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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19400.081 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Heteroidentificação racial: o contexto das ações afirmativas no Ensino Superior

Racial heteroidentification: the context of affirmative actions in Higher Education

Heteroidentificación racial: el contexto de las acciones afirmativas en la Educación Superior

*Mestre em Educação pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Professora da Educação Básica em São João del-Rei, Minas Gerais. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sócio-Históricas em Educação (NEPSHE) da UFSJ e do Grupo de Pesquisa da História, Cultura Africana e Afro-Brasileira (TUGU-NÁ) da UFSJ.


Resumo

O objetivo deste artigo foi compreender como a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), localizadas no estado de Minas Gerais, estão construindo mecanismos de heteroidentificação racial para acompanhar a implementação da Lei No 12.711/2012. Para isso, foi realizada uma análise comparada por meio de uma pesquisa documental e com aportes da literatura dos estudos raciais. Nessa trama, foi possível perceber que as estratégias desenvolvidas nessas universidades contribuem com a formação de uma diversidade social que rompe com a hegemonia dos brancos nos espaços escolares. Dessa forma, foi observado que as práticas desenvolvidas auxiliam os sujeitos a se autoidentificarem, o que pode funcionar como uma ferramenta antirracista, capaz de desnaturalizar as ausências e as exclusões dos corpos negros no cenário acadêmico.

Palavras-chave: Universidades; Políticas afirmativas; Heteroidentificação racial.

Abstract

The objective of this paper was to understand how the Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), the Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e the Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), located in the state of Minas Gerais, Brazil, are building mechanisms of racial heteroidentification to accompany the implementation of Law no. 12.711/2012. In order to do that, a comparative analysis was carried out through documentary research and with contributions of the literature of racial studies. In this plot, it was possible to perceive that the strategies developed in these universities contribute to the formation of a social diversity that breaks with the hegemony of whites in school spaces. In this way, it was observed that the practices developed help subjects to self-identify, which can work as an anti-racist tool, capable of denaturalizing the absences and exclusions of black bodies in the academic scenario.

Keywords: Universities; Affirmative policies; Racial heteroidentification.

Resumen

El objetivo de este artículo fue comprender cómo la Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), la Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) y la Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), todas ubicadas en el estado de Minas Gerais, Brasil, están construyendo mecanismos de heteroidentificación racial para acompañar la implementación de la Ley No 12.711/2012. Para ello, fue realizado un análisis comparativo por medio de una investigación documental y con aportes de la literatura de los estudios raciales. En esta trama, fue posible percibir que las estrategias desarrolladas en esas universidades contribuyen a la formación de una diversidad social que rompe con la hegemonía de los blancos en los espacios escolares. De esta forma, fue observado que las prácticas desarrolladas ayudan a los sujetos a autoidentificarse, lo que puede funcionar como una herramienta antirracista, capaz de desnaturalizar las ausencias y exclusiones de los cuerpos negros en el escenario académico.

Palabras clave: Universidades; Políticas afirmativas; Heteroidentificación racial.

Introdução

A questão principal deste artigo atenta-se a explorar teoricamente os aspectos que perpassam as políticas afirmativas para o Ensino Superior, em particular a Lei No 12.711, de 29 agosto de 2012 (BRASIL, 2012a) - a Lei de Cotas. Interessa, ainda, compreender como três universidades localizadas dentro do estado de Minas Gerais, sendo elas a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), experienciam a prática da constituição de comissões de heteroidentificação étnico-racial, os significados atribuídos e suas dinâmicas.

Esses objetivos partiram de um estudo mais amplo sobre ações afirmativas para negros, resultado de uma pesquisa de Mestrado, intitulada A vida longe de casa: limites e possibilidades da vida universitária de estudantes negros e negras cotistas da UFSJ (ALVES, 2019), construída por meio de interações práticas realizadas com um grupo de cotistas negros desfavorecidos economicamente. Por ocupar-se com ações da vida estudantil que são ligadas a espaços como os da universidade, de moradias e da cidade, essa pesquisa baseou-se na perspectiva de práticas cotidianas1 de Michel de Certeau (2014). Assim, este novo texto articula-se aos pensamentos produzidos sobre as formas de acompanhamento das políticas afirmativas para o Ensino Superior. Nesse contexto, buscou-se um diálogo com autores que lidam com os estudos de raça (ALMEIDA, 2019; BENTO, 2022; CARNEIRO, 2020; GOMES, 2018; TEIXEIRA, 2021).

É importante destacar que os elementos de acompanhamento das ações afirmativas efetivam-se a partir das experiências de atuação de cada universidade ao investigar denúncias de supostos usos indevidos da reserva de vagas ou da confirmação da autodeclaração racial para o ingresso de negros nos cursos de Graduação. Como parte desse processo de aprimoramento da Lei, no sentido de definir elementos complementares à autoatribuição dos candidatos, foi observado que os procedimentos de heteroidentificação têm sido adotados por diferentes universidades. Assim sendo, foram criadas comissões de averiguação das características fenotípicas dos candidatos, o que não exclui a importância da autodeclaração para o acesso à vaga no Ensino Superior (JESUS, 2021).

Nesse contexto, algumas considerações iniciais são necessárias para maior entendimento deste trabalho, com destaque para o papel das militâncias progressistas na ressignificação de negras e de negros no que se refere à raça e na recriação de suas experiências em lugares outros, antes quase que habitados exclusivamente por pessoas brancas privilegiadas socialmente (GOMES, 2018). Para a autora, o movimento negro questiona e denuncia as estruturas de discriminação racial, as quais se produziram sobre a égide de uma “igualdade”, que criou uma série de injustiças na vida cotidiana da comunidade negra. É justamente por isso que as lideranças desses movimentos, como organização, caracterizam a emergência de ações afirmativas para essa população, pois os racismos praticados contra esses setores explorados baseiam-se nas características físicas que esses sujeitos possuem, ou seja, nas características observáveis, como cor de pele, cabelo, fisionomia, entre outras (NASCIMENTO, 2021).

Situações como as mencionadas impulsionaram a luta antirracista do movimento negro por espaços de poder e pela criação de direitos institucionalizados nos códigos legais, como bem exemplifica a materialização da Lei No 12.711/2012. Essa legislação foi alterada pela Lei No 13.409, de 28 dezembro de 2016, com o intuito de ampliar a reserva de vagas para pessoas com deficiência nas instituições federais nos cursos técnicos de nível médio e superior (BRASIL, 2016).

Pelo exposto, fica evidente que novas perspectivas se abriram para pessoas que até então permaneciam à margem dos processos de escolarização (GOMES, 2018). Assim, as políticas de promoção da igualdade racial reivindicadas pelos grupos subalternizados promovem a afirmação dos negros como novos sujeitos políticos e exige o reconhecimento das diversidades e das desigualdades existentes entre eles (CARNEIRO, 2020). A inserção dessas medidas na esfera pública contribui para a ampliação dos sentidos de justiça social. É nesse sentido que a educação acaba por se tornar uma das vias de emancipação da população negra.

Caminhos metodológicos

Olhar para a universidade como um espaço de construção social é entender que esse espaço está sujeito a transformações históricas. Ainda que existam marcadores de diferenças, tais como raça, classe e gênero (TEIXEIRA, 2021), estes, muitas vezes, ao se cruzarem, são transformados em desigualdades para públicos com histórico de educação limitada.

As três universidades analisadas nesta pesquisa precisaram ampliar as formas de entrada nos cursos para os egressos de escola pública por conta da Lei No 12.711/2012. Assim, foram destacados os aspectos particulares relacionados aos estudantes negros que ingressaram pela reserva de vagas. Vale ressaltar que cada uma das universidades escolhidas legitimam uma identidade cultural e selecionam os aspectos que caracterizam o acompanhamento das autodeclarações raciais.

A luz da literatura dos estudos de raça, a análise documental, associada à abordagem qualitativa, foi o principal procedimento metodológico que procurou analisar os processos de implementação das bancas de heteroidentificação instituídas pelas organizações administrativas da UFJF, da UFMG e da UFOP, construídas sob a égide da política de ação afirmativa para o Ensino Superior Federal. Para isso, deu-se centralidade as fontes internas que são formas de acompanhamento das matrículas de cada instituição, por meio de portarias dos conselhos universitários, das resoluções e dos editais de ingresso dos cursos de Graduação. A escolha de três universidades localizadas em Minas Gerais está relacionada ao fato de a pesquisadora residir nessa unidade de federação e pelas instituições possuírem grande tradição na oferta de cursos superiores. A intenção foi realizar um diálogo teórico com os universos investigados a partir das suas formas individuais e das suas práticas de heteroidentificação.

A construção de uma lei de ações afirmativas com recorte racial

O movimento negro colocou em debate o caráter universalista excludente das instituições de educação historicamente brancas (GOMES, 2018). Assim, estrategicamente, as zonas da diáspora africana participaram, em 2001, de um importante espaço de articulação de ações de promoção da igualdade racial para o Brasil e para o mundo, que foi a III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata que aconteceu em Durban (BRASIL, 2001). Carneiro (2020) destaca o papel das organizações negras brasileiras e das mulheres negras no evento, ao reivindicar por equidade de raça e gênero no Estado. Tais ações refletiram na elaboração da Declaração e do Programa de Ação, no qual foi reconhecido que os povos negros, em particular mulheres e crianças, precisam ter garantido o acesso à educação em todos os níveis (BRASIL, 2001). “Compondo a maioria da delegação brasileira e concorrendo decisivamente para a aprovação dos parágrafos relativos aos afrodescendentes, as mulheres ofereceram contribuições originais que sensibilizaram várias delegações governamentais de países da América Latina” (CARNEIRO, 2020, p. 188).

Acontece que esse posicionamento político das militâncias negras foi uma das iniciativas “mais caras” à comunidade, por alterar o grande abismo existente entre negros e brancos no segmento educacional (GOMES, 2018). Foram nesses tempos que surgiram muitas discussões em domínio nacional, que repercutiram posicionamentos contrários e conservadores em relação às proposições dessas ações antirracistas (JESUS, 2021). Como exemplo, a denúncia de inconstitucionalidade das ações afirmativas feita pelo Democratas (DEM), por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186. Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou como legítimo o uso do critério racial para seleção de estudantes para o Ensino Superior (BRASIL, 2012b).

A culminância dessa luta pela ampliação do acesso à Educação Superior aconteceu quando as políticas afirmativas para as universidades federais passaram a ser instituídas na forma de Lei, organizada para que o direito à educação dos negros fosse ampliado. Entretanto, antes da legislação federal que regulamenta a reserva de vagas em Instituições de Ensino Superior (IES), já existiam iniciativas de conselhos universitários e leis estaduais que estabeleciam outras políticas autônomas (PAIVA, 2010). Entre as primeiras universidades a aderirem às ações afirmativas na modalidade de cotas estão: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) no ano de 2003. No entanto, a Universidade de Brasília (UnB) foi pioneira, em 2004, como unidade federativa, ao criar um gênero de operação afirmativa racial que não estava acoplada a egressos de escolas públicas, que se difere da configuração da Lei em vigor.

É nesse sentido que falava o movimento negro quando assumiu o debate de reserva de vagas nas universidades: o desejo era que fosse executada uma política pública, especificamente para a população negra. Jesus (2021) evidencia que a questão racial, para esses grupos, que seria o ponto central no tocante às cotas, acabou por ocupar um lugar secundário nas ações afirmativas. Em geral, os estudantes mais beneficiados pelas políticas afirmativas são oriundos de escolas públicas apesar de existir um viés racial.

É relevante considerar que, se essa política não estivesse vinculada ao critério da cor, provavelmente beneficiaria apenas pessoas brancas, por pertencerem a um quadro racial dominante e possuírem as proteções proferidas pela pele branca (RIBEIRO, 2018). Vale ressaltar que as ações afirmativas podem ser criadas de diferentes maneiras, como, por exemplo, na categoria de acréscimo de notas, vagas e cotas ou na junção de algumas dessas modalidades2. Atualmente, nas instituições federais de Educação Superior, existe uma política centralizada, que aderiu ao modelo de cotas para beneficiar o público-alvo.

No governo da presidente Dilma Rousseff, houve um marco com a promulgação da Lei No 12.711/2012 (BRASIL, 2012a). O regulamento versa, em seu art. 1º, que as instituições públicas federais de nível superior passam a reservar, no mínimo, 50% das matrículas para estudantes que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em estabelecimentos públicos. O restante continua a ser disputado por Ampla Concorrência (AC).

No que se refere às vagas que podem ser preenchidas pelos egressos de escolas públicas, 50% se destinam a candidatos com renda familiar mensal per capita inferior ou igual a um salário-mínimo e meio. A outra metade é distribuída às pessoas com remuneração familiar acima dessa média. Parte dessas vagas é destinada às cotas raciais para estudantes que se autodeclararem pretos, pardos ou indígenas e pessoas com deficiência, de acordo com o percentual de pessoas que integram a unidade federativa, calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Desse modo, as ações afirmativas não garantem todos os direitos de educação para jovens com esse perfil que estão nas universidades, como acesso à assistência estudantil e a outros programas que qualifiquem as suas permanências. Todavia, hoje, políticas como essa precisam existir por conta de diferentes sentidos, que foram construídos sobre a figura dos negros. Almeida (2019) propõe, em seu livro Racismo estrutural, uma discussão acerca do conceito de racismo que integra as organizações políticas e econômicas da sociedade e que se manifesta, inclusive, em instituições de difusão de conhecimento como a universidade. Para o autor, a representatividade e a presença de negros em espaços de poder são elementos primordiais, mas não são suficientes para combater o racismo. Assim, o que se pode concluir é que o acesso de sujeitos discriminados historicamente por conta da raça, nesses espaços, significa a produção de resultados concretos e que a organização das instituições está tomando novas formas (ALMEIDA, 2019).

É preciso pensar o que significou a implantação de políticas educacionais diferenciadas em universidades, que, majoritariamente, priorizavam um discurso de mérito para a entrada no Ensino Superior. Essas ações provocam mudanças e colocam “[...] jovens negros lado a lado com os da classe média e da elite branca” (GOMES, 2018, p. 16). Por isso, esse processo pode ser fundamental para a desconstrução do racismo.

Heringer (2010) ajuda-nos a pensar como as universidades, no Brasil, foram criadas predispostas para a formação profissional de um público específico: grupos de poderes político e econômico. Cabe observar que essa construção social acaba por criar relações hierárquicas. Dessa forma, no intuito de estabelecer um paralelo, é preciso destacar que as cotas não são privilégios. Elas seriam instrumentos de diminuição de desigualdades sociais. Heringer (2010), a partir do estudo mencionado, sobre a ampliação de negros no Ensino Superior, destaca que as ações afirmativas são fundamentais para transformar o quadro educacional do Brasil. Segundo a autora,

[...] a reserva de vagas no acesso ao ensino superior deve ser vista como parte de uma estratégia mais ampla de melhoria da educação e como uma maneira completa de incorporar um número significativo de estudantes que, apesar de todas as dificuldades do caminho, conseguiram concluir o ensino médio e hoje “forçam as portas” das universidades. (HERINGER, 2010, p. 141, grifo da autora).

Nesse sentido, não é possível fugir da construção social em torno da raça, a qual interfere nas relações que os negros vão estabelecer nas instituições educacionais. A raça, na concepção de Hall (2003), se situa em um plano simbólico e não é uma categoria biológica. Ela se encontra no campo das representações, que servem para diferenciar um grupo do outro. Nesse cenário, são criadas marcas de diferenciação, como as ligadas ao cabelo, à cor da pele e ao formato do rosto. De acordo com Bento (2022), são justamente essas diferenças que são usadas para produzir desigualdades raciais em relação aos negros.

A questão é, para produzirem-se deslocamentos, é preciso existirem chances para que os jovens negros produzam mudanças econômicas e culturais. Por isso, ocupar espaços de Educação Superior e no mercado de trabalho pode significar outra forma de ser visto em sociedade para essa população (GOMES, 2018). Na visão da autora, jovens negros têm provocado uma série de mudanças no perfil social e na estética do corpo discente das universidades. Além disso, as ações afirmativas no contexto brasileiro são estratégias capazes de colocar jovens negros politizados para movimentar a cena universitária (JESUS, 2021).

Nesse sentido, homens e mulheres negros/as, em suas concepções plurais, ao ampliarem os seus conhecimentos, estão entre os grupos mais propensos a se indignarem com a realidade racial do Brasil. Isso porque, mesmo na condição de vítimas do racismo, ao oferecerem suas inteligências, são capazes de produzir deslocamentos em relação aos privilégios da população branca. Fazendo o uso do conceito de pacto narcísico da branquitude, Bento (2022) propõe a discussão de que mudanças sociais efetivas não estão nas projeções dos brancos, porque isso implicaria perdas e responsabilização por exclusões de raça. Daí a importância de mais pessoas negras se tornarem agentes ativos no processo de democratização dos direitos, a começar pela reinvindicação de políticas de inclusão efetivas. No caso específico das ações afirmativas nas universidades, para que elas não se limitem ao número de vagas e atendam, efetivamente, às diferentes categorias da população que é fenotipicamente negra, será necessário criar diferentes instrumentos que dificultem o falseamento das autodeclarações.

Conflitos e aplicação da reserva de vagas

A criação de estratégias de aprimoramento da Lei de ações afirmativas nas universidades encontra-se em estágio embrionário e decorre da necessidade de ampliação de lugares de aprendizado para os corpos negros empobrecidos. As instituições que têm adotado procedimentos de heteroidentificação apontam que o acompanhamento da política pública já contribui positivamente para o objetivo destinado à modalidade de cotas raciais (SANTOS; CAMILLOTO; DIAS, 2019). As três universidades analisadas - UFJF, UFMG e UFOP - adotaram atividades heteroidentificatórias que são articuladas à autodeclaração racial dos candidatos durante as fases de matrículas presenciais. Nesses casos investigados, o princípio que orienta o método de acompanhamento da autoidentificação é o fenótipo, assim como a principal alavanca que alimenta o sistema racista é a discriminação das estéticas vistas como inferiores. Na concepção da UFOP, prevista no edital do processo seletivo 2020, o fenótipo seria um conjunto de características físicas do indivíduo, “[...] predominantemente a cor de pele, a textura do cabelo e o formato do rosto etc., as quais combinadas ou não permitirão validar ou invalidar a sua condição de beneficiário de vaga reservada para candidato negro (preto ou parda)” (UFOP, 2020, p. 6).

Nas três universidades, os mecanismos de heteroidentificação organizam-se de diferentes maneiras, e os conceitos são abordados de acordo com as pessoas que habitam esses lugares. Então, as concepções de execução da heteroatribuição atendem àquilo que existe nas suas comunidades, onde as instituições estão situadas. No que diz respeito à criação dos procedimentos complementares, todas as três iniciaram formando comissões de sindicância destinadas a apurar supostas fraudes de estudantes que já estavam cursando a Graduação.

Desse modo, foi visto que, no ano de 2017, as denúncias se intensificaram na UFOP e na UFMG. Nessa última, acredita-se que as notificações de violação do sistema de ações afirmativas cresceram por conta de uma significativa entrada de pessoas negras, que se associaram a coletivos dentro da instituição. Tais grupos, em sua maioria, eram compostos pelo corpo discente e se mobilizaram para apresentar queixas na direção de sujeitos que não se enquadravam, caracteristicamente, nem como pretos nem como pardos e que, apesar disso, fizeram uso de um direito que eles não tinham (JESUS, 2021). Na perspectiva desse autor, desde esse período, a função da comissão foi classificar os denunciados a partir das características fenotípicas evidenciadas em fotos disponíveis nos arquivos da Universidade (JESUS, 2021). Quanto ao caso da UFOP, foi verificado que os motivos que impulsionaram a criação de comissões especiais, as quais visavam a investigar um grupo de estudantes autodeclarados negros, foram

[...] as denúncias apresentadas pela sociedade à Universidade, como exercício de controle social da aplicação e desenvolvimento de uma política pública, foram responsáveis pela mudança institucional no tocante à verificação do atendimento dos requisitos legais para a ocupação das vagas destinadas aos candidatos cotistas. (SANTOS; CAMILLOTO; DIAS, 2019, p. 28-29).

No mesmo sentido, em 2018, a UFJF começou a produzir os seus movimentos para abrir comissões responsáveis pela análise de uma série de denúncias que se referiam a supostas contradições, que se situam entre a cor de pele e traços dos estudantes e as condições declaradas dos cotistas raciais.

Voltando aos casos de denúncias de fraudes da UFMG, que também aconteceram nas outras duas universidades, no ano de 2017, 61 casos de irregularidades nas cotas estavam sendo apurados em investigação administrativa na instituição. Desse total, dez denúncias referiam-se a estudantes que não estavam mais vinculados aos cursos tendo em consideração que, por meio das averiguações, 17 estudantes comprovaram que a autodeclaração foi válida. Diante desse quadro, 34 acusações passaram para a segunda fase e o processo correu em sigilo. Naquela época, em nota ao portal de Notícias da instituição, a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG apontou que, caso fosse definido pela comissão, poderia ocorrer o desligamento dos estudantes da Universidade (UFMG, 2018). O resultado desse total de denúncias foi deliberado, no início de 2021, e a comissão designada decidiu, por maioria, que 22 pessoas fossem desvinculadas dos cursos de Graduação por terem feito ocupações indevidas das cotas (OLIVEIRA, 2021).

Nessa perspectiva, a heteroidentificação apresenta-se como uma demanda necessária da própria política pública (SANTOS; CAMILLOTO; DIAS, 2019), que cuida de apurar se a autodeclaração do estudante é compatível com a maneira como ele é visto pela sociedade. Diante das medidas aplicadas pela UFMG sobre as fraudes na ação afirmativa, essa resposta pode ser entendida como ferramenta de controle social, que pode ser capaz de gerar consequências para estudantes fenotipicamente brancos que não saibam ou possam querer tirar vantagens de uma política criada para um grupo que é marginalizado pela sua imagem física.

Por outro lado, Santos, Camilloto e Dias (2019, p. 32) abrem uma ampla discussão sobre a heteroidentificação ao tratarem da experiência da UFOP afirmando que “[...] ninguém se beneficia com o cancelamento de matrícula motivado por processo de apuração de denúncia”. De acordo com os autores, a abertura de sindicâncias funciona como uma forma de controle social das vagas previstas pela reserva de vagas. Agora, em termos de investimento público, no nível geral, seria mais vantajoso que a heteroidentificação, nas universidades federais, fosse um requisito orientado nos editais dos processos seletivos para o acesso aos cursos.

Tal como reiterado, a medida tem caráter pedagógico ao ser anunciada previamente aos sujeitos, pois essa questão da afirmação racial está associada à autoimagem e ao reconhecimento visual que as outras pessoas têm dele (JESUS, 2021). É nesse cenário remanescente de denúncias que as universidades pesquisadas decidiram criar um conjunto de ações complementares à autodeclaração nos atos da matrícula.

Apuração e heteroidentificação: três casos de acompanhamento da política

A primeira das três universidades a adotar comissões de heteroidentificação prévias ao ingresso foi a UFOP. As contradições internas da autodeclaração de estudantes cotistas motivaram a adoção dessas novas práticas. Desde 2013 até o primeiro período de 2018, a autodeclaração foi o único requisito para a comprovação étnico-racial dos candidatos na instituição. No entanto, foi observado empiricamente que o percentual de vagas disponíveis às pessoas negras não condizia com a realidade (SANTOS; CAMILLOTO; DIAS, 2019). Por essas circunstâncias, a UFOP, no segundo período de 2018, dividiu a fase de matrículas em duas etapas no que se refere às vagas reservadas. A primeira fase é destinada à inscrição on-line, e a segunda institui a obrigatoriedade da confirmação presencial da identificação racial da pessoa por meio de comissão designada pela instituição.

Assim, vale reafirmar que “[...] a Orientação Normativa nº 3/2016 e a Portaria Normativa nº 4/2018 fomentaram o diálogo sobre a elaboração de procedimentos necessários à verificação da autodeclaração” (SANTOS; CAMILLOTO; DIAS, 2019, p. 26). Além dos respaldos encontrados na ADPF 1863 (BRASIL, 2012b), que julgou como legítimo o uso do critério racial para a seleção de estudantes para o Ensino Superior. Ao caracterizar os critérios de avaliação da comissão, fica especificado, na Resolução No 7.992, de 16 de junho de 2020, da UFOP, que a heteroidentificação toma por referência o fenótipo do participante, e a ascendência não é considerada de maneira alguma (UFOP, 2020). Nesse caso, são colocadas em análise as marcas físicas visíveis a olho nu. O que importa “[...] é a ‘raça social’, resultante histórico, social e cultural, dos processos de racialização em que são atribuídas identidades, socialmente engendradas, a indivíduos e grupos” (RIOS, 2018, p. 236). Dessa forma, os exercícios de heteroidentificação desenvolvidos pela UFOP dão direito de ampla defesa ao candidato de recorrer ao indeferimento da sua autodeclaração.

Em relação à UFJF, a mudança nos programas de ingresso pelas vagas raciais foi publicada na Portaria Normativa CONSU Nº 21, de 11 de dezembro de 2018 (UFJF, 2018). A Universidade estabeleceu um sistema de matrícula parecido com o da UFOP. Então, desde 2019, no primeiro momento, elas vêm sendo feitas via Internet. Em um segundo momento, elas são realizadas presencialmente mediante análise de autodeclaração para aqueles que optaram por concorrer pelas ações afirmativas. Na UFJF, o fenótipo é, também, o princípio fundamental de avaliação da veracidade da afirmação étnico-racial do declarante (UFJF, 2020). Conforme a concepção adotada, os membros designados para a comissão vão tentar identificar um conjunto essencial de componentes observáveis nos sujeitos, os quais, “[...] combinados ou não permitirão, validar ou invalidar a sua condição de beneficiário da vaga reservada para candidato negro” (UFJF, 2020, p. 1).

Na mesma direção que tem seguido a UFJF e a UFOP, a UFMG passou a adotar métodos de aprimoramento da Lei No 12.711/2012 desde o primeiro processo seletivo para os cursos de Graduação de 2019. De acordo com o Edital UFMG/SISU 2020 de acesso, os candidatos que optaram por concorrer às vagas raciais e se autodeclararam negros devem fazer o seu registro acadêmico e, posteriormente, comparecer ao procedimento presencial obrigatório (UFMG, 2020). Desse modo, antes da condição de beneficiário ser aprovada ou desaprovada, os inscritos ficam vinculados à UFMG por meio de um registro provisório até que os resultados sejam publicados (UFMG, 2020). Nesse edital, encontra-se a definição de que a classificação racial externa não exclui a identificação da própria pessoa. As duas complementam-se. Quando o sujeito opta por concorrer às cotas, se classificado, ele passa por avaliação fenotípica para efetivar a sua vaga. O mesmo acontece nos processos cotidianos: a leitura racial que os outros fazem dos indivíduos (e que os indivíduos fazem dos outros) é que determina como pertencentes a um grupo racial (JESUS, 2021).

Na UFJF, a prática de identificação racial é chamada de “verificação das autodeclarações étnico-raciais”. Como mostra o Edital 01/2020 (UFJF, 2020), cada comissão é formada por docentes e técnico-administrativos, sendo três membros em cada uma, que estejam em exercício regular na UFJF. O Edital cita, ainda, que os critérios de seleção estão relacionados à diversidade de raça, cor e naturalidade. Dessa forma, serão consideradas “[...] experiência anterior, aderência à política de Ações Afirmativas; expertise na área das políticas de ações afirmativas e das relações étnico-raciais, bem como representatividade em movimentos sociais” (UFJF, 2020, p. 3).

Do ponto de vista metodológico de heteroidentificação, a UFJF confirma o direito à matrícula por meio de entrevista presencial. Desse modo, o procedimento fica registrado em áudio e vídeo. No que se refere ao uso de documentos complementares, cada candidato precisa entregar uma autodeclaração racial assinada na presença da comissão de verificação da autodeclaração. Aqueles que se considerarem prejudicados com os resultados das entrevistas poderão interpor recursos.

No caso da UFOP, o sistema de heteroidentificação é reconhecido pelo termo “validação da condição étnico-racial”. A Universidade estabeleceu, também, a composição mínima de três pessoas por comissão. Essas atividades são configuradas por servidores da UFOP que responderam à chamada pública da Pró-Reitoria de Graduação - Prograd (UFOP, 2019) e por estudantes de Graduação que integram o Coletivo Negro Braima Mané4.

Como indicado, Santos, Camilloto e Dias, (2019) fizeram uma análise sobre os processos de heteroidentificação na UFOP e apontam que a escolha dos participantes das comissões especiais prioriza as experiências de participação em capacitações para esse tipo de atividade e a realização de estudos sobre a temática. O modelo de heteroidentificação é constituído por entrevista e entrega de um formulário de autodeclaração assinado durante a atividade que é realizada em espaço reservado para essa finalidade (UFOP, 2020). As decisões das bancas de acompanhamento das autodeclarações são definidas por maioria de pareceres relacionados ao entendimento da classificação de raça.

Nessa perspectiva, a UFMG nomeia as suas formas de acompanhar as autoidentificações fenotípicas dos candidatos selecionados pela categoria de raça como “procedimentos complementares à autodeclaração”. No conjunto de ações que norteiam a heteroidentificação na UFMG, o seu papel é estimular a entrada de pessoas negras no Ensino Superior, cumprindo-se, assim, um dos objetivos da ação afirmativa. De modo particular, o Edital UFMG/2020 aponta que as avaliações fenotípicas não têm por objetivo julgar a identidade racial dos candidatos. Como já apontado anteriormente, a missão é analisar se os candidatos são reconhecidos como público-alvo da política. Caso o pertencimento racial não seja identificado, a vaga pode ser redirecionada para uma pessoa que possua características que a fazem ser lida como negra (JESUS, 2021). A proposta é realizar um procedimento complementar à autodeclaração, no qual a comissão composta por cinco membros considera as decisões da maioria. Além disso, o candidato deverá escrever uma “carta consubstanciada” reafirmando a sua declaração; isto é, explicando por que motivos se considera negro. Caso qualquer pessoa se sinta prejudicada com o procedimento de confirmação racial, poderá interpor recursos dentro do prazo estabelecido e passará por uma nova comissão especial, integrada por pessoas diferentes das que realizaram a primeira prática.

Nas três instituições, existe um sistema de heteroidentificação próprio. Quanto à configuração de cada uma delas, observam-se, no Quadro 1, informações gerais sobre essas práticas distribuídas entre data de criação, principal procedimento, número de membros que compõem a comissão, decisão da comissão, descrição do modelo, termo utilizado e documento complementar.

Quadro 1 Procedimentos de heteroidentificação racial adotados pelas três universidades e pelas comissões designadas 

IES Data de criação Principal procedimento Número de membros Decisão da comissão Descrição do modelo Termo utilizado Documento complementar
UFOP 2018 Avaliação da
Comissão
3 Maioria Entrevista Validação racial Formulário de autodeclaração
UFMG 2019 Avaliação da comissão 5 Maioria Confirmação da autodeclaração Confirmação da autodeclaração Carta consubstanciada
UFJF 2019 Avaliação da
Comissão
3 Maioria Entrevista Verificação da autodeclaração Formulário de autodeclaração

Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados fornecidos pelos editais de ingresso e de formação de comissões das três universidades.

Três universidades e as perspectivas de repensar a identificação racial

Traçar caminhos para a reconstituição das identidades negras que estão sendo formadas em um contexto racista é complexo. Pensando que raça é uma categoria que tem o poder de determinar os lugares de classe e as relações de trabalho, é possível perceber que negros e brancos experienciam as subjetividades de maneiras distintas (TEIXEIRA, 2021). Pode-se, assim, analisar as diferenças desses dois grupos com relação à escola e aos demais processos educacionais. Borges (2021) chama atenção para o quanto o racismo impede a expressão intelectual de sujeitos negros e os aproximam muito mais da privação de uma série de direitos e de liberdade.

As reações do movimento negro evidenciaram que os saberes escolares e acadêmicos assumem um papel primordial na luta por direitos sociais no Brasil, como já mencionado (GOMES, 2018). Destaca-se a participação das organizações negras que contaram com o protagonismo feminino, considerando, aqui, a Conferência de Durban um evento fundamental que conseguiu colocar na agenda nacional a situação específica da população negra que sofre com os efeitos de um passado escravista - além de manifestar a urgência de implementação de políticas de acesso à educação para esse público (CARNEIRO, 2020).

É importante pensar que, em um contexto de exclusão dos negros, no qual esses sujeitos têm expectativas menores de permanência nas instituições de educação, é possível perceber que a implementação da Lei No 12.711/2012 provocou outras implicações nas três universidades pesquisadas, ao tentarem reconstituir regulamentações internas, por meio de comissões complementares à autodeclaração. Um trabalho de fazer com que os candidatos às vagas dos cursos de Graduação reflitam sobre suas identidades e seus modos de ser, ao terem de realizar uma leitura racial de si mesmo, cruzada com a leitura racial de outras pessoas, acerca das características que o constituem para serem considerados, ou não, membros do grupo racial assistido pela Lei de Cotas.

É possível perceber que o papel das comissões nos três espaços acadêmicos trata de identificar características nos sujeitos que os fazem serem vistos socialmente como negros e tentam transformar as marcas desses corpos em possibilidades de acesso ao conhecimento científico, das quais estariam excluídos sem as políticas de diversidade.

Os procedimentos de heteroidentificação racial dependem, necessariamente, do estabelecimento de princípios, da identificação do público-alvo e da definição de critérios. O princípio fundamental é que o procedimento de heteroidentificação não se “define” como uma verificação, uma busca pela verdade, já que se trata de um procedimento complementar à autodeclaração. (JESUS, 2021, p. 100).

A constituição de estratégias cuidadosas de realização de leituras raciais, por meio de um senso compartilhado entre os membros das comissões, também funciona como incentivo à ocupação de espaços de poder para grupos que carregam marcas físicas que, muitas vezes, são evidenciadas de formas negativas em suas trajetórias. Devulsky (2021) destaca que, entre outros aspectos, a identidade negra e suas variações se expressam no corpo.

De fato, ninguém que seja considerado branco ou branca pode investir-se da condição de negra sem que isso seja visualmente identificado com certa rapidez. E muito dificilmente um negro claro consegue trânsito completo nas esferas de poder nas quais a presença negra é praticamente inexistente. (DEVULSKY, 2021, p. 80).

Os acompanhamentos das heteroidentificações na UFJF, na UFMG e na UFOP durante a confirmação do direito às matrículas rompem com a ideia do mito da democracia racial ao buscar selecionar para as cotas sujeitos que não se encontram comumente nos altos graus de escolarização. Nesse sentido, é reconhecido que, mesmo vivendo em um país miscigenado como o Brasil, não existe uma sociedade efetivamente igualitária para todas as pessaos, e esse cenário demanda a criação de formas específicas de lutar contra as relações de poder.

Nessa perspectiva, mesmo que os grupos que vivem à margem da sociedade encontrem uma nova dimensão universitária que se iniciou em 2003 e vem se consolidando desde 2012, a UFOP julgou necessário criar sistemas de acompanhamento das autodeclarações daqueles que são aprovados em seus processos seletivos de ingresso, a partir de 2018. Essa instituição foi seguida pela UFMG e pela UFJF no ano seguinte, impulsionadas pelo número crescente de denúncias de supostas fraudes.

As práticas heteroidentificatórias da UFJF, da UFMG e da UFOP que acontecem no contexto do estado de Minas Gerias, cada uma ao seu modo, têm criado formas diferentes de seleção dos membros das comissões, as quais variam na quantidade de componentes, reformulado editais de acesso aos cursos e nomeado os seus procedimentos. Isso mostra que não existem essencialismos sobre o conceito de raça. Desse modo, é indicado que as concepções de identidade e identificações raciais transitam mediante um senso compartilhado dos sujeitos que participam dos processos de confirmação racial para o acesso à política afirmativa em questão.

Considerações finais

A construção de bancas de heteroidentificação racial e seus componentes complementares nas três universidades estudadas funcionam como ações que reorganizam a conjuntura educacional e, consequentemente, ocupacional de uma população superexplorada. Os modos de desenhar os exercícios de acompanhamento das autoidentificações são atividades potentes que se direcionam a desconstruir a reprodução dos impactos do racismo que afeta desproporcionalmente homens e mulheres. Tais movimentações criadas de forma consciente leva a repensar sobre novas possibilidades de lutar pelo direito de acesso às produções intelectuais.

Gomes (2018) explica que colocar jovens negros com seus saberes corpóreos dentro das universidades, em contato com outros segmentos étnico-raciais, pode provocar rupturas da ideologia racista brasileira. No caso, os dispositivos de heteroidentificação buscam reconhecer e representar a diversidade racial que se encontra na sociedade dentro dos espaços de educação. Eles são importantes para desconstruir complexidades raciais já referenciadas e, assim, contribuir para que os grupos negros assumam o protagonismo de suas vidas.

1 Certeau (2014) considera que as práticas cotidianas se organizam nos espaços socioculturais dos sujeitos no cotidiano, as quais estão interligadas aos modos de proceder dos sujeitos; por exemplo, como praticam os espaços urbanos, como são suas práticas familiares e como concebem suas realidades sociais no dia a dia.

2Não será possível aqui discutir sobre como ocorreram os processos das primeiras universidades que aderiram às políticas afirmativas na modalidade de cotas. Para mais detalhes, consultar os estudos específicos realizados pelo Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (Nirema), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) - http://www.nirema.puc-rio.br/ -, como, por exemplo Paiva (2010), que se atenta a investigar a implantação das políticas afirmativas a partir do ano de 2002, sendo, nesse caso, os regulamentos que precederam a Lei No 12.711/2012.

3Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), de abril de 2012, na qual o STF considerou constitucional a política de cotas raciais na UnB (BRASIL, 2012b).

4Coletivo negro constituído por estudantes dos cursos de graduação da UFOP, que se organiza politicamente para reivindicar as demandas de pessoas negras em relação às práticas de educação dessa população.

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Recebido: 10 de Julho de 2021; Revisado: 04 de Junho de 2022; Aceito: 05 de Junho de 2022; Publicado: 11 de Junho de 2022

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