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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19385.080 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

As afrodescendências no trovadorismo ibérico

African descendencies in Iberian troubadourism

Descendencias afro en la lírica galaicoportuguesa ibérica

José Nogueira da Silva* 
http://orcid.org/0000-0003-3765-3729

Adriana Cavalcanti dos Santos** 
http://orcid.org/0000-0002-4556-282X

*Doutor em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e Docente do Centro de Educação da (Cedu/Ufal) e do curso de Licenciatura em Letras da Universidade de Pernambuco (UPE), campus Garanhuns.

**Doutora em Educação pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Docente dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e de Ensino de Ciências e Matemática (PPGECIM) da Ufal.


Resumo

A partir de uma pesquisa bibliográfica, com embasamento teórico decolonial, busca-se compreender, neste artigo, o surgimento do Trovadorismo na Europa, especificamente na Península Ibérica, a partir de relações culturais intercontinentais, com ênfase nos árabes africanos, apesar de as manifestações artísticas à época terem ignorado a presença das africanidades que contribuíram para a oralidade poética. Por isso, tem-se como objetivo verificar a presença das afrodescendências no trovadorismo ibérico. A compreensão do trovadorismo é definida historicamente em quatro teorias: a médio-latinista, a litúrgica, a folclórica e a arábica (LAPA, 1973; SPINA, 1972). Em linhas gerais, as reflexões de Canclini (2000), Glissant (2005) e Moore (2012), na análise do texto, revelam os cruzamentos culturais, denominados clássico, popular e massivo, levando em conta que tais definições não são blocos rigidamente separados, mas fronteiras entre países com geografia e costumes distintos em seus territórios. Contudo, em determinados momentos, compartilham das mesmas flores, apesar de dividi-las em suas fronteiras, e de um racismo epistemológico que negou as afrodescendências em suas manifestações.

Palavras-chave: Afrodescendência; Trovadorismo ibérico; Oralidade poética.

Abstract

From bibliographical research, with decolonial theoretical basis, it is sought to understand, in this paper, the emergence of the Troubadourism in Europe, specifically in the Iberian Peninsula, from intercontinental cultural relations, with emphasis on African Arabs, despite the artistic manifestations at the time having ignored the presence of Africanities that contributed to the poetic orality. Therefore, the objective is to verify the presence of African descendencies in the Iberian Troubadourism. The undestanding of Troubadourism is historically defined in four theories: Middle Latin, liturgical, folkloric and Arabic (LAPA, 1973; SPINA, 1972). In general terms, the reflections of Canclini (2000), Glissant (2005) and Moore (2012) in the analysis of the text reveal the cultural intersections, called classic, popular and massive, taking into account that such definitions are not rigidly separated blocks, but rather borders among countries with different geography and customs in their territories. However, at certain times they share the same flowers, despite dividing them in their borders, and an epistemological racism that denied the African descendencies in their manifestations.

Keywords: African descendency; Iberian Troubadourism; Poetic orality.

Resumen

A partir de una investigación bibliográfica, con base teórica decolonial, se busca comprender, en este artículo, el surgimiento del Trovadorismo (lírica galaicoportuguesa) en Europa, específicamente en la Península Ibérica, a partir de relaciones culturales intercontinentales, con énfasis en los árabes africanos, a pesar de que las manifestaciones artísticas de la época habían ignorado la presencia de africanidades que contribuyeron a la oralidad poética. Por ello, se tiene el objetivo de comprobar la presencia de afrodescendientes en el trovadorismo ibérico. La comprensión del trovadorismo es definida históricamente en cuatro teorías: la medio-latinista, la litúrgica, la folclórica y la árabe (LAPA, 1973; SPINA, 1972). En líneas generales, las reflexiones de Canclini (2000), Glissant (2005) y Moore (2012) en el análisis del texto revelan los cruces culturales, denominados clásico, popular y masivo, teniendo en cuenta que tales definiciones no son bloques rígidamente separados, sino fronteras entre países con geografía y costumbres distintas en sus territorios. Sin embargo, en determinados momentos, comparten las mismas flores, a pesar de dividirlas en sus fronteras y de un racismo epistemológico que negó las afrodescendencias en sus manifestaciones.

Palabras clave: Afrodescendencia; Lírica Galaicoportuguesa ibérica; Oralidad poética.

Introdução

O trovadorismo europeu foi cultivado de maneira abundante durante a Idade Média. Há diversas versões para seu surgimento; contudo, daremos ênfase a sua afrodescendência no processo de crioulização com base em Édouard Glissant (2005). Nele, encontramos o “pensamento-rizoma”, no qual uma raiz cultural vai de encontro a outras raízes, diferentemente do “pensamento-raiz” de base eurocêntrica, em que uma raiz aniquila as outras à sua volta (DEULEUZE; GUATTARI, 1995). Assim, definimos por objetivo geral demonstrar a presença das afrodescendências no trovadorismo ibérico, denominado por Glissant (2005) de “rastro-resíduo” em detrimento das incompletudes das teorias acerca do surgimento de tal expressão.

O discurso tradicional sobre o Trovadorismo europeu é eurocêntrico, pois ignora o diálogo com outras culturas não europeias. Esse fato é constatado nas principais teorias acerca do surgimento dessa expressão: a médio-latinista, a litúrgica, a folclórica. Nesses três casos, o discurso subtende uma Europa fechada em si mesma acerca de sua história, apesar das trocas culturais com outros continentes.

Como atesta Canclini (2000) e reforça Zumthor (1993): “Nenhuma cultura se dá em bloco. Toda cultura comporta uma heterogeneidade originária” (ZUMTHOR, 1993, p. 117). Apesar de essas três teorias acerca do surgimento do Trovadorismo possuírem uma óptica eurocêntrica em comum, há uma quarta, que compreende a vinda dos povos árabes como fato preponderante para a cultura trovadoresca ter irradiado em quase toda a Europa. Contudo, essa descrição dos árabes os coloca como um povo com cultura islâmica e ignora o fato de não se resumirem a isso, uma vez que o povo islâmico converteu muitos africanos, os quais não abriram mão de todas as suas práticas culturais - entre elas, o improviso poético de forte tradição em grupos africanos que foram islamizados. “A tradição é a série aberta, indefinidamente estendida, no tempo e no espaço, das manifestações variáveis de um arquétipo” (ZUMTHOR, 1993, p. 143). Essa definição é coerente com a perspectiva que iremos trabalhar. Nela, a criação artística é performática, emerge da enunciação e da recepção dos sentidos produzidos na interação entre os indivíduos.

Segundo Zumthor (1993), houve um maior acesso à cultura escrita entre os séculos XII e XV. Esse fenômeno empurrou a oralidade para a marginalidade cultural, criando a divisão entre o popular e o erudito, a partir das inovações culturais da renascença. Antes disso, numerosas tradições orais em línguas vernáculas conviviam com uma tradição escrita predominante, o latim.

Entre os séculos X e XII, foi desenvolvida a escrita em língua vernácula e, assim, o registro de muitos gêneros orais, através dos séculos, resultou em mudanças nas produções poéticas. O registro dos textos literários dos trovadores mostrou a presença da oralidade não apenas nos aspectos formais dos textos, mas também no fato de muitos serem feitos para a leitura em voz alta - daí serem apenas um fragmento da performance da época. Infelizmente, a oralidade da poesia medieval foi registrada em detrimento da escrita (ZUMTHOR, 1993).

Na oralidade poética, “[...] o par voz-escritura é atravessado por tensões, oposições conflitivas e, com o recuo do tempo, mostra-se muito frequentemente aos medievalistas como contraditório” (ZUMTHOR, 1993, p. 114). O termo “literatura oral” carrega um paradoxo semântico. Apesar de a oralidade e a escrita não serem campos opostos, o sentido mais usual dessas palavras dá essa conotação. A presença da oralidade foi ignorada durante muito tempo, mas não ausente. Essa relação entre o oral e o escrito aparece em Glissant (2005) como uma atividade transcultural, a qual pretende reconstruir uma identidade a partir de resquícios culturais, os “rastros-resíduos”.

A tendência eurocêntrica de homogeneizar os diálogos culturais

Nos encontros e nos desencontros dos discursos acerca das relações culturais, a discussão passa pelo termo “raça”, palavra com carga histórica que pode naturalizar e justificar as relações de dominação de não europeus por europeus durante séculos de colonização. Depois, foi usada para compreender a formação cultural dos países na pós-independência. Especificamente, nas Américas Hispânica e Portuguesa, o termo “raça” foi além das relações reflexões fenotípicas e genotípicas, já que o imperialismo foi colocado como uma contribuição positiva para essas regiões, buscando apagar a diversidade e homogeneizar culturalmente seu panorama cultural. Assim, a diversidade cultural foi compreendida no âmbito racial (BERNARDES; PINTO, 2019).

A ideia da existência de raças humanas, a partir de raças puras, é tida como obsoleta pelas ciências modernas, uma vez que foi considerada mais do que um erro científico. Ela foi uma manipulação ideológica para legitimar o domínio de europeus sob povos de outros continentes. Essa dominação eurocêntrica continua presente, reformulada e com o poder de naturalizar a presença europeia em nosso meio, ou seja, do agente outrora colonizador.

Ao perceber os problemas do termo “hibridismo” e ressignificá-lo, Canclini (2000) encaixa o termo nos problemas semânticos que historicamente carrega. Essa visão de uma mistura híbrida homogênea também é recusada por Glissant (2005), pois os rastros-resíduos são distinções entrelaçadas sem serem apagadas e colaboram para o surgimento de novas culturas. Esse viés se distancia do conceito de mestiçagem, pois implica determinismo, aceita as demandas do pensamento hegemônico e nega a diversidade e suas relações. A ideia de mestiçagem acredita que o encontro de duas ou mais culturas constitui a identidade raiz, atemporal. A crioulização propõe uma relação consciente com as diferenças também culturais, sem a necessidade épica de estar presa a “grandes relatos”, pois essa “unidade”, tão valiosa para os discursos nacionalistas, é substituída por uma proposta na qual a unidade é constituída pela consciência da diversidade e não por uma história linear, monolítica. Não é mais um bloco, são fragmentos que compõem o todo.

Na contramão do conceito de mestiçagem, a crioulização traz outros valores semânticos, uma relação permanentemente aberta para os contínuos intercâmbios culturais, cheia de imprevisibilidades, diferentemente da mestiçagem que permite a previsão de seus efeitos. Além disso, a crioulização não traz a proposta de uma cultura raiz única, pois é uma raiz que se conecta a outras raízes. No caso dos árabes na Península Ibérica, segundo Soler (1978, 1995), havia uma liberdade concedida aos judeus e aos cristãos para manterem suas práticas culturais, sem a imposição que os europeus trouxeram para os outros continentes, no caso. Dessa maneira, a crioulização subverte o discurso erigido pelos europeus, composto por uma pretendida coerência e unidade em sua trajetória e imposto às nações que subjugou.

Dadas as distinções entre os padrões de modernidade de cada época, é lícita a demonstração de cruzamentos culturais em meios aparentemente separados de maneira radical, como denominado clássico, popular e massivo, levando em conta que tais definições não são blocos rigidamente separados, mas fronteiras entre países com geografia e costumes distintos em seus territórios, porém, em determinados momentos, compartilham das mesmas flores, apesar de dividi-las em suas fronteiras. Inclusive, o conceito de clássico é eurocêntrico, colonizador, pois universaliza padrões culturais, cria um discurso homogêneo em determinados tempos e espaços nos quais há diversidades ignoradas em prol dessa homogeneização. Dessa forma: “A crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação ‘se intervalorizem’, ou seja, que não haja uma degradação ou diminuição do ser nesse contato [...]” (GLISSANT, 2005, p. 22). Assim sendo, a crioulização é a mestiçagem somada a outro elemento, a imprevisibilidade e a consciência histórica dos elementos que a compõem.

Ao levar em conta a imagem de pensamento raiz e de pensamento rizoma, adotada de Deleuze e Guattari (1995), Glissant (2005) aplica essa metáfora ao princípio de identidade ao falar de culturas atávicas e compósitas: as atávicas se constituem com referência em um mito fundador para engendrar sua identidade; enquanto, nas compósitas, há a crioulização, uma raiz conectada a outras raízes, sem hierarquização, mas a diversidade, “[...] o choque, o entrelaçamento, as repulsões, as atrações, as conivências, as oposições, os conflitos entre as culturas dos povos na totalidade-mundo contemporânea” (GLISSANT, 2005, p. 98).

Uma abordagem acerca da expansão árabe e a sua chegada à Península Ibérica é pertinente no que diz respeito à compreensão de sua importância na formação do imaginário medieval e sua contribuição para a cultura ocidental. Esse outro olhar a respeito da cultura ocidental pode contribuir no preenchimento de lacunas no que concerne ao entendimento da história do trovadorismo na Europa e no influxo que culminou em seu surgimento, uma vez que os árabes que penetraram na Península Ibérica eram africanos. Por isso, compreendemos que a história da expansão árabe no Ocidente está estreitamente ligada ao aparecimento da arte trovadoresca na Europa.

Por volta do ano 711, os povos árabes penetraram na Península Ibérica, vindo do Norte da África, sob a liderança de dois chefes: Musa Nazir e Gibr al-Tarik, este dos iemenitas e aquele dos coraixitas (MANSUR, 2002). Através do estreito de Gibraltar, adentraram o território dos visigodos, liderado por Rodrigo. Este, enfraquecido por uma disputa com Áquila, pelo território que reinava, acabou derrotado por Tarik em algum ponto do Rio Guadalete, no Sudoeste da Espanha. Daí por diante, os árabes foram conquistando cada vez mais espaço, reinando no território ibérico por cerca de oito séculos, tempo suficiente para esses povos enraizarem sua cultura nos terrenos que hoje correspondem a Portugal e a Espanha. O lugar foi chamado de “Al Andaluz” ou Andaluzia durante o domínio árabe (MELGONSA, 1997).

O território dominado pelos árabes era multirracial. A presença de aristocratas árabes e cristãos conservadores de suas crenças sob domínio da cultura muçulmana, conhecidos como moçárabes, além de judeus, escravizados e ibéricos convertidos, chamados de muladies. Eles formavam uma pluralidade que impossibilitou um sentimento nacionalista na população e colaborou com a queda do império muçulmano na Península Ibérica (MANSUR, 2002).

As atividades foram prosperando, como a cana-de-açúcar, o arroz e a exploração de minérios como mercúrio, ferro e prata. Em Sevilha, a linha e a seda eram as produções da indústria têxtil local. Em Toledo, a produção manufatureira de armas foi de grande destaque, e a produção de papel teve relevo em Jatibah. Era, assim, um território com poder financeiro o suficiente para subsidiar diversos artistas em suas cortes, alegrando os ambientes palacianos.

O início da reconquista cristã deu-se por volta de 1031, fato que culminou com o aparecimento de reinos cristãos como: Leão, Castela, Aragão e Navarra e o Condado de Barcelona. A conquista de Granada, por Fernando e Isabel, em 1492, foi um marco anunciador do fim definitivo do domínio político dos muçulmanos na Península Ibérica, apesar de os árabes continuarem exercendo o domínio cultural na condição de “dominados” politicamente.

Esse período consiste em séculos de presença do império árabe em parte da Europa. Logicamente, houve um encontro mútuo de culturas, inclusive pelo fato de os árabes serem detentores de uma grande erudição. Todavia, no que condiz ao trovadorismo, não é um conhecimento que se registra em livros, como os árabes fizeram com a filosofia grega. É uma performance artística com diversos registros na África, continente que passou por um processo de islamização; mesmo assim, não se descaracterizaram culturalmente, uma vez que o convertimento ao Islã não os destituiu de muitas de suas tradições, entre elas o improviso poético.

Arte trovadoresca: a caminhada por várias culturas

No que concerne à presença dos poetas árabes, cabe ressaltarmos que, durante o tempo que conquistaram regiões como o Norte da África, Sul da Europa e Ásia, eles não apenas espalharam suas culturas, mas também assimilaram os povos subjugados e suas culturas, por exemplo, no reinado de Califa Omar (634-644), os persas e os bizantinos. Mesmo dominados bélica e politicamente, mostraram-se culturalmente fortes a ponto de sua cultura não ser destruída por completo, mas em boa parte absorvida pelos seus dominadores.

Na visão de Ramalho (2000), o grande mérito dos árabes foi a preservação daquilo que um olhar eurocêntrico compreende como patrimônio cultural. Apesar da coerência em sua pesquisa, a análise não percebe a cultura africana que também fundamentou a nossa. Nesse caso, temos um processo de crioulização bem anterior ao contexto do próprio conceito, já que seu surgimento atende a uma necessidade ainda não nomeada. No caso do trovadorismo ibérico, deslocado no tempo e no espaço, mas também com uma forte presença do elemento africano em toda a sua heterogeneidade.

Após os dois primeiros séculos da conquista árabe, a Andaluzia não perdia mais em volume de produção poética para os orientais. Nos registros, havia um catálogo somente de poetas arábico-hispanos que formaria diversos volumes, algo extraordinário para a época. É lícito afirmarmos que os árabes beberam nas fontes do eruditismo grego, porém o cultivo da literatura grega pelos árabes foi restrito às obras de filosofia e de ciências exatas, comentadas por eles após serem traduzidas (SOLER, 1978). Um bom exemplo dessas traduções é dado por Edmond Jaloux (1947) em Introduction a L’Histoire de La Littérature française, ao identificar o influxo árabe na poesia cultivada no sul da França, chamada de poesia Occitânica. É notável a presença de muitas temáticas da poesia provençal inspiradas pela obra “O Banquete”, de Platão, traduzida por Sírios Cristãos, e a mesma obra inspirou muitos temas na poesia feita pelos árabes nos séculos IX e X; houve, portanto, um intercâmbio cultural entre os árabes-andaluzos e os poetas do sul da França, influenciando na criação da técnica do zégel (JALOUX, 1947).

Há diversas teorias no tocante ao surgimento do trovadorismo ibérico, muitas delas apontando fontes distintas acerca do aparecimento de tal arte, o que torna mais coerente a ideia de um forte crioulização, seja com elementos predominantemente oral, como foi o caso dos negros árabes, seja escrito, no que diz respeito às traduções gregas feitas pelos próprios árabes - apesar de o trovadorismo ser uma cultura oral, atenta para o fato de o influxo africano ser, no mínimo, preponderante.

Entre as diversas versões sobre o surgimento do trovadorismo, destacam-se quatro teses: médio-latinista, litúrgica, folclórica e arábica. A tese médio-latinista afirma que a origem do trovadorismo vem da literatura latina da idade média, algo semelhante à litúrgica que defende que ela é fruto da poesia litúrgico-cristã, também na idade medieval. A folclórica acredita que a gênese da poesia trovadoresca é encontrada no folclore do povo português, porém, em tal época, teve grande intimidade cultural com os árabes. Essa ideia é defendida pela tese arábica, pois julga vir da cultura árabe a raiz do trovadorismo ibérico.

A tese médio-latinista averigua na cultura latina as explicações para o aparecimento da cultura trovadoresca. Essa tese busca por explicações nas raízes latinas da língua, pois “[...] era natural procurar na literatura que exprimia essa civilização dos séculos XI e XII, a literatura latino-medieval, as origens da poesia trovadoresca” (LAPA, 1973, p. 66). O conhecimento que muitos trovadores tinham do latim era levado em conta pelo autor, pois o latim medieval era amplamente cultivado, embora desprezado como uma forma corrupta do latim clássico. Mesmo corrompido, foi vivido e incluído na cultura ibérica.

Todavia, o autor não levou em conta o fato de os indivíduos que dominavam essa variação do latim clássico terem sido influenciados pela cultura oral já cultivada há séculos naquele contexto, a exemplo dos Goliardos, trovadores que ficaram conhecidos pelas canções de cunho obsceno, principalmente durante os séculos XI e XII. Foram atuantes na França e na Alemanha e registrados em menor número na Península Ibérica. Por um lado, houve um contato deles com os trovadores (ou trovadoras1) populares; por outro lado, os Goliardos possuíam conhecimento da cultura clássica, sobretudo Ovídio.

A extinção desses clérigos trovadores ocorreu no século XIII, uma vez que “[...] a vida dissoluta, para a obscenidade, para a blasfêmia e a libertinagem desenfreada das tabernas” (SPINA, 1972, p. 30) não atendia a nenhum dos interesses da igreja católica. Para isso, dois fatores foram decisivos: a medida tomada no Concílio de Wurzbourg, em 1287, a qual retirou dos goliardos os direitos eclesiásticos, a outra foi mais violenta, tomada no sínodo de Salzbourg, 1292, deram o prazo de um mês para a prática artística ser abolida de vez (SPINA, 1972). Assim, a comprovação da tese latina é nula, uma vez que considera apenas o conhecimento do latim e do canto gregoriano por parte dos intelectuais católicos, sem nenhuma relação lógica de como a língua latina produzira uma cultural oral tão distinta, inclusive já existente na África.

Segundo Glissant (2005), no momento atual, não é mais possível a imposição de condições culturais como ocorreu outrora, a exemplo do caso dos Goliardos. Ainda temos esquemas e limites para uma ação que se impõe, mas a imposição de grandes esquemas ideológicos não é mais possível, dada a heterogeneidade cada vez maior com o aumento exponencial de informações.

Tenho a impressão de que enquanto a totalidade-mundo não for realizada, ou seja, enquanto todas as culturas do mundo não tiverem concebido que não é necessário aniquilar, erradicar uma outra cultura para afirmar-se a si mesmo, várias culturas estarão ameaçadas. Enquanto não tivermos aceitado a ideia - não apenas através do conceito, mas graças ao imaginário das humanidades - de que a totalidade-mundo é um rizoma no qual todos têm necessidades de todos, é evidente que haverá culturas que estarão ameaçadas. Não será através da força, nem através do conceito que protegeremos essas culturas, mas através da totalidade-mundo, isto é, através da necessidade vivida do seguinte fato: todas as cultuas têm necessidade de todas as culturas. (GLISSANT, 2005, p. 156).

Em 146 a.C., a nação grega foi dominada pelos romanos. Estes, em muitos aspectos, assimilaram a cultura da Grécia. Naquele tempo, a música foi cultivada por diversas classes sociais, sendo muito admirada por imperadores como Nero e Marco Aurélio. “Nessa época encontramos também formas musicais romanas presentes nos rituais cristãos que deram origem à monodia cristã” (ALMEIDA, 2019, p. 24-25), algo inspirado nos salmos hebraicos, algo que afasta os rituais cristãos ideológica e historicamente da cultura árabe tão propagada na Andaluzia em sete séculos. Com cânticos presentes nos rituais religiosos do cristianismo, estes foram se transformando até chegar ao ponto de se tornar uma melodia chamada de cantochão: a música mais antiga que se tem conhecimento no Ocidente, caracterizada por uma melodia monofônica, ou seja, uma música de cunho religioso e sem acompanhamento (ALMEIDA, 2019).

Suas melodias apresentam uma fluidez livre, mas dentro de uma única oitava e com um desenvolvimento por meio de intervalos de apenas um tom, no que concerne aos ritmos. Apresentam-se como irregulares mediante as acentuações que as palavras denotam; enfim, o ritmo da língua latina é a estrutura do canto da música gregoriana (ALMEIDA, 2019). Essa estrutura difere totalmente de toda a tradição trovadoresca, com ritmos regulares e uma estrutura que difere da fala cotidiana, causando uma quebra de expectativa do ouvinte.

Santo Ambrósio (340-397), bispo de Milão, foi o responsável pela elaboração de parâmetros para o cantochão, com o intuito dos hinos sacros, mas de índole popular para se realizar uma missa, em outras palavras, musicalizados por orações e manterem um estilo adequado aos padrões cristãos da época. Sua influência foi tanta que essas hinologias foram chamadas de Canto Ambrosiano. Tempos depois, o Papa Gregório (540-604) utilizou o cantochão em seus rituais e o codificou, fazendo com que essa expressão ganhasse grande popularidade, sendo chamado desde então de Canto Gregoriano. Assim, suas versões canônicas eram monofônicas, mas, após o século XIII, suas composições em latim foram substituídas pelo canto polifônico. Dessa maneira, houve uma influência popular sobre o canto gregoriano, inclusive em seu processo de popularização, mas nenhuma relação histórica, estética ou até mesmo linguística com o trovadorismo ibérico (WANKE, 1973).

Até esse ponto, nós encontramos o desenvolvimento de uma arte monódica e monofônica de remanescência grega, que, após séculos assimilada pelos romanos, se transformou com a ação do tempo, tornando-se um canto embasado em raízes latinas. A troca de experiências culturais entre árabes e cristãos culminou, em longo prazo, com a assimilação da poesia árabe por parte dos cristãos, algo que o bilinguismo dos habitantes de ambas as regiões permitiu. É fato que trovadores islâmicos utilizavam instrumentos de corda ou percussão para ser feito o acompanhamento da voz, mas, na falta deles, o canto monódico era executado por beduínos, ou até mesmo em mesquitas, por meio de orações. A monódia existente entre ambas as culturas incita o surgimento de hipóteses, mas nossas fontes demonstram que a música monódica grega2 e popular deu uma grande parcela de influência para o florescimento do Canto Gregoriano (WANKE, 1973).

Soler (1995) aponta que, através de uma análise da diferença musical entre cristãos e islâmicos, é possível perceber o quanto eram opostos no que diz respeito às ideologias religiosas de ambos os povos. O autor afirma que “[...] os muçulmanos eram um povo aberto à sensualidade - não condenada pelo seu credo - e aos aspectos materiais e prazerosos da vida” (SOLER, 1995, p. 97). Tais aspectos fizeram com que ele entendesse que:

O hábito de usar a música para exaltar as emoções e não como foi o ideal dos antigos gregos, para disciplinar e dominar as mesmas. Daí encomendar boa parte da atividade musical (atribuída aos homens, na maioria dos povos, à mulher, a “gainat” antes comentada). E daí também o gosto pela música instrumental, ritmada por percussões e propícia para a dança, assim como pelo canto individual, solístico ou coletivo, empregado apenas para responder e animar com breves estribilhos, ao uníssono, o recitado-cantado do solista. (SOLER, 1995, p. 98).

Ao contrário dos árabes, a Igreja enxergava na música, com seus ritmos e danças, algo lascivo, sendo capaz de provocar o desejo e a distância para com o Deus cristão, por isso eles acreditavam que “[...] apenas o canto coletivo, elevando à divindade palavras de fé, salva-se da condenação” (SOLER, 1995, p. 98). Divergências teológicas à parte, Soler (1995) comenta que os instrumentos que eram capazes de perturbar o recolhimento espiritual foram com frequência proibidos pela Igreja. Com essa forte divergência em relação às permissões e às proibições entre islâmicos e cristãos, a música europeia tornou-se predominantemente vocal e coletiva, o que provocou a difusão e a evolução da música sacra no Ocidente.

Como resultado desses posicionamentos antagônicos, houve a profusão de instrumentos musicais entre os sarracenos, instrumentos utilizados para o prazer e a diversão, entre os séculos X e XV, enquanto entre os cristãos a utilização da música era de predominância vocal, utilizadas para finalidades religiosas, como o culto e o ensino da fé cristã. Inspiradas no mesmo Canto Gregoriano, muitas canções de cunho popular, copiadas por monges, eram cantadas em tabernas, com temáticas nada religiosas, pois eram ligadas à vida desregrada de estudantes clérigos.

Essas canções são datadas entre os séculos IX e X. Esses menestréis intelectuais, de uma época em que o estudo da teologia era algo essencial para a classe estudantil, fazem com que se torne fácil entendermos o porquê dos seus versos profanos serem em latim, pois eram produzidos por clérigos, portanto homens conhecedores da língua, além de ser uma expressão satírica espelhada no Canto Gregoriano, que tem bases latinas. Esses homens eram chamados de Golianos ou Goliardi, “[...] verdadeiros boêmios, viviam de taberna em taberna, de cidade em cidade, compondo hinos, às vezes paródias dos sacros, às mulheres e ao vinho” (WANKE, 1973, p. 77); desse modo, parodiavam diversos orais, tanto árabes quanto cristãos e produziam uma nova expressão, eis uma crioulização.

Esses jovens fizeram circular diversos manuscritos de natureza profana como Missa de potatoribus (Missa dos beberrões), ou Officium ribaldorum (Livro de orações dos fanfarrões). Eles afirmavam ter um patrono chamado Golias. Suas peripécias foram mal vistas pelos cristãos, sendo seus atos condenados em um concílio no ano de 1287. Entre os Goliardi, poucos nomes a história nos trazem, um deles foi um cônego de Orleans chamado Hugo Primas, que viveu por volta de 1140; outro, conhecido como Arquipoeta, foi autor de “Confissão de Golias”, em Colônia, cujos versos chegaram a fazer parte de uma das mais favoritas canções báquicas nas Universidades Alemãs.

Meum est propositum

in tabern mori,

ut sint vina proxima

morientis ori.

Tunc cantabunt laetis

Angelorum chori:

Sit deus propitius

Huic potatori!

In Taberna quando sumus,

non curamus quid sit húmus,

sed ad ludum properamus,

cui semper insudamus.3

(SPINA, 1972, p. 29).

Tanto o Canto Ambrosiano quanto as canções profanas dos Goliardi apresentam fortes elementos árabes, inclusive a métrica e a rima. Como já mencionamos anteriormente, a poesia latina era métrica e composta muitas vezes de estrofes, mas, por muito tempo, não apresentou rimas, algo que foi introduzido exatamente pelos árabes por meio de traduções latinas, refletindo, assim, a conexão cultural ocorrida entre árabes e cristãos e que permitiu o aparecimento de uma nova expressão produzida pelos Goliardi.

A presença de poesias latinas de versos setissílabos também é encontrada no tetrâmetro trocaico, mencionado anteriormente, tendo sido registrados séculos posteriores aos que os Goliardi manifestaram sua poesia. É possível que ambas as manifestações não possuam uma ligação direta; mesmo assim, suas características denunciam um hábito poético que se manteve vivo durante séculos. Não por acaso, nos mesmos séculos que foi registrada a presença dos Golianos4, também encontramos o zéjel, que curiosamente é setissílabo e dividido em estrofes. Assim, perante a popularidade que o zéjel ganhou em diversas regiões, torna-se mais possível que tenha também influenciado outras expressões como as canções dos Goliardi, mesmo que seja apenas na forma métrica e estrófica.

Na poesia satírica dos Goliardi, expressão também com elementos gregorianos, percebemos componentes multiculturais, o que é coerente com a hipótese de ter existido uma intensa crioulização na poesia trovadoresca ao engendrar trovadores e menestréis de grande popularidade. Isso fez com que os Goliardi não fossem mais numerosos como antigamente, algo que pode ter sido realizado pelas transformações culturais do tempo, ou até mesmo a forte pressão da igreja católica tenha feito com que essa expressão artística “marginal” tenha sido erradicada do solo Europeu.

A tese litúrgica possui fortes semelhanças com a médio-latinista, uma vez que ambas as hipóteses apontam para os detentores da cultura clássica, ou seja, o clero, como possível ligação entre a literatura grego-latina e o trovadorismo provençal que também se espalhou pela Península Ibérica. Lapa (1973) aponta certas incongruências na tese litúrgica, entre elas, o fato de pôr o foco da poesia provençal distante do sul da França. A poesia escolástica não possuía uma base rítmica e imitava os metros antigos e presumia que todos os trovadores tivessem conhecimento da cultura clássica.

A tese em questão tem ainda a vantagem de estabelecer uma ponte de ligação entre a poesia culta da igreja e os meios populares, familiarizados com as cerimônias litúrgicas e naturalmente fortemente impressionados por elas. De modo que, se por um lado constitui uma ramificação ou modalidade da tese médio-latinista, transige por outro lado com a teoria folclórica, porque nos faz entrever o processo de assimilação e transformação desse lirismo pelo povo, e nos leva à convicção de que na própria música religiosa já havia elementos populares. (LAPA, 1973, p. 80, grifo do autor).

O processo de produção não só de culturas, mas discursos atávicos, não permitiram um pensamento no qual o povo levasse contribuições para produtores culturais de uma elite intelectual. O caminho trilhado foi sempre inverso, porém os rastros-resíduos nos mostram outras realidades.

O ostracismo ao qual os estudos sobre a oralidade foram relegados pode ser compreendido como uma noção de superioridade de uma cultura sobre outra por causa de um acesso maior a determinados saberes, uma vez que o “[...] saber instituído pelo conhecimento do alfabeto é dado como pré-requisito para todos os outros saberes” (CALVET, 2011, p. 9). Dentro dessa perspectiva, os grupos de culturas predominantemente orais foram vistos como possuidores de saberes menores ou despossuídos de saberes.

Ainda sobre Lapa (1973), seu compromisso intelectual, de um lado, em confronto com o seu antiarabismo convicto, de outro, não impossibilitaram o reconhecimento de elementos da cultura populares da arte clerical da época, algo que não estava restrito aos árabes se levarmos em conta que sete séculos podem ter sido suficientes para os elementos da cultura de remanescência moura permanecerem em manifestações subsequentes.

O estudo das culturas populares, em detrimento da estética clássica, teve um grande impulso durante o advento do romantismo. Ele proporcionou à cultura popular um enfoque inusitado até o momento. A ideia de as raízes de uma cultura serem registradas antes de sua extinção permitiu a afirmação das identidades de nações ávidas por um discurso que as inserissem em uma tradição. Se esteticamente foi uma resposta ao Classicismo ou dos sentimentos contra o Racionalismo, uma oposição entre a tradição e o século das luzes, ação que também foi uma reação à ameaça que Napoleão Bonaparte estava impondo às nações da Europa, uma vez que a exaltação da cultura popular também se colocou como uma maneira das nações afirmarem suas identidades nacionalistas então ameaçadas.

Esses fatores permitiram a elaboração da tese folclórica, a qual se fundamenta na ideia do povo criador, de uma arte como produto da força coletiva. Lapa (1973) informa que seu primeiro representante foi Frederico Diez, estudioso que defendeu, em 1826, a opinião de que as canções de Guilherme IX estabeleciam uma passagem da poesia popular para a cortesã. Segue-se de outros estudos, entre eles o do provençalista francês Claude Fauriel (1846), em Histoire de La poésie provençale. Este divide a poesia provençal em dois gêneros: de um lado, o objetivo, entendido como a pastorela, a alba e a bailada, espécies textuais provenientes do folclore tradicional; de outro lado, a espécie lírica, constante nas canções de amor. Segundo Claude Fauriel, um produto da sociedade cortesã e cavalheiresca, mas também “[...] devedora, em alguns costumes e ideias, à cultura hispano-árabe” (LAPA, 1973, p. 55). Dada às fortes transformações temáticas entre o trovadorismo popular e o cultivado nos meios aristocráticos, Lapa (1973) argumenta que a canção popular não é um estereótipo formal, mas possui variações temporais e espaciais, o que torna compreensível que uma teoria baseada na presença de temas e formas rígidas não reconheça a presença de elementos diversos nas canções populares em um ambiente aristocrático, pois não leva em conta a confluência de culturas, mas a imposição de uma sobre a outra.

Mesmo que o surgimento do romantismo tenha proporcionado a busca pelas raízes culturais das nações, a tese arábica não é exatamente um produto do romantismo: foi formulada pelo italiano Giammaria Barbieri no século XVI, embora tenha sido reavaliada no período romântico e conseguido diversos defensores em pleno século XX. A anterioridade do período áureo da civilização árabe na antiga Andaluzia é patente, além das aproximações entre ela e a cultura cristã medieval. Um dos dados utilizados pelos românticos ao defender essa tese foi os do Padre mozárabe Álvaro de Córdoba, famoso no século IX e crítico dos cristãos atraídos pela cultura oriental, inclusive ao fato de cultivarem a língua e a literatura árabes. A denúncia chegou ao ponto de afirmar que “[...] dentre mil, a custo se encontraria um homem que soubesse redigir capazmente uma carta em latim” (LAPA, 1973, p. 31).

Em 1912, o espanhol Julián Ribera lançou El Cancionero de Abencuzmán, uma pesquisa sobre o Cancioneiro de Ibne Cuzmane, poeta cordovês da primeira metade do século XII. Aqui, somos apresentados a um lirismo árabe diferente do conhecido pela tradição clássica em formas românicas conglomeradas com as árabes. Esse poeta utilizava um sistema de versificação já presente no século X nos escritos do poeta de Cabra, Mocádem Bem Moafa, também com a presença da língua românica, falada pelos árabes e mozárabes, quer dizer, um lirismo hispânico em língua vulgar. Tal estudo também identificou cantos com temas iniciais, refrão e estrutura métrica aa bbba ccca, etc., chamado de zéjel e semelhante ao posterior vilancete. Ribera chegou à consideração de que o novo lirismo, em uma língua também nova, teria sua explicação pela presença de uma poesia noroeste peninsular, adotada pelos galegos da região sul (LAPA, 1973).

Ribera não ficou por aqui: a circunstância de as cantigas piedosas de Afonso X, o Sábio, terem em geral a forma do zéjel, e o facto de aquele rei ter ao seu serviço um grande número de músicos árabes, levou-o a estudar a melodia das Cantigas de Santa Maria e a concluir que a forma versificatória fora decalcada sobre a música, retintamente árabo-andaluza. Ribera foi ainda mais longe: procurou provar que não só a poesia peninsular como ainda o lirismo europeu deveu a sua forma, pelo menos, a um substrato de música árabe, que lhe fora comunicado por intermédio da Espanha muçulmana. (LAPA, 1973, p. 39, grifos do autor).

O pesquisador Ribera reconheceu a arte musical dos árabes nas culturas grega, persa e bizantina. Mesmo assim, deixou várias dúvidas em relação à criação do zéjel, algo esclarecido através da suposição de uma língua românica por parte de uma classe vencida belicamente, influenciada pela liturgia mozárabe. Sua forma poética mostra particularidades de encontro à tradição arábica: “[...] o uso do mote e volta, os versos curtos, a divisão estrófica, a linguagem, que é popular, e até por vezes os temas, mais próprios de cristãos que de mouros” (LAPA, 1973, p. 45), fenômeno difícil de ser explicado por gênios individuais, contudo mais provável por expressões artísticas da coletividade, ou um predomínio da coletividade neste caso. Na interpretação de Lapa (1973), o mistério foi esclarecido em 1948, quando S. M. Stern, em Le vers finaux em espagnol dans lês muwassahs hispano-hébraïques, em Al Andaluz5, interpretou carjas românicas pertencentes aos muaxás hebraicos, compostas por judeus andaluzos desde o século XI até o XIII (acredita Lapa haver descobertas semelhantes em arquivos europeus, africanos e orientais). Para definição das carjas, Spina (1972) elucida:

Kharjâ, que se pronuncia harja, com h aspirado, diz-se também jarya, em transcrição espanhola. A carja é o remate de certas muaxahas (v.) e cuja importância foi posta em relevo pelos simpatizantes da tese arábica. A carja corresponde aparentemente à fiinda dos cantares galegos-portuguêses; aparentemente, pois, o fundamento poético da carja parece diferir da natureza da fiinda. Divergem as opiniões sobre o caráter, a finalidade e origem destes remates das composições zejelescas: para o egípcio Ibn Sana al-Mulk (sécs. XII-XIII) que, nos deixou um verdadeiro tratado sobre as moashahas, a carja deve apresentar-se sob a forma de um torneio extravagante e inesperado, além de redigida numa linguagem estrangeira. Mas, se a carja aparece como conclusão do poema, na realidade, ela possui as características de um prelúdio; explica-se: o poeta conceberia primeiramente a carja (na medida e na rima), para depois decalcar a composição estrófica segundo esse mote. (SPINA, 1972, p. 388, grifos do autor).

Cabe ressaltarmos nosso cuidado ao relatar o registro dos criadores de determinados gêneros. Por serem dados antigos, é preferível apontarmos como os primeiros a serem arrolados ou terem a compilação dos seus nomes descoberta. Em meio a tantas afirmações e contestações, faz-se presente um panorama “[...] em que os especialistas fazem valer, naturalmente, o elemento das suas especialidades” (LAPA, 1973, p. 44-45). Atualmente, a tendência da crítica é considerar essas teses uma síntese em seu conjunto. Não obstante, isso não impossibilita os pesquisadores de enfatizarem suas especialidades, assim como se compreende a crioulização, de acordo com os objetivos da pesquisa, dentro de um discurso desconstrutor do mito da origem e reconhecedor da pluralidade contida nas formações culturais (LAPA, 1973).

A coerência da tese arábica

A ênfase dada à tese arábica é justificada pelo seu elo com a literatura oral no Nordeste e suas semelhanças, além das contribuições formais que possuem grande semelhança com a poesia improvisada pelos violeiros no Nordeste do Brasil. O ato de improvisar é observado na tese arábica, enquanto nas outras teses os trovadores escreviam suas cantigas antes de cantá-las. Essas práticas orais foram permeadas através dos séculos nos setores letrados e aristocráticos (SOLER, 1978).

Ao confrontarmos as informações colhidas a respeito da tese árabe, muitas delas ressaltam a sofisticação da cultura mourisca, em muitos aspectos superior à europeia. Wanke (1973) faz alusão à permuta existente entre os idiomas árabes e latinos, fato que ratifica a hipótese de a poesia arábica ter sido influente na literatura latina, seja culta ou vulgar, algo que melhor explicaria o surgimento de teses como a médio-latinista e a litúrgica. Portanto, as fontes das quais dispomos permitem que concordemos com tais afirmações, pois elas nos levam a entender que os povos de língua latina foram influenciados a ponto de escreverem poemas árabes em língua árabe, habilidade que possivelmente os permitia que fizessem o mesmo no idioma de origem.

Um exemplo dessas afirmações é encontrado na cidade de Beja, em Portugal, tomada pelos muçulmanos em 713. Quatro décadas depois desse episódio, o bispo do lugar escreveu crônicas em latim com marcas do estilo árabe, no caso, a prosa rimada. Também é pertinente o caso de Álvaro de Córdoba, na metade do século IX, criticando seus conterrâneos de estudarem e preferirem poemas e narrações árabes aos em latim, inclusive compondo versos em língua árabe “[...] mais corretos e elegantes do que os próprios árabes” (WANKE, 1973, p. 78-79).

O mesmo autor afirma que o comportamento dos mouros, com tendências à poesia, aos contos e às narrativas, implantou nas classes cultas o lirismo profano. Além do mais, sem as constantes flexões típicas no fim das palavras em latim, muitos se sentiam convidados à rima, citando, a exemplo, a cásida, poema monórrimo, e o musamat, com esquema de rimas AA BBBA CCCA. Como vemos, eram poemas cultivados juntamente com outros gêneros por poetas hispano-muçulmanos desde que chegaram à Europa. Os emires Omíadas de Córdoba (788-912), por exemplo, além de serem mecenas, também produziam poesia, como Abderramán I (756-788) e seus sucessores, que até hoje têm poemas registrados. Acredita-se que a biblioteca de Abderramán III (929-961) possuía cerca de 400 mil volumes, precedendo os reis trovadores cristãos da Península Ibérica, como foi o caso de D. Dinis (1279-1325).

Wanke (1973) nos leva a crer que a temática do zéjel tinha uma grande presença de traduções de Sírios Cristãos mas, em relação à forma, ele nos mostra que a Moashaha, poema árabe com as estrofes rematadas pela carja6, faz parte dos mesmos vínculos orais. O autor também leva em conta a hipótese da presença dos judeus na Península Ibérica árabe ter ajudado no surgimento do zéjel. Enfim, é difícil falar desses influxos com exatidão; entretanto, a identificação de traços de culturas distintas pode elucidar nossos questionamentos (WANKE, 1973).

Mesmo que o autor defenda a predominância do influxo árabe, ele traz à baila a conjectura de tanto a poesia latino-cristã quanto a judaica derivarem da bíblica, pois se desenvolveram quase que simultaneamente. Seu aparecimento data dos séculos VI ao X, sendo a maioria das estrofes monórrimas e acompanhadas de breves citações da bíblia, base poética chamada de pizmon entre os hebraicos. No século X, o judeu, Salomão Bem Yuda, apresenta um pizmon com uma estrutura diferente daquelas de séculos anteriores, com o esquema AABC, CCCB, apresentando grande semelhança com a Moashaha (WANKE, 1973, p. 80), pois foge da estrutura monórrima do pizmon tradicional. Ele tem uma linguagem popular, sendo feita para ser cantada por uma mulher, mesmo que seja composto por um homem. Wanke (1973) apresenta algumas carjas e suas respectivas traduções.

Que faré o, o que serad de mibi?

Habibi, non te tolgas de mibi!

Que faré, mamma?

Meu L’habib es ad yanna!7 (WANKE, 1973, p. 90).

A palavra zéjel significa “dança”, sendo os versos originalmente cantados na rua, em que o poeta repete o refrão do poema, no qual predomina o verso setissilábico. Como podemos ver, o esquema das estrofes é AA BBBA CCCA DDDA, o que denota um caráter essencialmente oral no referido gênero. Soler (1978) também faz considerações a respeito do zéjel. Também cabe lembrar que o nome árabe omite a presença negra em toda essa trajetória.

A poesia latina era métrica e estrófica, sem rima. A árabe não parcelava estrofes, porém tinha rima, invariável ao longo de cada composição. Ora, a partir do S. IX, precisamente nas terras de Al-Andaluz, faz sua aparição um gênero poético, o “zégel”, que diversifica a rima, é estrófico e possui um estribilho em língua vulgar, encaixado entre as estrofes árabes. Não devemos aqui nos estender em teorias e contra-teorias que debatem o zégel como sendo o modelo do qual os provençais tomaram o impulso inicial para as formas poéticas trovadorescas. Mas a verdade é que o zégel representa realmente uma técnica absolutamente inédita até então, e que aparece já uns dois séculos antes de que o façam modelos idênticos (ou ligeiramente variados) que constituem o grosso da produção dos trovadores primitivos. (SOLER, 1978, p. 50, grifo do autor).

Soler (1978) também leva em conta a importância de Abn Guzman, caracterizando não apenas a forma poética do zéjel, mas a maneira como o gênero era interpretado na época; desse modo, o autor explica que era de costume o zéjel possuir o canto repartido em o solista e os ouvintes, sendo estes os que cantavam o estribilho. No decorrer de cada verso do poema cantado, ele “[...] vinha acompanhado de alaúde ou de pífano, tamboril ou castanholas, e às vezes combinava com dança, integração de fatores estéticos, artistas e público que, da Espanha Islamizada, espalhou-se por todo o mundo árabe” (SOLER, 1978, p. 50), podendo ser encontrado até os dias atuais na cultura popular de países islâmicos. Portanto, em relação ao Zéjel, por volta do século IX, a poesia latina, com métrica e dividida em estrofes, assimilou essa técnica das rimas por meio do gênero poético Zéjel (RAMALHO, 2000, p. 58).

As línguas latina e árabe foram utilizadas em Al Andaluz, pois “[...] coexistia o arábico puro junto com o latim vulgar, também chamado língua romance” (SOLER, 1978, p. 34), sendo as duas línguas cultivadas tanto pelas altas classes sociais quanto pelas menos abastadas. No campo da escrita, identificamos não apenas traduções do grego ou latim para o árabe, como também obras árabes e hebraicas traduzidas para a língua latina, transposição idiomática realizada muitas vezes por judeus, o que reforça a ideia de que um possível influxo possa ter havido entre ambos os idiomas. Essa relação deixa claro o quanto uma cultura vinda de africanos enraizou na prática intelectual de cristãos europeus.

É curioso o fato do verso trocaico latino, além de ter a mesma escansão que o zéjel, ser também cultivado abundantemente pelos povos andaluzos. Em relação aos trovadores provençais, por meio dos cancioneiros (chansoniers), temos registrados mais de 400 trovadores de Provença. Segundo documentos, o pioneiro, ou o primeiro a ser registrado, foi Guilherme de Aquitânia. Embora tivesse existido algum poeta popular antes dele, dificilmente existiria a preocupação de seu trabalho ficar consignado por escrito antes do seu soberano, já que eram estes que subsidiavam os trovadores (WANKE, 1973).

Os trovadores de Provença difundiram a arte por toda a Europa. Até mesmo o lirismo, que era restrito aos jograis, tornou-se uma verdadeira moda entre os reis e a nobreza. A neta de Guilherme, Leonor, foi um grande mecenas, assim como o avô. Ela se casou duas vezes, a primeira com Luís VII, em 1137, sendo ele um rei francês, e ela, a herdeira de todo o Sudoeste da França. Ao divorciar-se de Luís, contraiu o segundo enlace matrimonial em 1152, com Henrique II da Inglaterra. A proteção que os trovadores receberam por parte de Leonor em sua corte contribuiu significativamente para a disseminação do trovadorismo pela Europa, pois fez com que não ficassem em Toulouse: foram levados para o Norte da França, durante o seu primeiro casamento, dando uma contribuição significativa para o surgimento dos “troveiros” em língua d’oil, sendo muitos deles levados para a Inglaterra após o segundo matrimônio.

A poesia do Sul da França dominou o século XII, entrando em período de crise com as cruzadas pregadas pelo Papa Inocêncio III. Isso fez com que os albigenses fossem acusados de heresia pelos cristãos, perseguidos e derrotados, ficando suas terras dominadas pelos cristãos do Norte da França, o que provocou a supremacia da língua d’oil sobre a d’oc. A partir disso, a tendência foi a de que essa arte poética declinasse, assim como tantas outras no Sul da França, pois, além do idioma da região ter sido inferiorizado pelos cruzados, os poetas ficaram sem os mecenas para protegê-los.

Naquela época, o trovadorismo havia sido difundido em outras regiões europeias como Inglaterra, Alemanha e Itália. Esse fato favoreceu a troca de experiências culturais em suas fronteiras, florescendo, assim, a poesia trovadoresca na região que tinha, além de Leonor de Aquitânia, o seu filho Ricardo Coração de Leão, como grande protetor dos poetas. Na região alemã, os Minnesanger foram bem expressivos na época dos imperadores Hohenstaufern, porque cerca de 300 trovadores dessa região estão registrados na história. No território italiano, os Trovatori, trovadores de suspeita influência occitânica, inspiraram grandes nomes da Literatura Italiana, como Dante e Petrarca.

A respeito de usarem ou não a técnica do improviso, registrada entre os árabes, em todos esses países, onde tantos cancioneiros surgiram, predominavam os mesmos caracteres formais de improvisar dos árabes, além de grandes possibilidades de terem tido contato direto ou indireto com os mouros. O fato de muitos terem escrito suas canções para cantar nos grandes salões de castelos medievais, em vez de improvisarem, não impediria que utilizassem as mesmas técnicas dos improvisadores árabes (WANKE, 1973).

No que diz respeito ao trovadorismo em Portugal, como nação independente, a Cantiga de Guarvaia, também chamada de “A Ribeirinha”8, é considerada a mais antiga canção trovadoresca escrita em solo português, sendo, por isso, o marco que dá início ao trovadorismo no país. Os críticos costumam classificar o trovadorismo português em cantigas líricas e satíricas. As líricas, por sua vez, subdividem-se em de amor e de amigo: as cantigas de amor seguem um modelo fielmente semelhante à moda provençal, na qual a voz lírica masculina declara-se à pessoa amada, em um ambiente geralmente palaciano. Já as cantigas de amigo9 possuem voz lírica feminina, a qual suspira a falta de um companheiro, que poderia estar empenhado em atividades militares, chamadas de fossado ou bafordo. As cantigas satíricas continham críticas que eram feitas direta ou indiretamente. As diretas eram as cantigas de maldizer, e as indiretas se chamavam cantigas de escárnio, as quais faziam suas ofensas por meio de eufemismos, enquanto aquelas realizavam verdadeiros insultos de maneira pragmática, chegando até mesmo a revelar o nome a quem os ultrajes eram endereçados.

A introdução do lirismo trovadoresco na Península Ibérica pode ter ocorrido por intermédio dos trovadores provençais que, fugindo da perseguição dos cruzados, tinham Lisboa como porto mais próximo para embarcarem para Jerusalém. Esse encontro propiciou uma forte movimentação de trovadores, durante a qual muitos encontraram em Portugal um ambiente popular predisposto à poesia, fato que fez com que muitos fizessem das terras portuguesas o seu novo “proscênio”. Esse encontro de culturas trovadorescas colaborou com o surgimento de outra expressão trovadoresca, com o aspecto platonizante da confidência amorosa recrudescido, uma vez que o ápice do travadorismo português se dava no momento anterior à dama atender à demanda do apaixonado (MONTEIRO, 2004).

Por esse viés, “[p]odemos existir como identidade sem existir como força” (GLISSANT, 2005, p. 155). O apagamento da relação entre a oralidade poética africana e o trovadorismo é compreendida pela presença da raiz única, aquela que elimina as outras raízes ao seu redor, assim como fazia com muitos povos inimigos. Nesse contexto, o entendimento de nação assume um caráter predominantemente cultural e foge do que poderíamos entender em seus âmbitos: estatal, econômico ou político, a exemplo da existência da nação basca, que não depende da presença de um Estado basco. No caso estudado, temos a presença de uma cultura afrodescendente, mas despojada da consciência de sua identidade no decorrer dos séculos.

Soler (1978) leva-nos a crer na presença da poesia trovadoresca remanescente dos árabes, algo presente em toda a Europa, seja direta ou indiretamente. O autor informa que o amor cortês surgiu entre os poetas provençais do século XII e já era presente nos poetas de Bagdá do século IX, além de toda a produção trovadoresca registrada em língua árabe antes da chegada dos provençais em Portugal, ou seja, as datas não favorecem o crédito da afirmação, que segue a linha eurocêntrica e nega toda a cultura negra árabe no terreno europeu. Mesmo assim, o trovadorismo do Sul da França foi o responsável por irradiar o lirismo amoroso em outras regiões, inclusive a ibérica. Essa característica na França foi específica no Sul, onde as mulheres eram cultuadas nas canções. Na região francesa do Norte, as canções eram escritas para enaltecer o caráter heroico e guerreiro da sociedade.

Nessas regras de amor cortês, o trovador expunha os seus sentimentos, ou máscaras do jogo amoroso, de forma moderada (mesura), depois, ele, no intuito de não desagradar (sanha) a amada, ocultava seu nome e substituía por um pseudônimo (senhal), daí prestava uma vassalagem que possuía quatro fases (embora nem todas fossem seguidas rigidamente em Portugal, que possivelmente conheceu as duas últimas fases): fenhedor, precador, entendedor e drudo (SPINA, 1972).

No tocante às denominações dadas aos artistas da época, o trovador era um termo que apareceu no século XI e correspondia ao compositor das cantigas, embora não as executasse; o jogral, por sua vez, era uma denominação dada aos artistas das mais variadas expressões. Tal palavra poderia ser utilizada com os saltimbancos, truões ou músicos. Eles costumavam acompanhar o trovador pelas cortes, ou viajarem por conta própria, e, em alguns casos, poderiam também compor suas cantigas, já que essas divisões não eram rígidas. O termo jogral apareceu na Europa Central no século VII e passou e ser vulgarizado no século XII. Entre as qualidades do seu ofício, podemos destacar a voz, a memória fiel e o ecletismo para executar performances de diversas modalidades artísticas.

O segrel era aquele que perambulava pelos mais diversos reinos, muitos acompanhados de um jogral, interpretando cantigas que poderiam ser de sua autoria ou não, uma espécie de intermediário entre o trovador e o jogral, se era distinto do trovador por cobrar pelos seus serviços, também diferenciava do jogral por ser fidalgo, embora de última classe. Com o passar do tempo, o termo jogral se tornou depreciativo, e, a partir do século XIV, o termo francês menestrel ou ministril suplantou o de jogral, designando um músico da corte.

O jogral, segrel ou menestrel poderiam aperfeiçoar-se e tornar-se trovadores, a partir daí é possível percebermos como o improviso não era praticado por todos os poetas da época trovadoresca, dada a sua complexidade. Com base nas afirmações expostas, percebemos o alto valor dado ao título trovador, visto como uma das razões pelas quais tantos nobres faziam questão de serem denominados ou de se autodenominarem trovadores. No entanto, essas intitulações são vistas por muitos como algo relativo às épocas e aos meios sociais (SPINA, 1972).

[...] possui significados diversos dependendo das épocas e do contexto social em que os jograis foram apreciados. Em termos muito vastos, seriam jograis todos aqueles que ganhavam seu sustento atuando diante de um público, para diverti-lo por diversos meios. Cabendo, nesta definição, tanto o trapaceiro roda-mundos como o bem acomodado menestrel a serviço de uma casa real; tanto o acrobata e o charlatão quando o fino cantor ou instrumentista. (SOLER, 1995, p. 58).

O intercâmbio cultural entre o Sul da França e o território ibérico não se deu apenas de forma passiva. Guilherme IX de Aquitânia, em 1064, realizou uma cruzada contra a cidade de Barbastro, quando raptou diversos muçulmanos, inclusive uma quantidade expressiva de moças árabes (gainat). Elas se destacavam por cantarem e tocarem instrumentos, como o alaúde, maravilhosamente bem, algo que encantou os palácios franceses e contribuiu para a difusão da poesia árabe com sua forma peculiar de cantar, versejar e com acompanhamento do alaúde. Assim, há mais um registro da poesia árabe difundida, embora em um contexto violento, na França precedente encontrado no aparecimento do trovadorismo e depois negado. Desse modo, o sequestro de pessoas negras para serem servas de outros povos é algo anterior ao início do período de colonização (MOORE, 2012).

Diante de um amálgama tão intenso, destacamos a cultura árabe como a mais influente; entretanto, ela também não deixou de sofrer transformações em sua poesia, isso devido à força da língua latina, a qual o Império Romano impôs a diversos povos. Mesmo assim, o Império Islâmico foi capaz de trazer do Oriente para o Ocidente uma grande expressão poética, ou seja, da África para a Europa, uma cultura capaz de, mesmo após um momento ou outro, quando diminuiu sua influência política, conseguiu reflorescer sem perder características que vinha carregando há séculos, como a métrica e a rima improvisada ao som de instrumentos, sempre retratando o meio ao seu redor, algo mais difícil de ser construído por meio de fontes históricas “triviais” da antiguidade, diversificando através do tempo os seus temas e sendo aperfeiçoada.

Considerações finais

O presente trabalho nos permite compreender que o Trovadorismo na Europa, sendo o enfoque deste texto, especificamente a Península Ibérica, surgiu a partir de relações culturais intercontinentais, notadamente com os árabes africanos que dominaram o território por séculos, quando a região foi chamada de Andaluzia. Contudo, a compreensão dessa manifestação artística ignora a presença das africanidades que contribuíram para a oralidade poética. Essa compreensão é definida em quatro teorias: a médio-latinista, a litúrgica, a folclórica e a arábica.

A tese médio-latinista compreende o trovadorismo como uma manifestação com remanescências culturais na cultura latina. Todavia, essa relação histórica e linguística não esclarece como se deu essa relação cultural, até porque, durante sete séculos, os africanos se instalaram naquele território e trouxeram práticas culturais semelhantes ao trovadorismo, no que diz respeito ao improviso ao som de instrumentos, com utilização de rimas e métrica, algo muito semelhante ao que o trovadorismo faz, excluindo a parte do improviso, algo que os trovadores não demonstravam grande domínio, uma vez que os documentos nos dizem que eles escreviam antes de cantar. A presença poética de algo semelhante entre os romanos que penetraram na Península Ibérica é desconhecida.

No que diz respeito à tese litúrgica - o surgimento do Trovadorismo por influência da literatura clerical -, ela também se coloca como incoerente, uma vez que estamos falando de uma manifestação oral. Como a escrita clerical, restrita a esse meio influenciou uma manifestação popular e de predominância oral? Além do mais, o aparecimento de clérigos trovadores, chamados de Goliardos, é posterior ao aparecimento dos demais trovadores, pois foram clérigos que já conheciam aquela manifestação e fizeram parte dela, inserindo composições em latim, fruto da sua formação clerical.

A tese folclórica parte da afirmação de que o povo português produziu o trovadorismo, teoria que ignora totalmente a presença anterior de trovadores africanos. Essa afirmação é fruto do movimento romântico em Portugal, o qual buscava registrar as manifestações populares de seu país, mas a sua compreensão histórica ficava em segundo plano, inclusive, em tal época, os suportes teóricos para tal estudo eram limitados.

Diante desse panorama, a tese arábica coloca-se como a mais coerente, pois leva em conta o trovadorismo árabe anterior ao Trovadorismo português. No entanto, ela também não considera o fato de que o termo “árabe” generaliza a pluralidade cultural trazida pelos árabes islâmicos, inclusive o fato de que o improviso poético, rimado e metrificado ao som de instrumentos, é uma manifestação claramente africana, assim como os árabes que dominaram a região.

1A respeito das mulheres trovadoras, ver Lemaire (1987).

2Como exemplos da monódia grega, podemos citar as tragédias clássicas, recitadas dramaticamente por um só ator.

3“Meu propósito é morrer numa taberna, próximo ao vinho. Enquanto isso, os anjos cantarão alegremente: Deus seja propício a este beberrão”/ “Quando estamos na taberna, não pensamos na realidade terrena: vamos direto ao jogo porque sempre transpiramos” (SPINA, 1972, p. 29, tradução nossa).

4Como também são chamados goliardos.

5S. M. Ster, Les vers finaux en espagnol dans les muwassahs hispano-hébraïques, in Al-Andalux, XIII (1948), p. 299-346.

6A carja é a língua dos moçárabes, cristãos que viviam na Andaluzia.

7“Que farei eu, que será de mim? Meu amigo, não te vás do meu lado! Que farei, mamãe? O meu amigo está à porta!” (WANKE, 1973, p. 90, tradução nossa) - da página XX do prefácio de “História da Espanha” de Ramón Menendez Pidal - volume “Espanha Muçulmana”.

8Escrita por Paio Soares de Taveirós, para Maria Pais Ribeiro, também chamada de “A Ribeirinha”, sendo Guarvaia o nome de um vestido de luxo na época.

9A palavra “amigo” pode significar namorado ou amante.

Referências

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Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 26 de Maio de 2022; Aceito: 26 de Maio de 2022; Publicado: 07 de Junho de 2022

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