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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.17  Ponta Grossa  2022  Epub 27-Ago-2022

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.17.20574.083 

Resenha

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Tradução de Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014. 172 p.

Karina Regalio Campagnoli* 
http://orcid.org/0000-0002-6068-7073

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)


A obra Os herdeiros: os estudantes e a cultura foi escrita por Pierre Bourdieu (1930-2002) e Jean-Claude Passeron (1930-) no ano de 1964, na França. A edição aqui analisada foi publicada em 2014, pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, traduzida por Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle.

A obra Os herdeiros começou a circular pouco antes das efervescências dos movimentos de reforma do sistema de ensino francês, desmascarando a então vigente e idealizada política democrática de educação nacional. Mesmo escrita há mais de 50 anos, a referida obra continua atual devido às discussões que promove em torno das desigualdades sociais que culminam em desigualdades escolares, principalmente visíveis no Ensino Superior.

O livro é dividido em três capítulos e apresenta, também, um texto introdutório intitulado “Por que ler Os herdeiros meio século depois?”, elaborado pela referida tradutora - Ione Ribeiro Valle, além de uma página com o título “Advertência”, em que os autores explicam algumas escolhas metodológicas adotadas em suas pesquisas, além da conclusão, dos apêndices e dos índices remissivos.

Em relação aos apêndices, neles são apresentados inúmeros gráficos com dados estatísticos sobre as análises realizadas pelos autores, enfatizando, quantitativamente, as desigualdades sociais em relação ao processo de escolarização na França, como, por exemplo: o perfil profissional dos pais dos alunos, a distribuição por curso e por sexo, a origem social dos estudantes, o manejo da língua ensinada, a influência da idade, entre outros aspectos. Além disso, é importante salientar que os autores realizaram suas pesquisas e suas análises comparando a cidade de Paris com a chamada província, considerada uma região mais ao interior da França.

No primeiro capítulo, intitulado “A escolha dos eleitos”, os autores discorrem sobre as facilidades de acesso dos estudantes provindos das classes mais abastadas em comparação àqueles estudantes cujos pais são originários das classes menos favorecidas financeiramente. Além disso, essa desigualdade de acesso aos estudos é sentida também na escolha dos cursos, pois alguns deles seriam mais procurados pelos estudantes da elite, enquanto outros cursos seriam mais “indicados” para os estudantes mais humildes. Para as moças das classes mais baixas, essas restrições mostram-se ainda maiores.

Sobre isso, Bourdieu (1989, p. 11) explica que: “As diferentes classes e frações de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses [...]”. Isso também se relaciona com o que Bourdieu (2007, p. 13) chamou de “gosto”: “O gosto classifica aquele que procede à classificação: os sujeitos sociais distinguem-se pelas distinções que eles operam entre o belo e o feio, o distinto e o vulgar; por seu intermédio, exprime-se ou traduz-se a posição desses sujeitos nas classificações objetivas”.

Bourdieu e Passeron (2014) afirmam, categoricamente, que, de todos os determinantes possíveis - como condições de vida e de trabalho completamente diversas, localidade, religião, oportunidades e chances -, é a origem social o fator mais importante e que poderá influenciar todos os demais níveis relacionados com a trajetória escolar dos estudantes. Além disso, os hábitos culturais herdados do meio familiar são fundamentais no processo de orientação e de incentivo sobre os estudos, influenciando, de forma significativa, tanto a escolha quanto a manutenção desse aluno ao longo do processo de escolarização (BOURDIEU, 2013). Dessa forma, os domínios culturais representados, por exemplo, pela música, pela pintura, pelo teatro e pelo cinema são mais facilmente verificados naqueles indivíduos oriundos de uma classe social possuidora de mais recursos e oportunidades, permitindo maior desenvoltura e segurança nas maneiras e na linguagem em geral. Sobre isso, na obra A distinção, Bourdieu (2007, p. 10) esclarece que “[...] a definição dominante do modo de apropriação legítima da cultura e da obra de arte favorece, inclusive, no campo escolar, aqueles que, bem cedo, tiveram acesso à cultura legítima, em uma família culta, fora das disciplinas escolares [...]”.

Essa discussão remete ao conceito de capital, distribuído em quatro formas distintas, mas que acabam se complementando, a saber: capital econômico, social, simbólico e cultural. Este último subdivide-se em outros três modelos: capital cultural objetivado, institucionalizado e incorporado (BONNEWITZ, 2003). De acordo com Bourdieu (1989, 2004), o capital econômico diz respeito aos diferentes bens de valor monetário, como imóveis, veículos, embarcações, dinheiro em espécie, joias, entre outros. O capital social remete à rede de contatos e de amizades que um agente - nomenclatura adotada por Bourdieu - possui e mantém ao longo de sua trajetória. Já o capital simbólico se relaciona à honra, ao prestígio e ao respeito de um agente, desde que haja o reconhecimento por seus pares. Por fim, o capital cultural compõe-se pelo padrão objetivado, representado pela apropriação de itens concretos como livros, enciclopédias, dicionários, mapas, obras de arte, coleções e demais objetos culturais. O capital cultural institucionalizado refere-se aos títulos escolares e acadêmicos, e o modo incorporado diz respeito à forma como um agente se expressa e demonstra, em seu comportamento, trejeitos, linguagem, postura, preferências, enfim, como ele é.

No capítulo 2, cujo título se chama “Jogos sérios e jogos de seriedade”, os autores reafirmam que, apesar das desigualdades em relação à escola permanecerem, muitas vezes, despercebidas, elas são, de fato, muito nítidas. Além disso, mesmo que o sistema educacional francês defenda um ideal democrático e de cooperação, na realidade, a suposta coletividade dos alunos é substituída pela inculcação de uma cultura individualista que incita a competição entre os estudantes. Assim, os alunos não constituem um grupo social unido e consciente, mas, sim, indivíduos passivos que competem solitariamente por um diploma, representado pela obtenção de capital cultural institucionalizado, o qual poderá potencializar a futura aquisição de capital social, simbólico e, possivelmente, econômico.

Outro ponto central deste segundo capítulo é a valorização do carisma ou dos chamados dons, os quais justificam, praticamente, todas as atitudes e as inculcações produzidas por esse sistema de ensino. Dessa forma, tanto os professores quanto os alunos reproduzem essa lógica, relacionando os dons com o mérito. Além disso, os autores apontam que os jogos ideológicos são apenas um dos aspectos de toda uma lógica que beneficia aqueles que são considerados os privilegiados, pois a parcela de estudantes oriundos das classes mais favorecidas e que apresentam maiores vantagens culturais, ou seja, que acumulam a maior parte dos privilégios, está assentada em Paris e não na província. Nesse sentido, esses últimos estariam mais fortemente presos às imposições escolares do que os parisienses.

Essa problematização relaciona-se ao conceito de habitus, no sentido de uma conformação de comportamentos considerados adequados e, até esperados, ou, então, valorizados no contexto em questão (BOURDIEU, 2013). Os chamados “dons”, em vez de serem “naturais”, conforme se apregoa, seriam desenvolvidos com o tempo - a curto, médio e longo prazos -, culminando em determinados habitus vinculados a determinados segmentos do ensino, direcionando os agentes, inclusive para cursos específicos do Ensino Superior (BONNEWITZ, 2003).

No terceiro capítulo, intitulado “Aprendizes ou aprendizes de feiticeiro?”, são defendidas as ideias de criação de uma racionalidade educacional, segundo a qual os estudantes deveriam posicionar-se, desenvolver iniciativa e promover seu próprio protagonismo e não se comportar somente como um “receptáculo puro do saber professoral”. Além disso, os autores ressaltam as diferenças entre homens e mulheres em relação à educação, enfatizando a questão dos “dons” femininos que permanecem enraizados no modelo tradicional de sociedade, demonstrando que as mulheres são compreendidas a partir de uma visão inferiorizada de seu potencial escolar, muitas vezes orientadas pelo ideário familiar.

As análises sobre alguns desses chamados habitus femininos, que seriam capazes até de direcionar os estudos e as carreiras das mulheres, são aprofundados por Bourdieu (2017) na obra A dominação masculina. Nessa produção, o sociólogo francês discorre sobre algumas das arbitrariedades às quais as representantes do gênero feminino estão expostas em diferentes campos da sociedade, relacionando-se, aqui, especificamente, com o ambiente educacional.

Esse desenvolvimento da autonomia por parte dos estudantes é corroborado pelas pesquisas de Ortiz (2003), o qual, como intérprete das teorias de Bourdieu, indica que o conceito de habitus não pode ser compreendido como algo estático ou sem possibilidade de mudança. Sobre isso, ele esclarece que o habitus, ao mesmo que se constitui em uma “estrutura estruturante”, também apresenta espaço para criação, invenção ou atualização, por exemplo. O autor ainda acrescenta que o processo de escolarização pode ser designado como uma construção simbólica e que os campos, como “estruturas estruturadas” ou institucionalizadas, se comportam como um conjunto internalizado que permite as corriqueiras associações entre o conhecimento escolar e o pertencimento aos estratos sociais mais favorecidos financeiramente (ORTIZ, 2003).

Novamente, a origem social determina a distância da racionalidade e sua atitude em relação aos prestígios da escolha intelectual. Dessa forma, pode-se comparar, em relação ao futuro, que as mulheres estão para os homens assim como os estudantes das classes baixas estão para os das classes burguesas, visto que as mulheres não se dedicam às profissões intelectuais com afinco, assim como os alunos de classes inferiores também não o fazem, pois, para isso, necessitariam de garantias para o futuro.

A obra Os herdeiros manifesta-se como um grande estudo antropológico. Os autores sofreram severas críticas em relação a essa abordagem, no sentido de que ela seria muito descritiva e, por isso, pouco crítica. As explicações para essas interpretações podem dar-se pela incompreensão dos conceitos e das abordagens apresentados na referida obra, além da expectativa em torno de soluções que possibilitassem as tão esperadas “transformações” da realidade, propaladas pela teoria marxista, em voga no contexto histórico em que a obra Os herdeiros foi publicada. Isso pode ser comprovado pelo livro escrito por Dermeval Saviani (2012), que conta com mais de 40 edições, em que o autor classifica Bourdieu e Passeron especificamente sobre outra produção textual de autoria da mesma dupla de escritores, qual seja, A reprodução, publicada pela primeira vez em 1970, na França, como autores crítico-reprodutivistas.

Esse entendimento proposto por Saviani (2012) também vale para a ideia de que a teoria de Bourdieu seria “sócio-lógica”, no sentido de que ela deveria servir para toda e qualquer situação, como se a organização da sociedade seguisse uma “lógica” ordenada e linear. No entanto, essa compreensão não se aplica, uma vez que, se assim fosse, o conceito da autonomia relativa dos campos seria ignorado. Além disso, Nogueira e Nogueira (2009) ressaltam que Bourdieu nunca pretendeu propor um sistema de ensino, mas, sim, discutir alguns aspectos que se relacionam com a Sociologia da Educação.

Em um artigo publicado em 2001, Catani, Catani e Pereira analisam como as obras de Bourdieu foram apropriadas no Brasil, no que diz respeito ao campo educacional. Os autores concluem que houve três modos diferentes dessa apropriação: uma delas diz respeito à maioria das situações diagnosticadas e constitui-se em uma compreensão realizada de forma mais superficial; uma outra é chamada pelos autores de “apropriação conceitual tópica”, caracterizada por menções pontuais a alguns conceitos do autor, como capital cultural; e a última é a que se constitui em uma mobilização do ideário bourdieusiano em movimento constante, presente de forma mais sistemática ao longo do corpo dos textos, articulada às discussões e às pesquisas desenvolvidas nas produções analisadas.

Especificamente sobre a trajetória de Bourdieu, é importante esclarecer que o sociólogo francês foi se desenvolvendo como antropólogo especialmente a partir de sua experiência na Argélia, passando pelo campo da Filosofia até chegar à Sociologia. Ressalta-se, assim, a constituição de um habitus de pesquisador que tem como escopo de formação a vivência no campo de atuação em todas as suas vertentes.

Na conclusão da obra Os herdeiros, os autores afirmam que a igualdade deve deixar de ser apenas formal, pois, em um sistema que prevê a seleção de indivíduos que já iniciam o processo educacional de forma desigual, transformando o privilégio em mérito, em que as classes abastadas encontraram o argumento ideológico ideal que justificasse a legitimação de seus privilégios culturais, as desigualdades continuam passando despercebidas. Assim sendo, há a necessidade de desenvolver-se um sistema de educação real que compreenda o ensino como forma de vencer as desigualdades sociais, oportunizando meios eficazes de efetivar a escola para todos.

A referida obra possibilita a reflexão crítica sobre a forma de transmissão dos valores das classes mais favorecidas para todo o sistema escolar. Além disso, a escrita argumentativa dos autores promove a comparação de dados estatísticos sobre vários aspectos, corroborando a tese de que a origem social é o maior determinante das desigualdades sociais que repercutem nas desigualdades estudantis ao longo de toda a vida educacional do indivíduo, pois se, desde o início, as condições já se mostram desiguais, como seria possível alcançar um resultado extraordinário?

Percebe-se, pela leitura do livro Os herdeiros, que os autores foram muito incisivos ao exporem uma situação de falsa democracia em relação à educação na França, a qual foi disfarçada de igualitária, como se o acesso fosse livre para todos, quando, de fato, essa realidade se mostra meritocrática e apenas reproduz o modelo de sociedade pregado pela burguesia. Nesse sentido, as problematizações desenvolvidas em Os herdeiros articulam-se a outra importante obra, intitulada A reprodução, também elaborada pela dupla Bourdieu e Passeron (2011). Nessa obra, o termo “reprodução” relaciona-se a essa continuidade de privilégios ou de dificuldades que são passados de pais para filhos e que acabam reeditando determinados habitus que já se encontram inculcados nas famílias e nos grupos sociais.

Dessa forma, essa obra mostrou-se de extrema relevância para que, conscientes do real papel da escola, muitas vezes posta como o único meio de acesso ao conhecimento e à cultura, nós, educadores, possamos demonstrar mais coerência e espírito de luta por uma escola verdadeiramente para todos.

Referências

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