Introdução
É a estrutura epistêmica ocidental aquela a fundar as universidades brasileiras e alicerçá-las a partir de práticas epistemicidas aos saberes dos povos nativos e dos africanos escravizados. Tais práticas reforçam, como defende Nascimento (2019), o projeto político genocida que atinge a sociedade brasileira e, particularmente, nossas universidades.
A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é uma das mais importantes universidades federais do país. Ela conta com 176 cursos de Graduação presencial e a distância, distribuídos nos diversos Centros na cidade do Rio de Janeiro, no campus Macaé (RJ), Caxias/Xerém (RJ) e Consórcio Cederj. Dados no site da instituição de junho de 2021 dão conta de que ela atende a 53.500 estudantes de Graduação e a 15.700 estudantes de Pós-Graduação (UFRJ, 2022).
Paixão (2016, p. 16) nos lembra a resistência da UFRJ em aderir às cotas, vindo a tornar-se a “[...] capital das articulações antiação afirmativa em todo o país”. A adesão da UFRJ deu-se, progressivamente, apenas em 2010 via o Sistema de Seleção Unificada/Exame Nacional do Ensino Médio SiSU/Enem e do estabelecimento do corte de renda e racial para o vestibular por intermédio da Lei Nº 12.711, de 29 agosto de 2012 (BRASIL, 2012).
Transcorrido o estágio inicial de implementação das ações afirmativas e diante das discussões relativas à revisão da lei de cotas, devemos refletir sobre como a presença de negros/as vêm se relacionando com a estrutura universitária e em que medida influenciam na transformação das práticas sociais de ensinar e de aprender. Gomes (2017) sustenta que o movimento negro têm sido o principal educador coletivo das relações étnico-raciais no Brasil, construindo outras pedagogias a partir de saberes forjados na luta. Neste artigo, recorte de uma tese de Doutorado1, buscamos apresentar quais são e como atuam os coletivos que permitem o movimento negro de ator político tornar-se também um educador coletivo das relações étnico-raciais na UFRJ.
Sustentamos que negros/as, sujeitos produzidos como Outros a partir de inúmeros processos de desenraizamentos, tal qual sugere Arroyo (2018), iniciam sua vivência universitária precisando superar a condição de estar à deriva. Esses sujeitos carregam em seus corpos - talvez o bem mais perene que possuem -, em demasia, as marcas das territorialidades pretas, faveladas, periféricas, suburbanas nos modos de sociabilidade, de expressão de suas individualidades e de relação com o cotidiano. E porque expressam essa territorialidade - recorrentemente estigmatizadas ou vivenciadas como desvio no local da UFRJ - não conseguem (re)territorializar-se dentro da universidade.
São os coletivos negros que possibilitam a esses indivíduos a superação dessa condição de deriva. É o surgimento do coletivo negro como um aquilombamento, como nos propõe Nascimento (2019), e, disso, fazer emergir concomitantemente um lugar, como nos diz Santos (2001, 2006), que vimos se tornarem possíveis a esses sujeitos acessar novas formas relacionais de ser e de usar o espaço-tempo acadêmico, de se conectar/viver com e para as finalidades de uma outra ciência e uma outra forma-função da aprendizagem, enfim, de (re)existir na e por meio da UFRJ.
Na teoria miltoniana, o lugar é marcado pela convivência conflitiva entre o local e o global, de caráter abstrato, mas também de essência única, o lugar é sempre o espaço do acontecer solidário (SANTOS, 2001, 2006). É o surgimento do lugar adjetivado como da negritude, tal qual sugere Munanga (2009), que possibilita a esses indivíduos expressarem e re-contextualizarem seus modos privilegiados de ser e de usar o território. Está ali, nos cruzos do lugar, a transformação de ator político a movimento negro educador que vimos acontecer na UFRJ. É porque se experimenta o lugar e a territorialidade negra como esse novo tempo-espaço universitário de existência que se habilita uma plataforma, uma matriz formadora, sob a qual o movimento negro assenta e dá fundamento às suas estratégias-pedagógicas e às suas práticas educativas.
Assim, apresentamos, neste artigo, por meio de suas logomarcas e de suas ações, esses coletivos negros e observamos como constituem a territorialidade negra na UFRJ. Examinamos o surgimento desses grupos, suas reivindicações e algumas de suas intervenções educativas, especialmente a dos coletivos estudantis negros atuantes nas Graduações da Saúde, recorte inicial da pesquisa. Ademais, demonstramos em que medida os saberes identitários, os saberes políticos e os saberes estético-corpóreos do movimento negro educador, presentes em Gomes (2017), também podem ser exemplificados na experiência desses lugares da negritude.
Os coletivos negros na UFRJ
Em 2010, a população negra do estado do Rio de Janeiro representava 51,69% dos habitantes do Estado, conforme aponta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2011). Segundo levantamento sobre desigualdades por cor ou raça, no Brasil (IBGE, 2018), negros/as passaram a representar 50,3% do corpo discente nas universidades públicas e, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, temos que 56,20% da população brasileira é negra (IBGE, 2019).
Na UFRJ, os dados disponibilizados pelo Núcleo de Pesquisa Institucional mais recentes são de 2016 e, neles, tem-se que 38,25% dos estudantes de Graduação eram pretos e pardos, número bem superior aos 22,04% identificados no levantamento anterior de 2012. Segundo dados do Censo do Ensino Superior referentes aos anos de 2013 e 2016, disponíveis em boletim da Associação de Docentes da UFRJ - AdUFRJ (2017), a UFRJ possuía apenas 2% de docentes pretos e 8% de docentes pardos, tendo um altíssimo número de não respostas (70%) em relação à cor ou à raça. Em relação aos técnicos administrativos, não foram localizadas fontes de dados e nem estimativas em relação ao percentual de negros/as.
A ausência de informações sobre a presença negra é um forte indicador das limitações ainda existentes em relação à questão. Uma das reivindicações desses coletivos passa pela produção de mais e melhores dados que possam subsidiar tanto a reflexão como também o estabelecimento de políticas que enfrentem a exclusão de negros/as das universidades. É por meio da ação organizada e coletiva que esses sujeitos negros respondem a essa situação de exclusão, transformando dor, solidão e revolta em afirmação pela construção de laços de solidariedade entre as vítimas, como lembra Munanga (2009). São os encontros, no plural, que permitem a esses sujeitos sentirem que a “UFRJ pode ser sua”.
É a possibilidade de se ver em um lugar que habilita o reencontro potente com suas identidades socioculturais e as formas privilegiadas de existência e uso do território, permitindo ao sujeito negro re-territorializar. Em outras palavras, desde uma inserção a partir da expressão de uma territorialidade que lhe é segura e familiar, tornar-se um ser presente, existente, capaz de aterrar-se e abrir-se para outras possibilidades e territorialidades no local da UFRJ. Esses coletivos demonstram em suas ações estarem, então, empenhados em rememorar, criar e manter uma identidade coletiva positiva para negros/as na UFRJ e o fazem buscando o reconhecimento de si e de seus/suas irmãos/as; o pertencimento a partir da assunção de um lugar coletivo; a socialização, a compreensão e o aprendizado racializado sobre os modos operandi que constituem a formação socioespacial específica da universidade e os desafios que ela os incita. Nesse desafio, cabe destacarmos como surgiram esses coletivos que atuam em diferentes espaços e com diferentes inserções.
Câmara de Políticas Raciais
A UFRJ instituiu a Comissão de Heteroidentificação Racial em 2017. Seu objetivo é garantir o cumprimento da Lei de Cotas Nº 12.990, de 9 de junho de 2014 (BRASIL, 2014), e da Portaria Normativa Nº 4, de 6 de abril de 2018, que dá as diretrizes para o trabalho das bancas de heteroidentificação na aferição de veracidade da autodeclaração racial de candidatos/as aprovados/as nos concursos públicos (BRASIL, 2018). A UFRJ iniciou a banca de avaliação entre aprovados na condição de servidor em 2017 e para os aprovados no vestibular, apenas, em 2020.
Essa comissão foi constituída de forma plural, considerando aspectos geracionais, de identidade de gênero, identificação étnico-racial, orientação sexual e representatividade entre categorias e campis da UFRJ. A participação ativa dos servidores técnico-administrativos, em especial de destacadas servidoras atuantes também no movimento negro carioca, criou um cenário propício para que junto à Pró-Reitoria de Pessoal (PR-4) se reconhecesse a necessidade de implementar um curso de formação na temática étnico-racial com o objetivo de subsidiar e alinhavar a atuação dos/as membros/as na comissão.
Iniciado em 2018, o Curso de Capacitação para as Comissões de Heteroidentificação: Fundamentos conceituais e contextualização da luta negra no Brasil é organizado pela Câmara de Políticas Raciais e está em sua quarta edição (2021). As duas primeiras edições do curso (2018-2019) foram oferecidas a partir de uma parceria entre a PR-4 e a PR-5 (Pró-Reitoria de Pessoal e a de Extensão). A partir de sua terceira edição até a edição atual, o curso passou a ser uma pareceria entre a PR-4 e a PR-1 (Pró-Reitoria de Pessoal e a de Graduação).
O curso trata de temas como diáspora africana, racismo estrutural, institucional, genocídio, branquitude, colorismo, entre outros. Suas aulas são ministradas por professores e ativistas do movimento negro das mais diversas áreas do saber. Ele tem possibilitado um rico processo educativo no âmbito das relações étnico-raciais entre os participantes ao longo das edições. O resultado foi de muito amadurecimento e novos desafios para a própria comissão de heteroidentificação.
Fruto desse processo de trabalho encampado pela comissão, surgiu, então, a Câmara de Políticas Raciais em 2018 (Figura 1), consolidada por meio da Portaria Nº 2.271, de 20 de março de 2019, vinculada ao Fórum Permanente de Políticas de Pessoal (SINTUFRJ, 2021).
A Câmara fez-se necessária, pois não se tratava só de “[...] avançar com a discussão de cotas raciais nas universidades, mas de promover debates e encaminhamentos sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira, que obviamente se reflete nas relações no interior da Universidade” (BATISTA et al., 2018, p. 1). Assim, a Câmara objetiva:
Analisar, debater, propor e construir práticas em defesa dos direitos humanos, em consonância com as políticas antirracistas e de ações afirmativas, desestimulando situações de preconceito e discriminação racial, está vinculada ao Fórum Permanente de Políticas de Pessoal e representa um passo importante para o avanço das políticas institucionais antirracistas. (BATISTA et al., 2018, p. 1, grifos nossos).
A Câmara passou a ampliar a articulação com grupos pré-existentes, como a Comissão de Direitos Humanos e Combate às Violências, a Ouvidoria da UFRJ e as diferentes secretarias e grupos de trabalho da questão étnico racial no SINTUFRJ, na AdUFRJ e no Diretório Central dos Estudantes (DCE). A câmara atua na Comissão de Apuração de Fraudes para o ingresso por meio das cotas existente desde 2019 e apoiou a formação de uma Comissão de Coletivos Negros da UFRJ. Essa construção coletiva culminou na elaboração da Resolução No 24, aprovada pelo Conselho Universitário em 26 de novembro de 2020, que versa sobre cancelamento de matrícula para os que fraudarem a autodeclaração racial depois de muita mobilização dos coletivos estudantis (UFRJ, 2020b).
Comissão de Coletivos Negros da UFRJ
Coletivos de estudantes negros vêm sendo fundados na UFRJ desde 2014. Essa dinâmica foi intensificada em 2016 quando a UFRJ foi sede do primeiro Encontro Nacional de Coletivos Negros Universitários (ECUNN). Em 2019, marco de uma efervescência da discussão étnico-racial na universidade, nosso mapeamento identificou 21 coletivos atuantes no período compreendido de 2014-2019, conforme apresentados no Quadro 1.
Nome | Curso | Ano de fundação |
---|---|---|
Coletivo Negro Carolina de Jesus | Geral | 2014 |
Coletivo Pretaló | Alojamento | 2014 |
Coletivo Negro Claudia Silva Ferreira | Direito | 2015 |
Coletivo NegreX | Medicina | 2015 |
Coletivo Negro Ebí | Biologia | 2015 |
Conbena-Coletivo Negro Beatriz Nascimento | História | 2016 |
Coletivo Negro Marlene Cunha | Museu Nacional (Pós-Graduação em Antropologia) |
2016 |
Coletivo Negro Mary Seacole | Enfermagem | 2017 |
Coletivo Preto Virgínia Bicudo | Psicologia | 2017 |
Coletivo Negro Dandara dos Palmares | Biblioteconomia | 2017 |
Coletivo Negro Almirante João Cândido | Defesa e Gestão Estratégica Internacional | 2017 |
Coletivo Negro Tereza de Benguela | Relações Internacionais | 2018 |
Coletivo Conceição Evaristo | Letras | 2018 |
Coletivo de Negras e Negros do Serviço Social - Dona Ivone Lara | Serviço Social | 2018 |
Coletivo de Negras e Negros do Programa de Pós-Graduação em Comunicação | Programa de Pós-Graduação em Comunicação | 2018 |
Coletivo Negro Guerreiro Ramos | Pós-Graduação em Antropologia e Sociologia | 2018 |
Coletivo Negro da Geografia | Geografia | 2019 |
Coletivo Negro Pedagogia | Pedagogia | 2019 |
Coletivo Negro Economia | Economia | 2019 |
Coletivo Negro Bafros | Comunicação | 2019 |
Coletivo Negro de Terapia Ocupacional | Terapia Ocupacional | 2019 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Em 2019, esses coletivos se uniram compondo uma Comissão para amplificar suas vozes e exigir espaços de interlocução com a instituição (Figura 2).
Então, ao final da gestão da reitoria de Roberto Leher (2015-2019), se estabeleceu via Pró-Reitoria de Políticas Estudantis a Portaria Nº 6.301, de 27 de junho de 2019, que formalizou a “Comissão de Coletivos Negros Discentes da UFRJ” (UFRJ, 2019) no arranjo e nos propósitos apresentados na Figura 3.
Entre as intervenções educativas antirracistas protagonizadas pelos coletivos negros, temos uma série de atividades e de debates espalhados pelos cursos. Entre as atividades conjuntas que realizaram no período da pesquisa, destacamos: A leitura de duas cartas no Conselho Universitário - Consuni (agosto de 2019 e julho de 2020); a mesa “10 Anos de Invisibilidade da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra” durante a Semana de Integração Acadêmica (SIAC), em 2019; a realização do I Festival Político Cultural Coletividades Negras com 12 atividades (2019); e a promoção de atividades raciais nos eventos do “I Festival do Conhecimento da UFRJ” (2020); e presença na atividade “Lugar de Escuta: a questão racial nos 100 anos da UFRJ” realizado durante as comemorações do centenário da instituição (2020).
Coletivo de Docentes Negras/os
Após intensas movimentações antirracistas protagonizadas pelos servidores técnicos e discentes, as/os docentes negras/os passaram também a se mobilizar e a criar, em novembro de 2020, seu coletivo. O surgimento deu-se em um contexto de importantes debates no Consuni. Estes culminaram na Resolução Nº 15, de 10 de novembro de 2020, que estabelece as normas para concurso da carreira do magistério superior da UFRJ (UFRJ, 2020a).
A Resolução Nº 15/2020 vem ao encontro da reivindicação pelo estabelecimento de critérios internos explícitos para a organização de editais de concurso para docentes. A ausência desse critério tem sido responsável pela sub-implementação de cotas raciais nos concursos sob a justificativa do total de vagas abertas por edital ser inferior ao necessário para se abrir vagas reservadas às ações afirmativas. A Resolução busca corrigir o problema estabelecendo um novo critério de proporcionalidade e alternatividade entre unidades e departamentos para distribuição das vagas de ação afirmativa.
O coletivo de docentes negras/os surge com o objetivo de construir conjuntamente proposições concretas para fazer frente a expressões do racimo na Universidade e servir de suporte mútuo, como foi explicitado no lançamento de sua logomarca (Figura 4).
Em março de 2021, apresentaram à Reitora da UFRJ, a Professora Denise Pires de Carvalho, o Manifesto do Coletivo de Docentes Negras/os da UFRJ por políticas antirracistas na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entre as dez propostas de ações e de políticas antirracistas presentes no documento, destacamos a primeira:
[...] a criação de uma Comissão de Acompanhamento e Desenvolvimento de Políticas Antirracistas da UFRJ, vinculada ao gabinete da reitora, de modo colegiado e participativo, com representações deste Coletivo de Docentes Negras/os da UFRJ, da Câmara de Políticas Raciais e da Comissão de Coletivos Negros discentes. A Comissão de Acompanhamento e Desenvolvimento de Políticas Antirracistas da UFRJ deve estabelecer metas a serem adotadas pela universidade, com prazo definido, para corrigir as disparidades raciais que ainda existam em nossas políticas institucionais de ensino, de pesquisa, de extensão e de inovação. (UFRJ, 2021, p. 3).
Coletivo NegreX de Estudantes e Médicos Negrxs
Na UFRJ, o Coletivo NegreX (Figura 5), de base nacional, foi fundado em 2017. Uma de suas principais intervenções educativas é a promoção, desde o primeiro semestre de 2017, dos Seminários Longitudinais de Saúde da População Negra, no qual são ministradas autonomamente oficinas em parceria com os docentes do eixo de Medicina de Família e Comunidade e discussões sobre a Saúde da População Negra.
As oficinas são oferecidas por estudantes do coletivo de diferentes períodos da Graduação para estudantes de Medicina que cursam as disciplinas de Assistência Integral à Saúde (3º período), Psicologia Médica (6º período) e Internato integrado de Medicina de Família e Comunidade e Saúde Mental (9º período). Uma oficina é realizada em cada um desses períodos com conteúdos programáticos e dinâmicas diferenciadas entre si. As oficinas buscam dialogar com os conteúdos da disciplina e com os desafios específicos do que significaria uma prática clínica com olhar racializado no contexto daquele período de formação. O sucesso dessa oficina fez ela ser replicada na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) no primeiro semestre de 2019 (informação verbal)2.
O grupo estadual do NegreX no Rio de Janeiro envolveu-se na produção do documentário Anamnese (2017), do diretor Clementino Junior, que retrata a trajetória dos estudantes negros/as nos cursos de Medicina. Tempos depois, foi a vez do curta M8: Quando a morte socorre a vida (2020), de Jeferson De, contar a história do personagem Maurício, um jovem preto e pobre, filho de uma enfermeira que vai estudar Medicina em uma universidade federal.
O filme de Jeferson De foi gravado na UFRJ e, durante o Seminário Desigualdades na Educação: Desafios para a educação em Ciências e Saúde do Nutes, foi organizada uma sessão de estreia seguida de debate com a presença de integrantes do elenco e uma ativista do NegreX. Na ocasião, o diretor enfatizou a importância do coletivo:
Uma das coisas que eu guardo com muito carinho e que vou me lembrar sempre é de que eu conheci o Coletivo NegreX durante o período do filme e, basicamente, no finalzinho [...]. Esse filme é do NegreX. Então, façam bom uso dele. Esse filme é do NegreX! Eu devo isso, sem saber, ao NegreX! (informação verbal)3.
Coletivo Preto Virgínia Leone Bicudo
Virgínia Leone Bicudo foi uma mulher negra, professora, socióloga, primeira psicanalista não médica e uma das responsáveis pela institucionalização da psicanálise no Brasil. Fundou o Grupo Psicanalítico de São Paulo no ano de 1944 e se tornou docente de higiene mental na Universidade de São Paulo (USP).
Foi acusada de exercício ilegal da medicina em decorrência de sua atuação clínica e prática de publicação de textos de psicanálise em jornais. Sua dissertação Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, de 1945, reforçou a centralidade da raça como categoria social fundamental, se contrapondo as abordagens biologistas e eugênicas do racismo científico, conforme a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade - SBMFC (2022).
O Coletivo Preto Virgínia Leone Bicudo (Figura 6) surgiu em 2017 como uma estratégia de acolhimento para estudantes negras/os e meio de organizar a resposta a práticas racistas e discriminatórias no Instituto de Psicologia (informação verbal)4.
Entre as muitas intervenções educativas, desde 2018, o Coletivo organiza e ministra de forma autônoma e autogestionada uma disciplina optativa para estudantes negros/as intitulada “Tópicos Especiais em Psicologia e Relações Étnico-Raciais”. No ano de 2020, foi criado o “Clube de Leitura e Cinema dos Bicudos” de maneira remota e o Coletivo estive na linha de frente da organização da “I Jornada de Psicologia e Relações Raciais da UFRJ”.
Coletivo Negro de Enfermagem Mary Seacole
Mary Jane Seacole nasceu na Jamaica e sua mãe, uma negra nativa e livre, desde cedo, ensinava técnicas terapêuticas alternativas à filha. Seacole, ainda moça, já prestava assistência aos adoecidos pelo Cólera e Febre Amarela em seu país e em outros países caribenhos. Foi para Londres na juventude com a expectativa de aprimorar seus estudos em Enfermagem.
Em Londres, Mary Jane Seacole tentou se alistar para compor a equipe de enfermeiras que prestaria cuidado aos soldados ingleses na Guerra da Crimeia (1853-1856); no entanto, a lendária enfermeira Florence Nightingale vetou aquela negra em sua equipe. Insubordinando-se, Seacole foi por conta própria para o front de batalha. Tornou-se a primeira enfermeira negra graduada na American School of Nursing, exercendo o cuidado de enfermagem de forma profissional e regulamentada (FONSECA, 2020)
O Coletivo (Figura 7) foi fundado em 2017, na UFRJ, para “[...] enaltecer os negros acadêmicos, para mostrar a beleza escondida em cada sorriso amedrontado por entrar em uma Faculdade onde sua grande maioria clara acha que somos privilegiados de estar onde estamos” (informação verbal)5.
Entre as intervenções educativas, foi organizado, em 2017, a exposição “Protagonismo Negro em Foco” com o intuito de enaltecer a beleza negra de discentes, docentes e técnicos administrativos da UFRJ. Estes participaram ativamente da organização da mesa “10 anos de Invisibilidade da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra” e das atividades do “I Festival de Político-Cultural Coletividades Negras”.
Coletivo de Negros e Negras do Serviço Social da UFRJ
Dona Ivone Lara, matriarca do samba, enfermeira, assistente social, especialista em terapia ocupacional exerceu larga trajetória em hospitais psiquiátricos, entre eles o Serviço Nacional de Doenças Mentais, junto à doutora Nise da Silveira. Profissional exemplar, só veio dedicar-se integralmente à música apenas quando se aposentou em 1977.
O Coletivo (Figura 8) surgiu em 2017, motivado pela luta por ações afirmativas na Pós-Graduação do Serviço Social da UFRJ.
Fonte: Imagem extraída de Coletivo de Negras e Negros do Serviço Social da UFRJ - Dona Ivone Lara (2020).
Entre as intervenções educativas, o Coletivo organiza periodicamente a “Semana de luta contra a opressão” e diversos outros debates na Escola de Serviço Social da UFRJ. Segundo o Coletivo:
Depois de muita luta e articulação, assembleias comunitárias, reuniões de congregação conseguimos quarenta por cento das vagas para estudantes negros e negras e indígenas, cinquenta por cento das bolsas, para o mesmo, tendo como prioridade das bolsas os estudantes cotistas. Em conformidade consegue-se a adesão de espanhol na prova de proficiência de língua estrangeira, que antes tinha o inglês, francês e o italiano. Logo com êxito,diminuiu-se a média mínima para aprovação na prova escrita de sete para cinco. (COLETIVO DE NEGRAS E NEGROS DO SERVIçO SOCIAL DA UFRJ - DONA IVONE LARA, 2020, n.p.).
Coletivo Negro Ebí da Biologia da UFRJ
O Coletivo Negro Ebí (Figura 9) foi criado em 2016 como uma resposta organizada aos casos de racismo no Instituto de Biologia. Entre as principais intervenções educativas do coletivo, temos o tradicional “Novembro Negro” com uma semana intensa de atividades, debates, intervenções artísticas e culturais e que teve sua quinta edição realizada em formato on-line em 2020.
O Coletivo também lançou, em 2020, um “Clube do Livro” como espaço de troca, de diálogo e de aprendizagem baseado na leitura e na discussão de obras literárias de negras/os. O Coletivo também participou de maneira destacada no I Festival Político-Cultural Coletividades e Negras. Segundo os membros do coletivo:
Reconhecendo o espaço acadêmico como branco, e reprodutor da ordem social, fizemos a escolha de não nos embranquecer na UFRJ, mas sim, nos aquilombar. De lá pra cá, muitos pretos e pretas da biologia e de outros lugares de dentro e fora da UFRJ construíram espaços políticos e de afeto conosco. [...]. Em yorubá, Ẹbí significa ancestralidade, família [...]. É a conexão com as nossas raízes, com a nossa história. É luta, é força, é ânimo. É espelho, é sabedoria, é inspiração. (COLETIVO NEGRO EBí, 2019, n.p.).
I Festival Político-Cultural de Coletividades Negras
O I Festival Político-Cultural de Coletividades Negras (Figura 10) foi organizado pela Comissão de Coletivos Negros Discentes da UFRJ e realizado entre os dias 12 de setembro de 2019 e 31 de novembro de 2019. Foram mais de 12 atividades ocorrendo nos diferentes campi da Universidade que culminaram na realização do I Baile Black in Fundão que contou com um público de cerca de mil pessoas. O evento teve como objetivo “[...] promover ações de cunho político e cultural de combate ao racismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro” (informação verbal)7.
A abertura do festival em 12 de setembro de 2019 prestou uma homenagem à memória de Steve Biko, ativista anti-apartheid da África do Sul na década de 1960 e 1970. O líder estudantil fundou o Movimento da Consciência Negra que capacitava e mobilizava grande parte da população negra urbana. Em 12 de setembro de 1977, foi preso e morto durante interrogatório policial. Na atividade de abertura, uma jovem negra anunciou a importância daquele festival: “Nós existimos. Nós estamos nos fortalecendo, nos aquilombando e nos movimentando, curando nossas feridas e construindo novas possibilidades de presente e futuro para o povo preto e para a sociedade como um todo” (informação verbal).
O I Festival foi a primeira grande atividade da Comissão de Coletivos Negros Discentes da UFRJ. De maneira coordenada, os diferentes coletivos propuseram debates a respeito do racismo estrutural e institucional na universidade; o enfrentamento ao racismo e às práticas discriminatórias a partir de temas afins de seus cursos; a importância da construção de políticas antirracistas na UFRJ. Além disso, foram apresentadas as expectativas em torno do trabalho recém iniciado da Comissão de Coletivos Negros Discentes.
Semana de Integração Acadêmica
A mesa “10 Anos de Invisibilidade da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra” na Semana de Integração Acadêmica, em 2019 (Figura 11), marcou o início de uma série de atividades conjuntas entre os coletivos estudantis negros da área da Saúde.
Juntos, o Coletivo NegreX (Medicina), o Coletivo Negro Mary Seacole (Enfermagem) e o Coletivo Preto Virgínia Leone Bicudo (Psicologia) passaram a empreender um esforço comum de reflexão, elaboração e denúncia perante a invisibilização das discussões trazidas pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) em seus cursos.
A realização de uma atividade de qualidade, capaz de lotar um anfiteatro na Semana de Integração Acadêmica - conhecida por ser um espaço de integração e de divulgação científica da produção acadêmica no âmbito do ensino, pesquisa e extensão da UFRJ - deixou evidente a força de produção de novos conhecimentos a partir dos lugares da negritude forjados pelos coletivos.
Na ocasião, a PNSPN foi apresentada pelo Coletivo Mary Seacole que enfatizou a política como uma estratégia de enfrentamento ao racismo na sociedade e no Sistema único de Saúde (SUS), como um meio de respeitar e de reconhecer o papel cumprido pelas religiosidades e a cultura afro-brasileira nos processos de cuidado e, como um disparador, que também alerta para as doenças mais prevalentes na população negra e propõe condutas dirigidas.
O Coletivo NegreX abordou os desafios para o cuidado racializado, considerando a necessidade de protocolos específicos para as condutas de prevenção, de tratamento, de assistência e de promoção da saúde que levem em consideração as imensas desigualdades sociorraciais enfrentadas pela população negra.
Usando exemplos comuns de sua atuação clínica no internato diante das doenças mais prevalentes nessa população - como a anemia falciforme, a diabetes melito (Tipo II), a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase, a hipertensão arterial -, a representante do coletivo demonstrou como as desigualdades sociorraciais poderiam impactar na baixa adesão ou dificuldade de obtenção de resultados dos tratamentos em longo prazo. Ela sugeriu de que maneira o olhar racializado da equipe de saúde e de lideranças comunitárias poderiam corrigir a abordagem terapêutica em algumas situações e propor caminhos mais eficientes e eficazes para a realidade dos/as pacientes negros/as.
O Coletivo Virgínia abordou como os impactos do processo de colonização, o legado de uma sociedade construída a base das políticas de embranquecimento e de miscigenação e a existência deliberada do racismo e do genocídio como estruturais e estruturantes da sociedade brasileira são responsáveis pelo desencadeamento de processos de subjetivação complexos para negras/os. Segundo o Coletivo: “O conhecimento de que o coletivo de pessoas negras poderia - e pode - ser morto a qualquer momento contribui para o adoecimento mental desse grupo. Logo, é importante pensar a questão psicológica não apenas no âmbito individual, mas como uma questão própria da sociedade” (informação verbal)8.
Por fim, a estudante representante do curso de Nutrição, que ainda não tinha coletivo próprio, enfatizou os limites da abordagem dos cursos da saúde distantes da realidade de vida das pessoas negras e pobres. A estudante questionou as abordagens comportamentais individualistas e elitistas que permeiam a profissão. Utilizando como referência a centralidade das políticas públicas de alimentação e nutrição e a situação da população negra, ela enfatizou: “Muito se fala sobre educação nutricional, sobre balancear a alimentação, mas nada disso adianta se a pessoa não tem acesso ao alimento porque não é economicamente viável. Não adianta só pensar em educação, é muito mais que isso. São políticas públicas” (informação verbal)9.
Esses coletivos extrapolam a mera denúncia como fica evidente neste breve resumo das atividades. Eles também articulam os conhecimentos formais aprendidos na Graduação com suas experiências de vida enquanto negros/as no seio de suas comunidades. O resultado é a produção de outros conhecimentos e expertises. Ali, eles iniciaram um rico processo de troca, socializando estratégias e os caminhos que cada coletivo já havia percorrido para propor a inserção dessa discussão nos currículos de seus cursos. Esse processo, também muito conectado com os fazeres compartilhados da pesquisa, motivou uma roda de conversa durante o festival, para aprofundarmos elaborações.
A pandemia da Covid-19 e o ensino remoto emergencial durante os anos de 2020 e 2021 colocaram em suspensão essas trocas. Foram muitas as dificuldades vivenciadas pelos estudantes diante do ensino remoto e da sobrecarga de conteúdos gerada pela tentativa de compensação do atraso no calendário acadêmico, ocasionando limites para a auto-organização dos coletivos. A retomada do ensino presencial em 2022 e os preparativos para as calouradas presencias vêm marcando a retomada dos processos de auto-organização dos coletivos e do resgate dessas discussões político-pedagógicas e curriculares na UFRJ.
Saberes que transbordam, transformam e educam a UFRJ
Gomes (2017, p. 67, grifo nosso) nos alerta que a comunidade negra e o movimento negro produzem saberes, “[...] os quais se diferem do conhecimento científico e, em hipótese alguma ‘menos saberes’ ou ‘saberes residuais’” . A autora dirá, então, que a marca desses saberes se relaciona com uma forma de conhecer o mundo e produzir uma racionalidade atravessada pela vivência da raça.
Esses saberes surgem quando da intervenção social, cultural e política de negras/os ao longo dos anos em uma sociedade racializada e desigual, em outras palavras, a partir dos processos de busca por produzir e reproduzir a existência. Logo, não se trataria puramente de “[...] ações intuitivas, mas de criação, recriação, produção e potência” (GOMES, 2017, p. 67, grifo nosso). A autora apresenta esses saberes agrupando-os, didaticamente, como saberes identitários, saberes políticos e saberes estético-corpóreos àqueles que emergem da experiência e da ação da comunidade negra sistematizados por esse movimento.
Os saberes identitários ensinam-nos a recolocar a centralidade da raça como uma forma de ler e aprender o mundo. Esses saberes contam-nos dos processos de expansão e de politização da raça e da identidade negra para outros espaços antes invisibilizados (GOMES, 2017). Os saberes políticos são aqueles que amplificam a politização em torno das desigualdades raciais, de modo a forçar a reeducação das identidades, das relações com a corporeidade e da centralidade da própria ação política dentro e fora do movimento negro (GOMES, 2017). Os saberes estético corpóreos ensinam a negras/os a reeducarem sua relação com seus corpos e, também, reeducam o olhar da população brasileira sobre o corpo negro. Eles tensionam para que haja o legítimo reconhecimento da estética negra como direito à cidadania. Assim, postulam a “[...] recriação de novos tipos de relação, linguagem e ética” (GOMES, 2017, p. 75).
Uma vez encontrados, aterrados, pertencentes e experimentando uma existência mais qualitativa a partir dos lugares da negritude, esses sujeitos usam a guarida dos “[...] inúmeros abraços, nos sorrisos trocados, nos passinhos que mandamos nas festas” (informação verbal)10 como retaguarda afetiva, subjetiva e intelectual para sistematizarem suas próprias vivências. Trocam as diferentes experiências e articulam um saber comum fruto da vivência racializada a partir dessas interações socioespaciais presentes na UFRJ. Esse processo reflexivo atravessa a territorialidade negra até alcançar uma forma e um modo de externalização. Essa trajetória não é simples, pois envolve um árduo processo de escuta e de exercícios de significação coletivas que resultem em processos de nomeação.
Todo esse transcurso educa profundamente seus sujeitos. Uma vez externalizados, esses saberes transbordam essa territorialidade, transformam e educam o conjunto da universidade. Podem se apresentar como intervenções político-culturais, eventos artísticos, cartas abertas, debates, lives, disciplinas, etc. Seus formatos são sempre múltiplos. Assim, quando esses sujeitos irmanados a partir da racialidade refletem juntos sobre suas vivências e as interações socioespaciais que experimentam na UFRJ, eles passam a produzir um saber identitário sobre a universidade. Identificam as razões de certos incômodos e percebem como a configuração fragmentada entre objetos e ações no espaço da Cidade Universitária interpela-os diferencialmente.
Afirmam, então, existir o acesso desigual de oportunidades dentro da própria universidade. Ademais, problematizam os limites das soluções universais. Um exemplo desse saber transbordado se mostra quando reconhecemos o quanto há um antes e um depois para a abordagem tradicional das políticas de permanência estudantil pós ações afirmativas. Isso se dá não apenas porque os sujeitos dessas políticas passaram a ser outros, mas porque estes passaram a reivindicar e a educar a universidade sob outra perspectiva.
É a manifestação do saber racializado que demarca a necessidade de inflexão. Não permite mais que acionemos, de maneira facilista, a ideia de que a solução para a redução da evasão seja, apenas, mais bolsas de auxílio, mais creches, mais estágios remunerados, cota de xerox, transporte, moradia e bandejão. Isso tudo, certamente, segue urgente, sobretudo em tempos de cortes orçamentários. No entanto, referimo-nos ao saber que politiza a raça e educa para a necessidade do próximo passo, perguntando: Onde serão os estágios? Quais serão as rotas dos ônibus circulares da UFRJ fora da cidade universitária? E a abertura dos cursos noturnos? E a organização de horários de aula que respeitem os tempos de deslocamento de quem vêm da periferia? E os ataques e ofensas racistas? E a saúde mental de quem passa por isso? E a transformação dos currículos e da formação? Como permanecer estudando em uma universidade e curso que negam sistematicamente a contribuição de negras/os? Isso tudo também não é sobre permanecer?
Os saberes identitários
Se encontrar e pertencer traz a sensação de “[i]sso me faz pensar que estou no lugar certo. ‘Conte comigo como eu conto contigo’. Lembro que falamos isso para quem estava do nosso lado em uma aula da disciplina e isso continua valendo em mim” (informação verbal)11. Pertencer também significa responsabilizar-se com essa territorialidade. Responsabilizar-se com o outro. Não se trata apenas de um “saber de si” ou “saber para si” é “sobre nós e por nós”. Trata-se de um saber que se dá em relação.
Quando racializam as vivências sobre essas interações socioespaciais eles/as politizam os limites do “universal” e desconfiam do propósito formativo de uma disciplina, do currículo, da cultura institucional daquela unidade, da forma de organizar os espaços físicos, das intenções expressas em comentários de outro estudante, docente ou servidor. Esses saberes que passam entre veteranos e calouros, pós-graduandos e graduandos, de servidores mais experientes para servidores mais novos, ainda que se apresentem inicialmente como uma estratégia de sobrevivência, com o tempo, passam a exigir uma responsabilização. Essa territorialidade passa, então, a utilizar o saber identitário já adquirido para propor iniciativas que mudem o estado de coisas.
Esse saber e essas iniciativas podem ser exemplificados na proposição do Coletivo NegreX de aproximar docentes da temática e buscar a inserção dos seminários longitudinais sobre Saúde da População Negra ao longo da formação. Outro exemplo que podemos elencar é a iniciativa de oferecer uma disciplina para fortalecer estudantes negros/as e habilitar um espaço de estudo e de produção de conhecimento a partir de autores/as esquecidos pelo currículo oficial, como faz o Coletivo Virgínia, ou, ainda, no exemplo da realização conjunta dos coletivos de saúde de uma mesa sobre Saúde da População Negra na SIAC, localizando essas questões no marco do Centro de Ciências e Saúde da UFRJ.
A formação socioespacial universitária, como a conhecemos, têm entre suas funções a produção de conhecimento, ciência e tecnologia. Ela visa amplas possibilidades de consumo internas e externas à universidade, conectadas sempre a diferentes interesses que estarão refletidos na dinâmica do tripé ensino-pesquisa-extensão. Essa territorialidade negra constituída como parte desse local chamado UFRJ - coexistindo e se justapondo a outras territorialidades - lança um olhar racializado sobre a própria função da universidade, sobre os interesses ali representados e as formas pelas quais esse tripé é constituído.
Esses saberes identitários quando mobilizados produzem também uma relação conflitiva. Por um lado, os sujeitos feitos Outros questionam as possibilidades da universidade dar respostas aos interesses das pretas/os, das/os pobres, das/os trabalhadoras/es. Por outro lado, sua própria inserção, agora como presença e existência ativas, aponta para o sentido oposto. De algum modo, sem desresponsabilizar a instituição, passam a assumir para si que “se não fizermos, ninguém fará por nós” (informação verbal)12.
Quando perguntávamos sobre como haviam ido parar em cima de um palco, seis jovens negras do Coletivo NegreX, em plena formação, para dar aulas aos mais de 40 estudantes, majoritariamente brancos/as, tendo seus professores/as brancos/as sentados/as na cadeira como estudantes, a resposta vinha sempre como um misto de inevitabilidade e responsabilidade. O mesmo vale para as/os jovens do Coletivo Virgínia, que respondiam, de forma sucinta, ser essa a solução encontrada para fazer frente ao racismo em seus cursos.
O percurso é recorrente. Existe um caso de racismo. Um grupo de negros/as improvisa uma resposta. Passam a se aquilombar e a constituir um lugar. Politizam racialmente suas vivências, lançam um olhar e manifestam um saber racializado perante seus cursos. Outro caso de racismo. Agora, são eles os primeiros a serem acionados. Acolhem as vítimas e propõem um meio de discutir o caso nas instâncias universitárias apropriadas. Fazem suas passagens em sala. Alertam, denunciam, educam e, também, pressionam as respostas da instituição. Elas não chegam ou, muitas vezes, chegam atrasadas ou parciais. Insistem e politizam mais. Aprendem, amadurecem e ensinam mais.
A situação torna-se insustentável. A instituição também sente as consequências de um corpo de servidores muito embranquecido. A falta de reflexo racial contribui para paralisar as respostas. No entanto, estar em uma posição mais vulnerável a torna, em algum grau, mais maleável para reconhecer suas próprias limitações. Nesse ínterim, seu corpo social já foi, em alguma medida, afetado pelas práticas educativas do coletivo. Ou, como disse, espontaneamente, uma estudante branca da Psicologia em um ponto de ônibus, em 2019: “Tudo que eu sei sobre racismo foi por conta do coletivo. Das passagens em sala, dos escrachos e tals. Eu aprendi com eles mais do que com qualquer outro professor” (informação verbal).
A instituição sem consciência ou sem querer assumi-lo, já vive os efeitos dos ensinamentos reverberando para o conjunto daquela unidade. Constrangem a instituição a agir do modo habitual. Então, a instituição convida os coletivos para fazer palestras, debates, querem “trabalhar junto”. Nem todos os cursos, principalmente os da área da Saúde, contam com um número expressivo de docentes negras/os capazes de “assessorar” os cursos. E, quando ali estão, essas/es docentes também ficam sobrecarregadas/os tanto quanto os coletivos para “ajudar a pensar respostas”. Como se todo docente, servidor, ou estudante pelo simples fato de ser negro/a devesse ser “especialista da causa” ou “soubesse como agir”. Esses movimentos camuflam, muitas vezes, a licenciosidade de brancos/as de se posicionarem e assumirem ativamente responsabilidades no combate ao racismo.
A função social da universidade é a produção de conhecimento, de ciência, de tecnologia. Como se fortalecer racialmente dentro desse tipo de formação socioespacial? Como se contrapor às expressões do racismo nos conteúdos disciplinares? O que irá ser dito no debate para qual o coletivo foi convidado? Com base em quê? Os coletivos respondem montando, então, seus grupos de estudo. É a formação socioespacial mais ampla dialogando com essa territorialidade negra.
Os coletivos acessam as referências afrocentradas. Trocam e sistematizam seus próprios saberes com ajuda dos intelectuais negros/as de suas áreas e os saberes que trazem de suas comunidades. Ficam mais sabidos, como diria Arroyo (2018). E voltam para suas aulas “oficiais” mais inquietos. Mais curiosos e, também, mais desconfortáveis quando percebem os limites explicativos daquilo que lhes é ensinado. Voltam para o coletivo e ali compartilham suas dúvidas. Reconhecem o que pode ser útil à experiência da população negra e o que não se aplica. Os coletivos são também espaços de tradução, de reinterpretação. Reorganizam o conhecimento que foi apreendido. Constroem seus próprios arranjos de saberes, seus itinerários de formação, suas caixas de ferramentas. Além disso, batalham pela livre manifestação desse saber acumulado no mundo via oficinas, disciplinas, eventos político-culturais, extensões, projetos de pesquisa.
A partir dessa explanação, esperamos ter podido mostrar o quanto no interior da territorialidade negra há presença de laços de solidariedade que propiciam um potente ambiente educativo, exatamente porque neles o foco está nos próprios sujeitos. Como nos diz Arroyo:
O mais importante na pedagogia da liberdade e do oprimido não é que ela desvia o foco da atenção pedagógica deste para aquele método, mas dos objetos e métodos, dos conteúdos e das instituições para os sujeitos. [...]. Nos reeduca na sensibilidade pedagógica para captar os oprimidos e excluídos como sujeitos de educação, de construção de saberes, conhecimentos, valores e cultura. Sujeitos sociais, culturais, pedagógicos em aprendizados, em formação. (ARROYO, 2003, p. 34, grifos nossos).
Os saberes políticos
Podemos ver os saberes políticos compreendidos em sua capacidade de amplificar a politização das desigualdades raciais e de forçar a reeducação das relações raciais, das identidades, da relação com a corporeidade, materializado, por exemplo, em dispositivos e em regulamentações institucionais conquistados pelo movimento negro no ano de 2019 e 2020. Referimo-nos às Portarias/Resoluções que criaram a Câmara de Políticas Raciais, as Comissões de Heteroidentificação, a Comissão de Coletivos Negros e as Resoluções sobre fraudes nas ações afirmativas ou a aplicação de critérios explícitos para as ações afirmativas nos concursos públicos para docentes na UFRJ, já comentados neste texto.
Estas Resoluções amplificam os saberes políticos acumulados pelo movimento e imprimem para o conjunto da UFRJ uma série de responsabilidades. Elas interpelam a conversão do olhar e, nesse caso, também da ação política. Cobram a elaboração de critérios, de parâmetros, de marcadores que não são possíveis de serem atingidos sem uma profunda reeducação institucional. O curso de capacitação para a atuação nas Comissões de Heteroidentificação é um ótimo exemplo.
Gomes (2017) lembra-nos que a implementação de políticas públicas afirmativas para negros/as exige a capacidade de politização das desigualdades raciais; do contrário, dificilmente seriamos capazes de implementá-las considerando os efeitos perversos dos discursos sobre a mestiçagem e a democracia racial em nosso país. Essa capacidade de politização está na base dos saberes políticos do movimento negro educador. São saberes políticos aqueles que trazem a questão racial para ocupar um lugar político central na vida da sociedade. Quando isso ocorre, esses saberes também influenciam a vida social, a cultura e a própria produção de conhecimento.
Entre os anos de 2019 e 2020, o movimento negro da UFRJ foi capaz de tensionar e de posicionar a questão racial no pulsar da vida da universidade. Basta repararmos a quantidade e a qualidade de atividades e de eventos realizados, Resoluções aprovadas no Consuni e o amadurecimento organizativo de negro/as em suas categorias. Esses saberes políticos propõem novos ordenamentos para os próprios processos de produção do conhecimento. Deixamos como exemplo as reivindicações presentes em uma das cartas lidas pelos Coletivos Negros Estudantis na reunião de agosto de 2019 no Consuni. Nessa carta, os aquilombamentos solicitam apoio da PR-5 para constituir um projeto de extensão integrado entre os coletivos estudantis negros com os pré-vestibulares comunitários. Eles/as também exigem mudanças político-epistemológicas, como o estabelecimento de uma política específica de formação docente para as relações étnico-raciais que envolva o Complexo de Formação de Professores da UFRJ:
[...] definimos como objetivos estimular a vinda de alunos negros, propor ações de combate ao racismo institucional e fortalecer articulação entre estudantes e coletivos negros da UFRJ.
À princípio, a extensão [solicitada junto a PR-5] terá como público-alvo: estudantes e coletivos negros da UFRJ, estudantes negros de pré-vestibulares comunitários, estudantes negros de escolas públicas de Ensino Médio. Como parcerias teremos: Comissão de Direitos Humanos e Combate às Violências da UFRJ, Pré-Vestibulares Comunitários/Sociais e Escolas Públicas de Ensino Médio.
Esta ação de extensão se propõe a ser instrumento de enfrentamento ao epistemicídio das produções de saber de homens e mulheres negras, sendo então fundamental para que as vivências de estudantes negros e negras dessa universidade não sejam asfixiantes. Não queremos mais experienciar a falta de autoestima e a ausência no espaço da academia. Não aceitaremos mais ser vistos como insólitos em nossa própria universidade. Chega de epistemicídio!
[...]. Além disso, exigindo mudanças político-epistemológicas nessa instituição, por entendermos que o investimento em políticas de formação docente, dentro e fora da universidade, voltado para a discussão de questões étnico raciais é fundamental. Por isso, reivindicamos também a instrumentalização do Complexo de Formação de Professores, já existente na UFRJ, tornando assim possível otimizar as práticas pedagógicas antirracistas nos espaços de ensino e pesquisa. (CARTA DE ESTUDANTES..., 2019, p. 3, grifos nossos).
Essas propostas, ainda que não tenham sido implementadas, sublinham a movimentação dos saberes políticos do movimento negro nessa formação socioespacial. Aqui vemos o potencial de que nos fala Gomes (2017) de ser o movimento negro um exímio formulador de políticas públicas e, nesse caso específico, de políticas educacionais.
Da mesma forma, podemos encontrá-las presentes no Manifesto de Docentes Negras/os protocolado junto à Reitoria. Além da sua primeira proposta ser a criação de uma Comissão de Acompanhamento e Desenvolvimento de Políticas Antirracistas da UFRJ vinculada ao gabinete da reitoria, como vimos anteriormente, eles/as também sugerem, no manifesto, novos ordenamentos para a produção do conhecimento, em que a raça deve ocupar um lugar político central. Destacamos as Propostas 7 e 8 do manifesto:
Construir e viabilizar ações de visibilização, de reconhecimento e de valorização da memória da produção acadêmica e tecnológica de docentes negras/os e indígenas da UFRJ, com exposições temporárias e permanentes em semanas de integração acadêmica, promovidas pela universidade, em museus ou em espaços físicos destinados a esse fim. É importante também que haja um acervo digital da memória negra e indígena na UFRJ, com órgão responsável não só por sua organização e preservação, mas também pela produção de novos conteúdos e conhecimentos acerca desse acervo.
[...]. Demandar, nos diferentes cursos de formação de professores, a inclusão de disciplinas e conteúdos destinados a preparar as/os estudantes de licenciatura da UFRJ para implementar o artigo 26 da Lei 9394/1996, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena em todo o currículo escolar. Além dos cursos de formação de professores, incluem-se também os cursos de formação de profissionais de saúde. (UFRJ, 2021, p. 4-5, grifos nossos).
Os saberes estético-corpóreos
Quanto aos saberes estético-corpóreos, não nos faltam exemplos. Importante ressaltarmos que em Gomes (2017) o termo “estética” surge como forma de sentir o mundo e a corporeidade como forma de viver o corpo no mundo. Em outras palavras, esse saber: “Está também no cantar pagode, no compartilhar das vivências, no pensar coletivo para tomar qualquer decisão, no corte de cabelo, no lugar onde mora, no jeitinho como fala da família, na alegria por ver as nossas conquistas, nas nossas aulas sobre nós” (informação verbal)13.
Gomes (2017) intui-nos a perceber que os saberes estéticos-corpóreos são aqueles que nos ensinam a questionar a monocultura do corpo e do gosto estético vinculado aos valores e aos padrões hegemônicos brancos da sociedade. São padrões que excluem, de modo recorrente, a forma de sentir e de viver o mundo presentes na cultura afro-brasileira ou as utilizam de maneira oportunista e/ou desfigurada.
Os saberes estético-corpóreos do movimento negro recolocam, portanto, a estética e o corpo como espaços de expressão identitária, de transgressão, de afirmação e de emancipação do corpo negro e de sua cultura. O corpo como espaço de/do saber (GOMES, 2017). Esses saberes-estético corpóreos ensinam-nos a ler a sociedade a partir da corporalidade. Fazem-nos perceber o quanto a sociedade e, como reflexo também a universidade, destina espaços específicos para o corpo negro, verbalizando o racismo presente na sociedade e nas instituições. Esses saberes colocam em xeque se, realmente, as instituições reconhecem negros/as como produtores/as de conhecimento e sujeitos de direito a ocuparem as instituições universitárias.
São exemplos disso a denúncia de negros/as serem a maioria entre os/as servidores/as terceirizados/as da universidade e não do corpo docente. A exclusão de intelectuais negros/as dos currículos ratifica um lugar de ausência de corpos de negros/as na produção do conhecimento. O desconforto do corpo de negros/as aparece na “[...] primeira vez, durante a formação em saúde, na condição de mortos, peças anatômicas” (informação verbal)14. Ou até as toucas descartáveis - itens indispensáveis utilizados por profissionais de Saúde - não comportarem até hoje os cabelos afro; diferentemente, do que ocorre com as luvas descartáveis de limpeza.
Pulsa no interior dessa territorialidade negra na UFRJ a contraposição. A afirmação de estéticas próprias que ressaltam a corporalidade e a cultura afro-brasileira como produtoras de saberes. Refutando o imaginário hegemônico e adoecedor para o corpo negro, que o tem como exótico, indisciplinado, fora de ritmo, entre outros. Essa territorialidade negra apresenta outras chaves de leitura a partir de suas temporalidades, horizontalidades e contra-racionalidades que lhe são características, tal qual nos fala Santos (2001, 2006).
Essa territorialidade configura-se, então, carregada de símbolos, de cores, de códigos e de posturas. Os saberes estético-corpóreos que dela emanam modificam as interações socioespaciais e propiciam o surgimento de ricos processos educativos e de promoção de saúde. Esses espaços, antes de tudo, são promotores de vida; seja para pessoas negras, seja para a comunidade acadêmica que apreende uma nova forma de sentir e de viver o mundo enriquecendo seus repertórios.
Presenciamos, nas reuniões dos coletivos negros, a existência de uma espécie de rito. Há uma forma estética de dispor o ambiente para o encontro. Há uma forma estética de se vestir para o encontro. E, por fim, há uma estética de movimento para aprender durante o encontro. Trocando em miúdos, a configuração de uma sala de aula muda, por exemplo. Adota-se o formato circular no modo de dispor as cadeiras. A mesa é deslocada para o centro da roda. Nela, os presentes colocam objetos, elementos étnicos como toalhas, bandeiras ou alimentos para compartilhar. Os presentes preparam-se para o encontro de forma diferente do habitual. Capricham nos penteados, nas roupas étnicas, nos acessórios, na maquiagem. Preparam-se para o encontro com o outro dentro desse sistema de códigos da cultura afro-brasileira. Convocam a espiritualidade, a música, a poesia, a comida, a dança, a contação de histórias para expressar a forma de sentir e de viver o mundo. Por meio delas, colocam o corpo em movimento e a partir dele manifestam seus aprendizados de/no mundo.
Esses saberes estético-corpóreos desvelam que a cultura assumida como “universal” nas suas formas de viver e sentir o mundo é, senão, a cultura da classe dominante. E, no que toca os processos educativos, esse desvelar tende a questionar a cultura que rege os currículos e os métodos de ensino. Isso nos remete ao que Arroyo (2003) suscita quanto ao papel central da cultura na ação educativa. Ele nos mostra o quanto os movimentos sociais ao dar evidência à cultura acessam outras vias privilegiadas para o ensinar e o aprender:
Os movimentos sociais nos pressionam para reconhecer que a cultura é um componente central da formação, da compreensão dos processos sociais e educativos. [...]. A cultura traz um mal-estar, uma intranquilidade quando é assumida como constituinte dos sujeitos humanos, como componente da ação educativa. A cultura é mais resistente do que o conhecimento escolar. Ela denuncia que os sujeitos humanos não são puros aprendizes de conhecimentos neutros e menos ainda, que eles são cópias de um todo homogêneo. A cultura é mais rica, mais multifacetada para impregnar e inspirar a ação educativa. Reflete o rosto mais plural dos educandos, sujeitos culturais de linguagens, vivências, valores, concepções, imaginários múltiplos. Mais resistentes. Mais sujeitos. (ARROYO, 2003, p. 41-43, grifos nossos).
Na medida em que esses corpos negros de/do saber transitam por outras territorialidades, eles manifestam uma série de ensinamentos que convocam a universidade a reeducar seu olhar sobre seus corpos e suas contribuições. Esses saberes estético-corpóreos extravasam a territorialidade negra e imprimem marcas no local da UFRJ. Eles oferecem arranjos, até então, inusitados para as interações socioespaciais.
São os pilotis15 do edifício de Jorge Machado acolhendo um Baile Black. São as paredes e os corredores dos blocos com cartazes e colagens diminuindo o vazio da cultura “universal” das paredes brancas. São os pátios e os jardins internos - outrora em estado de latência, aguardando a integração entre conhecimento popular e científico -, experimentando as feiras agroecológicas, acolhendo as apresentações artísticas de coletivos negros atuantes nas comunidades e as exposições político-culturais dos próprios coletivos negros universitários.
É a gente negra orgulhosa de seus traços, de seus corpos, sendo e habitando o território como potência de vida. Essas rodinhas de “gente que fala alto, ri com gosto e tem corpos dançantes” (informação verbal)16 vão virando referência de localização para outros/as negros/as solitários. É como se preenchessem os “vazios” com uma trilha de símbolos a oferecer uma continuidade de conforto subjetivo, emocional e simbólico aos sujeitos negros.
Conclusão
Identificamos, na intervenção do movimento negro na formação socioespacial universitária da UFRJ, a dinâmica de constituição de uma territorialidade negra. A partir desses aquilombamentos - coletivos negros e do surgimento desses lugares da negritude -, conseguimos contemplar três movimentos que fazem esses sujeitos: partem de um estar à deriva, aterram-se junto ao quilombo e, finalmente, acomodam as existências e produzem saberes.
Neste artigo, apresentamos alguns resultados da pesquisa, descrevendo os principais agrupamentos e coletivos negros atuantes na UFRJ, dando destaque aos coletivos estudantis das graduações da área da Saúde, recorte inicial da investigação. Contemplamos seus processos de fundação, suas reivindicações, suas vitórias e suas contribuições no enfrentamento ao racismo e na elaboração e na inserção de novas práticas sociais de ensinar e aprender na universidade.
Compreendemos essa territorialidade negra na UFRJ como uma matriz formadora, repleta de subsídios político-pedagógicos. Essa matriz dá fundamento e confere especificidade aos saberes identitários, políticos e estético-corpóreos presentes em Gomes (2017). Exemplificamos, respectivamente, a movimentação desses saberes a partir da descrição das práticas educativas, dos processos de produção de conhecimentos e das interpelações curriculares dos coletivos estudantis; a formulação e a aprovação de uma série de resoluções e portarias institucionais fruto da intervenção do movimento negro no período estudado; até as manifestações da estética e da cultura afro-brasileira no espaço universitário.
Por fim, corroboramos as elaborações de Gomes (2017), acrescentando haver benefícios para que futuros estudos interessados em sua aplicação em âmbito local incorporem o exame dos processos de produção de territorialidades negras. Esse ingrediente pode nos ajudar a perceber, no nível local, como essas singularidades aparecem nas estratégias pedagógicas, nas práticas educativas e nos tipos e nos alcances dos novos conhecimentos produzidos por esse movimento.