racismo.

Por mais esforços docentes que façamos no sentido de contextualizar os absurdos proferidos por Monteiro Lobato, a grande questão é: Por que impor esse sofrimento às crianças negras? Não há outros livros, repletos de fantasia, criatividade, inventividade e criticidade e que não as tratem como pertencentes a uma sub-humanidade, inferior em inteligência, beleza e habilidades valorizadas socialmente?

Defendemos a democratização da literatura e que produções que visibilizem novos ângulos de mirada cheguem em diversos lugares “[...] principalmente, às escolas para que as crianças negras e os/as jovens negros/as leiam histórias que falem sobre suas subjetividades e se sintam representados e valorizados” (CAETANO; GOMES; CASTRO, 2022, p. 7). Para que uma transformação social aconteça, precisamos de espaços para vocalizar e situar tais cenários e, assim, caminharmos com outras pessoas igualmente comprometidas com a causa antirracista, na luta pela defesa da dignidade de pessoas negras e indígenas.

O texto termina; o embate não

Os livros conversam com o que há dentro de quem os lê. Aqui defendemos que é impossível encontrar um livro infantil ou juvenil que não esteja carregado da ideologia da pessoa que o escreveu. Se, por um lado, é um erro julgar o passado com os olhos do presente, representando anacronismo, tampouco parece interessante incentivar na atualidade práticas (e leituras) retrógradas. Assumir, portanto, o compromisso dedicado a expor, em detalhes, as elaborações de cunho racista de um escritor imortalizado pela cultura brasileira, e o racistês de quem o defende, configurou-se em uma investigação de revisão. Tomamos essa iniciativa para que a replicação de um discurso de subalternização não seja, continuamente, intocável, e possamos ressignificar a experiência literária infantil de crianças negras, brancas e não brancas. Dessa forma, podemos criar um espaço para que o pretuguês, em outras palavras, a leitura do Brasil a partir da participação e da construção dele pelas pessoas negras tenha espaço para circular nas escolas.

Vidas negras importam! Não é apenas mais uma hashtag. Ao menos para quem tem a consciência de que a cor de sua pele torna a sua existência um alvo a ser aniquilado pelo poder policial nacional. O racismo, que corre nas veias do território brasileiro, tem o sangue de Cláudia Ferreira, mulher negra, baleada e arrastada por um carro da força policial do Rio de Janeiro. Também tem a marca da morte de Miguel Otávio Santana da Silva, menino negro de cinco anos, cujos olhos atentos e curiosos não mais percorrerão páginas de livros infantis, nem os de Agatha Félix, morta aos oito anos por “bala perdida”. Inúmeras outras vidas e histórias interrompidas, em um país que vive uma guerra específica contra a maioria de sua população.

O que resta às pessoas, em geral, brancas, que detêm poder de decisão nas searas políticas e escolares e no próprio cotidiano, além de encarar seus preconceitos? Tal reconhecimento possibilitará a elaboração de novas listas de leituras obrigatórias, destinando investimento de dinheiro público para iniciativas que condizem com as metas constitucionais do país, em vez de seguir inundando as salas de aula com uma escancarada e criminosa concepção de inferiorização de pessoas negras e indígenas. Não somos capazes de reconhecer que essa mesma concepção inferiorizante corrobora as mortes e as violações de todo tipo? A luta antirracista precisa ser contínua e depende, entre outros fatores, de atenção constante e reconhecimento de privilégios. Além disso, sobretudo pessoas brancas cujas famílias, há gerações, ocupam posições socioeconômicas favorecidas, precisam conviver com o incômodo, a vergonha, de que grande parte dos ancestrais tenham sido sujeitos que protagonizaram a escravização de pessoas negras e a partir, também, da degradação alheia construíram suas riquezas (BENTO, 2022). Importante repetir, não há antirracismo, na esfera macroestrutural, sem distribuição de renda e partilha dos espaços de tomada de decisões.

Em suma, escrevemos este artigo no intuito de motivar as próximas discussões sobre racismo na obra de Lobato, a partir de um viés menos adorador do escritor e mais crítico. Não, não queremos, de forma alguma, a destruição de seus livros em praça pública. Apenas que as crianças passem a ser poupadas de leituras como essas. Talvez, em algum momento, possamos reconhecer que existem livros cúmplices do genocídio. Será que nos disporemos, então, a analisar, detalhadamente, as próprias práticas pessoais e profissionais, de modo a não contribuir com o massacre? Haverá antirracismo possível sem essa disposição?

1Optamos por marcar o racistês em itálico, ao longo de todo o texto. Em cada uma dessas passagens há o seguinte questionamento: O não reconhecimento do racismo dentro de si ou em pronunciamentos alheios indica a ausência de racismo ou a falta de interesse em percebê-lo?

2O racistês também é reproduzido por pessoas não brancas, ainda que estas não se beneficiem do racismo, visto que este existe porque relações de poder privilegiam, histórica e economicamente, um grupo específico: as pessoas brancas.

3Originalmente, uma pesquisa desenvolvida pela primeira autora, para o trabalho final da disciplina “O legado de Lobato”, durante o curso de especialização em Literatura Infantil e Juvenil da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2015.

4Lembremos que é a única personagem negra presente na maioria das histórias.

5Mesmo que essas expressões recebam notas de rodapé contextualizadoras, como vem ocorrendo, há inúmeras camadas racistas em seus livros que não se resumem às óbvias. Como contextualizar todas?

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Recebido: 11 de Agosto de 2021; Revisado: 12 de Maio de 2022; Aceito: 13 de Maio de 2022; Publicado: 27 de Maio de 2022

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