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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 30-Maio-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.20483.062 

Resenha

MAINARDES, Jefferson. Alfabetização & prática pedagógica: trajetórias e vivências. Curitiba: CRV, 2021. 194 p.

Laélia Portela Moreira* 
http://orcid.org/0000-0001-8531-1059

1Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estácio de Sá


O que dizer sobre o livro Alfabetização & prática pedagógica: trajetórias e vivências quando tanto já foi dito pelas colegas que escreveram comentários sobre a obra, publicados na parte final do livro? Destacar a natureza essencialmente dialógica, ética e comprometida do trabalho do autor? Mencionar a autoentrevista, momento em que Mainardes revisita sua trajetória e brinda o leitor com suas reflexões inacabadas?

São diversas as possibilidades e significativos os desafios desta tarefa que realizo com o prazer de quem, a cada capítulo, aprende um pouco mais sobre a complexidade da docência, da alfabetização e sobre epistemologia e ética. A leitura de seus relatos e de suas propostas, ricos em criatividade, afetividade e competência, nos transporta para a sala de aula, onde vivenciamos os desafios e testemunhamos muitas das soluções encontradas. Com a humildade científica que caracteriza um bom pesquisador, o autor, Jefferson Mainardes, coloca-se também como aprendente, na interlocução com as crianças, com os/as colegas, alfabetizadores/as e equipes de Secretarias de Educação, gestores/as e professores/as de diferentes regiões do país.

No conjunto da obra, a trajetória da pessoa mescla-se com a do professor, intelectual pesquisador e ativista em favor da educação e de uma postura ética que, transcendendo declarações formais, se constrói no trato com a profissão, com os estudantes e demais sujeitos que fazem parte do seu cotidiano, como docente e como pesquisador, entre os pesquisadores cuja produção faz a diferença.

Alfabetização & prática pedagógica: trajetórias e vivências, além do prefácio, da introdução, do posfácio, dos comentários sobre o livro e um índice remissivo, é uma obra organizada em oito capítulos, sendo cinco deles dedicados à análise de seu trabalho pedagógico nos anos iniciais do Ensino Fundamental e como professor alfabetizador, sua primeira vocação, como ele mesmo informa.

No Capítulo 1, intitulado “Alfabetização: do repensar necessário à prática possível” e caracterizado como uma autoanálise e relato de experiência, o autor analisa, 30 anos depois, o texto apresentado para o concurso promovido pelo Ministério da Educação (MEC), em 1988, quando ainda era professor iniciante. Nessa revisita, ele destaca os pontos positivos da experiência que lhe valeu o segundo lugar nesse concurso, sem se furtar a discutir também as omissões e os aspectos a serem considerados na “prática possível” (MAINARDES, 2021, p. 19).

O Capítulo 2, também um relato de experiência, apresenta o trabalho realizado no contraturno com alunos da 1ª e 2ª etapas do Ciclo Básico de Alfabetização (CBA), “[...] que apresentavam ‘dificuldades de aprendizagem’” (MAINARDES, 2021, p. 35), denominação posteriormente atualizada, segundo informa o autor, para “[...] estudantes que necessitam de mais tempo para apropriação dos conteúdos [...]” (MAINARDES, 2021, p. 51).

Priorizando Língua Portuguesa e Matemática, o livro, uma pesquisa sobre a própria prática, marcada pela ação-reflexão-ação, além de apresentar subsídios teóricos fundamentais sobre a ideia do professor como pesquisador, detalha resultados favoráveis para os quais contribuíram o clima da classe e o contato mais próximo com as crianças, iniciativas que teriam possibilitado a identificação, pelos professores, das “[...] dificuldades, singularidades, [...], tensões e ansiedades [...]” (MAINARDES, 2021, p. 39) apresentadas pelo conjunto dos alunos.

Assumindo o pressuposto de que sem vínculo afetivo não há aprendizagem, o autor valoriza o resgate do processo de aprender, por parte dos alunos, e a importância do combate ao sentimento de derrota revelado por alguns. Tudo isso sem deixar de apontar algumas contradições identificadas no processo. Mainardes (2021) ressalta, por fim, que as dificuldades de aprendizagem não estão apenas nas crianças e que é reconhecendo os acertos que se pode contribuir para o fortalecimento do autoconceito e o entendimento da aprendizagem como um processo dinâmico e rico de possibilidades.

O Capítulo 3 apresenta reflexões sobre processos de aprendizagem e intervenções pedagógicas. Ao assumir, entre outros pressupostos, que o papel da escola é garantir a aprendizagem de todos os estudantes, que o sucesso ou fracasso na escola têm implicações relevantes na vida dos sujeitos e que concepções afirmativas e a qualidade da aprendizagem dependem de suporte adequado ao trabalho dos professores, o autor destaca as características e os objetivos da organização da escola em ciclos, que se distingue das experiências de progressão continuada. Para o pesquisador, uma perspectiva transformadora de um programa de ciclos, para além de preocupações mais formais, como formas de registro de avaliações, por exemplo, implica revisão de “[...] toda a concepção de conteúdos, avaliação e gestão da escola” (MAINARDES, 2021, p. 63). Nesse sentido, a complexidade desse processo envolve não somente os que atuam diretamente nele, mas também os gestores e os demais atores da sociedade civil envolvidos com as tarefas da educação.

No âmbito das intervenções pedagógicas, Mainardes (2021) entende a política de ciclos como uma política integrada, que abrange possibilidades de diferenciação de atividades, conforme o nível de desenvolvimento e as necessidades de aprendizagem dos alunos. Isso necessariamente envolve a instrumentalização dos professores para lidar com a heterogeneidade das classes, em busca de resultados que vão além do cognitivo, incluindo a elevação da autoestima dos alunos, o reconhecimento da capacidade de aprender, o que, consequentemente, contribui para o avanço na aprendizagem.

Para tratar dos desafios das orientações metodológicas envolvidas na mediação do professor da escola em ciclos, o autor apresenta três pesquisas, as quais mostram a viabilidade de melhorar a aprendizagem das crianças sem aumentar significativamente seu tempo na escola. Nessa perspectiva, ele discute temas como pedagogias visíveis, invisíveis e mistas, instrução implícita e explícita e o enfraquecimento de regras de sequenciamento e de compassamento. Por fim, Mainardes (2021) discute a importância de estratégias de suporte a alunos e a professores e a avaliação diagnóstica.

O Capítulo 4 consiste em um verbete temático, cujo propósito é conceituar práticas significativas na alfabetização e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Além da conceituação, que pode ser resumida em “ensinar com método”, o autor apresenta sinônimos e antônimos dessas práticas, suas características e seus fundamentos, com destaque, no final, para um elenco de práticas significativas específicas para a alfabetização.

Quanto às caraterísticas, Mainardes (2021) destaca a intencionalidade, o significado, a mediação, a avaliação permanente, a reciprocidade, a diferenciação, a afetividade e a dialogicidade. Os fundamentos referem-se, resumidamente, ao papel social da escola como garantidora da apropriação do conhecimento, ao caráter não espontâneo da educação e da alfabetização, e assentam-se na proposta desenvolvida pela pesquisadora Ana Maria Morais e colaboradores do grupo Estudos Sociológicos da Sala de Aula (ESSA), da Universidade de Lisboa, cujos resultados mostram que “[...] o efeito da prática pedagógica pode sobrepor-se ao efeito do nível socioeconômico familiar [...]” (MAINARDES, 2021, p. 80) dos estudantes, mesmo quando está em jogo o desenvolvimento de competências cognitivas complexas.

Na parte final do capítulo, referente às práticas significativas de alfabetização, o autor retoma algumas práticas já indicadas no capítulo específico que trata do assunto e encerra com a indicação de alguns pesquisadores referência nesse assunto.

No Capítulo 5, Mainardes (2021) apresenta observações de campo realizadas em 2002 e 2003 que integraram sua pesquisa de Doutorado1, realizada em escolas municipais, e que incluiu observação em 16 classes de alfabetização de quatro escolas e entrevistas com outros atores, além de professores. A partir da imersão no campo e com respaldo da abordagem do ciclo de políticas e da teoria de Bernstein, que chancelam a necessidade de analisar o contexto das estratégias políticas e de uma proposta de diferenciação curricular para ser debatida por professores, o autor indica o caminho para uma prática mais efetiva baseada na diferenciação de níveis e nas necessidades de aprendizagem dos alunos.

Em continuação, Mainardes (2021) apresenta um levantamento de autores brasileiros e estrangeiros que, em mais de três décadas, utilizaram diferentes termos para descrever diferenciação curricular. As seções seguintes constam da definição dos objetivos e das características da diferenciação curricular e de um detalhamento do “Projeto Diferenciação”, que abrange a sua origem, os seus princípios e os seus pressupostos, e, ainda, há apresentação das cinco etapas do projeto, acompanhadas de exemplos de implicações para os planejamentos dos professores, além das observações finais. Sem dúvida, um precioso documento norteador para as atividades de todos os envolvidos com a docência no Ensino Fundamental, bem como para os responsáveis pela formação continuada de professores.

O Capítulo 6 complementa o anterior. É composto por um abrangente “Levantamento da produção sobre diferenciação curricular e temas correlacionados” (MAINARDES, 2021, p. 117), dividido em pesquisas e publicações de autores brasileiros; pesquisas e publicações de autores portugueses; traduções para o português; seleção de textos em inglês; seleção de textos em francês; e seleção de textos em espanhol.

O Capítulo 7 consiste em uma autoentrevista na qual o autor articula suas vivências na área da alfabetização com suas demais áreas de atuação e de pesquisa. Ele apresenta, também, suas “reflexões inacabadas” (MAINARDES, 2021, p. 127). Nessa seção, o autor aborda temas como as perspectivas teórico-epistemológicas que têm fundamentado suas pesquisas e suas publicações, a criação da Red Latinoamericana de Estudios Teóricos y Epistemológicos em Política Educativa (ReLePe) e uma análise de suas principais contribuições, que resume como: trabalhos sobre escola em ciclos, alfabetização e prática pedagógica, estudos de epistemologia da política educacional e metapesquisa.

Nessa empreitada, o autor avalia sua trajetória acadêmico-intelectual como um “crescendo” (MAINARDES, 2021, p. 129, grifo do autor). E como reflexões mais recentes, o autor analisa a perspectiva ético-ontoepistemológica de Karen Barad, pesquisadora que defende a indissociabilidade entre ética, ontologia e epistemologia, à qual acrescenta a ideia do Posicionamento Ativista Transformador, de Anna Stetsenko, duas importantes referências, que, em síntese, mostram a indissociabilidade entre ser-saber-fazer. Em seguida, Mainardes (2021) aborda a discussão sobre as implicações práticas da pesquisa, com base na ideia de que a ciência deve estar a serviço de propósitos humanos, deixando clara a influência de Álvaro Vieira Pinto e da Teoria de Basil Bernstein em sua trajetória intelectual. Mainardes (2021) adverte, contudo, que esta não é uma posição hegemônica, uma vez que há autores que questionam a “tirania das alternativas” e o uso da “sociologia redentora” (MAINARDES, 2021, p. 133), dessa feita citando Stephen Ball. Quanto às implicações éticas do posicionamento ativista, Mainardes (2021) assume que toda pesquisa envolve questões éticas durante todo o processo investigativo e que colocar a ética em primeiro plano significa admitir que todas as ações que realizamos possuem uma dimensão ética.

Finalmente, tratando de questões mais atuais, o autor considera que a questão da escola em ciclos no Brasil é problemática e pouco debatida. Ele, assim, aponta para a necessidade de uma retomada de seus principais fundamentos: a aprendizagem como um processo contínuo, a avaliação formativa, a pedagogia diferenciada e as práticas sistemáticas significativas. Discute, também, mesmo de forma breve, os impactos da pandemia no processo de alfabetização e a possibilidade do ensino híbrido no período pós-pandemia. Adverte que a apropriação do sistema de escrita alfabética requer a permanente mediação pedagógica e que nada “[...] substitui o contato com a criança [...]. Pegar na mão para ajudá-la a escrever algo, [...], apontar uma palavra com o dedo, ler partilhadamente com ela um pequeno texto, uma frase, uma palavra, uma letra” (MAINARDES, 2021, p. 138), um processo que certamente permitirá que a criança faça, no futuro, sozinha, tarefas para as quais recebeu ajuda no momento em que a afetividade, presente na mediação do professor ou da professora, certamente contribuiu para sua autonomia na leitura e na escrita.

O Capítulo 8 apresenta uma lista da extensa produção do autor, de 1989 a 2021, composta por trabalhos de conclusão, livros, livros organizados, artigos, capítulos de livros, entrevistas e outras produções bibliográficas. Uma obra e tanto, expressão de um professor e pesquisador ético, em formação e autoformação constantes.

1A versão em Português da Tese, defendido no Institute of Education, University of London, em dezembro de 2004, foi publicada no livro Reinterpretando os ciclos de aprendizagem, em 2007, pela Editora Cortez.

Referência

MAINARDES, J. Alfabetização & prática pedagógica: trajetórias e vivências. Curitiba: CRV, 2021. [ Links ]

Publicado: 05 de Maio de 2022

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