SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17Do estar à deriva ao aquilombamento: territorialidade e produção de saberes de coletivos negros da UFRJQuando a representatividade importa: reflexões sobre racismo, valorização identitária negra e Educação Básica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 20-Jan-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.19396.090 

Dossiê: Relações étnico-raciais: práticas e reflexões pedagógicas em contextos, espaços e tempos

Educação jongueira: repertório afrodiaspórico de afirmação da vida na infância

Jongueira education: afro-diasporic life-affirming repertoire in childhood

Educación jongueira: repertorio afro-diaspórico de afirmación de la vida em la infancia

Vivian Parreira da Silva* 
http://orcid.org/0000-0003-0399-6168

Tatiane Cosentino Rodrigues** 
http://orcid.org/0000-0002-4402-2805

*Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Coordenadora do Grupo de Danças e Brincadeiras Girafulô

**Professora do Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. Mestre em Ciências Sociais e doutora em Educação


Resumo

Diante do processo de desmonte, descaracterização e desinvestimento de uma política nacional de valorização da diversidade étnico-racial, este artigo tem o jongo como elemento central, a partir da experiência de uma educação jongueira, desenvolvida com uma professora e crianças de 6 e 7 anos de idade de uma turma do 2º ano do Ensino Fundamental na cidade de São Carlos, São Paulo, no segundo semestre de 2018. O jongo é mobilizado como repertório afrodiásporico que desloca centralidades epistêmicas fincadas nas bases coloniais do racismo. Afirma-se a educação jongueira como educação promotora de vida, de presença e de encantamento, que, versada no cruzo de saberes e em diálogo com a escola, dá fundamento para exercer diferentes princípios explicativos de mundo fundamentadas na pluriversalidade.

Palavras-chave: Educação jongueira; Pedagogias decoloniais; Relações étnico-raciais.

Abstract

Due to the process of dismantling, de-characterization and divestment in a national policy of valuing ethnic-racial diversity, this article has jongo as a central element, based on the experience of a jongueira education, developed with a teacher and children of six and seven years of age from a second-grade class of Elementary School in the city of São Carlos, São Paulo, Brazil, in the second semester of 2018. Jongo is mobilized as an afro-diasporic repertoire that displaces epistemic centralities set in the colonial bases of racism. The jongueira education is affirmed as an education that promotes life, presence and enchantment, which, versed in the crossing of knowledge and in dialogue with the school, gives the basis to exercise different explanatory principles of the world based on pluriversality.

Keywords: Jongueira education; Decolonial pedagogies; Ethnic-racial relations.

Resumen

Ante el proceso de desmantelamiento, descaracterización y desinversión de una política nacional de valoración de la diversidad étnico-racial, este artículo tiene al jongo como elemento central, a partir de la experiencia de una educación jongueira, desarrollada con la maestra y niños de 6 y 7 años de edad de una clase del 2o año, Escuela Primaria en la ciudad de São Carlos, São Paulo, Brasil, en el segundo semestre de 2018. El jongo es movilizado como un repertorio afro-diaspórico que desplaza centralidades epistémicas incrustadas en las bases coloniales del racismo. Se afirma la educación jongueira como una educación promotora de vida, de presencia y de encantamiento, que, versada en el cruce de saberes y en el diálogo con la escuela, da fundamentos para ejercer diferentes principios explicativos de mundo basados en la pluriversalidad.

Palabras clave: Educación jongueira; Pedagogías decoloniales; Relaciones étnico-raciales.

Vamos abrir a roda para começar a brincar1

Em janeiro de 2022, completamos um ciclo de 19 anos de mudança da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) para a obrigatoriedade2 do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação brasileira. Esse ciclo está relacionado a um quadro de mudanças na atuação do Estado brasileiro, que se consolidou, a partir da década de 1990, em relação a essa temática, incentivada pelas constantes proposições e reivindicações dos movimentos sociais por políticas públicas comprometidas com a superação da discriminação racial, especialmente a partir da mobilização do movimento negro, em sua pluralidade de atuação e organização no processo de discussão e elaboração da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). Esse compromisso aparentemente começou a consolidar-se de maneira mais propositiva com a participação do Brasil na Conferência de Durban3 e com a aprovação do Programa de Ação resultante dessa Conferência, que pautou novos desafios e compromissos à política educacional no combate ao racismo e à discriminação racial nos sistemas de ensino, ao prever a revisão dos conteúdos e dos materiais didáticos.

Em 2004, no âmbito do Ministério da Educação (MEC) foi criada a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad)4, na qual estavam reunidos temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo, educação ambiental, educação escolar indígena e diversidade étnico-racial. Essa secretaria respondeu pela execução de programas e de orientação de projetos educacionais voltados a grupos da população vítimas de discriminação e violência e tinha como um dos objetivos o processo de transversalização dessa agenda nos programas nacionais do MEC.

A Secad protagonizou um processo de institucionalização das políticas de diversidade, ainda que restritas a poucas Secretarias no MEC ou com ausência de orçamento próprio. Até 2016, tínhamos em curso um processo5 de estímulo à produção de conhecimento nessa área, produção e divulgação de materiais didáticos, de avaliação e de acompanhamento da política de implementação das mudanças curriculares, de incentivo e suporte à formação inicial e continuada nessas temáticas. Esse processo foi duramente interrompido a partir de 2016 e culminou, em 2019, com a extinção da Secadi por meio do Decreto Nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019 (BRASIL, 2019), que se constitui como um retrocesso no campo dos direitos educacionais e se revelou como uma medida na contramão do reconhecimento da diversidade, da promoção da equidade e do fortalecimento da inclusão no processo educativo. O desmonte da agenda de diversidade soma-se, assim, aos retrocessos na garantia de direitos sociais, políticos, econômicos, à reforma trabalhista, à lei da terceirização, à reforma do Ensino Médio, às intenções contidas no projeto de reforma da previdência, aos ataques ao direito à terra e ao território dos povos indígenas e quilombolas.

Diante da diminuição6 de investimentos políticos e econômicos na política educacional nacional, principalmente nas políticas de diversidade, encontramo-nos em tempos de luta, de resistência para a retomada democrática. Um processo que nada tem de burocrático, pois é eminentemente político. Isso tem nos provocado estes questionamentos diários: Como afirmar a vida em meio à desesperança? Que pedagogias precisamos fazer emergir em meio à necropolítica7?

É necessário fazer emergir as experiências sociais, culturais e políticas produzidas por grupos de resistência, compreender a constelação de saberes que é produzida nas mais diversas experiências sociais no mundo, as quais também são fonte de conhecimento. É nessa perspectiva que compreendemos o jongo a partir de seus repertórios e princípios afrodiaspóricos em um trabalho desenvolvido com crianças de 6 e 7 anos de idade e a professora responsável pela turma do 2º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública da cidade de São Carlos, estado de São Paulo (SP). O trabalho de campo foi desenvolvido com a metodologia de sistematização de experiências, que permite a troca e o compartilhamento de conhecimentos a partir da interpretação crítica da intervenção ou da prática educativa8.

O grande desafio da contemporaneidade, segundo Mbembe (2020), é compreender este mundo, atuar politicamente sobre ele, considerando a experiência histórica de populações que viveram a experiência da diáspora e da escassez, especialmente em um momento em que os desafios se configuram como planetários. São planetários porque são produto da combustão da terra, da natureza, mas essa combustão também traz consigo a combustão das relações sociais (conflitos étnicos, de classe, de religião etc.). Para o enfrentamento dessa experiência, segundo Mbembe (2020), é preciso construir saídas que considerem e recuperem as experiências históricas de enfrentamento das situações de escassez. A experiência da diáspora africana é aquela com a qual nós temos contato (porque ela segue contemporânea) e que pode nos servir de base para um enfrentamento planetário dos limites da combustão. O processo diaspórico, as diversas formas de violência, inclusive subjetiva, colocou os grupos étnico-africanos para enfrentamento de várias modalidades de subalternidade, e nós não conhecemos nenhuma formação que tenha esse repertório, como também afirma Mbembe (2020). Dessa forma, o jongo é acionado neste artigo e na pesquisa desenvolvida com as crianças como um desses importantes repertórios afrodiaspóricos de afirmação da vida, de resistência e de saberes produzidos por mestres e mestras em diferentes regiões do país, especialmente em regiões historicamente marcadas pelo processo de escravização.

O jongo: filosofia de encantamento para reafirmar presenças

O ponto cantado chama-nos para a saudação aos tambores, para a reverência àquelas e àqueles que vieram antes, que araram a terra, fundaram saberes, escavaram troncos no mundo, propondo éticas, demarcando existências e estéticas nas espirais do Tempo. Para desatar as amarras das colonialidades que ainda imperam sobre nós e exercitarmos pedagogias decoloniais que nos ajudem a problematizar as diferenças e as múltiplas existências e os saberes, tomamos como impulso o jongo que nos convoca a viver a educação como encantamento como desafio e como responsabilidade com a vida.

O jongo é cosmosensação que cria mundos. Ele lança a palavra certeira, a n’goma9 vai buscar quem mora longe, os desafios, amores, reexistências, inventividades, são vividos e revividos a todo o tempo na roda, os esforços, as lutas e as conquistas também são relembrados. No jongo, canta-se para o santo, para o orixá, para o encantado, para o mar, para a montanha, para o tambu. Lançam-se ensinamentos, recados, demandas, transcende-se o corpo de gente para virar bananeira, cobra, rio.

Dentre as características do jongo estão os enigmas e as adivinhas contidas nos seus pontos, os quais precisam ser desamarrados, ou seja, elucidados pela roda de jongueiros. Essa característica aproxima o jongo do jinongonongo que é, segundo Ladislau Batalha citado por Arthur Ramos (1954) a adivinha tradicional (Pe. Silva Maia dá como significado adivinha o termo nongongo) envolvidos na qual passam os filhos de Angola noites inteiras ao pé do lume, fumando ao ar livre nos seus cachimbos uns propondo e outros decifrando os enigmas. (LOPES, 2011, p. 188).

O jongo10 é a complexidade explicativa de mundo, que tem na palavra o sopro das sabedorias da vida, fundamento das culturas Bantu. Portanto, firmamos o ponto para apresentarmos o jongo de maneira plural, assim como ele é, amplo e diverso em suas existências. De acordo com Mestre Gil, liderança jongueira do Jongo de Piquete - SP:

O Jongo é uma dança rural de origem africana que nasce no Brasil nas senzalas das fazendas de café no sudeste. Principalmente no Vale do Paraíba Paulista e carioca depois se expandindo para sul de Minas e Espírito Santo. O jongo tem seus fundamentos pautados na ancestralidade, tambores, dança, na palavra. É ancestralidade pois deixa vivo os ensinamentos dos que já partiram, os tambores representam a presença, a luta e resistência. A dança, o envolvimento pessoal nas causas e por último a palavra que é a maior arma dos jongueiros a oralidade o argumento o diálogo, por isso que para discutir com jongueiro, mesmo os que pouco estudaram, é duro pois possuem sabedoria nas palavras cifradas (Trecho da conversa com Mestre Gil em sua casa em junho de 2018 registrada no diário de campo). (SILVA, 2020, p. 105).

As sabedorias assentadas nas palavras lançadas nas rodas são o enfrentamento e o combate ao projeto colonial de morte. Esses momentos são processos de encantamento para a afirmação da vida. Então, encantamento é intencionalidade e condição para exercermos pedagogias decoloniais. Como “[…] o encantamento é o ato de criar mundos, outros mundos em que a ampliação de nossa liberdade e do bem-viver são preponderantes” (MACHADO, 2019, p.71), então ao som dos tambores do jongo propomos esse esforço para a tarefa de exercer uma pedagogia jongueira, que valoriza e celebra as existências e as diversidades. O jongo é “[…] poesia enfeitiçada, dobra na linguagem, festa escondida no manto de São Benedito, cura do corpo, a invocação e o encarne do invisível” (RUFINO, 2017, p. 211). O jongo é força motriz que gera recriações para as reexistências.

Existir e ser reconhecido passa por reconhecer no Outro humanidade, dignidade e disponibilidade. Reconhecer no outro disponibilidade de interlocução é a base da existência, existir em diálogo com o Outro. Desse modo, as rodas de jongo são “espaçotempo” de superação do desencante na medida em que promovem diversos modos de ser e de existir. O jongo como fundamento epistemológico decolonial convoca-nos para o compromisso e para o comprometimento com a vida, é um convite ao encantamento como política de existências.

Dançamos, cantamos, brincamos, tocamos tambor, portanto existimos. Existir não apenas como materialidade, mas como presença que se funda nas histórias, nas memórias, nas reinvenções. Tudo isso é esfera de produção e de invocação da vida. As congadas, as capoeiras, os candomblés, as juremas, os batuques, os jongos são territórios de inventividade, em que nos reconfiguramos sistematicamente e nos deslocamos para outros lugares e temporalidades. As culturas da diáspora africana são experiências, maneiras complexas de diálogo com o mundo, são potências de inventividades, de histórias e de horizontes de beleza. A diáspora, como trânsito, produziu e produz questionamentos, acalentos, desafios e encantamentos, “[…] compreende uma constelação de práticas que, em composição unitária, imprime sentido de presença e origem no mundo em que vivemos” (TAVARES, 2010, p. 83).

Esse trânsito é lugar de reconstrução de sociabilidades na coletividade, na roda, na comunidade. A diáspora africana dá-se a partir e por meio da experiência da escravidão, esta que estampou a nódoa de desumanização que transcende os tempos. A escravidão roubou histórias, aniquilou mundos, corpos, sociabilidades, projeto de morte assentado na violência e na coisificação de milhares de homens e de mulheres do continente africano.

Ao disponibilizarmo-nos ao exercício de uma educação antirracista fundamentadas em pedagogias decolonais, é imprescindível, portanto, problematizarmos raça e racismo como categorias nascidas do projeto colonial que tem sua lógica sustentada em privilégios que custam vidas desde os séculos passados. Desse modo, acreditamos que

[...] não existe enfrentamento ao colonialismo e suas formas de violência sem que se mire primeiramente o substantivo racial. O que afirmo já foi dito por muitos outros que vieram antes de mim, de Fanon a Mbembe, de Senghor a Césarie: raça e racismo são a ortopedia desse sistema de dominação que nos desmantelou enquanto seres e nos remontou enquanto colonizados. (RUFINO, 2017, p. 13).

Raça e racismo são a estrutura desse projeto de dominação, pois há mais de cinco séculos vivemos uma contra-humanidade fundada no paradigma da raça e do racismo. Nesse sentido, o jongo rema na maré da vida, vai contra esse movimento de morte. O jongo reivindica a vida e promove reexistências. Enquanto “[…] a raça é uma das matérias-primas com as quais se fabrica a diferença e o excedente, isto é uma espécie de vida que pode ser desperdiçada ou dispendida sem reservas” (MBEMBE, 2018, p.73), as culturas da diáspora são caldeirões de existências.

Os jongos, as congadas, as capoeiras, os batuques, os candomblés, as juremas são fundamentos de educação humanizadora, são comprometidos com a vida, com a alegria, com a continuidade, com a criação, com as existências e reexistências. Esses fundamentos transcendem, portanto, a lei, avançam os pilares das políticas públicas, teimam e continuam vivos no terreno colonial que apregoa a morte. Essas práticas são de encante11, são de transformação, são tecnologias de guerra, de embate, de batalha. Nas rodas de jongo, as pessoas reafirmam suas presenças, suas existências, reconhecem a possibilidade de transcender mundos nos toques dos tambores, nas melodias dos versos, nas gingas, nas rodas, nas curas das ervas, nos desafios das palavras encantadas.

Assim como as rodas de jongo promovem batalhas contra o desencante, acreditamos que a educação é um campo de luta em favor da vida. Cotidianamente, em diferentes espaços e inclusive dentro dos espaços escolares, convivemos, partilhamos experiências distintas, diferentes visões de mundo, histórias, diversas escolhas e caminhos, e exercemos uma batalha comum que é a batalha pela vida, pela existência a partir da convivência e do encontro. Então, reconhecemos a educação também como tecnologia de guerra, de sobrevivência, de existência, pois acreditamos que pensar a problemática da educação implica exercermos um debate sobre a vida, já que a educação é um fundamento da própria existência.

Afirmamos isso pois sabemos que nosso drama educacional se funda também nas tramas do projeto colonial, que projeta o não ser, a negação do outro. O projeto colonial destituiu-nos de nossos valores, atacando nossos corpos, nos censurando, nos pasteurizando, nos higienizando a serviço de um modo de vida monocultural. Nesse sentido, nós, povos colonizados e racializados, vivemos sistematicamente século após século a contra-humanidade, os terrores desse empreendimento, tentam diuturnamente nos impedir, nos controlar, nos anular. Na contramão de tudo isso, caminhamos com os tambores, com as danças, com as pajelanças, embarcamos na empreitada de exercer a educação como exercício radical de vida e que ocorre nas intersubjetividades.

Acreditamos, então, que, para exercermos pedagogias decoloniais que viabilizem, promovam e fortaleçam uma educação antirracista, devemos nos orientar a partir de epistemologias e filosofias que tenham em sua centralidade valores e visões de mundo que possam nos ensinar outras perspectivas de construir, de reconhecer e de compartilhar conhecimento, e esse exercício deve transcender as políticas públicas. Essa transformação de postura não pode dar-se somente com a validação de repertórios reconhecidamente afro-brasileiros, africanos, indígenas dentro dos espaços escolares, mas, sim, a partir das mudanças das mentalidades, que passam a reconhecer e a reivindicar a presença desses saberes como fundamentos de pedagogias decoloniais e a exercer um projeto de educação antirracista.

O jongo, como processo de encante e reexistência fincado na diáspora africana, remonta, portanto, aspectos de sociabilidades, perpetua a memória cultural, garante a sobrevivência dos grupos e confronta o projeto colonial, na medida em que é inventividade e potência de vida. Então, esta escrita alicerça-se nas epistemologias de encante e de ressignificações, e, com elas, experimentamos e buscamos diferentes caminhos na construção de conhecimentos que vislumbrem diversas possibilidades de vivermos a educação como projeto antirracista e comprometido com a vida.

Se temos uma infinidade de experiências vividas, certamente também teremos uma diversidade de possibilidades de educação, pois “[…] uma educação que não recorre à sabedoria assente na diversidade e nas possibilidades existentes nos cotidianos padece de imobilidade e se torna escrava do tacanhismo” (SIMAS; RUFINO, 2019, p. 27).

Vivemos e compreendemos o jongo como espaço diaspórico de reconstrução e de inventividade, de atitude que se contrapõe à morte, de imanência e transcendência, como lugar de memória e de trajetória, como anunciação de possibilidades. É, por conseguinte, filosofia africana que se concretiza no acontecimento, na experimentação da vida no corpo, no encante das palavras, na amarração dos versos. Nessa filosofia das brechas, os jongueiros e as jongueiras, mestres e mestras das palavras enfeitiçadas, da linguagem cifrada e enigmática, promovem vida e nos ensinam as dinâmicas da diversidade, da integração e da ancestralidade.

Podemos dizer que o jongo é uma filosofia de libertação, pois ele é a recriação de mundos, é a reconstrução e a reexistência do corpo, ele é a semiótica do encantamento. Nesse sentido, é uma filosofia de existência, um movimento de construção de corpo, uma autopoiéses do corpo negro12. Nas intersubjetividades e nos caminhos cruzados, as sabedorias assentes nas culturas africanas socializam sensibilidades e criam repertório de comunicações não verbais que transgridem a lógica colonial.

Vivendo o jongo, aprendemos que o fortalecimento dos caminhos que buscamos depende de ampliarmos nossos olhares, nossas buscas, nosso chão. É preciso reconhecermos nas rodas que convocam a todos e a todas sem exceção para vivermos pedagogias decoloniais que se assentam nos abraços, nos versos, nos toques dos tambores, nas pelejas, nas lutas e nas conquistas de povos que aprendem e ensinam dançando, cantando, tocando nas rodas. Desse modo, queremos aqui mais uma vez reafirmar nosso desejo, apesar de algumas inseguranças e obstáculos, de nos colocarmos à disposição para vivenciarmos estas e tantas outras epistemologias que se sustentam e reexistem há séculos sob a violência do racismo e de todas as mazelas que dele decorrem. Então, nosso esforço é para que, partilhando estas escritas, possamos, juntas e juntos, nos encorajar para remarmos nosso barco em águas que nos desafiam, que nos põem a prova, que nos colocam à deriva sem certezas ou receitas, mas nos promovem experiências que vividas e partilhadas, nos fortalecem e nos abrem caminhos para continuarmos a exercitar pedagogias decoloniais.

Pesquisa com crianças: o jogo e a inventividade para percorrer os caminhos

A pesquisa13 foi realizada na Escola Estadual Péricles Soares, localizada na Vila Morumbi, bairro periférico da cidade São Carlos. É uma escola de Ensino Fundamental I, com cerca de 472 estudantes matriculados, segundo o Censo Escolar de 201714. A escola responde à Diretoria de Ensino da cidade de São Carlos e está inserida no projeto de educação do governo do estado de São Paulo. A escola atende a crianças do bairro onde está inserida e dos bairros como Jardim Gonzaga, Cruzeiro do Sul e da Zona Rural. O prédio conta com quadra coberta, refeitório, laboratório de informática e Internet banda larga. A intervenção foi realizada durante os meses de agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2018. Nos planejamentos com as crianças e com a professora, conseguimos nos organizar para que os encontros pudessem ocorrer às segundas e às quartas-feiras. Geralmente, os encontros duraram duas horas.

Durante o processo de pesquisa com as crianças, foi preciso revermos os caminhos. As perguntas prontas, o roteiro pré-traçado tiveram de dar lugar ao desafio da construção coletiva. Já nos primeiros dias na escola, nos momentos de encontros e aproximação para conhecer as crianças e apresentar a pesquisa, foi possível perceber que os laços de confiança precisavam ser construídos com ações, mãos dadas, olhos nos olhos, presença, no jogo, na roda, no verso. Afirmamos isso porque, às vezes, as explicações fundamentadas apenas no campo racional, cheias de palavras que caracterizam nossos desejos e objetivos não são suficientes.

Compreendemos que, para pesquisar com crianças, é preciso nos permitir esquecer do que já sabemos, nos desvencilhar de certezas e nos colocarmos junto a elas com coragem e inteireza. As crianças convidam-nos para um passeio em nós mesmas, somos chamadas a nos olharmos, a nos rever. Esse passeio desloca a nossa lógica adultocêntrica15, nos desafia, nos amedronta, nos afasta das perguntas e das respostas prontas. Esse passeio convida-nos a sermos e estarmos junto a elas sem roteiro para o jogo da vida.

Então, a partir desses desafios, para que o processo de pesquisa ganhasse os contornos do cotidiano com as crianças, em conversa com a professora da turma e com as próprias crianças, criamos uma “caixinha de perguntas”. Esta foi criada para que pudéssemos partilhar curiosidades a todo momento, já que as crianças faziam as perguntas também durante os dias em que não havia atividade de jongo. Dessa maneira, construímos um laço de confiança no tempo em que estávamos juntas.

Cheguei na escola, subi entrei na sala e aí ouvi da Curió16 em tom de desagrado: ah, hoje você trouxe caderno e não trouxe tambor [...]. Oi, Curió, sim hoje trouxe caderno, mas o tambor está aqui na mochila, depois vamos tocar! Curió: oba!! Tem perguntas na caixinha? A turma toda respondeu: sim!!!!! E eu disse: que ótimo!! Então levarei para minha casa, vou responder e trago na quarta-feira. Ouvi um NÃO bem alto de todas as crianças, você pode responder agora, aqui. A professora me entregou a caixinha que estava cheia de perguntas [...] sentamos em roda e vamos lá. Que frio na barriga. (DC, 10 de set. 2018). (SILVA, 2020, p. 184, grifo da autora).

A experiência de pegar a caixinha de perguntas e, junto às crianças, poder dialogar, partilhar as experiências sobre o jongo, ali, olho no olho, foi desafiadora. Esse fato colaborou para reforçarmos o aprendizado e a importância de estarmos inteiras com as crianças. A cada pergunta lida o grupo todo interagia. Isso viabilizou um processo coletivo de aprendizagem a partir das dúvidas e das curiosidades das crianças. As perguntas feitas pelas crianças colaboraram para que pudéssemos compreender o que, para elas, era importante nessas experiências de aprender e ensinar o jongo. É importante ressaltarmos que o candomblé, o jongo, a congada, o cacuriá, as práticas afrodiaspóricas nos ensinam também sobre a importância da presença, da inteireza, da entrega para o jogo, para a roda.

No contexto dessa experiência, aprendemos o olhar miúdo, atento, profundo, aprendemos a escuta, a ouvir com atenção, aprendemos sobre singeleza e assertividade. Nossos olhares, por vezes acostumados com as manias de grandeza, nos impedem de perceber as miudezas que podem nos levar a diversos caminhos. Um ponto de jongo da comunidade Jongo Dito Ribeiro17 nos ensina: tem de ter jongueiro novo olelê pois o jongo não pode acabar, cada jongueiro novo que nasce olêlê é o sol pronto para raiar. Para o povo Bantu,

[...] em particular, a chegada de uma criança na comunidade é o nascer de um novo e único “sol vivo”. É de responsabilidade da comunidade como um todo e do Ndezi, em particular, ajudar esse “sol vivo” a brilhar e crescer em seu estágio inicial. Kindezi, a arte de cuidar de crianças, é uma arte antiga entre os africanos, em geral, e os Bântu, em particular. É basicamente a arte de tocar, cuidar e proteger a vida da criança e do ambiente, Kinzungidila, em que o desenvolvimento multidimensional da criança ocorre. A palavra Kindezi, um termo da língua “Kikôngo”, deriva do verbo raíz Ieia, que significa desfrutar de tomar e dar cuidados especiais. A filosofia que está na raiz da arte de Kindezi argumenta que para que os seres humanos compreendam a criança, o adulto, a comunidade e a totalidade da vida humana, é necessário que entremos no mundo das crianças, porque os seres humanos que são adultos são meramente as imagens crescidas do que eram quando crianças. (FU-KIAU; LUKONDO-WAMBA, 2017, p. 13).

Nas filosofias Bantu, a criança é a centralidade da comunidade. O bem-estar da comunidade depende também do bem estar das crianças desde seu nascimento. Então, aprendendo desde as rodas de jongo, os valores de educação fundados nas culturas africanas, compreendemos que as crianças são a ampliação das gramáticas e dos horizontes. Essa ampliação é imprescindível quando nos colocamos em luta por uma educação como encante. Os ensinamentos de miudeza e singeleza são fundamentais para o desenvolvimento, o fortalecimento e o aprendizado de todos que buscam exercitar uma educação em favor da vida.

Vivemos em um mundo em que somos assombrados pelos paradigmas de grandeza. Assim, desencantados pelos efeitos dessa obsessão não aprendemos os segredos que encarnam no miúdo. Para contrariar essa lógica haveremos de nos apequenar negando os pressupostos arrogantes de determinadas formas de ser e saber que se julgam grandes. (RUFINO, 2016, n.p.).

Caputo (2018), em seus estudos com crianças de terreiro, apresenta-nos a criança como fundamento vital para a compreensão da sociedade e amplia: as crianças colaboram com a desestabilização das lógicas coloniais. Trilhar os caminhos de pesquisa com as crianças é uma valiosa oportunidade para que possamos propor projetos de educação que superem o desencante, pois as crianças são protagonistas na construção de saberes dentro e fora dos espaços escolares.

As perguntas das crianças abrem caminhos, e caminhos abertos promovem mudanças. Não temos respostas para todas as questões; pelo contrário, buscamos a dúvida como motricidade para a inventividade, para a criação que motive as reexistências. Aprendemos nas rodas de jongo com as crianças na escola, que a cisma, a dúvida, o desafio, a pergunta se tornam mais importantes do que as respostas, pois as perguntas nos colocam em movimento. Das brechas, do miúdo, as crianças ampliam nossos horizontes, mostram-nos que, para pesquisar com elas, devemos nos colocar à disposição da vida, das experiências compartilhadas, das perguntas que exigem respostas olho no olho. Nada de ir para a casa pensar o script. Assim como na roda de jongo, palavra lançada não se volta atrás.

Aprendemos que o afeto e a reciprocidade se constroem no convívio, em uma relação fundada na ética do comprometimento e da nossa responsabilidade com o mundo. Aprendemos que, para praticar uma educação humanizadora, é preciso abandonar o roteiro e inventar caminhos fundados em outras perspectivas. De todo modo, o novo papel assumido pelas crianças nas pesquisas se constrói a partir da compreensão das crianças como sujeitos com o direito a expressarem suas opiniões (ONU, 1989 apudALDERSON, 2005) e como sujeitos que participam da construção social, afetando e sendo afetadas pela sociedade (CORSARO, 2011; QVORTRUP, 2005). Trata-se de um movimento que busca resgatar as crianças do silêncio e da exclusão, tal como destaca Alderson (2005, p. 263): “[…] reconhecer as crianças como sujeitos em vez de objetos de investigação acarreta aceitar que elas podem ‘falar’ em seu próprio direito, relatar opiniões e experiências válidas”.

Alderson (2005, p. 423) destaca, ainda, que “[…] envolver todas as crianças, mais diretamente nas pesquisas pode resgatá-las do silêncio e da exclusão, e do fato de serem representadas, implicitamente, como objetos passivos [...]”. Christensen e James (2005, p. 19) afirmam, ademais, que “[…] somente ao ouvir e escutar o que as crianças dizem e ao tomar atenção à forma como comunicam é que se fará progresso nas pesquisas com crianças, mais do que, simplesmente sobre as crianças”.

O levantamento realizado por Rocha (1999), com foco nas pesquisas brasileiras, indica que poucas eram as pesquisas que tinham as crianças como protagonistas, predominando pesquisas sobre crianças em detrimento de pesquisas com crianças. Esse quadro, contudo, vem se alterando, e, aos poucos, as pesquisas com crianças vêm ganhando espaço na produção brasileira. Livros tais como Infância em perspectiva (MULLER, 2010), A criança fala (CRUZ, 2008) e Infância (in)visível (VASCONCELLOS; SARMENTO, 2007) apresentam uma coletânea de artigos de pesquisadores brasileiros e de outros contextos que discorrem sobre experiências ou discutem a importância de pesquisas que considerem as crianças como sujeitos, atores sociais, protagonistas das pesquisas.

O aumento do número de pesquisas com crianças também é reconhecido por Alan Prout. O autor afirma que “[...] já há um corpo crescente de pesquisas que sugere que a participação de crianças na tomada real de decisões na escola e em seus bairros tem muitos resultados positivos” (PROUT, 2010, p. 34), mas que “[…] ainda temos muito o que aprender sobre formas de permitir que as crianças falem por si próprias e de sua maneira” (PROUT, 2010, p. 35).

Hoje você trouxe o caderno e não trouxe o tambor

A experiência de dialogarmos com crianças de 6 e 7 anos de idade para compreender como os processos educativos vivenciados na intervenção de jongo realizada em uma escola da cidade de São Carlos contribuem para o exercício de uma educação antirracista, o que nos convidou a entrar na roda desafiando medos, abandonando certezas e roteiros. A oportunidade de realizarmos a pesquisa com crianças nos colocou em novas águas que nos desafiaram e nos encantaram, na medida em que o encantamento nos permite e colabora para driblarmos a colonialidade. As rodas de jongo convidam-nos a mergulharmos nas incertezas, nas dúvidas, nas poesias, nos afetos, nas trocas, nas contradições colocadas à prova a todo o momento e questionam o projeto colonial de morte e inexistências.

Com as crianças nas rodas de jongo na escola, aprendemos a partir de diferentes perspectivas como podemos partilhar saberes, experiências e criarmos coletivamente processos metodológicos que nos permitam vivenciar a roda como fundamento ético e estético para uma educação antirracista. Como dissemos, a roda convida todo mundo, sem exceção, para a brincadeira, para o desafio, para a partilha da vida. É esse convite sem exceções que remonta o fundamento da coletividade, da comensalidade, das diferenças, do jogo, das potencialidades, dos limites, da inventividade, não só no jongo, mas também nos xirês, nas rodas de capoeira, nas rodas de coco, nos batuques, nos torés. A possibilidade das múltiplas presenças, da convivência, da pluriversalidade, da confluência desafiam e colocam em xeque o projeto colonial da individualidade.

Juntos, na escola, aprendemos a dançar, a tocar tambor, ouvimos as histórias dos mestres e das mestras jongueiras, compartilhamos conhecimentos com o Mestre Lumumba e com o Mestre Gil. Mestre Gil é liderança jongueira da Comunidade Jongo de Piquete. Educador, músico e atua como professor da Rede Municipal de Educação da cidade de Piquete-SP. Mestre Gil realiza, em sua casa, todo o ano, no segundo sábado de junho, o terço em louvor a Santo Antônio, tradição da família liderada por suas tias e avós e por sua mãe. Hoje, ele garante a continuidade dessa tradição. Nesse dia, mestre Gil e sua família recebem, em seu quintal, pessoas e grupos de muitos lugares do país. Mestre Lumumba, como é conhecido, é o nome escolhido por Benedito Luis Amauro. Mestre Lumumba, filho do orixá Ogum, poeta, compositor, músico, militante cultural há mais de 40 anos, diretor artístico, Oni’Ylu (construtor de tambores) e Alabe, grande conhecedor das histórias de jongos e congadas de São Luiz do Paraitinga. Em 1987, junto a Yalorixá Nadya Santana, fundaram a Comunidade Cultural Religiosa de Matriz Africana Ilê Asè Omò Ayé.

Quando iniciamos nossas vivências na escola, as crianças e a professora responsável pela turma acolheram a prática em seu cotidiano. O jongo aninhou-se, ganhou lugar no convívio da turma. Mestre Gil e Mestre Lumumba foram também nossos parceiros de pesquisa. Compartilhávamos por meio de vídeos nossas vivências, ouvíamos toques e cantos enviados por eles. Durante os encontros na escola, pudemos dialogar e aprender também sobre o que é ser um Mestre.

Após a presença do Mestre Lumumba na escola, as crianças falaram um pouco sobre as conversas que puderam ter com ele, e relembraram o que ele disse sobre o jongo ter ensinado muitas coisas para ele, a ser amigo, a respeitar, a reconhecer as histórias dos negros, a ensinar os brancos a respeitarem. As crianças disseram:

Eu perguntei se brancos e negros podem fazer jongo juntos ele disse: sim pode fazer juntos, mas quem são os mestres sou eu e Beija-flor (Quero-quero e Beija-flor são duas crianças negras de pele retinta). Depois de responder, ele pegou o tambor e foi tocar na roda. (DC, 10 dez. 2018). (SILVA, 2020, p. 170).

Observamos nessa fala a potência de pertencer, de reconhecer-se no mestre como referência de saber, de liderança, de pertencimento. Mestre Lumumba, homem negro, constrói saberes com os tambores, lidera, ensina, toca, conta histórias, desloca o que o modelo eurocentrado impõe como quem detém o saber. Essa passagem reitera a importância de, na luta em busca de uma educação antirracista, revermos nossas referências de educação, de sabedorias, de beleza, de existência.

A interação das crianças com o jongo deu-se de maneira rápida por meio da receptividade delas em conhecer a nova brincadeira. Reconhecermos a importância e a relevância das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras é condição primeira para que possamos romper com o racismo estrutural que se revela também nos convívios com as crianças. Portanto, conhecermos e compartilharmos essas práticas culturais, entrarmos em contato, relacionarmo-nos com os saberes assentados na corporeidade, na ancestralidade, na vida em comunidade, nos ajuda a continuar na construção de caminhos para vivenciarmos uma educação plural.

Viver a educação como encante exige que nos encantemos uns com os outros como exercício de alteridade (OLIVEIRA, 2007). O encantamento vivenciado nas rodas de jongo viabiliza a socialização da sensibilidade; eu sinto, eu brinco, eu compartilho, eu aprendo e ensino na roda com as pessoas. Na escola, o encantamento experimentado nas vivências de jongo proporcionou a construção de sabedorias que, ao contrário do conhecimento como experiência individualizada, são de coletividade, de roda, de compartilhamento, pois “[…] a sabedoria nunca é mesquinha e não se aninha em si mesma. Ela é uma sensibilidade socializada” (OLIVEIRA, 2007, p. 110).

A roda de jongo convoca a todos e todas cada qual com suas experiências e conhecimentos a partilharem a vivência, o ponto cantado, os toques, a dança, o jogo, a brincadeira. Esse convite coloca no centro as alegrias, as disputas, os conflitos, as partilhas, os limites, as potencialidades, as contradições. Quando nos disponibilizamos a viver a roda, exercitamos uma pedagogia decolonial na medida em que, na roda, cabem todos e todas, a roda é uma atitude diante da vida, é enfrentamento aos projetos de individualização e de segregação.

O conhecimento individualizado e cristalizado não colabora para a realização da roda de jongo, ou da capoeira, por exemplo, pois, ao aprendermos um ponto, um movimento, um toque, iremos compartilhá-lo na roda com as pessoas com as quais nos disponibilizamos a jogar, a dançar, a brincar. Desse modo, a nossa existência concretiza-se na existência do outro, e vice-versa, ou seja, existimos no compartilhamento de vidas e experiências em comunidade. Dessa maneira, os saberes refazem-se e fortalecem-se a cada encontro, pois a partilha não diminui o saber; pelo contrário, ela possibilita a continuidade. Para que o jongo assim como outras práticas culturais afrodiaspóricas se realizem é imprescindível diferentes saberes e experiências, as que cantam, as que tocam, as que dançam e colaboram com a cantoria, as que fazem a comida, as que já fazem morada na ancestralidade, as que assistem e reafirmam suas presenças mesmo sem estar no centro da roda, as crianças que ensinam adultos e vice-versa, os rios, as pedras, os bichos que são reverenciados e lembrados a cada jongo.

Então, o conhecimento, como experiência individualizada, fechado em si mesmo, não colabora para o crescimento da comunidade, do coletivo. Os saberes da diáspora africana são fundados no compartilhamento, pois são também espaços de reestruturação dos laços de sociabilidades quebrados pelo processo de escravização. As culturas diaspóricas geralmente promovem o encontro na roda, na comensalidade, na interação, no jogo, na ginga, nos desafios das palavras enfeitiçadas, na brincadeira, na colaboração e no compartilhamento das experiências.

Compartilhar os saberes faz com que eles permaneçam vivos. Vivenciar, aprender, ensinar, dialogar são exercícios de vitalização e dinamização dos saberes. A dinamização da força vital, o axé, não se realiza individualmente, é um exercício coletivo. A partir da vivência, do comprometimento e da ética, as sabedorias são atualizadas, compartilhadas e relacionadas, caso contrário podem ser perder na poeira da memória (OLIVEIRA, 2007). De acordo com as crianças: “O jongo é música é brincadeira, é dança, é palma, e calma é alegria…é um montão de coisas especiais…você aprende quando você percebe que você guardou as coisas do jongo na lembrança, ai você já sabe e pode ensinar o jongo (DC, 10 de dez. 2018)” (SILVA, 2020, p. 147); “[…] quando a gente ensina a gente aprende, aí fica mais fácil ensinar” (DC, 22 de ago. 2018)” (SILVA, 2020, p. 147).

Lembrar para saber que aprendeu e assim poder ensinar. As crianças mostram-nos que, ao contrário do projeto colonial que prega o esquecimento, aqui estamos caminhando com as lembranças. Quando percebemos que vivemos os ensinamentos na lembrança, podemos dizer que os saberes estão seguros e vivos para serem compartilhados e construirmos mundos, histórias e conhecimentos. A não perpetuação do esquecimento, o avivamento das lembranças e das memórias reivindicam e promovem a vida. O jongo, como uma semiótica do encantamento, como caminho, trajetória reinventora de mundos, tem na lembrança e na presença o combate ao esquecimento.

As culturas da diáspora apresentam-nos possibilidades de reencante, de reexistir, de reviver, de reestruturar pertenças, ritos, comunidades, práticas, viabilizam sermos mais, pois nos educamos em diálogo uns com os outros em comunhão com o mundo (FREIRE, 2008). Quando ensinamos, aprendemos e, então, reavivamos os saberes, reafirmamos o comprometimento, colocamo-nos no mundo em disponibilidade e em interlocução com o Outro, fortalecendo o fio e tecendo as tramas dos saberes compartilhados, das soluções e das possibilidades.

Durante as vivências na escola, a turma do 2º ano A sugeriu realizar uma vivência com a turma do 2º ano B. A proposta foi colocada por algumas crianças, pois elas gostariam de ensinar o jongo para mais pessoas. Então, em diálogo com as professoras responsáveis pelas turmas e em acordo de data, a vivência foi marcada. A turma do 2º ano A fez um roteiro, destacando o que deveria ser apresentado no dia do encontro com o 2º ano B. Essa experiência foi interessante, aprendemos com as crianças do 2º ano A sobre como ensinar o jongo, e aprendemos com as crianças do 2º ano B como foi aprender o jongo. Essa partilha de saberes e experiências viabilizou o fortalecimento de vínculos e a confiança entre nós que participamos da atividade. As crianças organizaram-se e juntas promoveram uma roda de jongo. Nesse encontro realizado na e com a roda, vivenciamos uma prática pedagógica decolonial e antirracista já que a roda convida a todos e todas, sem exceção, para a experimentação. O compartilhar das sensibilidades, a divulgação de outros saberes, ensinar e aprender o jongo é encantar e encantar-se em uma relação dialógica com o Outro. Poder conhecer e experimentar é o primeiro passo para o caminho de encantamento, é a ética desde o corpo.

O encantamento reside na mágica de poder brincar, tocar o tambor, cantar, aprender música, saber sobre a existência do jongo. Para além de tudo o que o jongo é e representa, seus elementos são puro encantamento em uma sala de aula: os tambores, a roda, a dança, as palmas, o canto, a brincadeira. Considerando que educar pode ser um processo de sensibilização e encantamento, o jongo é pedagogia e filosofia alicerçada na alegria, na festa, nas diversidades, na luta, na reinvenção dos processos educativos presentes em todas as práticas sociais.

Muniz Sodré, em sua obra Pensar Nagô, apresenta-nos o conceito de alacridade, que, de acordo com o autor, é condição de existência, fundamento ético e estético central das filosofias da diáspora. A alegria/alacridade é o que estrutura, sustenta a vida e viabiliza a continuidade, o reconhecimento do agora, das existências, das relações interpessoais, o afeto, o poder de realização e a alegria frente à realidade. Tudo isso é o que possibilita as existências do jongo e de várias outras práticas dentro dos sistemas regidos pelos projetos coloniais que apregoam a morte e as inexistências. Então, a alegria vivida como fundamento de existência não se resume a um fim, um desejo a perder-se de vista, é um movimento intencionalmente praticado, uma atitude diante da vida e com o mundo, “a alacridade é algo paradoxalmente sério” (SODRÉ, 2017, p 148). Para o autor: “No âmago de uma filosofia de diáspora, como o pensamento nagô, a alacridade entendida como ponto de existência é uma regência afetiva que propicia essa margem dentro de um contexto social marcado há séculos pela continuidade das políticas de servidão” (SODRÉ, 2017, p. 23).

Consideramos a condução, a gerência afetiva como condição para o encantamento, para o exercício de uma educação como encante que enraizada em pedagogias decoloniais promove práticas educativas antirracistas. Desse modo, o encontro das turmas do 2º ano A e do 2º ano B na roda de jongo realizada pelas próprias crianças nos sinaliza caminhos potentes para afirmarmos a vida em meio à desesperança e nos desafia e chama com coragem ao exercício do afeto como fundamento pedagógico em meio à necropolítica.

O projeto de mundo colonial trabalha a favor da assimilação e do reforço de estereótipos e da desumanização. E nós remamos na maré da vida e do encante, portanto ocupamos outros lugares de existências. Se a educação é um processo contínuo de sensibilização e encantamento,

[…] como poderei ser racista ou admitir o racismo se vejo no Outro a dignidade do mistério que nos unifica? Como poderei ser sexista, se o Outro estabelece comigo uma relação de alteridade que em si mesma é ética? O combate ao racismo, ao sexismo, à xenofobia não é uma questão apenas de conhecimento; não se resolve apenas com projetos ou programas estabelecidos pela razão instrumental. É preciso sensibilidade para resolver qualquer questão de atitude. (OLIVEIRA, 2007, p. 260).

Então, a educação antirracista passa necessariamente pela sensibilidade, pelo afeto e pela alteridade. O conhecimento vivido, as experiências compartilhadas podem ser grandes chaves de mudança. Como postula Oliveira (2007), para superar as mazelas coloniais, devemos ir além dos projetos estabelecidos pela razão instrumental.

A escola está dentro dessa lógica, mas, ao mesmo tempo, se mostra como lugar de afeto, de generosidade, de carinho, de confiança e de solidariedade. Foi possível percebermos isso em diferentes momentos das vivências, ao perguntarmos para as crianças o que mais gostavam na escola. Algumas diziam das brincadeiras, dos encontros com os amigos, do abraço da professora, do carinho dela. Em uma das conversas com a professora responsável pela turma, ela mostrou o poema feito por duas crianças especialmente para ela: “Professora […] você é colorida, tem cor de flor de céu, cor de amor, de tristeza de uma laranjinha, de amarelo pra virar vagalume de mar, de vermelho um pouquinho quando você fica brava, você é cor de anel bonito, você é arco-íris […]. (DC, 27 set. 2018)” (SILVA, 2020, p. 188, grifo da autora).

O convívio amoroso em afeto e reciprocidade colabora para viabilizarmos processos educativos fundados no respeito, na dialogicidade, no reconhecimento das diferenças como potências. Nas comunidades jongueiras, congadeiras, nas comunidades de terreiro, ensinar e aprender acontecem no convívio, em um espaço recíproco de respeito e de compreensão. A educação é vivida, compartilhada e experimentada no afeto, no abraço, na confiança. Isso não significa que esses processos educativos vivenciados nos terreiros, por exemplo, não compreendam também momentos de tensão, de não acordos, de medos, de inseguranças; pelo contrário, eles existem e são vivenciados e resolvidos com base nos fundamentos e no respeito a cada pessoa que compõe a comunidade, tendo o diálogo e o cuidado como pontos cruciais para o convívio. Confiar e reconhecer no outro possibilidades de interação como transformação, além de fortalecer os vínculos e as parcerias, se mostram como ações potentes para a pesquisa com crianças na temática de educação das relações étnico-raciais.

Cuidar uns dos outros, ensinamento valioso nas práticas educativas, sobretudo nas que buscam outras epistemologias fundadas na diáspora africana, que promovem a dobra na linguagem, exploram as possibilidades de se reinventarem (RUFINO, 2019). Se alguém na comunidade não está bem, então a comunidade não está bem, não está saudável; e, se a comunidade não está saudável, não podemos estar bem. A compreensão de comunidade a partir das cosmosensações africanas traz, em sua centralidade, a relação orgânica entre os membros: a comunidade existe em cada um e cada um existe na comunidade. Essa concepção é observada no provérbio “eu sou porque nós somos, e uma vez que são, por isso eu sou” (TEDLA, 1995, p. 37).

Vamos caminhar que o mundo gira18

Concluímos este artigo retomando um questionamento inicial e um chamado por repertórios que possam inspirar a afirmação da vida. Reconhecemos a educação jongueira como possibilidade de vivenciarmos e compartilharmos ensinamentos construídos em comunidade. Nas lutas para a construção de práticas educativas para a diversidade, ainda observamos experiências que se fundem apenas na crítica da escola e das professoras e dos professores, sem proposições para se construir coletivamente trabalhos que sejam transformadores. Esse cuidado de uns com os outros deve ser exercitado também na comunidade escolar, pois só é possível dar afeto e acolhimento se eu sei o que é e se recebo afeto e acolhimento.

Outro ponto importante relacionado ao cuidado reside em aprendermos a ouvir, visto que a escuta justa se alicerça em bases epistemológicas do afeto, que consideram todas as falas. O ponto cantado que nos convidou inicialmente a essa trama de palavras é cantado e lançado a todos e todas que estão na roda. Todos e todas, inclusive as crianças, devem poder ouvir e poder cantar, lançar suas palavras, convidar ao diálogo, ao desafio assentado nas poesias que circundam as nossas realidades, sejam elas belas ou tomadas pelas dores e distopias de nosso tempo.

A presença das crianças nas diferentes práticas culturais afrodiaspóricas garante não só a continuidade da tradição, mas nos garante também oportunidades para aprendermos com as crianças jongueiras, capoeiristas, candomblecistas. Tecermos diálogos e construirmos espaços de aprendizagem com as crianças desde seus universos culturais também é caminho para exercitarmos uma educação em favor da vida. Passos (2004), em seu estudo sobre a presença das crianças no jongo, chama-nos atenção para a importância de reconhecermos o protagonismo das crianças no jongo e em outras práticas culturais. De acordo com a autora:

Penso que seja urgente construir estudos que busquem compreender o lugar da criança em diferentes universos culturais. Olhar para as formas de inserção das crianças nas práticas culturais, compreender os modos pelos quais elas se apropriam dessas práticas, estudar as fabricações de pertenças das crianças nos diferentes universos culturais. (PASSOS, 2004, p. 246).

Assim sendo, acreditamos que saber ouvir, construir espaços que promovam interações que valorizem as experiências de todas as pessoas, inclusive das crianças, pode colaborar para construirmos ações que promovam projetos de educação que não necessariamente implicam responder a tudo ou a construir certezas partindo apenas da razão, mas implicam incertezas e dúvidas e, sobretudo, se interessam por elas, pois são forças motrizes para a construção de saberes. Simas e Rufino (2019, p. 49) nos presenteiam com a pergunta e em seguida apresentam arremate: “Afinal o que somos? Em um mundo orientado pela lógica da produtividade, acúmulo, competição e individualismo, assistimos, pouco a pouco, o nosso tempo ser alterado e vamos nos perdendo da nossa condição de ser criança”. Para colaborar com os pensamentos de Simas e Rufino, Ailton Krenak diz:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover. (KRENAK, 2019, p. 13).

Podemos aprender, então, com as crianças para não nos perdermos na nossa condição de existir, para não perdermos o prazer de estarmos vivas/os. Combatamos as ausências em nome das presenças. Com as crianças, nas rodas, vivemos o agora, espaço e tempo de experimentarmos a vida, pois nós também temos o compromisso ancestral de sermos pequenas constelações de “gentes” que, dos nossos lugares, brincamos e fazemos chover. Concordamos com Simas e Rufino (2019, p. 23) que temos “[…] a obrigação em termos ancestrais, de despachar as obsessões cartesianas”. Despachados os carregos e carranquices, devemos seguir em encantamento. Todas as dimensões mágicas de aprender e de ensinar nos impulsionam a uma prática educativa reivindicadora de presenças. Nos tambores, nas rodas, nos rios, nas montanhas, nos xirês, nas poesias, nas brincadeiras, nos versos encantados e cantados na escola ou no terreiro, estamos em processo de encantamento em diálogo uns com os outros, já que, assim como educar, encantar é um exercício de alteridade.

Vale ressaltarmos que o carrego e as carranquices fazem morada na necropolítica que menospreza a vida, se afirmam nos desmontes e nos retrocessos, promovem a fome, as desigualdades; portanto, ao colocarmo-nos na tarefa de exercitarmos pedagogias decoloniais, nosso compromisso com a vida deve ser o guia de nossas ações. Devemos honrar e reconhecer as epistemologias que, ao contrário dos carregos, reivindicam as existências, como é o caso do jongo, que é impulso e inspiração para ampliarmos olhares e reconhecermos que as rodas produzem saberes, ações, reconhecimentos e oportunidades que desestabilizam a opressão, desafiam a escassez, promovem outras lógicas, outros caminhos, outros jeitos.

Não nos interessa saber um milhão de coisas, mas, sim, podermos mergulhar em uma coisa que tem um milhão de sentidos, como, por exemplo, os tambores. Cada tambor é um universo, uma complexidade, cada um apresenta infinitas possibilidades sonoras, cada um é um universo de possibilidades e singularidades. É desse modo que compreendemos a importância dos saberes jongueiros para exercitarmos pedagogias decoloniais e uma educação antirracista. Interessa-nos dialogar com os mestres e as mestras, com os tambores desde as rodas, permitir-nos ampliar o olhar e reconhecer os saberes jongueiros dentro de suas complexidades, como saberes fundamentais para superarmos a desesperança.

A educação jongueira como educação promotora de vida, de presença e de encantamento, que versada no cruzo de saberes e em diálogo com a escola nos dá fundamento para exercermos diferentes princípios explicativos de mundo fundamentadas na pluriversalidade de saberes. Acreditamos que a educação, como práxis recriadora, pode colaborar com os caminhos de reconhecimento e valorização das práticas culturais de matrizes africanas como criadoras, mantenedoras e regeneradoras de saberes.

Bergo (2010), em seus estudos sobre umbanda e infância, afirma que,

[…] revelando formas específicas de lidar com as crianças e evidenciando processos de ensino-aprendizagem que operam em outras lógicas que não as da escola, os terreiros de umbanda sinalizam a existência de diferentes modos de socializar e transmitir conhecimentos. Nesse tipo de contexto, o princípio epistemológico do aprender está na participação numa prática cultural, na qual existe um conhecimento, um saber-fazer incorporado. Assim, se o que estrutura os processos educativos não escolares não são regimentos pedagógicos prévia e externamente estabelecidos, cabe perguntar de onde vem a organização dessa aprendizagem. (BERGO, 2010, p. 81).

Nessas outras lógicas em que diversos saberes operam, existem processos de ensino e de aprendizagem que acontecem que estão para além de um projeto pedagógico ou teórico-metodológico; são saberes que, como a própria autora diz, é um saber-fazer incorporado, que acontece na vivência, na prática, nas intersubjetividades e não apenas no discurso. As dimensões dos processos educativos existentes na umbanda, no jongo, na congada, e em tantos outros contextos que reexistem a partir de outras lógicas, são de comprometimento com a vida em todos os seus sentidos e possibilidades, entre o mundo visível e o invisível, entre o dito e o não dito.

Então, sentimos que, para exercitar a educação jongueira, não é necessário ser jongueiro ou jongueira, mas, sim, estar comprometido ou comprometida com a vida, com um fazer pedagógico que não coloque em dúvida a nossa humanização. Seguimos em busca de um fazer pedagógico pluriversal e que reconheça e respeite a vida em todas as suas dimensões e diversidades. A educação jongueira é um marco dos valores civilizatórios afro-brasileiros; logo, para além de saber tocar e cantar é importante que saibamos evocar a vida, promover existências e reconhecer a nossa pluriversalidade.

A partir dessas compreensões, acreditamos na prática de um projeto pedagógico antirracista e em favor da vida. As bases que alicerçam nossas ações pedagógicas estão no cruzo dos saberes jongueiros com os saberes escolares. Essa proposição inspira-se na roda, como pedagogia de vida, compartilhamento, comensalidade e convívio. Portanto, movidas pelos saberes assentes nas miudezas, seguimos nossa função de praticar o encantamento para propormos uma educação antirracista, justa, dialógica, libertadora que humaniza e reinventa as existências. Na ética de comprometimento com a vida, com as presenças, com as existências, com a alegria, com os tambores, reconhecemos e reafirmamos os saberes jongueiros como experiências sociais, culturais e políticas fundamentais para compreendermos as mais diversas experiências sociais no mundo, as quais também são fontes de conhecimentos imprescindíveis para a sustentação de ações que visam uma educação antirracista.

1 Trecho do ponto de jongo criado na escola com as crianças participantes da pesquisa que inspira este artigo.

2 A Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a LDBEN “[...] para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências” (BRASIL, 2003, p. 1). Em 2008, a Lei Nº 11.645, de 10 março, alterou a LDBEN “[...] para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008, p. 1).

3 A Conferência de Durban é como ficou conhecida a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) contra o racismo e o ódio aos estrangeiros. Foi a primeira conferência patrocinada pela ONU e que se realizou entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001 na cidade de Durban, na África do Sul.

4 Em maio de 2011, via decreto, acrescentou-se o eixo “inclusão” à Secad, introduzindo, em seu leque de ações, as atribuições antes alocadas na Secretaria de Educação Especial (Seesp). Assim, a Secad tornou-se Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi).

5A análise desse processo é detalhada em Rodrigues (2011).

6Os investimentos do MEC em 2019 e 2020 foram os menores, ao menos, desde 2010, situação que tem maior impacto no Ensino Superior, no Ensino Profissional e, também, na Educação Básica (SALDAÑA, 2021).

7A necropolítica é a política da morte adaptada pelo Estado. Ela não é um episódio, não é um fenômeno que foge a uma regra. Ela é a regra. Mbembe (2017) elabora esse conceito à luz do estado de exceção, do estado de terror, do terrorismo e assim o define: “[…] propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de ‘mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’. O ensaio também esboçou algumas das topografias reprimidas de crueldade (fazenda e colônia, em particular) e sugeriu que, sob o necropoder, as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem” (MBEMBE, 2017, p. 146).

8A pesquisa completa pode ser consultada em Silva (2020).

9Conjunto de tambores ou tambus do jongo, a N’goma pode ser formada por dois ou três tambores.

10É importante dizermos que, em 2005, o jongo foi inserido no Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial como patrimônio cultural brasileiro. Essa salvaguarda fez com que o jongo dançado, cantado, versado nos terreiros e nos quintais passasse a compor os registros oficiais da cultura brasileira. Esse registro de salvaguarda viabiliza a garantia de direitos culturais por meio de políticas públicas, destinadas à manutenção e à preservação do patrimônio imaterial brasileiro. Esse registro configura-se como vitória para as comunidades jongueiras no sentido de acessarem direitos, políticas públicas e juridicamente estarem respaldadas para praticá-lo nos espaços públicos, fazendo com que seja amplamente conhecido e reconhecido.

11Exercício de responsabilidade para a manutenção da nossa centelha de vida, de presença e de luta contra colonial. Compreendemos e vivemos o encantamento, o encante como fundamento das pedagogias decoloniais, o reafirmamos então como prática de alteridade e de atitude diante da vida contra os desmantelos, os desmontes e os genocídios praticados em nome da colonialidade.

12A autopoiésis do corpo negro em Filosofia da Ancestralidade, de Oliveira (2007).

13A pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no dia 3 de julho de 2018, com o Parecer número 2.752.225 e com o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) da professora, dos responsáveis pelas crianças e com a autorização de pesquisa da escola e o termo das crianças.

14Disponível em: https://censobasico.inep.gov.br/censobasico/#/. Acesso em: 20 ago. 2022.

15Neste caso, o termo “adultocêntrico” aproxima-se do termo “etnocentrismo”. Uma visão de mundo é tomada como central e os outros são compreendidos segundo os valores pautados pelo grupo que se vê enquanto centralidade. Nesse caso, o modelo central é o adulto e tudo passa a ser visto e sentido segundo sua óptica, o adulto é o centro (NUNES, 2017).

16A turma do segundo ano A, com a qual foi realizada a pesquisa, era composta por 24 crianças, sendo 11 meninas e 13 meninos com idades entre 6 e 7 anos. Devido ao sigilo apontado nos TCLEs, os nomes das crianças foram substituídos por nomes de pássaros. Nunes (2017), em sua pesquisa na escola Malê Debalê, traça uma longa discussão sobre a angústia de apresentar ou não os nomes das crianças colaboradoras, considerando os caminhos metodológicos e as crianças como protagonistas e participantes da pesquisa. Por um lado, não apresentar no texto os nomes reais das crianças não significa retirar delas a potência e o protagonismo na construção dos conhecimentos apresentados na tese; por outro lado, colocar os nomes reais delas não garante reconhecimento e respeito incondicional às suas opiniões. A ética na pesquisa com crianças está, também, no campo dos debates históricos sobre pesquisas com seres humanos (NUNES, 2017).

17Sob a liderança de Alessandra Ribeiro, neta de Benedito Ribeiro, a Comunidade Jongo Dito Ribeiro é um grupo de pessoas que vive a cultura do jongo por meio da memória de Benedito Ribeiro. Nascido no ano de 1905, em Minas Gerais, em 1932, foi para a cidade de Campinas/SP, onde manteve a tradição recebida de seus pais, realizando rodas de jongo quando reunia os amigos. Hoje, a comunidade jongueira é referência cultural e de resistência na cidade de Campinas e região. Promovem oficinas e cursos com enfoque na cultura negra, sobretudo no jongo. Tem sua sede na fazenda Roseira.

18Trecho de ponto de jongo cantado por diferentes comunidades jongueiras nos momentos de despedidas.

Referências

ALDERSON, P. Crianças como investigadoras: os efeitos dos direitos de participação na metodologia de investigação. In: CHRISTENSEN, P.; JAMES, A. (org.). Investigação com crianças: perspectivas e práticas. Porto: Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, 2005. p. 261-280. [ Links ]

BERGO, R. S. Eu sou Muzenza”: o terreiro de umbanda como contexto de aprendizagem na prática. Paidéia, Belo Horizonte, ano 7, n. 8, p. 81-101 jan./jun. 2010. [ Links ]

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. [ Links ]

BRASIL. Decreto Nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019. Aprova a Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Ministério da Educação, remaneja cargos em comissão e funções de confiança e transforma cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores e Funções Comissionadas do Poder Executivo. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 1-B, p. 6-20, 2 jan. 2019. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 8, p. 1, 10 jan. 2003. [ Links ]

BRASIL. Lei Nº 11.645, de 10 março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 48, p. 1, 11 mar. 2008. [ Links ]

CAPUTO, S. G. Reparar miúdo narrar Kékeré: notas sobre nossa fotoetnopoética com crianças de terreiros. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 19, n. 53, p. 36-63, abr./jun. 2018. DOI: https://doi.org/10.12957/teias.2018.34443Links ]

CHRISTENSEN, P.; JAMES, A. (org.). Investigação com crianças, perspectivas e práticas. Porto: Escola Superior de Educação Paula Frassinetti, 2005. [ Links ]

CORSARO, W. Sociologia da infância. 2. ed. Tradução de Lia Gabriele R. Reis. Porto Alegre: Artmed, 2011. [ Links ]

CRUZ, S. H. V. (org.). A criança fala. A escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. [ Links ]

FU-KIAU, K. K. B.; LUKONDO-WAMBA, A. M. Kindezi: a arte do Kongo de cuidar de Crianças. Tradução de Mo Maiê. 2017. E-book. Disponível em: http://terreirodegriots.blogspot.com/2017/09/kindezi-arte-kongo-de-cuidar-de.html. Acesso em: 20 maio 2021. [ Links ]

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. [ Links ]

LOPES, N. Bantos, malês e identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. [ Links ]

MACHADO, A. F. Filosofia africana: ética de cuidado e de pertencimento ou uma poética de encantamento. Problemata, João Pessoa, v. 10. n. 2, p. 56-75, 2019. [ Links ]

MBEMBE, A. Políticas da inimizade. Tradução de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017. [ Links ]

MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: nº 1 edições, 2018. [ Links ]

MBEMBE, A. Brutalisme. Paris: Éditions La Découvert, 2020. [ Links ]

MULLER, F. Infância em perspectiva: políticas, pesquisas e instituições. São Paulo: Cortez, 2010. [ Links ]

NUNES, M. D. F. Mandingas da infância: as culturas das crianças pequenas na escola municipal Malê Debalê, em Salvador (BA). 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. [ Links ]

OLIVEIRA, E. D. Filosofia da ancestralidade: corpo e mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Gráfica Popular, 2007. [ Links ]

PASSOS, M. C. Tem criança na roda: um estudo etnográfico sobre a infância na prática cultural do jongo. Revista Pedagógica, Chapecó, v. 6, n. 13, p. 219-250, jul./dez. 2004. DOI: https://doi.org/10.22196/rp.v6i13.4205Links ]

PROUT, A. Reconsiderando a nova Sociologia da Infância. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 40, n. 141, p. 729-750, set./dez. 2010. DOI: https://doi.org/10.1590/S0100-15742010000300004Links ]

QVORTRUP, J. Macro-análise da infância. In: CHRISTENSEN, P.; ALLISON, J. (org.). Investigação com crianças: perspectivas e práticas. Porto: Paula Frassinetti, 2005. p. 73-96. [ Links ]

ROCHA, E. A. C. A pesquisa em Educação Infantil no Brasil: trajetória recente e perspectiva de consolidação de uma pedagogia da educação infantil. 1999. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999. [ Links ]

RODRIGUES, T. C. A ascensão da diversidade nas políticas educacionais contemporâneas. 2011. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2011. [ Links ]

RUFINO, L. Exu e a pedagogia das encruzilhadas. 2017. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. [ Links ]

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. [ Links ]

RUFINO, L. Performances afro-diaspóricas e decolonialidade: o sabre corporal a partir de Exu e suas encruzilhadas. Antropolítica - Revista Contemporânea de Antropologia, Niterói, n. 40, p. 54-80, 2016. DOI: https://doi.org/10.22409/antropolitica2016.1i40.a41797Links ]

SALDAÑA, P. Sob Bolsonaro, gasto do MEC com investimentos é o menor desde 2010. Folha de São Paulo, Brasília, 14 fev. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/02/sob-bolsonaro-gasto-do-mec-com-investimentos-e-o-menor-desde-2015.shtml. Acesso em: 29 ago. 2022. [ Links ]

SILVA, V. P. da. Jongo na escola: contribuições para e na educação das relações étnico-raciais. 2020. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2020. [ Links ]

SIMAS, L. A.; RUFINO, L. Flecha no tempo. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. [ Links ]

SODRÉ, M. Pensar nagô. Petrópolis: Vozes, 2017. [ Links ]

TAVARES, J. C. de. Diáspora africana: a experiência negra de interleculturalidade. Cadernos Penesb, Rio de Janeiro, n. 10, p. 77-86, jan. 2008/jun. 2010. [ Links ]

TEDLA, E. Sankofa, african thought and education. New York: Peter Lang, 1995. [ Links ]

VASCONCELLOS, V.; SARMENTO, M. Infância (in)visível. Araraquara: Junqueira & Marin Editores, 2007. [ Links ]

Recebido: 10 de Agosto de 2021; Revisado: 23 de Agosto de 2022; Aceito: 26 de Agosto de 2022; Publicado: 09 de Setembro de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.