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Práxis Educativa

Print version ISSN 1809-4031On-line version ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub Jan 20, 2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.20334.001 

Artigos

A dialética materialista: princípios, diálogos e pesquisa em Educação

The Materialist dialectic: principles, dialogues and research in Education

La dialéctica materialista: principios, diálogos e investigación en Educación

*Professor associado da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro). Mestrado em Educação Escolar pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR).


Resumo

Pretende-se, neste artigo, produzir uma análise teórica, por meio de uma pesquisa bibliográfica, sobre os fundamentos da dialética materialista, pressupondo que esse debate impacta diretamente na produção de conhecimento no campo das pesquisas em Educação, em geral, e no campo das Políticas Educacionais, em particular. A abordagem inicia com a retomada da dialética como conceito e nas concepções antigas e modernas, passando pelo estudo da dialética idealista de Hegel, para servir como contraponto para construir o conceito de dialética na tradição marxista, contemplando uma diversidade de perspectivas desse campo. Conclui-se com uma síntese de como as pesquisas em Políticas Educacionais podem se beneficiar do estudo da dialética materialista.

Palavras-chave: Dialética materialista; Contradição e sobredeterminação; Pesquisa em Educação; Pesquisa em Políticas Educacionais.

Abstract

It is intended, in this article, to produce a theoretical analysis, through bibliographic research, on the foundations of the materialist dialectic, assuming that this debate directly impacts the production of knowledge in the field of research in Education, in general, and in the field of Education Policies, in particular. The approach begins with the resumption of dialectics as a concept and in the ancient and modern conceptions, passing through the study of Hegel’s idealist dialectic, to serve as a counterpoint to build the concept of dialectics in the Marxist tradition, contemplating a diversity of perspectives of this field. It is concluded with a synthesis of how research in Education Policies can benefit from the study of materialist dialectics.

Keywords: Materialist dialectics; Contradiction and overdetermination; Research in Education; Research in Education Policies.

Resumen

Se pretende, en este artículo, producir un análisis teórico, por medio de una investigación bibliográfica, sobre los fundamentos de la dialéctica materialista, presuponiendo que este debate impacta directamente en la producción de conocimiento en el campo de las investigaciones en Educación en general, y en el campo de las Políticas Educativas, en particular. El enfoque comienza con la reanudación de la dialéctica como concepto y en las concepciones antiguas y modernas, pasando por el estudio de la dialéctica idealista por Hegel, para servir de contrapunto para construir el concepto de dialéctica en la tradición marxista, contemplando una diversidad de perspectivas de este campo. Se concluye con una síntesis de cómo las investigaciones en Políticas Educativas pueden beneficiarse del estudio de la dialéctica materialista.

Palabras clave: Dialéctica materialista; Contradicción y sobredeterminación; Investigación en Educación; Investigación en Políticas Educativas.

Introdução

Este trabalho objetiva discutir os fundamentos da dialética materialista e a sua incidência na produção de conhecimento no campo das pesquisas em Educação, em geral, e no campo das Políticas Educacionais, em particular. Dialoga, portanto, com os esforços como os da Rede Latinoamericana de Estudos Epistemológicos em Política Educativa (ReLePe), com a qual comparte a preocupação da análise das políticas educativas a partir de marcos teórico-epistemológicos, no intuito de desenvolver o campo das pesquisas em Política Educacional. Destacamos entre as produções desse grupo, e com os quais este estudo aqui dialoga direta ou indiretamente, os textos de Flach (2020), Mainardes (2021, 2022), Mainardes e Tello (2016), Masson (2022), Masson e Flach (2018) e Tello (2019, 2022), entre outros.

Nesse campo, se assim podemos nos referir, este estudo faz parte do que Tello (2022) denomina como campo das Teorias e Epistemologias das Políticas Educacionais, mais especificamente do eixo “Desenvolvimento de metodologias para a pesquisa em políticas educativas”. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, com a leitura e a construção do conceito de dialética em diversos autores, tendo como parâmetro o diálogo crítico com a dialética idealista de Hegel, como forma de configurar o significado e a abrangência da dialética materialista.

Esse tema, apesar de parecer já exaustivamente discutido, torna-se central para a perspectiva crítica das pesquisas educacionais, e temos de trazer à tona que o uso, ou abuso, da dialética nas pesquisa educacionais parte, muitas vezes, de parâmetros não muito claros, ou a partir de uma concepção que de fato se afasta dos princípios materialistas, tais como formulados na obra de Marx. Daí a relevância de trazermos novamente o tema da dialética para a pesquisa educacional.

A perspectiva dialética parte do pressuposto do movimento das contradições, inerente à sociedade e que, no modo de produção capitalista, tem sua especificidade no sentido da reprodução do sistema. Analisar a educação e seu papel no sistema capitalista nos leva a compreender o papel que essa dimensão da realidade (da superestrutura, como diria Marx) cumpre como parte do processo de reprodução social e, também, como pode se transformar em mediadora de transformações.

A abordagem inicia com a retomada da dialética como conceito e nas concepções antigas e modernas, passando pelo estudo da dialética idealista de Hegel, para servir como contraponto para construirmos o conceito de dialética na tradição marxista. Perfazemos, em seguida, uma discussão sobre como a dialética materialista incide nas pesquisas em Educação.

Significado e antecedentes da dialética

Dialética é uma palavra derivada do grego dialetiké, sendo dia referente à reciprocidade, interação, troca, e letiké, que possui a mesma raiz de logos, palavra, razão, conceito. Essa palavra vem de dialegesthai, que significa conversar. Dialética, portanto, nasce incorporando, no diálogo, a razão dos outros. Nasce como “arte da conversação” e foi utilizada por Platão como o método filosófico correto, do qual se extrai, como se vê nos diálogos de Sócrates, o conhecimento e as relações entre formas ou ideias (INWOOD, 1997).

Não há de definirmos uma identidade entre dialética e diálogo, conforme nos informa Konder (2003, p. 5) de maneira sintética: “É certo que dialética e dialógica não são sinônimos; existem procedimentos dialógicos que não são dialéticos, quer dizer não reconhecem a centralidade da contradição. No entanto, quando as condições históricas se tornam muito desfavoráveis ao diálogo, elas tendem a prejudicar a dialética”1.

Há de discutirmos se a dialética pode ser resumida a um método, ou se ela é a natureza do ser, tanto social quanto natural, o movimento próprio da vida ou uma forma de apreender esse movimento. De todo modo, dialética é uma capacidade que tem o ser humano de apreender o movimento, o novo e as contradições. É inseparável da dialética a contradição, cuja natureza é “infinita”.

Como o novo está sempre surgindo e as contradições estão constantemente ultrapassando os limites da sua compreensão, o sujeito, na dialética, não pode deixar de ter no infinito uma referência fundamental: a infinitude é a categoria que lhe permite entender o real como efetivamente inesgotável, irredutível ao saber. (KONDER, 2003, p. 7).

No sentido moderno da dialética, a referência clássica continua sendo Heráclito, que viveu aproximadamente entre 540 e 480 a.C., que nos fragmentos intitulados Sobre a Natureza, por várias vezes, insiste na ideia de que em um mesmo rio não se pode banhar duas vezes, já que ambos, homem e rio, já não podem ser os mesmos em cada situação. Há, em Heráclito, ou pelo menos no que dele restou de fragmentos de seu pensamento, uma ideia de constante mudança. Historicamente, essa concepção se viu forçada a se comparar com outra diametralmente oposta, a de Parmênides, que viveu aproximadamente entre 515 e 460 a.C., para quem o ser é imutável em sua essência, ou seja, o que muda não é, e o que é não muda.

Aristóteles (384-322 a.C.), sobre essa questão do movimento, incluiu, em sua Metafísica, os conceitos de ato (energeia, entelecheia) e potência (dynamis), sintetizando, assim, as posições contrárias de Heráclito e Parmênides, quer dizer, não negando o ser e sua essência, mas, de modo algum, negando o movimento, a mudança, que também é da natureza do ser. A definição de Aristóteles fundamenta-se na diferença que faz sobre o ser: para ele, o ser não é o que é, como para Parmênides, mas também o que pode vir a ser. O ser, portanto, é ser em ato, ou o ser já como é, e também a potência, ou seja, o ser que pode existir, mas que já é no próprio ser em ato. O movimento é a realização ou a atualização da potência que já existe no ser, isto é, a passagem do ato à potência. Assim, as coisas podem se modificar sem deixar de ser o que são. A potência existe tanto na natureza quanto nos humanos e pode ser passiva ou ativa, ou seja, gerar ou sofrer modificações (KONDER, 2008). Vejamos um extrato da Metafísica, na qual Aristóteles sintetiza ato e potência.

Quem constrói está pra quem pode construir, quem está desperto para quem está dormindo, quem vê para quem está de olhos fechados, mas tem a visão, e o que é extraído da matéria para a matéria e o que é elaborado para o que não é elaborado, ao primeiro membro dessas diferentes relações atribuiu-se a qualificação de ato e ao segundo a de potência. (ARISTÓTELES, 2005, p. 411).

Assim, Aristóteles, segundo informa Konder (2003), impediu que o movimento fosse considerado apenas uma ilusão, contribuindo para que a Filosofia posterior estudasse a dinâmica social, incluindo a história como construção humana.

Dando um grande salto no tempo, e abstraindo, para efeitos deste texto, outros autores importantes, citamos, no século XVI, as ideias de Montaigne (1533-1592), em seus Ensaios, onde podemos ler:

Todas as coisas estão sujeitas a passar de uma mudança a outra; a razão, buscando nelas uma subsistência real, só pode frustrar-se, pois nada pode apreender de permanente, já que tudo ou está começando a ser - e absolutamente ainda não é - ou então já está começando a morrer antes de ter sido. (MONTAIGNE, 2000, p. 157, apudKONDER, 2003, p. 15).

Atendendo às necessidades do tempo histórico, a Filosofia moderna, especialmente o Iluminismo (século XVIII), passaram a adotar as ideias de movimento, de transformação e de potencialidade de mudança. Iniciado com Maquiavel, no século XVI, passando por pensadores como Montaigne, visto anteriormente, muitos outros contribuíram para a construção de um mundo novo, racional, contrário, portanto, ao mundo feudal. Destacamos Diderot (1713-1784), para quem “o todo está sempre mudando”.

Era o período anterior à Revolução Francesa, que foi justamente retratada como o ápice de um movimento secular de transformações sociais, políticas, econômicas, culturais, que originaram o mundo tal como o conhecemos atualmente. Após esse movimento revolucionário, a França especialmente passou por um período de rápidas transformações, com o acúmulo de guerras, revoltas populares e dos trabalhadores. Na Inglaterra, assistia-se à revolução industrial mudar a face da produção de mercadorias e todas as relações sociais em seu entorno, com um processo violento de urbanização e tudo o que daí deriva. É sobre esse período de grande efervescência que labora Hegel (1770-1831), cuja dialética fará fama até os dias de hoje.

A dialética hegeliana

Antes de adentrar as especificidades referentes à dialética de Hegel, é necessário pincelar algumas concepções sobre o idealismo, que é a corrente de pensamento de Hegel, e que é a base de sua dialética. Para o idealismo é a atividade do sujeito cognoscente que ativa o processo de conhecimento, ou seja, o sujeito conhece objetos por ele produzidos, o que elimina a prática social humana como lócus, origem e destino dos conhecimentos, privilegiando em seu lugar o pensamento, a razão, como motor da realidade. Segundo Althusser (2019, p. 112): “Ao afirmar o primado da teoria, o idealismo considera que é a contemplação ou a atividade da razão que determina, em última instância, toda prática”.

A Razão é a “[...] atuação e produção [...] não somente do universo natural, mas também espiritual, na história universal” (HEGEL, 1953, p. 20). O que a filosofia demonstra, para Hegel, é que “[...] essa ideia é o verdadeiro, o eterno, o absolutamente poderoso; que essa ideia se manifesta no mundo e que nada se manifesta no mundo a não ser ela mesma, sua magnificência e dignidade [...]” (HEGEL, 1953, p. 21). A razão, dessa forma, “[...] existe na consciência, como fé na razão que rege o mundo. Sua demonstração é o próprio tratado da história universal, a qual é a imagem e a obra da razão” (HEGEL, 1953, p. 27).

No entanto, tal como fez Althusser (2015), em Por Marx, é preciso reconhecer que, em Hegel, a razão não se trata apenas de uma estrutura interna kantiana2, mas vai ao mundo, torna-se de fato o motor da história, ou uma força histórica, em síntese, Razão é História. A Lógica de Hegel estrutura a razão intemporal; no entanto, sua Filosofia da História fornece o conteúdo da Razão (MARCUSE, 2004).

O diálogo mais candente do idealismo alemão foi com o empirismo inglês, sendo sua contraparte. Ao contrário do empirismo inglês, o idealismo alemão buscava leis universais “[...] e defendia a possibilidade de se atingir, pela razão, conceitos necessários e igualmente universais. Em contrapartida, o empirismo inglês acreditava que as leis gerais eram criações humanas e, como tal, não representativas do real” (SAVIOLI; ZANOTTO, 2012, p. 363).

Entretanto, Hegel fez a crítica a Kant3, que não admite a possibilidade do conhecimento da coisa em si, para além ou diferente do fenômeno. Para Hegel, em sua Lógica, o conceito, se for adequado, revela ao sujeito a natureza do objeto, em outras palavras, revela o que a coisa é em si mesma. No entanto, o objeto não existe em sua própria verdade, mas na negação de suas determinações. O exemplo clássico é a semente em relação à planta.

No seu crescimento, a planta, que é o “sujeito” do processo, não age com conhecimento e não realiza suas potencialidades com base no seu próprio poder de compreensão; ao contrário, ela sofre passivamente o processo de realização. Por outro lado, porém, a nossa ideia de planta nos revela que a existência da planta é um processo intrínseco de desenvolvimento; nosso conceito vê que a semente é, potencialmente, botão, e que o botão é, potencialmente, flor. O conceito, então, representa, na visão de Hegel, a forma real do objeto, pois o conceito nos revela a verdade sobre o processo que, no mundo objetivo, é cego e contingente. (MARCUSE, 2004, p. 67).

No movimento dialético existe, para Hegel, a potencialidade versus a realidade dos entes (ato e potência de Aristóteles). O ente não é o que poderia ser se desenvolvesse suas potencialidades, que são dadas no conceito. A verdade, portanto, está nesta possibilidade, na realização da identidade entre a existência e o conceito, ou do racional com o real. A negatividade, por conseguinte, encontra-se em todas as coisas e é o prelúdio necessário à realidade, segundo Marcuse (2004, p. 68). Logo, essa negatividade é o meio que tem o sujeito de buscar a realização do conceito, daí a sua positividade.

A identidade e a negatividade são duas categorias ontológicas primordiais e universais. Graças à identidade, todo ser permanece o mesmo ser, eternamente idêntico a si mesmo e diferente dos outros [...]. Mas, graças à negatividade, um ser idêntico pode negar ou suprimir sua identidade consigo mesmo e tornar-se diferente do que é, e até o seu contrário [...]. O Ser real-concreto (revelado) é ao mesmo tempo identidade e negatividade. Logo, ele não é apenas Ser-estático-dado (Sein), espaço e natureza, mas também devir (Werden), tempo e história. (KOJÈVE, 2002, p. 445).

A dialética em Hegel não se constitui apenas em um aparato epistemológico, por meio do qual podemos nos aproximar da realidade para chegar à verdade4. A dialética significa antes o movimento do Espírito (natureza e história humana), quer dizer, é a forma com a qual o mundo, como expressão do Espírito, se desenvolve. O pensamento, para apreender esse movimento, deve se submeter à dialética, ou seja, ser um pensamento dialético. “A dialética, portanto, está nas coisas e no pensamento, já que o mundo real e o pensamento constituem uma unidade indissolúvel, submetida à lei universal da contradição” (SAVIOLI; ZANOTTO, 2012, p. 364). Dito de outro modo, para ampliar ainda mais o entendimento “[...] a dialética não é um método, no sentido de um procedimento que o pensador aplica ao seu objeto de estudo, mas a estrutura e o desenvolvimento intrínsecos do próprio objeto de estudo” (INWOOD, 1997, p. 101, grifo do autor). É sobre esse movimento que a dialética hegeliana ganha sentido na Filosofia da História.

O universal pressupõe o particular e, ao mesmo tempo, a negação do particular. O particular é finito e, como tal, deve sucumbir. Os objetivos particulares se chocam uns com os outros e uma parte deles é necessariamente destruída. Mas é precisamente com essa luta, com essa destruição de particulares, que se produz, na história, o universal. E o universal não perece, não se destrói nos conflitos, não corre nenhum perigo. Permanece ileso, servindo-se das motivações particulares e das paixões como escudos, como anteparos protetores, destinados a receber os golpes que são desferidos no combate. (HEGEL apudKONDER, 1991, p. 80).

Nesse movimento encontramos que: 1. O fim está já dado no início, em outras palavras, a realização do Espírito no mundo não é algo aleatório, mas já dado; 2. O universal é a forma de expressão mais livre do Espírito, e o particular, sua forma estrita de se apresentar no mundo e, portanto, sujeito a superações; 3. O movimento dá-se em contradição: um período particular só existe porque sucumbe às lutas com outros particulares, como expressão do universal; 4. A tese, o em si, portanto, o presente em ato, para lembrar Aristóteles, sucumbe frente à antítese, ou o para si que cresce no seio da tese, e, na luta entre ambas, uma síntese, o em si-para si, é gerada, sendo ela a nova tese em ato, que sucumbirá; 5. O movimento do Espírito, dessarte, é puro devir ou vir a ser, só existe nesse movimento dialético, até que um dia o Espírito se realize, ou seja, que haja o encontro do Ser consigo mesmo. Lênin, que se dedicou exaustivamente ao conhecimento de Hegel e de sua Lógica, expressa essa questão sinteticamente:

O individual é o universal: Portanto, os contrários (o individual se opõe ao universal) são idênticos, o individual existe apenas através da relação que o conduz o universal. O universal existe apenas no individual e através do individual. Cada elemento individual é (de uma forma ou de outra) universal. Todo universal é (um fragmento, ou um aspecto, ou a essência de) um individual. Todo universal abrange nada menos que todos os individuais. Cada indivíduo compõe de forma incompleta o universo, etc., etc. Todo o indivíduo está ligado por milhares de mediações com outros TIPOS de indivíduos (coisas, fenômenos, processos), etc. (LÊNIN, 2018, p. 331, grifo do autor).

O motor do desenvolvimento humano é o trabalho, que é a atividade criadora própria do ser humano, em sua relação com o objeto. Essa relação sujeito e objeto é fundamental para entender Hegel. “Foi com o trabalho que o ser humano ‘desgrudou’ um pouco da natureza e pôde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais. Se não fosse o trabalho, não existiria a relação sujeito-objeto” (KONDER, 2003, p. 23-24).

Sobre essa relação entre sujeito e objeto, Hegel trabalha com o conceito de aufheben, que significa formas de suspender ou suspensão, em três sentidos: o de negar, anular ou cancelar; o de erguer algo e manter, no sentido de estar suspenso no ar; e, por fim, o de elevar a qualidade, passar para um outro plano ou nível superior. Sobre esses três sentidos, Hegel labora sua concepção de suspensão, aplicada ao trabalho5 e, também, ao movimento do Espírito no mundo, enfim, à sua dialética. Vejamos o que ocorre no trabalho: “[...] a matéria-prima é ‘negada’ (quer dizer, é destruída em sua forma natural) [sentido 1], mas ao mesmo tempo é ‘conservada’ (quer dizer, é aproveitada) [sentido 2] e assume uma forma nova, modificada, correspondente aos objetivos humanos (quer dizer, é ‘elevada’ em seu valor) [sentido 3]” (KONDER, 2003, p. 27).

Não podemos desenvolver, nesse momento, os desdobramentos da questão sobre o conceito de alienação tal como o desenvolveu Marx em suas obras de juventude, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos, de 1844, bem como sobre a superação de Marx em relação à dialética de Hegel6.

Dialética em Marx e no marxismo

Antes de iniciarmos a discussão específica sobre a dialética materialista, uma palavra a respeito de Hegel sobre a questão da totalidade. Para essa discussão, referenciamo-nos em Marcuse (2004), que, ao sintetizar a dialética marxista, a diferencia da dialética hegeliana, e o ponto nevrálgico dessa distinção refere-se ao conceito de totalidade. Antes das diferenças, porém, ressaltemos a identidade: para ambos a dialética se referencia ao caráter negativo da realidade. Esse caráter se relaciona à natureza dos entes, humanos ou naturais, opondo o que são e o que podem vir a ser, conforme podemos ler na Fenomenologia do Espírito:

20. [Das Wahre ist] O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve-se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo, em ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-mesmo. (HEGEL, 2008, p. 36, grifos do autor).

A totalidade a que se refere Hegel é a da Razão ou o sistema racional da história (MARCUSE, 2004, p. 268), caracterizando-o como um processo ontológico universal, no qual o ser vai se constituindo, sendo o fenômeno, ou seja, as sociedades particulares ao longo da história, sua expressão incompleta ou falseada. A História, para Hegel, não é um processo de alienação do Homem, mas um processo de alienação do Espírito. Na verdade, trata-se dos “momentos” do desenvolvimento da Ideia convertida em Espírito.

Em Marx, a negatividade da realidade não é metafísica, mas uma condição social e histórica real, relativa às condições materiais da vida social em cada período. “A totalidade que a dialética marxista atinge é a totalidade da sociedade de classes, e a negatividade que está subjacente às contradições desta dialética e que dá forma ao seu conteúdo todo é a negatividade das relações de classe” (MARCUSE, 2004, p. 270).

Não há, portanto, uma racionalidade ahistórica ou transhistórica, como em Hegel; o método dialético marxista se constitui em um método histórico. Nesse caso, a análise dialética não parte da razão do Espírito, mas dos fatos concretos, que são o ponto de partida necessário da análise, porém não suficientes: esses fatos têm de ser analisados no processo de contradições em que se encontram definidos. Nas palavras sintéticas de Marcuse (2004, p. 270): “Todo fato só pode ser submetido à análise dialética na medida em que cada fato é influenciado pelos antagonismos do processo social”7.

Sobre a noção de totalidade em Marx, e a partir dos apontamentos de Marcuse (2004), é preciso mencionarmos algo que parece essencial: para Marx, o mundo social se torna uma totalidade por processos de abstração, que é a própria forma de ser do capitalismo, sua “obra-prima”, segundo o autor acima mencionado. O método dialético marxista constitui sua continuidade, quer dizer, um processo de abstração que tem como objetivo desvelar o movimento que gera esse próprio processo.

A análise de Marx mostrou que a economia capitalista se constrói sobre e se perpetua pela redução constante do trabalho concreto a trabalho abstrato. Esta economia se afasta, gradativamente, da atividade e das necessidades humanas concretas, e perfaz a integração das atividades e necessidades individuais unicamente através de um complexo de relações abstratas na qual o trabalho individual conta meramente na medida em que representa o tempo de trabalho socialmente necessário, e no qual as relações entre os homens aparecem como relações entre as coisas (mercadorias). (MARCUSE, 2004, p. 269).

Essa perspectiva é atualizada na obra de Postone, intitulada Tempo, trabalho e dominação social (POSTONE, 2014), obra escrita em 1993 e que, a partir de 2014, passou a reverberar no Brasil com sua primeira tradução. Como não podemos nos ater a todas as características da crítica desse autor, o que fizemos relativamente à questão trabalho e educação em outro texto (MELO; GUARAGNI; ZAZULA, 2016), trazemos aqui a questão da totalidade. Em continuidade ao que expressou Marcuse na citação anteriormente trazida, para Postone (2014), o sangue vital da totalidade é o tempo de trabalho objetivado na produção de mercadorias. Assim, temos de distinguir, na análise dialética do movimento do capital, aquilo que é o fenômeno e o que é o “sangue”, em outras palavras, o móvel desse movimento: na aparência, o processo de produção é eivado de materiais físicos (máquinas, matérias-primas, fábricas etc.) que são transformados em produtos materiais; no entanto, a realidade da produção caracteriza-se por ser abstrata: depende do trabalho abstrato nela consumido, quer dizer, a pura força física utilizada no tempo de trabalho.

A categoria valor é a maior expressão desse movimento abstrato, cuja dialética materialista de Marx tem de captar o movimento. “A totalidade social constituída pelo trabalho como mediação geral objetiva tem um caráter temporal, no qual o tempo se torna uma necessidade” (POSTONE, 2014, p. 223). O valor é a forma historicamente específica da produção da riqueza social no capitalismo, e não se identifica necessariamente com a produção da riqueza material: daí a relevância da dialética materialista de Marx de distinguir o duplo caráter da mercadoria, valor de uso (riqueza material) e valor (medida temporal abstrata, medida da riqueza social no capitalismo). Para finalizarmos essa questão:

Argumento que o modo de produção capitalista deve ser entendido não com base em “forças de produção” técnicas separadas das “relações de produção” sociais, mas sim em termos da contradição entre valor e riqueza material, isto é, como uma expressão materializada de ambas as dimensões do trabalho no capitalismo e, portanto, tanto das forças como das relações de produção. (POSTONE, 2014, p. 232).

Outra perspectiva a esse respeito nos traz Saad (2016), utilizando-se da teoria desenvolvida pelo filósofo russo Ilyenkov, que explica que a dialética materialista analisa a realidade estudada por Marx em O Capital como uma totalidade, entendida como um sistema orgânico de partes que se condicionam mutuamente. E o trabalho de apreensão da totalidade segue o vetor do todo para as partes, e não o inverso, da parte ao todo. Saad (2016) assim sintetiza a dialética materialista:

Essa abordagem presume que os fenômenos (os particulares que compõem a realidade concreta) são condicionados por essências comuns, e são geralmente o modo de existência delas. As relações entre essência e fenômeno são determinadas por uma série de mediações, incluindo estruturas sociais, leis, tendências, contratendências e eventos contingentes, operando em diferentes níveis de complexidade. A compreensão teórica do concreto deve partir da essência e gradualmente revelar as mediações que explicam o significado e o sentido de cada parte no todo […]. Esse procedimento sistemático permite a reprodução da realidade enquanto expressão mental da articulação real dos fenômenos. (SAAD, 2016, p. 27).

Assim, a dialética materialista, ao contrário da dialética hegeliana, não trabalha com uma totalidade fechada, mas aberta, nunca esgotada em uma Razão externa aos seres humanos, mas focada na análise e no desvelamento das relações reais construídas pelos homens e pelas mulheres em sociedade, a partir do fato de que existe entre fenômeno e essência não uma identidade direta, mas mediações, sendo o trabalho abstrato e o valor os fundamentos dessa relação no capitalismo, cuja apreensão se faz fundamental para compreendermos o movimento do capital e, também, as formas da dominação social nesse modo de produção.

É Saad (2016) que novamente nos sintetiza a relevância da dialética materialista de Marx para a compreensão da realidade, sem, no entanto, pensar a dialética como “método”, ou seja, um caminho certo para a verdade.

A dialética materialista oferece uma plataforma contextual e específica para a análise do capitalismo, de duas maneiras. Primeiro, ela é historicamente limitada porque os fenômenos e suas essências mudam com o tempo. Segundo, a análise progride através de derivações lógicas e também por meio da incorporação regular de materiais históricos. A dialética materialista reconhece que a investigação científica requer não apenas a familiaridade com o objeto como um ente historicamente existente, mas também a aplicação do método de análise para revelar da maneira mais efetiva as estruturas, tendências e contratendências associadas com a realidade. (SAAD, 2016, p. 35, grifo do autor).

Aqui apreendemos que lógica e história são inseparáveis, e a dialética compõe-se com ambas: derivações lógicas e materiais históricos. Parece ser esse o enredo que Marx cumpriu em sua análise do capitalismo.

Na continuidade da discussão, destacamos, dentro do marxismo, a obra Sobre a Contradição, de Mao Tsé-Tung (1893-1976), entendendo que sua contribuição é de grande valor para a compreensão da dialética, e porque sua influência, controversa até hoje, se apresenta no debate marxista, especialmente em Althusser, que traremos em seguida8.

A contribuição de Mao Tsé-Tung para a dialética

Sobre a contradição é uma obra filosófica escrita por Mao Tsé-Tung em continuidade à Sobre a prática, e foi apresentada como uma conferência na Academia Militar e Política Antijaponesa de Yenan, e a obra final contém algumas modificações. A leitura de Mao Tsé-Tung (2009) conduz-nos a compreender suas posições no âmbito da luta prática pela qual passava a China em seu momento, na superação de uma situação feudal, de extrema pobreza e desigualdade social etc. Sua teoria é guia da prática do que ficou conhecida como a Revolução Chinesa. Nesse sentido, a dialética não tem apenas o sentido de apreender a realidade, as contradições, mas de levar a resolvê-las.

Assim, Mao se integra à Tese 11 sobre Feuerbach, na qual Marx escreve que os filósofos até então haviam apenas interpretado o mundo, mas que era preciso transformá-lo. No processo de resolução das contradições, a dialética tem de dar conta da aparição do novo, que significa a superação da antiga unidade e das contradições que lhe caracterizavam, dando lugar a outra unidade com outras contradições, que sempre podem carregar algo do velho em si.

A tese mais geral sobre a dialética para Mao está assim sintetizada: “[…] o desenvolvimento dos fenômenos é determinado pelas respectivas contradições internas” (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 34). Com isso o líder chinês nos lega que, quando se trata de dialética materialista, ao contrário da metafísica, as causas dos fenômenos não devem ser procuradas em outro lugar que não nas próprias determinações do fenômeno, e, por consequência, nas relações e nos grupos envolvidos. É o perfeito contrário daquela concepção de mundo para a qual as determinações se encontram em outra esfera, divina, por exemplo, para a qual não temos poder de interferir. E, ademais, internamente aos fenômenos existem contradições, e estas constituem o motor do movimento.

O movimento das coisas e seu desenvolvimento são causados pelas contradições internas, que são as causas fundamentais, e, também, pelas inter-relações e/ou interações com elementos externos, que são causas secundárias. As causas externas são a causa das mudanças, e as internas suas bases. As externas operam por meio das causas internas.

Outra característica da dialética proposta por Mao é a universalidade das contradições. Para ele, todos os fenômenos possuem em seu interior, ou no seu movimento, contradições, e estas se apresentam do “princípio até o fim”. “Em todos os fenômenos, a interdependência e a luta dos aspectos contrários que lhes são próprios determinam a sua vida e animam o seu desenvolvimento. Não há fenômeno que não contenha contradição. Sem contradições o mundo não existiria” (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 39)

Tão relevante quanto a universalidade das contradições é a análise das suas particularidades, o que tem de qualitativamente distinto em relação a outros fenômenos, o que possibilita conhecer a sua natureza própria e única. Mao afirma, no entanto, que a base para conhecer os particulares é conhecer o universal das contradições.

[...] se não se estuda o que há de particular nas contradições, é impossível determinar essa essência específica que distingue um fenômeno dos outros, impossível descobrir as causas específicas ou as bases específicas do movimento, do desenvolvimento dos fenômenos e, em consequência, é impossível distinguir os fenômenos e delimitar os domínios da investigação científica. (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 44).

Coloca-se na mesa um processo de cognição da realidade: do geral para o particular, e do particular para o geral, já que o universal não reside em outra realidade que nas particularidades. Citamos Mao novamente em uma passagem elucidativa:

A unidade do particular e do universal, a presença, em cada fenômeno, tanto daquilo que a contradição tem de universal quanto daquilo que ela tem de particular, o universal existindo no particular, nos obriga, ao estudarmos um fenômeno determinado, a descobrir o particular e o universal assim como sua ligação mútua, a descobrir o particular e o universal no próprio interior do fenômeno, assim como sua ligação mútua, a descobrir a ligação que mantém com os muitos outros fenômenos exteriores a ele. (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 55).

E mais, em cada caso particular há de adotarmos perspectivas distintas de resolução das contradições, o que nos coloca contrariamente à metafísica, ou à ideia de um método universal. Mao utiliza Lênin para afirmar mais uma vez sua posição: “Para conhecer realmente um objeto, é necessário abarcar e estudar todos os seus aspectos, todas as suas ligações e ‘mediações’. Nós nunca o conseguiremos de maneira integral, mas a necessidade de considerar todos os aspectos prevenirá dos erros e da rigidez” (LÊNIN9 apudMAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 49).

As diversas contradições existentes não podem ser tratadas uniformemente. São desiguais, além de diferentes ou sobredeterminadas, como diz Althusser (2015). São particulares entre si. Cada contradição ocupa um lugar específico no fenômeno concreto analisado, bem como ocupam posições distintas em relação à totalidade. No longo processo, as contradições movimentam-se, intensificam-se, modificam-se; as fundamentais, que determinam as secundárias, podem radicalizar-se, ou tornar-se secundárias etc. Podem surgir novas contradições. Os estágios dos processos devem ser considerados em suas especificidades.

Insistindo em um aspecto fundamental, Mao reflete sobre aquilo que é a contradição principal em cada processo, e, no seu interior, o aspecto principal dessa contradição. Essa análise deve nos interessar porque as pesquisas em Educação sempre trabalham com cenários complexos, em que existem movimentos contraditórios nos quais temos de identificar as contradições, e, caso não levemos em conta esse aspecto, podemos inferir que determinadas contradições, que de fato são secundárias, sejam tratadas como principais ou vice-versa.

Para Mao Tsé-Tung (2009), cada processo histórico possui em si uma contradição principal, e só uma. E em um processo com várias contradições, o desafio é justamente analisar qual delas é a principal, quais são as secundárias e por que isso ocorre. Além disso, no interior de cada contradição, temos aspectos que, necessariamente, se desenvolvem de maneiras desiguais.

Em qualquer contradição, os polos contrários desenvolvem-se de maneira desigual. Acontece que, por vezes, se estabelece um equilíbrio entre eles, mas isso não é mais do que um estado passageiro e relativo; a situação fundamental é o desenvolvimento desigual. Dos dois aspectos contrários, um é necessariamente principal e o outro, secundário. O principal é aquele que desempenha o papel dominante na contradição. O caráter dos fenômenos é sobretudo determinado por esse aspecto principal da contradição, o qual ocupa a posição dominante. (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 59-60).

Sobre a principal contradição do capitalismo, na visão do marxismo tradicional (POSTONE, 2014), em outras palavras, entre forças produtivas e relações de produção, o materialismo mecanicista e economicista afirma a superioridade das forças produtivas sobre as relações de produção. No entanto, a corrente a que Mao faz parte, e que vem de Marx (na Contribuição à crítica da economia política especialmente isso é mais claro), de Lênin, de Gramsci, sendo Althusser um dos continuadores, acredita que as relações de produção, em determinadas circunstâncias históricas, podem ser determinantes. “Quando a superestrutura (política, cultura etc.) dificulta o desenvolvimento da base econômica, as transformações políticas e culturais se convertem no principal, no decisivo” (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 64). Outro exemplo desse aspecto do materialismo dialético nos é dado por Poulantzas (2019), em Poder político e classes sociais, ao tratar sobre o capítulo da Manufatura em O Capital de Marx.

A manufatura é caracterizada, muito precisamente, pelo fato de que o modo de propriedade já é a forma capitalista de propriedade; essa relação de propriedade institui a “subsunção formal” do trabalhador ao capital, e exprime-se por uma nova forma - capitalista - de organização do trabalho no próprio interior da manufatura. Em contrapartida, no processo de trabalho, na apropriação real da natureza pela produção, a manufatura não é absolutamente caracterizada pela separação do trabalhador e dos meios de produção, mas pela união deles; essa separação se introduz na apropriação real com a grande indústria que instaura a homologia entre a propriedade e a apropriação real. (POULANTZAS, 2019, p. 160-161, grifo do autor).

Nessa dialética entre subsunção formal, na época da manufatura, e a subsunção real do trabalho ao capital encontra-se justamente uma passagem que reforça que não existe uma contradição principal a priori. O papel das superestruturas é organizar o desenvolvimento das forças produtivas, que, por sua vez, tem como última instância, a determinação no modo de produção capitalista.

Um último tema de Mao a ser explorado é a identidade e a luta dos contrários. O primeiro aspecto, diz Mao, refere-se ao fato de que, mesmo contrários, as contradições convivem mutuamente em um mesmo fenômeno, podendo, em determinadas condições históricas, tornarem-se uma só, e, portanto, nesse aspecto, possuem identidade entre si, ou seja, podem converter-se um no outro. Tal identidade, no entanto, é ocasional e temporária, condicionada por aspectos específicos. Contudo, ao contrário disso: “A luta dos contrários que se excluem mutuamente é absoluta, tal como a evolução, tal como o movimento” (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 72). Dessa mesma maneira, podemos dizer que a permanência, como querem os metafísicos, é ocasional e relativa, enquanto a transformação de um processo em outro é absoluta. Em síntese: a luta só pode ocorrer em processos de identidade, e a identidade só acontece porque os contrários convivem mutuamente no mesmo processo.

Há algo distinto, porém, quando se trata de antagonismo. Os processos históricos nem sempre estão antagonizados, afinal as contradições nem sempre levam a esse processo mais radical de transformações. O antagonismo, por conseguinte, é um aspecto particular da luta dos contrários, que ocorre em situações de revolução social. Antagonismo não é, assim, o mesmo que contradição, e, adicionado a isso, não podemos saber previamente quais os elementos permanecerão em um eventual processo revolucionário: Quais aspectos do velho permanecerão? Quais aspectos do novo se sobressairão? Qual o papel de cada um deles vai ocupar na nova situação?

Lenin dizia: “Antagonismo e contradição não são de maneira alguma uma e a mesma coisa. No socialismo, o primeiro desaparecerá e a segunda subsistirá”. Isso significa que o antagonismo não é mais do que uma das formas, e não a única forma, da luta dos contrários, não se devendo empregar esse termo por todo lado, sem discernimento. (MAO TSÉ-TUNG, 2009, p. 76).

A partir dessas premissas do líder chinês, concluímos a discussão da dialética materialista com uma breve síntese sobre a questão da sobredeterminação, tal como a entende o filósofo francês Louis Althusser.

Contradição e sobredeterminação: a dialética materialista na perspectiva do marxismo estrutural

O marxismo althusseriano, sem dúvida, é uma das correntes mais vivas e relevantes do marxismo da segunda metade do século XX em diante e, até hoje, reverbera no campo marxista com muitas contribuições importantes. Destacamos para o estudo da dialética o conceito seminal desenvolvido por Althusser, no livro publicado em 1965, Pour Marx, de sobredeterminação (ALTHUSSER, 2015). Utilizamos também um texto de Althusser, intitulado A propósito de Marx e a História (ALTHUSSER, 2022).

O conceito de sobredeterminação é uma das contribuições relevantes do althusserianismo ao marxismo, sem, no entanto, ser uma “descoberta” de Althusser. A tradição vem de Marx, passa por Lênin e, também, pela leitura de Mao Tsé-Tung (2009), em seu Sobre a contradição, especialmente a respeito da lei do desenvolvimento desigual das contradições.

Assim, partindo do princípio de que a dialética trata, sobretudo, de contradição, esta, segundo Althusser (2015),

[...] é inseparável da estrutura do corpo social como um todo, no qual ela se exerce, inseparável de suas condições formais de existência, e mesmo das instâncias que governa; que é, portanto, a própria contradição, em seu âmago, afetada por elas, determinante mas igualmente determinada num único e mesmo movimento, e determinada pelos diversos níveis e pelas diversas instâncias da formação social que ela anima: poderíamos chamá-la sobredeterminada em seu princípio. (ALTHUSSER, 2015, p. 78-79, grifos do autor).

Assim, as contradições existentes na sociedade não podem ser tratadas de forma homogênea, nem mesmo unilinear. As diversas instâncias possuem entre si relações de mútua determinação. Todavia, sempre existem contradições que sobredeterminam outras. Althusser (2015) afirma que a contradição entre capital e trabalho não é simples, mas sempre marcada, especificada pelas formas da superestrutura (Estado, ideologia, religião, movimentos etc.), pela situação contextual interna e externa, que derivam do passado de cada país, por exemplo, e até mesmo do contexto mundial, do imperialismo, “[...] podendo muitos desses fenômenos depender da ‘lei do desenvolvimento desigual’ no sentido leninista” (ALTHUSSER, 2015, p. 83).

O autor aqui analisado afirma que, em Marx, desaparece a pretensa identidade tácita entre econômico e político e constitui-se uma nova relação: a da determinação em última instância do econômico, por um lado, e a autonomia relativa das superestruturas e a eficácia específica de cada uma delas, por outro (ALTHUSSER, 2015). Trata-se do tema levantado por Engels, em carta a J. Bloch, de 1890, na qual ele afirma categoricamente ser um desvio pontuar que o fator econômico é o único determinante. Ao contrário, diz Engels, às vezes na história os fatores superestruturais são determinantes. A “última instância”, portanto, deve ser levada a sério na dialética materialista, superando desvios de ordem economicista, que propõem um reflexo direto e imediato do econômico sobre as superestruturas. Segundo Althusser (2022), a presença da “última instância” justamente condiz com o fato da existência de outras instâncias, que podem se tornar determinantes. A grande contribuição althusseriana é nos fazer entender que a “última instância” determina, no jogo dialético do real, a forma das outras determinações. Segundo o autor: “A dialética é o jogo aberto pela última instância entre ela e as outras ‘instâncias’, mas essa dialética é materialista: ela não joga no ar, ela joga-se no jogo pela última instância, material. Na tópica [estrutura e superestrutura], Marx inscreve, pois, sua posição materialista e dialética” (ALTHUSSER, 2022).

A questão da última instância é fundamental na análise da Educação e das Políticas Educacionais, que se colocam ambas no centro dessa dinâmica dialética. Nas considerações finais, traremos uma síntese de como as discussões sobre a dialética aqui estabelecidas podem contribuir para as pesquisas em Educação.

Dialética, pesquisa em Educação e Políticas Educacionais

O primeiro ponto de abordagem da relação entre dialética, pesquisa em Educação e Políticas Educacionais, no âmbito do materialismo histórico, é compreender o político tal como Poulantzas (2019), como uma teoria regional no modo de produção capitalista e sua relação com as instâncias econômica e ideológica. Logo, trata-se não somente de uma análise de conjuntura, mas de uma construção epistemológica.

Sua constituição [do político] em objeto de ciência, ou seja, a construção de seu próprio conceito, depende não da sua natureza, mas do seu lugar e da sua função na combinação particular que especifica esse modo de produção [...]. Mais particularmente, é a articulação das instâncias, própria desse modo de produção, que define a extensão e os limites dessa instância regional, designando à teoria regional correspondente o seu domínio. (POULANTZAS, 2019, p. 20, grifos do autor).

Não precisamos adentrar demasiadamente esta sugestão do marxista grego, pois esta já se encontra discutida anteriormente, no conceito de sobredeterminação de Althusser, que é sua referência. Entretanto, mesmo assim, é importante ressaltarmos que a análise de Políticas Educacionais, na perspectiva da sobredeterminação, conforme a dialética materialista, impõe que relacionemos, a partir da determinação econômica em última instância, como a instância regional do político e as suas combinações agem no modo de produção capitalista.

Buscar o lugar e a função do político como meio de compreender as Políticas Educacionais deve ser o objetivo das pesquisas nesse campo, sem com isso cair no funcionalismo. Ao contrário, é justamente o papel da dialética materialista em seu sentido crítico e revolucionário apreender o movimento, teórica e praticamente, para nele poder interferir e transformar.

Concordamos com Tello (2022), para quem não se pode confundir Estado com governo, nem Políticas Educacionais com políticas de governos, sob o perigo de acabar realizando uma pesquisa de cunho descritivo, sem chegar a níveis de abstração necessários para uma construção científica coerente e com maiores contribuições ao campo da pesquisa (MAINARDES; TELLO, 2016). Ao destacarmos a dialética como fundamento de pesquisas que se colocam no campo das Teorias e Epistemologias das Políticas Educacionais, mais especificamente do eixo “Desenvolvimento de metodologias para a pesquisa em políticas educativas” (TELLO, 2022), estamos ratificando que se trata de uma forma excepcional para se chegar a uma pesquisa no nível da “compreensão” tal como a definem Mainardes e Tello (2016), para os quais:

São estudos que buscam abordar a temática (teórica ou empírica) de modo mais totalizante, explorando de forma aprofundada as relações e as determinações envolvidas na política investigada ou na questão que está sendo discutida. De modo geral, são estudos que apresentam maior riqueza e profundidade nas análises, podendo inclusive servir de base para outras pesquisas. (MAINARDES; TELLO, 2016, p. 7).

A teoria regional do político no modo de produção capitalista, na qual as Políticas Educacionais são localizadas, junta-se com as teorias particulares do modo de produção capitalista a que pertence. “O lugar designado ao político no modo de produção capitalista depende da teoria particular desse modo [...] tal como exposto por Marx em O Capital” (POULANTZAS, 2019, p. 21). Portanto, para as pesquisas em Políticas Educacionais, compreender a totalidade e aprofundar as análises, bem como as relações e as determinações envolvidas na construção do objeto das pesquisas, pressupõe “dar um passo atrás”, no sentido de que localizar o político e as Políticas Educacionais, bem como determinar suas funções nesse modo de produção capitalista. Caso contrário, corre-se o risco de não encontrar as contradições principais e secundárias (MAO TSE TUNG, 2009) e acabar realizando uma pesquisa descritiva, que não apreende de fato o movimento dialético do objeto.

Conforme Poulantzas (2019, p. 21), refere-se a um tratamento científico da pesquisa, do abstrato ao concreto: “Essa ordem lógica, que dos conceitos mais abstratos conduz aos conceitos mais concretos, vai dos conceitos da teoria geral do materialismo histórico àqueles que permitem proceder à análise concreta de uma situação concreta, segundo a expressão de Lenin”.

Outra característica a ser ressaltada nesta análise aqui desenvolvida é que o modo de produção capitalista se caracteriza por uma “autonomia relativa” entre o econômico e o político, causada pela separação entre o produtor direto e os meios de produção, como já abordado anteriormente. Assim, para não incorrer no erro economicista, é preciso compreender que os fatos que ocorrem na produção de mercadorias não se expressam diretamente, em forma de reflexo, no campo da Educação e da superestrutura em geral. Afinal, não é incomum que as pesquisas enfoquem como a educação é alvo dos interesses econômicos de setores privados, e releguem ao papel reprodutor da educação um lugar secundário, quando, na verdade, é fundamental, já que se trata de um aparelho ideológico (ALTHUSSER, 1980).

Outra forma comum das pesquisas é reproduzir as mudanças na produção fordista para a toyotista como fonte direta e imediata das mudanças da forma escolar, incluindo a gestão, a formação de professores etc. Tais alusões partem do suposto de que a dominação econômica não se dá, no modo de produção capitalista, em última instância, mas que é, de fato, a primeira e única instância dominadora, a partir da qual se reproduz na superestrutura ipsi literis seus legados.

Como modo de concluirmos essas reflexões, coincidimos com Masson e Flach (2018) no sentido de que o materialismo histórico não é um “conjunto de regras” para guiar a pesquisa, mas trata-se de uma teoria geral, a partir da qual podemos analisar e compreender a realidade, para transformá-la. Preocupa-nos, como aponta a pesquisa de Buczek (2022), a escassez da presença da dialética nas pesquisas educacionais, e, embora tenha tratado especificamente do campo Trabalho e Educação, a mesma advertência cabe ao campo das Políticas Educacionais: há um relativo abandono da dialética materialista, e, com ela, das perspectivas revolucionárias no próprio marxismo. No caso das Políticas Educacionais, parece haver o abandono da radicalidade que significa o estudo do político, como brevemente o configuramos a partir de Poulantzas (2019), e o acento generalizado nas pesquisas sobre políticas de governos, nas quais, de fato, não encontraremos as contradições principais para solucionar os problemas originados pelo modo de produção capitalista.

Considerações finais10

Konder (2008), afirmando que a dialética tem como característica fundamental o espírito crítico e autocrítico e, também, o de duvidar de tudo, nos incita a rever o passado à luz do presente, sem no entanto cair em anacronismos. Ao mesmo tempo, ele questiona o presente de olho no futuro, o que está sendo mas ainda não é. O dramaturgo alemão Bertolt Brecht disse uma vez: “O que é, exatamente por ser tal como é, não vai ficar tal como está”.

O pensamento dialético - o que leva em conta que é inevitável a mudança e é impossível a permanência total e para sempre - é contrário ao pensamento dominante, que induz a pensar que tudo está como deveria estar, nos melhores mundos possíveis (Cândido de Voltaire).

O método dialético não se presta para criar cachorrinhos amestrados. Ele é, como disse o argentino Carlos Astrada, “semente de dragões”. Os dragões semeados pela dialética vão assustar muita gente pelo mundo afora, talvez causem tumulto, mas não são baderneiros inconsequentes; a presença deles na consciência das pessoas é necessária para que não seja esquecida a essência do pensamento dialético, enunciada por Marx na décima primeira tese sobre Feuerbach: “os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo; trata-se, no entanto, de transformá-lo.” (KONDER, 2008, p. 87).

Para a pesquisa em Educação, ficam algumas questões: Quais as contradições em que os nossos objetos de pesquisa estão imersos? Quais os aspectos dessas contradições? Quais são principais? Quais são secundários? E com relação a outras contradições? Como se relaciona o nosso objeto com a totalidade social? Quais mediações são necessárias para compreender o movimento de nosso objeto de estudo?

Para concluirmos, construímos algumas reflexões para incidirem nas pesquisas, tentando escapar de determinados vícios existentes nas análises de Políticas Educacionais. Em primeiro lugar, é preciso lembrarmos que contradição não é o mesmo que antagonismo e, principalmente, que as contradições não necessariamente levam a situações de antagonismos. Dessa forma, as Políticas Educacionais advindas do Estado não podem ser tratadas como mecanismos de antagonismos, mas, no máximo, de contradições. E, de fato, nem toda contradição dentro da sociedade capitalista significa um caminho de superação dessa sociedade. Na verdade, as contradições podem significar disputas internas às frações de classe burguesa, que defendem taticamente interesses diversos, ou, de outro modo, interesses das classes trabalhadoras expressas na forma de Políticas Educacionais nem sempre significam caminhos para construir antagonismos, mas podem reforçar as estruturas sociais capitalistas.

Devemos, como diz Althusser, evitar a “inflação de contradições” (MARTUSCELLI, 2018), quer dizer, devemos evitar uma concepção para a qual tudo muda o tempo todo, e que toda mudança pode ser direcionada para a superação da sociedade capitalista. Nesse sentido, é preciso que no campo das pesquisas em Políticas Educacionais se leve mais em conta os fatores da reprodução social.

Contudo, as pesquisas podem recair em concepções economicistas, direcionando as análises para compreender a educação como reflexo direto e imediato do econômico11. Há de verificar-se nas pesquisas como o projeto formativo dominante na nossa sociedade avança sobre a realidade econômica, mesmo sendo por ela determinada; desse modo, é preciso levarmos em conta o conceito de sobredeterminação.

A partir do exposto neste trabalho, acreditamos contribuir com o desenvolvimento de pesquisas em Políticas Educacionais mais próximas das exigências da dialética materialista, entendendo que ao fazer isso estamos contribuindo com a luta de classes na teoria, fundamental para a luta de classes em geral.

1Nesse trecho, Konder se refere às apropriações mecanicistas do marxismo, em períodos de autoritarismo stalinista nos partidos comunistas. Assim se expressa: “Foi grave, mesmo, o que aconteceu com o pensamento de Marx no uso que lhe deram os políticos e teóricos integrados ao movimento dos partidos comunistas: instituiu-se uma ‘ortodoxia’ posta sob o controle dos dirigentes supremos do movimento comunista mundial e se reduziu drasticamente o espaço da reflexão livre ligada à ação” (KONDER, 2003, p. 5). Com esse complemento fica mais clara a relação na qual a falta de diálogo prejudica a dialética.

2Kant realizou o que se convencionou denominar de “virada copernicana” na epistemologia moderna, que significou retirar a centralidade do conhecimento sobre o objeto e deslocar esse centro para o sujeito. O objeto, nesse sentido, é conhecido a partir das estruturas a priori do sujeito. Os “[…] objetos devem se regular pelo nosso conhecimento o que se coaduna melhor com a desejada possibilidade de um conhecimento a priori, que estabeleça alguma coisa em relação aos objetos antes que eles nos sejam dados” (KANT, 1985, p. 20). Assim, o ponto de vista do sujeito é inalienável no conhecimento, ou seja, é o sujeito do conhecimento, com suas estruturas a priori espaço-temporais, que iluminam o objeto. O que se universaliza são as ferramentas humanas, estruturas que organizam o conhecimento. Essas estruturas não são derivadas das experiências, são condições a priori, universais. Chasin (1997, n.p.), em O método dialético, resume assim: “Em Kant, é a subjetividade que organiza a objetividade”.

3O idealismo kantiano caracteriza-se, segundo Inwood (1997, p. 165) por “[…] referir-se à crença em que os objetos como tais ou os objetos como os conhecemos (ou podemos conhecê-los) são simplesmente as minhas (ou nossas) ideias ou construções a partir de, ou projeções de, minhas (ou nossas) ideias […] existem coisas independentes da mente em si mesmas e das quais só podemos conhecer as aparências, isto é, as ideias (Vorstellungen, não Ideen) que são o produto conjunto de seu efeito sobre os nossos sentidos e as formas de nosso entendimento (as categorias) e de nossa sensibilidade (espaço e tempo). O idealismo de Kant envolveu um dualismo ou oposição entre fenômenos e a coisa-em si e entre conceitos e o material sensorial, que os seus sucessores tentaram eliminar.”

4 Althusser (2007), em suas notas sobre Filosofia e História em Hegel, afirma que há, nessa relação, um aspecto epistemológico, nos seguintes termos: “a) Sentido epistemológico - e nesse sentido apresentam o interesse de mostrar que a história, se quiser ser científica, deverá considerar seu objeto como objeto inteligível e racional (condição formal de toda ciência) - e, além disso, recorrer a uma teoria abstrata, sem a qual não pode pensar seu objeto, contanto que essa teoria não seja produto da subjetividade do historiador, mas a teoria da estrutura mesma de seu objeto, em sua essencialidade específica - sendo então a filosofia nada mais que a ciência em seus princípios mesmos” (ALTHUSSER, 2007, p. 136, grifos do autor).

5Não podemos aqui desenvolver o tema do trabalho em Hegel, mas, a título de provocação decolonial e materialmente situada, indicamos o já clássico Hegel e o Haiti, de Susan Buck-Morss (2011), que trata da dialética do amo e do escravo, fincada na materialidade das relações coloniais e no fato histórico da revolução haitiana como prelúdio, antecipação, da Revolução Francesa.

6Sobre esse tema pairam as mais radicais polêmicas no marxismo. Indicamos a leitura de Althusser (2015), que faz uma síntese da presença de Hegel e Feuerbach na obra do jovem Marx. Também destacamos uma concepção absolutamente distinta de Althusser, mas que se encontra convergente no sentido de que a obra de Marx não se dá em continuidade com Hegel: “O marxismo não nasce simplesmente da decisão de cancelar a mistificação do ‘espírito do mundo’ e de outros conceitos deste tipo, mas conservando, ao mesmo tempo, o método de Hegel, combinado de modo eclético, no melhor dos casos, com um material recolhido das ciências naturais, com análises econômicas e sociológicas etc. Trata-se, ao contrário, de desenvolver um método fundamentalmente novo, oposto à dialética hegeliana” (LUKÁCS, 2009, p. 150).

7Seria necessário um curso específico e especializado na obra do professor Ruy Fausto e a relação que faz entre a Lógica de Hegel e O Capital de Marx (FAUSTO, 2021). Trazemos, aqui, apenas a título de uma contribuição ao pensamento dialético marxista, o que o autor afirma sobre a noção de apresentação, relativa à obra O Capital. “Que significação objetiva, ou seja, qual correlate objetivo poderia ter a apresentação? Já é quase uma banalidade dizer que os conceitos de O capital têm, no sentido mais estrito, uma pretensão à objetividade. Eles não constituem somente uma trama conceitual a partir da qual o objeto poderia ser apreendido, eles reproduzem ou pretendem reproduzir o real, que é movimento, na sua textura própria […]. Na realidade [para um livro como O capital], é preciso supor que a própria apresentação é [ou pretende ser] a re-produção do retal, senão, de uma maneira ou de outra, o discurso se subjetiviza […]. Na verdade, se a apresentação é um movimento, o objeto enquanto totalidade deve ser, ele mesmo, um movimento (o que é diferente de uma totalidade em movimento) […]. O objeto, o modo de produção capitalista, posto enquanto capitalismo da grande indústria, se apresenta como um movimento que revela sucessivamente - mas essa sucessão é simultaneidade - a aparência, a essência e, em seguida, a essência da essência que é também ‘paradoxalmente’ a exteriorização do sistema. O objeto é o movimento de todos esses momentos” (FAUSTO, 2021, p. 54-55, grifos do autor). Fica registrado que esse filósofo brasileiro empreendeu uma obra magistral sobre o tema da lógica em Marx e Hegel. A sua morte, em 2020, deixou um vazio nesse campo da filosofia marxista.

8A influência de Mao sobre Althusser, pela mediação de Lênin, pode ser vista em sua deferência ao texto Sobre a contradição na obra Por Marx (ALTHUSSER, 2015).

9Refere-se ao texto de Lênin: “Uma vez mais sobre os sindicatos, a situação atual e os erros de Trotsky e Bukharin”.

10Algumas reflexões aqui presentes são parte de uma obra maior, que será publicada em 2022, sobre as contribuições do marxismo althusseriano para a Educação (MELO, 2022).

11Seria necessário uma pesquisa especialmente direcionada a compreender os desvios economicistas das pesquisas em Políticas Educacionais, que se pautam na seguinte fórmula: o neoliberalismo, advindo de uma força externa que se impõe ao país, com destaque para os organismos internacionais, determina a reforma do Estado nos anos de 1990, via Bresser-Pereira, e, por sua vez, as Políticas Educacionais daí advindas apenas fazem reforçar essa ação econômica externa, tanto pela formação unilateral (por exemplo, as competências) quanto pelo avanço do setor privado no orçamento público da educação. Essa fórmula, por assim dizer, precisa ser repensada no campo da pesquisa em Políticas Educacionais, já que, segundo demonstramos neste trabalho, parece não exercer na análise as complexidades da dialética materialista.

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Recebido: 20 de Março de 2022; Revisado: 27 de Maio de 2022; Aceito: 01 de Junho de 2022; Publicado: 08 de Junho de 2022

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