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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.18339.082 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Saberes de vidas: rodas interativas, diálogos e o Movimento de Mulheres Negras

Life knowledges: interactive circles, dialogues and the Black Women Movement

Saberes de vida: rondas interactivas, diálogos y el Movimiento de Mujeres Negras

Fernanda Priscila Alves da Silva* 
http://orcid.org/0000-0003-3795-3916

*Psicóloga e Educadora Popular. Docente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).


Resumo

Este texto tem como objetivo refletir sobre o processo educativo e formativo sobre relações étnico-raciais, gênero e educação em espaços não-escolares de mulheres negras que participam de cursos oferecidos em uma instituição não governamental em Feira de Santana, na Bahia, bem como a experiência e a atuação da autora deste texto como educadora popular, as vivências e as tessituras construídas junto às mulheres que participam de espaços formativos e educativos promovidos pela instituição. Considera-se como aporte teórico dessa reflexão os estudos sobre o Movimento Negro, o Movimento de Mulheres Negras, o pensamento de Paulo Freire e bell hooks, os quais apontam que a educação pode ser um lócus e um caminho para a prática da liberdade. A discussão aqui apresentada dialoga com os processos de lutas dos Movimentos Sociais, com o combate aos projetos de colonialidade e com a efetivação de uma educação promotora de justiça social e equidade.

Palavras-chave: Movimento de Mulheres Negras; Educação libertadora; Educação antirracista.

Abstract

This text aims to reflect on the educational and training process on ethnic racial relations, gender and education in non-school spaces of black women who participate in courses offered at a non-governmental institution in Feira de Santana, state of Bahia, Brazil, and the experience and performance of the author of this text as a popular educator, the experiences and textures built with women who participate in training and educational spaces promoted by the institution. It is considered as theoretical contribution of this reflection the studies about the Black Movement, the Black Women Movement, Paulo Freire and bell hooks’s thinking, who point out that education can be a locus and a path for the practice of freedom. The discussion presented here dialogues with the struggle processes of the Social Movements, the fight against coloniality projects and the implementation of an education that promotes social justice and equity.

Keywords: Black Women Movement; Liberating education; Anti-racist education.

Resumen

Este texto tiene como objetivo reflexionar sobre el proceso educativo y formativo sobre relaciones étnicas raciales, género y educación en espacios no escolares de mujeres negras que participan en cursos ofrecidos en una institución no gubernamental en Feira de Santana, Bahia, Brasil, como también la experiencia y el desempeño de la autora de este texto como educadora popular, las vivencias y texturas construidas con las mujeres que participan en los espacios formativos y educativos promovidos por la institución. Se consideran aporte teórico a esta reflexión los estudios sobre el Movimiento Negro, el Movimiento de Mujeres Negras, el pensamiento de Paulo Freire y bell hooks, quienes apuntan que la educación puede ser un locus y un camino para la práctica de la libertad. La discusión aquí presentada dialoga con los procesos de lucha de los Movimientos Sociales, como el combate a los proyectos de colonialidad y con la implementación de una educación promotora de la justicia social y la equidad.

Palabras-clave: Movimiento de Mujeres Negras; Educación liberadora; Educación antirracista.

Introdução

A história dos Movimentos Sociais, em particular o Movimento Negro, tem apresentado contribuições significativas para se pensar o processo emancipatório dos sujeitos. O pano de fundo desse debate tem sido a luta contra desigualdades sociais, raciais e de gênero presentes no contexto histórico brasileiro. Basta mirar o olhar mais atentamente e observar como as populações originárias deste solo ou as populações africanas escravizadas foram tratadas e continuam sendo subalternizadas, tanto no que tange aos direitos sociais quanto ao reconhecimento de sua humanidade e identidade. Nesse caminhar, o Movimento Negro e o Movimento de Mulheres Negras (MMN) têm lutado pela superação do racismo e pela construção da emancipação social no Brasil e diáspora africana (GOMES, 2017).

Ser negro e negra no Brasil significa o que especificamente? Quais têm sido as referências negras que têm contribuído no processo de construção da intelectualidade, política e estética nesse cenário? Nos últimos anos, tem se intensificado cada vez mais um processo de luta antirracista que tem como grande educador o próprio Movimento Negro (GOMES, 2017). Esses Movimentos - o Negro e o das Mulheres Negras - têm apontado que o seu lugar na história do Brasil tem sido permeado por processos de silenciamentos (violências/violação de direitos/invisibilização dos corpos negros) e de resistência (luta cotidiana, bem viver) travados cotidianamente na luta por justiça social e racial. As perguntas aqui elucidadas remetem à reflexão sobre a colonização forçada e, sobretudo, ao processo de invisibilização dos corpos negros. Tal invisibilização se evidencia na negação de direitos e de acesso à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, entre outros.

Neste texto, a proposta é olhar com atenção aos “saberes de vida” tecidos e construídos por mulheres negras que integram um coletivo e uma organização em Feira de Santana, município localizado no estado da Bahia (BA), o Espaço Viva Mulher (EVM)1. A participação desse espaço tem possibilitado a essas mulheres, por um lado, a vivência de um processo formativo e educativo pautado no desenvolvimento de habilidades específicas em decorrência dos cursos que participam; e, de outro lado, a participação em rodas de diálogo, nas quais, juntas a outras mulheres negras, tecem saberes, aprendizados e trocas. Esses saberes advêm de suas realidades de vida, experiências e vivências. Em relação aos cursos é especificamente interessante observar que, em sua maioria, se trata de cursos voltados à valorização da estética negra: penteado afro, tranças, oficinas de turbantes, maquiagem (tendo como foco o cuidado com a pele negra). Já as rodas de diálogo têm proporcionado um espaço de conversa sobre questões que tocam a vida das mulheres, enfatizando de modo particular questões relacionadas à raça e ao gênero. Nas rodas de conversa, essas mulheres falam de si, debatem e refletem, de forma coletiva, sobre, por exemplo, como a situação da violência doméstica, o processo discriminatório na busca de trabalho e a forma como são tratadas nos espaços de saúde têm impactado as suas vidas e as suas experiências de mulheres negras. Sobretudo, elas debatem como lhes tem sido negado, de diferentes formas, o acesso à educação.

Na discussão aqui apresentada, leva-se em consideração o estudo de Gomes (2017) sobre o Movimento Negro como educador e ator político. Sua grande contribuição tem sido a de trazer à tona o debate sobre racismo e o questionamento sobre como as políticas públicas têm se comprometido ou não para garantir a superação das desigualdades raciais. Segundo o autor:

O Movimento Negro ressignifica e politiza afirmativamente a ideia de raça, entendendo-a como potência de emancipação, e não como uma regulação conversadora; explicita como ela opera na construção de identidades étnico-raciais. Ao ressignificar a raça, esse movimento social indaga a própria história do Brasil e da população negra em nosso país, constrói novos enunciados e instrumentos teóricos, ideológicos, políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera não somente na estrutura do estado, mas também na vida cotidiana das suas próprias vítimas. (GOMES, 2017, p. 21).

O MMN, no Brasil, segundo Carneiro (2019), é um dos mais respeitados no mundo. Algo que caracteriza esse movimento tem sido a identificação com as lutas populares e com as lutas pela democratização no país. Esse movimento traz à tona o questionamento sobre o feminismo hegemônico e branco, que tem desconsiderado as mulheres negras nesse debate; questiona o próprio Movimento Negro, que deixa de lado as pautas e as questões trazidas pelas mulheres negras; e, sobretudo, protagoniza-se por meio de lutas como: anistia, creches, descriminalização do aborto, direito ao acesso à saúde e à educação, entre outras pautas.

A partir desse olhar que se ancora naquilo que o Movimento Negro e o MMN podem nos ensinar, este texto tem arcabouço teórico na produção de Paulo Freire (1970, 2007, 2011, 2020) e bell hooks (2013, 2019a, 2019b, 2019c, 2020). De acordo com Freire (1970, 1983), a educação é concebida como humanização, ou seja, a luta em se fazer humano. Paulo Freire foi um grande educador, comprometido com a vida, pensando e refletindo a partir da existência humana. Em sua obra Pedagogia do Oprimido, Freire (1970, 1983) mostra que a tarefa humanista e histórica dos oprimidos (e oprimidas) consiste em libertar-se a si e aos opressores/as. Essa pedagogia aponta aqueles e aquelas que foram invisibilizados/as historicamente e, nesse processo, utiliza a educação libertadora para apontar pistas epistemológicas e concretas sobre como esses sujeitos podem protagonizar sua própria história.

hooks (2013) aponta que a educação libertadora proposta por Paulo Freire pode ser um jeito de ensinar que qualquer pessoa pode aprender. A autora revisita sua prática como docente e, sobretudo, sua experiência educativa e seu processo formativo e como foi educada como uma mulher negra. Ela indica que a inspiração de professoras/es que tiveram coragem de transgredir as fronteiras lhe abriram também possibilidades de pensar e de construir outros caminhos. A educação proposta por hooks (2013) é, portanto, uma pedagogia engajada, comprometida com a “revolução de valores”. hooks (2013) corrobora o pensamento de Freire (1970) ao acreditar que a construção da educação pode ser humanista, antirracista, anti-homofóbica, antissexista e capaz de reconhecer as vozes e as vivências das pessoas, estimulando o senso crítico de si mesmas e da realidade em seu entorno, de modo a construir uma prática que liberte as minorias da opressão.

Partindo do arcabouço teórico aqui apresentado e das vivências educativas e formativas dos grupos das mulheres negras que o compõem e participam do coletivo mencionado, esta discussão pretende captar e elucidar os “saberes de vida” dessas mulheres, assim como apontar e enfatizar as contribuições que o Movimento Negro e, em especial, o MMN têm trazido para a construção de uma sociedade cada vez mais inclusiva para esse público, para que os saberes e os valores de grupos historicamente marginalizados e discriminados possam ser garantidos e respeitados (GOMES, 2017).

A proposta desta reflexão é a de compartilhar experiências de mulheres negras inseridas em coletivos que compõem os movimentos sociais, em particular o MMN, que tem como práticas formativas e educativas rodas interativas que questionam os processos de colonização de poder, de ser e de saber presentes na sociedade brasileira. As rodas, como espaços e estratégias metodológicas dos fazeres pedagógicos desenvolvidos com esses coletivos, apontam uma perspectiva de educação dialógica, que parte das experiências, das narrativas e dos saberes dessas mulheres. Nesse sentido, este texto objetiva refletir sobre o processo educativo e formativo sobre relações étnico-raciais, gênero e educação em espaços não-escolares de mulheres negras que participam de cursos oferecidos em uma instituição não governamental em Feira de Santana/BA, bem como a experiência e a atuação da autora deste texto na qualidade de educadora popular, as vivências e as tessituras construídas junto às mulheres que participam de espaços formativos e educativos promovidos pela instituição. Serão considerados, nesta discussão, os aportes teóricos produzidos por Paulo Freire e bell hooks, assim como os estudos sobre o Movimento Negro e o MMN.

Movimento de Mulheres Negras e Movimento Negro

A história não contada, não narrada, os feitos e as narrativas silenciadas ao longo da história do Brasil têm sido, nos últimos anos, a partir dos movimentos sociais, nesse caso em particular, do MMN e do Movimento Negro, trazidos para o debate. Os questionamentos acerca desses silenciamentos têm nos (re)colocado questões sobre identidades, racismo, direitos sociais, violações de direitos. Se nos reportarmos e voltarmos ao modo de como tem sido construída a história do Brasil, podemos verificar que as populações indígenas e escravizadas sempre resistiram e construíram caminhos de libertação e de reconhecimento de si. A resistência negra nos fala do povo negro, de sua história, de sua cultura, de sua organização. Assim, é possível afirmar que o “[...] Movimento Negro conquistou um lugar de existência afirmativa no Brasil” (GOMES, 2017, p. 21). Nesse processo, o MMN também emergiu no bojo das lutas feministas e antirracistas desde a década de 1970.

Na perspectiva de Munanga e Gomes (2016), o processo de luta do povo negro no Brasil pode ser percebido a partir de exemplos da resistência negra, desmistificando, assim, a ideia de que os/as negros/as estivessem harmoniosamente “aceitando” a situação que lhes era conferida naquele contexto. Ao contrário, a população negra, os descendentes de africanos escravizados no Brasil, tem resistido e construído caminhos que desvelam a realidade de desigualdade social como um fator complexo no cenário do país.

Algumas histórias de resistência são citadas por Munanga e Gomes (2016) e demonstram esse processo de resistência, a saber: a Revolta da Chibata, que foi um movimento liderado por um negro, no início do século XX, o qual questionou o modo como os marujos da marinha eram tratados; a organização política de militante negros em São Paulo no pós-abolição, constituindo a Frente Negra Brasileira; o Teatro Experimental do Negro (TEN), que surgiu como um projeto pedagógico por meio do qual a educação era utilizada como forma de garantia da cidadania da população negra; e, por fim, o MMN, que trouxe para o debate as questões relacionadas à raça e ao gênero e o modo como elas se articulavam nas relações étnico-raciais no contexto brasileiro. Conforme exemplos supracitados, ressalta-se que, para além destes, outros movimentos foram emergindo durante a história do Brasil e configurando o Movimento Negro como “ator político” (GOMES, 2017) e, portanto, protagonista da construção de caminhos de libertação e de transformação. Segundo Gomes (2017):

Entende-se como Movimento Negro as mais diversas formas de organização e articulação das negras e negros politicamente posicionados na luta contra o racismo e que visam à superação desse perverso fenômeno da sociedade. Participam dessa definição os grupos políticos, acadêmicos, culturais, religiosos e artísticos com o objetivo explícito de superação do racismo e da discriminação racial, de valorização e afirmação da história e da cultura negras no Brasil, de rompimento das barreiras racistas impostas aos negros e às negras na ocupação dos diferentes espaços e lugares na sociedade. (GOMES, 2017, p. 23-24).

Destaca-se o MMN pelo seu legado e pelas suas contribuições tanto ao Movimento Negro quanto ao Movimento Feminista. Nesse sentido, o MMN tem apresentado as mulheres negras, como a autora deste artigo, que participam de coletivos organizativos como o abordado neste texto. Trata-se de espaços que possibilitam construir nossa condição de mulheres negras e não negras, assim como compreender nossa posição política. Para Moreira (2018), o feminismo negro é marcado por uma pluralidade que carrega consigo diferentes posições de sujeitos e se orientam a partir de um processo de mobilização política em torno de questões relacionadas às demandas das mulheres negras. No Brasil, o Movimento Negro e de Mulheres Negras ressurgiram em meados dos anos de 1970, no período da ditadura militar, pautando-se na luta pela democratização e pela conquista da cidadania (RIBEIRO, 1995). Desde 1985, é possível constatar a presença cada vez mais organizada na política, e no país, das mulheres negras, tanto no âmbito nacional quanto continental.

Lélia Gonzalez (2020), uma das muitas vozes emergentes no cenário acadêmico brasileiro, traz grandes contribuições para a constituição do feminismo brasileiro atual. A autora aponta o lugar emancipatório, o processo de exploração da mulher negra e a ideologia do branqueamento na medida em que discute sobre as relações raciais no Brasil. Nas palavras de Gonzalez (2020, p. 77), “[...] enquanto mulheres negras, sentimos a necessidade de aprofundar nossa reflexão, em vez de continuarmos na reprodução e repetição de modelos que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais”.

Na reflexão realizada pela autora, podemos visualizar a demonstração de como a mulher negra tem sido vista na sociedade brasileira. O racismo caracteriza-se como uma neurose cultural brasileira. Desse modo, evidencia-se que raça, assim como gênero, desde relações de poder, tem determinado tanto a vida de mulheres e de homens brancas/os quanto de mulheres e de homens negras/os. A denúncia realizada pelo MMN sobre essas relações aponta, sobretudo, as ausências das mulheres negras e do Movimento Negro, além de denunciar como as mulheres negras têm estado em desvantagem quando comparadas às pessoas brancas e aos homens negros.

Vale ressaltar que o desenvolvimento e a construção do MMN elucidam a caminhada dos coletivos dessas mulheres. Em 1985, por exemplo, em Nairobi, no Quênia, na III Conferência Mundial das Mulheres, o Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo tomou a iniciativa de “[...] produzir um diagnóstico sobre a situação da mulher negra no país incluindo o estudo da Mulher Negra de autoria de Sueli Carneiro e Tereza Santos” (RIBEIRO, 1995, p. 448). Naquele mesmo ano, em Bertioga, cidade do estado de São Paulo, ocorreu o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe (Eflac), o qual contou com a presença de 850 mulheres, dentre as quais 116 se declaram negras e mestiças. Nesse cenário, mulheres negras de diferentes países discutiram a temática do racismo e do feminismo. A partir de 1988, o MMN fortaleceu a construção de sua organização em uma perspectiva nacional, intensificando reflexões e ações de combate às opressões raciais e de gênero. Nesse processo, Ribeiro (1995) afirma que aprendizados foram sendo construídos a partir da resistência dos ancestrais e do processo organizativo, expresso naquele contexto.

hooks (2019c), no livro E eu não sou uma mulher? Mulheres Negras e Feminismo, afirma que seu envolvimento com a construção de uma consciência feminista a levou a confrontar a realidade das diferenças entre raça, classe e gênero. Nesse sentido, seu processo de “rebelar-se” contra as noções sexistas do lugar da mulher pôde também ser espaço de questionamento do feminismo e dos chamados movimentos de libertação da mulher. Assim, “[...] a fim de criar um espaço para mulheres negras nesse movimento revolucionário por justiça e gênero, tive que aprofundar meus conhecimentos sobre o nosso lugar na sociedade” (HOOKS, 2019c, p. 11). Esses questionamentos sobre o movimento feminista e sobre o modo como o movimento de mulheres negras vão sendo construídos trazem um elemento fundamental: a necessidade de “erguer a voz”, uma questão que se retomará neste artigo, mas que já merece destaque. Erguer a voz tem sido um movimento necessário para mulheres negras, seja no interior do movimento feminista, seja no movimento negro, mas, sobretudo, esse é um movimento necessário a cada mulher negra. Em um mundo onde, historicamente, mulheres negras têm tido suas vozes silenciadas, erguer a voz significa romper com as situações de opressão, de violação e de dominação.

Saberes de vidas: espaços educativos e formativos com grupos de mulheres negras

Tendo como cenário, o MMN e o Movimento Negro, este texto pretende compartilhar as experiências de mulheres negras que participam de espaços educativos não formais e, a partir desses espaços, tecem movimentos educativos e formativos transformadores. Os grupos de mulheres aqui citados participam do EVM, na cidade de Feira de Santana/BA, que integra a Pastoral Social2 e desenvolve ações desde a perspectiva social, ecumênica e solidária, buscando e acreditando na construção de novas relações de gênero. Nesse espaço, são desenvolvidas diversas ações com mulheres de baixa renda, mulheres da batalha3 e grupos em situação de vulnerabilidade social. Dentre essas ações, estão: cursos de culinária, de maquiagem, de manicure, de penteados afro, de corte de cabelo, além de visitas e acolhida nos locais da batalha onde se encontram trabalhadoras sexuais4 na região. Há, também, palestras temáticas que tratam de questões relacionadas aos direitos das mulheres, à saúde integral, às relações de gênero e à autonomia.

Importante destacar que a categoria batalha surgiu na pesquisa desenvolvida pela autora com mulheres que exercem o trabalho sexual em Salvador/BA. Segundo as narrativas e as experiências dessas mulheres, em sua maioria negras, batalha é a categoria utilizada por elas para falar do seu trabalho na rua e na prostituição. Nessa pesquisa, posteriormente publicada com o título Mulheres da Batalha: aprendizados e saberes em contexto de prostituição (SILVA, 2021), objetivou-se compreender quais tem sido os saberes e os aprendizados tecidos e construídos pelas mulheres da batalha no contexto de prostituição.

O relato apresentado neste texto ancora-se em uma metodologia de “escrevivência”, uma ferramenta importante de (re)existência cunhada e construída por Conceição Evaristo, que objetiva “[...] nomear uma escrita que se mescla com a sua vivência, com o relato das suas memórias e das de seu povo” (REMENCHE; SIPPEL, 2019, p. 44). Nesse sentido, parto dos diálogos cunhados nas rodas interativas, espaços insurgentes nos movimentos sociais, em particular no MMN. Estes representam instrumentos de resistências, de luta e de empoderamento. Apresento as narrativas e as experiências tecidas no interior das rodas, as partilhas das mulheres que participaram desse processo e faço uma interlocução com minha própria experiência e vivência como educadora popular e psicóloga social no interior desses grupos.

Dentre as ações desenvolvidas no EVM, destaco as rodas interativas. Essas rodas são espaços de construção coletiva, de fala, de agenciamento e de compromisso dos grupos de mulheres que participam. A maioria das participantes do EVM são mulheres negras, residentes das cidades mais próximas de Feira de Santana/BA ou das periferias da cidade, trabalhadoras domésticas, mulheres da batalha. Muitas delas estão à procura de se qualificar profissionalmente e, por isso, participam dos cursos ofertados no Espaço. Além da participação nesse coletivo, as rodas interativas possibilitam tempos formativos, educativos e de escuta.

Nesse espaço, temos como foco o conhecimento da realidade trazida pelas mulheres, a escuta dessas vozes, o diálogo e o engajamento. À tarde, círculos com temáticas sobre racismo, machismo, sexualidade, direitos são debatidos, proporcionando às participantes momentos de trocas de saberes, de descobertas de si, de fortalecimento da cidadania e, principalmente, de possibilidade de reconhecer os “saberes de vida” trazidos e compartilhados por essas mulheres. Compartilho a cena de um dos encontros construídos nesse espaço. Nesse dia, especificamente, a temática de discussão era a autonomia das mulheres na sociedade contemporânea. O grupo composto naquela tarde somava 12 participantes, das quais oito era mães (com idade entre 27 e 55 anos) e quatro participantes eram jovens (com idades de 18 a 24 anos). Todas as mulheres presentes nesse encontro se autodeclaravam negras.

Para iniciar o diálogo, as mulheres compartilharam suas realidades, dizendo que sentiam que tinham autonomia sobre suas vidas, o que significa ser mulher na sociedade atual e, principalmente, de que forma ser mulher negra impactava suas vivências, nos mais diversos aspectos: afetivo, laboral, no acesso à educação, entre outros. Enquanto a conversa fluía, essas mulheres trouxeram narrativas e questionamentos sobre como elas têm sido, historicamente, tratadas e como podem “romper” com tais estruturas. O mais importante nesse processo, como educadora popular e pesquisadora, em momento algum, era “guiar” o diálogo, mas, sim, proporcionar uma atitude de escutar, aprender e apreender com essas mulheres os “saberes de vida” tecidos naquele espaço. Um movimento circular e emergente de mulheres negras se descobrindo, se afirmando, se reinventando.

Em dado momento, uma das mais jovens que estava presente no encontro relatou sua experiência com a avó e sobre como ela tem aprendido com outras mulheres mais experientes nesses espaços, vivenciando outras realidades e aprendendo a se valorizar como mulher negra:

Jovem: “Hoje, eu valorizo meu cabelo, minha beleza, mas tem muitas manas que ainda não sabem que isso é possível. Outro dia tentei falar com uma professora sobre isso, mas não consegui. Ela era branca, né? Acho que não entendeu que é importante conversar sobre muitas coisas na sala de aula. Isso que a gente tá falando aqui, essas coisas de sexualidade, do nosso corpo. Eu vejo que minha avó ainda tem muito medo em relação a estas coisas, mas eu não quero ter”. Naquele momento algo se abriu diante de nós que estávamos ali escutando uma das mais jovens do grupo. Uma das mulheres olhando para aquela que tinha acabado de compartilhar, disse: “Nossa, muito obrigada. Minha filha tem a tua idade. Vou ficar atenta”. E ficou pensativa. Refletimos sobre o significado daquela roda e dos saberes que estávamos construindo: aprendendo e trocando naquele lócus de conhecimento. (Relato, 4 de novembro de 2019).

Esse relato nos apresenta duas questões importantes. A primeira explicita-se no processo de fala, soltar a voz, reconhecer a si no encontro com outras mulheres negras. Naquele espaço coletivo, em roda, essas mulheres negras, na medida em que falam de si, aprendem, constroem conhecimentos, fortalecem a cidadania, resistem e produzem conhecimento. O movimento de mulheres presente nesses coletivos periféricos possibilita novos rumos e agenciamentos. O segundo aspecto é compreender esses espaços como educativos, porém de uma educação não formal. Desse modo, se a escola muitas vezes não dá conta de promover esses espaços e esses debates, os movimentos sociais, nesse caso o MMN, presente também nesses coletivos e nessas organizações da sociedade civil, podem ser e são promotores de espaços educativos onde o próprio movimento é educador (GOMES, 2017).

As epistemologias tecidas nesses movimentos têm buscado valorizar os saberes das comunidades locais, as quais vêm resistindo ao processo de dominação e de opressão histórico, que majoritariamente tem valorizado os saberes e os conhecimentos produzidos a partir do ponto de vista eurocêntrico. De acordo com Gomes (2017, p. 55), “[...] a relação do Movimento Negro, educação e saberes nos convoca a trilhar um caminho epistemológico e político desafiador: a construção de um pensamento e de uma pedagogia pós-abissais”. Os saberes de vida que se expressam e se constroem em grupos de mulheres negras são portas que se abrem à reflexão de outras lógicas epistemológicas, entendidas como narrativas e trajetórias historicamente silenciadas, mas que emergem com força e possibilidade de inventos e (re)inventos necessários nos tempos atuais.

Palavra dita e compartilhada: sobre “erguer a voz” e educar-se desde a perspectiva libertadora e antirracista

A educação, neste artigo, tem sido pensada a partir da perspectiva de hooks (2019a) e Freire (2020), em diálogo com uma proposta de pedagogia emancipatória e transformadora, aberta e atenta aos feminismos que têm sido construídos na contemporaneidade. Desse modo, os saberes construídos no interior e promovidos pelos movimentos sociais, em particular o MMN e o Movimento Negro, têm tido relevância nessa discussão.

hooks (2019a, 2020), feminista negra interseccional, reivindica constantemente a teoria dentro do processo ativista e afirma que, desde a infância, se deveria aprender sobre a importância do estudo, a vida do intelecto, a busca por resistir às estratégias brancas de colonização racista. A partir de sua experiência, ela, mulher negra, aprendia que era necessária essa resistência, desde um ato contra-hegemônico. Em sua obra Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra, fica evidente o medo do pronunciamento, “[...] pois muitas vezes pessoas negras são criadas para acreditar que há muitas coisas sobre as quais não se deve falar, nem no privado, nem no público” (HOOKS, 2019a, p. 25). A pedagogia praticada por suas professoras, afirma a autora, era, sem dúvida, uma “[...] pedagogia de resistência, uma pedagogia profundamente anticolonial” (HOOKS, 2013, p. 11). Ainda que, posteriormente, quando no processo do apartheid, ela frequentou outra “escola” e descobriu outro modelo de pedagogia, marcadamente “bancária”. A autora considera que sua experiência anterior e a leitura de Paulo Freire são fundamentais no caminho de fortalecimento de sua “própria voz”.

hooks (2019a) não fala apenas dos silenciamentos pelos quais as mulheres enfrentam no cotidiano, mas, ainda, e, sobretudo, sobre as vozes que são pronunciadas. Fala do “barulho” das mulheres de sua casa e do questionamento sobre o porquê, em determinados ambientes, esse barulho deveria ser minado e silenciado.

Tendo crescido em uma família negra do sul dos Estados Unidos, de classe trabalhadora e dominada pelo pai, eu vivenciei (como aconteceu com minha mãe, minhas irmãs e meu irmão) diferentes graus de tirania patriarcal, e isso me deixou com raiva - deixou-nos todos com raiva. A raiva me fez questionar a política de dominação masculina e me permitiu resistir à socialização sexista. Frequentemente, as feministas brancas agem como se as mulheres negras não soubessem que a opressão machista existia até elas expressarem a visão feminista. Elas acreditam estar proporcionando às mulheres negras “a” análise e “o” programa de libertação. Não entendem, não conseguem sequer imaginar, que as negras, assim como outros grupos de mulheres que vivem diariamente em situações de opressão, muitas vezes adquirem uma consciência sobre a política patriarcal a partir de sua experiência de vida, da mesma forma com que desenvolvem estratégias de resistência (mesmo que não consigam resistir de forma sustentada e organizada). (HOOKS, 2015, p. 205).

Na perspectiva da educação como uma prática libertadora, o aprendizado é acessível a qualquer pessoa, ela é construída a partir da realidade e em movimento com a teoria. hooks (2013) aponta que, para além dessa educação, é necessária a construção de uma “pedagogia engajada”, e isso, explica a autora, “[...] é mais exigente que a pedagogia crítica ou feminista convencional” (HOOKS, 2013, p. 28). A pedagogia engajada enfatiza também o bem-estar, e isso significa que educadores/as e professores/as devem ter o compromisso ativo como um processo de autorrealização. A pedagogia engajada necessariamente valoriza a expressão dos/as educandos/as.

O processo de construção da própria voz, no entendimento de hooks (2019a, 2020), significa falar, se ouvir, lançando-se para dentro e para fora, fazendo perguntas, participando das conversas, discursando. E, assim, foi no contexto de comunidades negras nos Estados Unidos que hooks (2019a, p. 33) se percebeu envolta no mundo de “[...] conversas barulhentas, palavras irritadas, mulheres com línguas rápidas e afiadas”, que ela fazia seu direito à palavra e o direito à voz. A escrita foi um lugar e a maneira de capturar a fala, por isso, conta a autora, que ela “[...] escrevia os pedacinhos das conversas, fazendo confissões a diários baratos que logo caiam aos pedaços de tanto serem manuseados” (HOOKS, 2019a, p. 33). No caminho de sua escrita, ela escolheu o pseudônimo bell hooks (nome de sua bisavó) para construir sua identidade-escritora na busca de desafiar e dominar todos os impulsos que a levassem para longe da fala.

Fazer a transição do silêncio à fala é, para o oprimido, o colonizado, o explorado, e para aqueles que se levantam e luta lado a lado, um gesto de desafio que cura, que possibilita uma vida nova e um novo crescimento. Esse ato de fala, de “erguer a voz”, não é um mero gesto de palavras vazias: é uma expressão de nossa transição de objeto para sujeito - a voz liberta (HOOKS, 2019a, p. 38-39).

O entendimento de uma educação engajada e emancipadora que tem como referência o pensamento de hooks (2013) e Freire (2007) aposta na construção de uma educação humanista - antirracista, anti-homofóbica etc. - capaz de reconhecer as singularidades das pessoas e valorizá-las como sujeitos históricos e de direitos. Freire (2000) aponta que a denúncia e o anúncio são elementos nesse processo de leitura do mundo e a origem do sonho pelo qual lutamos. Assim, uma pedagogia emancipadora e libertadora traz como tarefa primordial a importância de se trabalhar a legitimidade do sonho ético-político da superação de realidades injustas.

hooks (2019a) afirma que a proposta de uma pedagogia feminista tem sido a de encontrar a voz, ou seja, o de fazer a transição do silêncio para a fala, como um gesto revolucionário. A autora enfatiza que a ideia de encontrar a voz ou ter uma voz assume primazia na fala, nos discursos, na escrita e na ação. É uma metáfora de autotransformação. Assim: “Falar é tanto uma forma de se engajar em uma autotransformação ativa quanto um rito de passagem, quando alguém deixa de ser objeto e se transforma em sujeito. Apenas como sujeitos é que nós podemos falar” (HOOKS, 2019a, p. 45).

Na perspectiva de hooks (2019a), falar como ato de resistência é bem diferente de uma conversa corriqueira, ou da confissão pessoal que não tem nenhuma relação com alcançar consciência política ou desenvolver consciência crítica. A esse processo, a autora denomina de apropriação marginal. Para a autora:

A luta por acabar com a dominação, a luta individual para se opor à colonização, deslocar-se de objeto para sujeito, expressa-se no esforço de estabelecer uma voz libertadora - aquela maneira de falar que não é mais determinada por sua posição como objeto, como ser oprimido, mas caracterizada pela oposição, pela resistência. (HOOKS, 2019a, p. 48).

Encontrar a voz é parte fundamental no processo de luta libertadora. E, certamente, essa é uma das dimensões que mais pude perceber no processo de construção desta pesquisa: mulheres encontrando sua própria voz e, na medida em que o fazem, fortalecem suas filhas, principalmente a encontrar sua própria voz. Encontrar a voz significa romper com o silêncio e, quando acabamos com o silêncio, é quando falamos com voz libertadora. hooks (2019a) afirma que nossas palavras nos conectam com qualquer pessoa que viva em silêncio e em qualquer lugar. Assim, “[...] é nossa responsabilidade, coletiva e individual, distinguir entre mera fala de autoexaltação, de exploração do exótico ‘outro’, e aquele encontro da voz que é um gesto de resistência, uma afirmação de luta” (HOOKS, 2019a, p. 55).

A palavra dita e compartilhada pelas mulheres no interior das rodas interativas ou, ainda, a educação que se constrói no interior dos movimentos de mulheres negras expressa os três eixos apresentados neste item: “erguer a voz”, educar-se e, nesse caso, a educação que se faz com a outra, e a construção de uma educação que seja libertadora e antirracista. Desse modo, quando a jovem falou de seu cabelo, ela expressou a construção de sua identidade negra e confrontou o espaço da escola como um lugar que lhe tem negado e aos outros estudantes falar de questões de sua raça, de sua cultura, de seu corpo, por isso essa jovem resiste, ergue a voz e afirma-se como sujeito político. Quando essa mesma jovem compartilha sua experiência no grupo, sua palavra dita é compartilhada; diante disso, possibilita que esse saber seja também uma construção das/para outras mulheres. Freire (1983, p. 79) afirma: “Ninguém educa ninguém, Ninguém se educa sozinho. Os Homens (e mulheres) se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Dessa maneira, nesse espaço educativo não formal, a educação construída se faz por meio do diálogo. E esse diálogo, de acordo com as ideias de como é conduzido/constituído, também nos permite a construção de uma educação antirracista. Quando a jovem falou de seu cabelo e, em seguida, quando outras mulheres do grupo discutiram sobre a beleza afro, sobre os padrões de beleza hegemônico e sobre como os corpos de meninas e de mulheres negras têm sido tratados no interior das escolas e de outros espaços, se está falando também de uma produção de conhecimento que, na medida em que é heroica, promove o fortalecimento da identidade negra.

Importante trazer essa questão, pois, no EVM, além das rodas interativas, cursos de valorização da estética negra têm sido promovidos, a saber: oficinas de turbante, penteados afros e tranças, que são alguns cursos que as mulheres participam. Participante dos cursos ofertados por essa instituição e das rodas educativas e interativas, essas mulheres em relação às outras afirmam sua estética, seu corpo e a valorização de si. Assim, nesse espaço, constroem-se educação não formal, saberes e identidade negra. Diante disso, Gomes (2020, p. 28) entende “[...] a identidade negra como um movimento que não se dá apenas a começar a olhar de dentro, do próprio negro sobre si mesmo e seu corpo, mas também na relação com o olhar do outro, do que está fora”.

Erguer a voz é, também, partilhar e compartilhar a palavra que precisa ser dita e evocada. O pronunciamento da palavra é caminho de libertação e de construção de educação antirracista. Desse modo, a identidade negra “[...] como qualquer processo identitário, ela se constrói em contato com o outro, na negociação, na troca, no conflito, no diálogo” (GOMES, 2020, p. 28).

Considerações finais

[...] e quando falamos temos medo de nossas palavras não serem ouvidas nem bem vindas mas quando estamos em silêncio ainda assim temos medo É melhor falar então lembrando sobreviver nunca foi nosso destino Audre Lorde (apudHOOKS, 2019a, p. 54)

A proposta de reflexão e de discussão neste artigo teve como objetivo refletir sobre o processo educativo e formativo das relações étnico-raciais, gênero e educação em espaços não-escolares de mulheres negras que participam das ações realizadas pelo Espaço Viva Mulher. A discussão teve como cenário o debate sobre o Movimento Negro, em especial o Movimento de Mulheres Negras como educador. Considera-se que, nesse caso, esse movimento se expressa a partir da construção, na qualidade de movimento social, que vem sendo engendrado nos espaços formativos e educativos dessa instituição.

Levando em conta o arcabouço teórico apresentado e as vivências educativas e formativas desse grupo de mulheres negras, três aspectos se destacam. Em primeiro lugar, é necessário reconhecer os “saberes de vidas”, isso significa um processo de valorização dos saberes locais. Trata-se de reconhecer as formas de viver, de conhecer e de ser de mulheres negras, suas culturas e suas histórias. Tal reconhecimento nos posiciona no questionamento acerca do modelo eurocêntrico de dominação e de exploração pautado na racionalização e na racialização dos corpos, dos saberes e dos poderes.

Em segundo, trata-se de apontar a importância de se dizer a própria palavra, de pronunciar o mundo, de erguer a voz. “Falar como ato de resistência” (HOOKS, 2019a, p. 55). Erguer a voz e encontrar a própria voz, se levantar, falar de si no encontro com a outra é parte primordial da luta libertadora. Assim, “[...] quando acabamos com nosso silêncio, quando falamos com uma voz libertadora, nossas palavras nos conectam com qualquer pessoa que viva em silêncio em qualquer lugar” (HOOKS, 2019a, p. 55). Observamos, nas rodas interativas, que, quando uma mulher se posiciona, encoraja as outras a também falar e a erguer suas vozes. Esse pronunciamento do mundo trata-se da práxis, da ação e da reflexão atuando em processo na mesma direção, de modo crítico e libertador. Para Freire (1983), existem diferentes formas de pronunciar o mundo: de um lado, as classes dominantes ao pronunciar o mundo determinam o que silencia as classes dominadas; de outro lado, o pronunciamento do mundo das classes dominadas e subalternizadas implica processos organizativos e revolucionários.

Por fim, em terceiro lugar, as rodas como espaços e estratégias metodológicas dos fazeres pedagógicos desenvolvidos com os coletivos apontam uma perspectiva de educação dialógica, que parte das experiências, das narrativas e dos saberes de mulheres negras. Esses saberes construídos coletivamente enfatizam contribuições que o Movimento Negro, em especial o Movimento de Mulheres Negras, têm trazido para a construção de uma sociedade cada vez mais inclusiva, antirracista, anti-homofóbica, em que os saberes e os valores de grupos historicamente marginalizados e discriminados possam ser garantidos e respeitados.

1Para mais informações ver: https://www.facebook.com/EVMFSA/. Acesso em: 6 jun. 2022.

2Pastoral Social são grupos articulados dentro da Igreja Católica com o objetivo de desenvolver ações junto à população mais vulnerável socialmente. No Brasil, as Pastorais Sociais nasceram na década de 1970, trazendo como questionamento as diversas situações de opressões vivenciadas por diversos grupos: mulheres, negros/as, população indígena, população sem-terra e sem moradia, dentre outros.

3Batalha é uma categoria que emerge do campo e do processo de pesquisa e estudo sobre as mobilidades, a socialização e a construção de saberes construídos por mulheres pobres inseridas em contexto de prostituição. Ela explicita de modo amplo a complexidade da prostituição, prática social atravessada e perpassada por diversas relações e categorias sociais, que nos informa no campo de estudo e investigação do tema o modo como essas mulheres especificamente significam e dão sentidos à sua prática. A batalha, portanto, expressa muito mais do que mera troca de dinheiro por serviços sexuais, é uma metáfora que expressa um modo próprio de garantir a subsistência de necessidades básicas, o agenciamento e o protagonismo de mulheres excluídas do mundo social e dos espaços políticos, que buscam a cidadania plena e lutam por garantia de direitos (SILVA, 2017).

4Utilizo o conceito “Trabalhadoras Sexuais” por ser uma categoria fortemente defendida pelo Movimento de Trabalhadoras Sexuais no Brasil. Esse movimento social, emergente no final da década de 1970 sob a liderança de Gabriela Leite e Lourdes Barreto, reivindica, desde aquele período, os direitos das mulheres que exercem a prostituição e lutam pelo reconhecimento desse exercício como trabalho sexual. Afirmar o trabalho sexual como trabalho tem sido uma pauta importante no interior do movimento de trabalhadoras sexuais/prostitutas, pois estas se reafirmam como sujeitos de sua prática e constroem sua autodeterminação.

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Recebido: 10 de Julho de 2021; Revisado: 31 de Maio de 2022; Aceito: 01 de Junho de 2022; Publicado: 11 de Junho de 2022

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