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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 10-Maio-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21795.027 

Artigos

Articulando a Educação Científica com a Sociologia de Educação: o contributo significativo de Ana Maria Morais

Articulating Science Education with the Sociology of Education: the significant contribution of Ana Maria Morais

Articulando la Educación Científica con la Sociología de la Educación: la importante contribución de Ana Maria Morais

*Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. E-mail: <imneves@ie.ulisboa.pt>.


Resumo

Este artigo tem como objetivo prestar um tributo a Ana Maria Morais, coordenadora do Grupo ESSA (Estudos Sociológicos da Sala de Aula) que integrou a Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação (UIDEF) do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Nesta homenagem pretende-se destacar o seu legado académico, de grande mérito profissional e de enorme rigor intelectual, com uma vasta obra nos campos do ensino das ciências e da sociologia da educação. Salienta-se o seu papel crucial no desenvolvimento de uma investigação pioneira centrada na interação entre o ensino das ciências e a sociologia da educação, tendo como suporte conceptual a teoria do sociólogo inglês Basil Bernstein. Refere-se ainda o seu importante papel como uma das vozes marcantes pela defesa de um ensino das ciências centrado na qualidade e rigor científico e de uma educação conceptualmente exigente para todos os alunos.

Palavras-chave: Sociologia da Educação; Educação Científica; Ana Maria Morais

Abstract

This paper aims to pay tribute to Ana Maria Morais, coordinator of the ESSA Group (Sociological Studies of the Classroom Group) which was part of the Unit for Research and Development in Education and Training (UIDEF) of the Institute of Education of the University of Lisbon. This tribute intends to highlight her academic legacy, of great professional merit and intellectual rigor, with a vast body of work in the fields of science education and sociology of education. It is enhanced her crucial role on the development of a pioneering research centred on the interaction between science education and sociology of education having as conceptual support the theory of the English sociologist Basil Bernstein. It is also referred her important role while defending a science education centred on scientific quality and rigor and a conceptually demanding education for all students.

Keywords: Sociology of Education; Science Education; Ana Maria Morais

Resumen

Este artículo tiene como objetivo rendir homenaje a Ana Maria Morais, coordinadora del Grupo ESSA (Estudios Sociológicos en el Aula) que formó parte de la Unidad de Investigación y Desarrollo en Educación y Formación (UIDEF) del Instituto de Educación de la Universidad de Lisboa. Este homenaje pretende destacar su legado académico, de gran mérito profesional y enorme rigor intelectual, con una vasta obra en los campos de la didáctica de las ciencias y la sociología de la educación. Se destaca su papel crucial en el desarrollo de una investigación pionera centrada en la interacción entre la enseñanza de las ciencias y la sociología de la educación, teniendo como soporte conceptual la teoría del sociólogo inglés Basil Bernstein. También se refiere a su importante papel como una de las voces destacadas de la defensa de una enseñanza de las ciencias centrada en la calidad y el rigor científicos y de una educación conceptualmente exigente para todos los alumnos.

Palabras-clave: Sociología de la Educación; Educação Científica; Ana Maria Morais

“You may stay if you wish but I don’t think this is going to be of much use to you.” That’s how I was allowed into Professor Bernstein’s seminars [of sociology] some twenty years ago.1

(Morais, 2001, p. 31)

Ana Maria Morais2 terminou, em 2010, a sua atividade docente como professora jubilada da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mas manteve-se até 2021 como investigadora da UIDEF (Unidade de Investigação e Desenvolvimento em Educação e Formação) do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, enquanto coordenadora do Grupo ESSA (Estudos Sociológicos da Sala de Aula) 3.

A nível nacional e internacional, foi pioneira no desenvolvimento de investigação centrada na interação entre o ensino das ciências e a sociologia da educação e foi uma das vozes marcantes pela defesa de um ensino das ciências centrado na qualidade e rigor científico e na importância crucial de uma educação conceptualmente exigente para todos os alunos. Ana Maria Morais deixa um legado académico de grande mérito profissional e de enorme rigor intelectual, com uma vasta obra nos campos do ensino das ciências e da sociologia da educação.

Todo o trabalho que desenvolveu na área do ensino das ciências teve início no século passado e, graças ao seu espírito combativo e capacidade de liderança, marcou de forma indelével a comunidade académica dessa área. Ainda como professora de biologia do ensino secundário criou, nos anos 70, o GTEB (Grupo de Trabalho para o Ensino da Biologia) que desenvolveu trabalho no âmbito da formação contínua de professores de ciências, com a realização de cursos de atualização, ainda hoje reconhecidos a nível nacional. Mais tarde, já como professora do ensino universitário e, após realizar a sua tese de doutoramento com o sociólogo inglês Basil Bernstein, criou o Grupo ESSA, iniciando investigação com o foco central na interligação entre o ensino das ciências e a sociologia da educação. Para essa investigação muito contribuiu a coordenação científica de Basil Bernstein que manteve uma relação profissional e pessoal muito estreita consigo e com todo o grupo, deslocando-se várias vezes a Lisboa enquanto consultor de muitos dos projetos desenvolvidos.

A relação de Ana Maria Morais com Bernstein teve início em Londres quando, na década de 1980, frequentou um seminário orientado por ele no Departamento de Sociologia. Segundo contava, ficou de imediato deslumbrada com a riqueza das suas ideias e desde logo pensou que teria de ser ele a orientar a sua tese de doutoramento. No início sentiu ter havido alguma estranheza da parte de Bernstein em aceitar as suas ideias porque vinha de uma área - ensino das ciências - em que a sociologia, na altura, não tinha lugar, mas acabou por considerar interessante a forma como ela se propunha analisar a aprendizagem científica com o recurso a modelos e conceitos contidos na sua teoria sociológica. A referência a essa estranheza está presente no texto que Ana Maria Morais apresentou, em 2001, no tributo a Basil Bernstein, prestado no Instituto de Educação da Universidade de Londres.

Contando com a colaboração e apoio incondicional de Bernstein, esforçou-se por dar voz em Portugal à teoria deste sociólogo que, reconhecendo o valor do trabalho por ela desenvolvido com a sua equipa de investigação, não só lhe deu relevância em termos do desenvolvimento da sua própria teoria, como contribuiu para projetar o seu nome a nível internacional. Como o próprio referiu num dos seus livros (Bernstein, 1996):

Thus by varying the classification and framing values over different elements of the pedagogic practice we could evaluate the effects on the children’s attainments. In other words we could design pedagogic practices on a rational basis and evaluate their outcomes. Ana Maria Morais et al did exactly this […] Morais’s remarkable study shows uniquely the intimate relations between the theory, principles of description and the research […]4 (p. 103)

Domingos’s (Morais) research is the most exhaustive and detailed study of the process of transmission/acquisition with respect to class, gender and race that I know. It is also a fundamental exploration of the usefulness of the theory.5 (p. 124)

O Projeto Contributo da Sociologia da Educação para a Análise do Insucesso Escolar em Ciências, por ela coordenado e financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, representou o primeiro passo nessa direção, incluindo um curso que reuniu professores e investigadores das áreas do ensino das ciências e da sociologia e a publicação posterior do livro A teoria de Bernstein em sociologia da educação (Domingos, Barradas, Rainha & Neves, 1986.)

Foi também ela a impulsionadora dos Simpósios sobre a obra de Bernstein, com a finalidade de divulgar investigação que usasse a teoria deste sociólogo como seu fundamental suporte conceptual. O primeiro Simpósio, “Towards a sociology of pedagogy: The contribution of Basil Bernstein to research”, que organizou (em colaboração com Isabel Neves) realizou-se em Lisboa, no ano 2000, reunindo investigadores de diversas nacionalidades e de várias áreas científicas (sociologia, linguística, ciências, entre outros), e tendo como objetivo principal discutir e avaliar a investigação já realizada e traçar direções para pesquisa futura. Dado o interesse suscitado por essa primeira reunião científica, passaram a realizar-se, de dois em dois anos, em diversos países, simpósios dedicados à investigação baseada na teoria de Bernstein.

Desde os tempos do GTEB, muitos foram os trabalhos que publicou, em autoria e em coautoria, contabilizando mais de 100 publicações em artigos e em livros, centradas na aprendizagem científica, desenvolvimento curricular e formação de professores e na aplicação da teoria do discurso pedagógico de Bernstein a estas dimensões de análise.

Uma forma de estruturar o ensino e aprendizagem (Domingos, Neves & Galhardo, 1981) e Ciências do Ambiente - Livro do professor (Domingos, Neves & Galhardo, 1983) são exemplos de obras publicados ainda como membro do GTEB. O primeiro contém um conjunto de ideias/sugestões que foram sendo desenvolvidas no âmbito de projetos que incluíram cursos de formação contínua de professores de ciências. O segundo resultou de um projeto, inovador na área do desenvolvimento curricular, que envolveu a estruturação, lançamento e testagem de um novo currículo de Ciências do Ambiente para o 5º Ano Experimental (atualmente, 9º ano de escolaridade), com a participação de 80 professores e 4.000 alunos de cerca de 60 escolas de várias regiões de Portugal.

Os livros Socialização primária e prática pedagógica, Vol. I (Morais, Peneda, Neves & Cardoso, 1992) e Vol. II (Morais, Neves, Medeiros, Peneda, Fontinhas & Antunes, 1993)6, bem como os livros Estudos para uma sociologia da aprendizagem (Morais, Neves et al, 2000) e Currículos, manuais escolares e práticas pedagógicas: Estudo de processos de estabilidade e mudança no sistema educativo (Morais, Neves & Ferreira, 2014) são publicações resultantes de projetos que coordenou no âmbito do grupo ESSA. Para além destes livros, as suas publicações estão presentes em revistas nacionais e internacionais das áreas do ensino das ciências e da sociologia de educação.

Um aspeto interessante a salientar, e que poderá ser de interesse para jovens investigadores, tem a ver com a dificuldade que, por vezes, Ana Maria exprimiu sobre a aceitação dos trabalhos, realizados pelo Grupo ESSA, em revistas de prestígio académico. Tal dificuldade surgiu no início das suas publicações, dado o facto de derivarem de trabalhos que interligam duas áreas habitualmente separadas. Revistas de sociologia (como o Bristish Journal of Sociology of Education) não facilitavam a divulgação de trabalhos com o foco em ensino das ciências e revistas de ensino das ciências (como o Research on Science Teaching) não se mostravam recetivas a trabalhos envolvendo a sociologia da educação. Contudo, graças ao mérito e rigor científico das investigações por ela coordenadas, foi possível desvanecer as fronteiras entre as duas áreas do conhecimento, passando os trabalhos dos investigadores do ESSA a surgir em revistas de qualquer dessas áreas.

Como anteriormente referido, foram três as principais áreas em que centrou a sua atividade de investigação - aprendizagem científica, desenvolvimento curricular e formação de professores.

No âmbito da aprendizagem científica, deu particular importância ao nível de exigência conceptual que deveria caracterizar a prática pedagógica dos professores, independentemente da origem sociocultural e económica dos alunos. A compreensão da importância da prática pedagógica em sala de aula foi possível graças aos estudos sobre a família/comunidade e sua relação com o contexto escolar. A posição crítica que revelou, ao longo de todo o seu percurso académico, sobre o recurso a práticas pedagógicas de baixo grau de exigência conceptual para alunos de níveis socioculturais e económicos desfavorecidos, assenta fundamentalmente na defesa de uma educação científica igualitária para todos. Dentro desta linha de pensamento, Morais (Domingos, 1987), defendia que:

“[…] os professores que têm um nível muito baixo de exigência conceptual falham em compreender as implicações sociológicas do processo de transmissão-aquisição que promovem. Os alunos que entram na escola já em desvantagem sairão dela ainda mais desfavorecidos. […] a compreensão de conceitos e princípios científicos e a competência em usar este conhecimento para resolver novos problemas e para compreender e criticar o mundo não deveria ser privilégio de uns poucos, socialmente selecionados.” (pp. 59-62).

E, recorrendo às ideias de Bernstein sobre as estruturas de conhecimento (Bernstein, 1999), problematizava essa exigência conceptual com base na própria estrutura do conhecimento científico. Tal como afirmado em Morais e Neves (2012):

“Manter a igualdade social em contextos de aprendizagem científica significa criar condições para que todos os alunos tenham acesso ao discurso pedagógico que expressa a estrutura do conhecimento científico. E levar todos os alunos a ter acesso à estrutura hierárquica do conhecimento científico significa dar-lhes a oportunidade de aprender ciência num contexto conceptualmente exigente.” (p. 85).

A convicção de que, para além do grau de exigência conceptual, as relações presentes nos contextos instrucional e regulador da sala de aula constituíam uma dimensão crucial para a aprendizagem científica de todos os alunos, esteve na base das investigações que coordenou sobre a prática pedagógica dos professores. Usando, da teoria do discurso pedagógico de Bernstein (Bernstein, 1990), os conceitos de classificação e de enquadramento relacionados com os contextos instrucional e regulador da sala de aula, os resultados dessas investigações permitiram sugerir um modelo de prática pedagógica que concilia características de um modelo tradicional (de classificações e enquadramentos gerais fortes) com as características de um modelo progressista (de classificações e enquadramentos gerais fracos). A conceptualização deste modelo de prática constitui um dos marcos mais significativos do legado científico deixado por Ana Maria Morais. Em resumo, e como referido em Morais e Neves (2009):

“O trabalho de investigação que o Grupo ESSA (Estudos Sociológicos da Sala de Aula) vem desenvolvendo há mais de vinte anos tem procurado encontrar respostas para o importante problema de melhorar a aprendizagem dos alunos, particularmente dos desfavorecidos, sem baixar o nível de exigência conceptual. […] A aprendizagem dos alunos tem sido estudada ao longo de todo o sistema educativo, desde o jardim-de-infância ao ensino superior e tem-se, fundamentalmente, centrado na educação científica. […] Ao longo de todo o processo de investigação, chegou-se à conceptualização de um modelo de prática pedagógica da escola que parece ter o potencial para levar os alunos ao sucesso diminuindo o fosso entre alunos de origens sociais diferenciadas”. (pp. 5-6).

No âmbito do desenvolvimento curricular, e recorrendo ao modelo do discurso pedagógico de Bernstein (1990) e à sua teorização sobre formas e estruturas de conhecimento (Bernstein, 1999), a investigação centrou-se na análise de textos produzidos a vários níveis do sistema educativo, considerando não só as múltiplas relações entre esses níveis, mas também as relações que se estabelecem entre esse sistema e a sociedade.

Para além da análise do nível de exigência conceptual de programas de ciências, a investigação nesta área incluiu análises sobre a forma como os autores dos currículos/programas explicitam, quer a mensagem pedagógica contida nesses documentos, quer os princípios que fundamentam essa mensagem e ainda análises sobre as relações Ministério da Educação-escola/professores, em modelos curriculares distintos. Dessas análises, surgiram reflexões importantes que sustentam o posicionamento crítico de Ana Maria Morais relativamente a modelos flexíveis de currículo, quando se tem em mente a formação dos professores. Como afirmado em Morais, Neves e Ferreira (2018):

“Se é verdade que um currículo com uma mensagem vaga e pouco clara pode dar maior autonomia aos professores, também é verdade que essa mensagem pode ser prejudicial para professores com formação académica pouco sólida. Explicitar a mensagem pedagógica que é veiculada num currículo, com indicação dos fundamentos que lhe estão subjacentes, pode constituir um fator fundamental para o processo educativo dado que o conhecimento claro dessa mensagem permite (ou não) a sua recontextualização pelos professores.” (p. 34).

[…] O significado que pode ser atribuído às relações Ministério da Educação-escola/professores, em modelos curriculares distintos, […] é um aspeto que assume especial relevância no contexto de um modelo de gestão flexível do currículo. […] Neste modelo a existência de um mecanismo regulador da implementação do currículo - como é, por exemplo, a existência de um sistema de avaliação externa das escolas - não significa dar poder à escola/professores, mas significa antes que a escola/professores podem, dentro de certos limites, serem também “construtores” do currículo. Embora a existência de mecanismos reguladores da implementação do currículo possa ser vista como redutora da ação da escola e dos professores e como impeditiva da adequação do currículo às necessidades dos alunos de cada escola/região, é importante ter presente que, na ausência de uma sólida formação académica e pedagógica dos professores, tal situação pode ser mais prejudicial do que benéfica para os alunos, principalmente para os alunos socialmente desfavorecidos.” (pp. 35-36).

No âmbito da formação de professores, o seu trabalho incidiu na formação inicial e contínua de professores, dimensão que desenvolveu como docente e como investigadora. Enquanto formadora de cursos de atualização de professores, ainda como membro do GTEB e, mais tarde, como docente de futuros professores de biologia, pugnou por uma formação científica e pedagógica de nível elevado, acreditando ser a formação de professores uma peça crucial em todo o processo educativo. Com esta convicção, os projetos que desenvolveu como investigadora incluíram trabalhos de análise e de intervenção em contextos diversificados de aprendizagem.

A importância atribuída a esta componente da sua investigação está patente quando, por exemplo, em Morais e Neves (2005), refere:

“A formação de professores é uma componente crucial de qualquer mudança dos sistemas educacionais. A atenção crescente que tem sido dada ao desenvolvimento profissional dos professores traduz uma resposta à necessidade de haver professores pedagógica e cientificamente bem preparados, capazes de implementar um processo de ensino-aprendizagem que tenha em conta a diversidade social e cultural que domina o actual espaço escolar.” (pp. 153-154).

Um aspeto interessante e distintivo de outros trabalhos de investigação nesta área é o facto de ter recorrido a uma abordagem sobre o desenvolvimento profissional dos professores paralela à abordagem sobre a aprendizagem dos alunos. Esta abordagem metodológica, possível pela natureza conceptual dos modelos e instrumentos sociológicos utilizados, permitiu a discriminação de componentes específicas do desempenho dos professores, em vários contextos de formação contínua e inicial e em diferentes contextos de intervenção pedagógica e níveis de escolaridade. Este paralelismo está patente em Afonso, Neves e Morais (2005):

“[…] existem razões de natureza sociológica que interferem no desenvolvimento profissional dos professores e […) determinadas características sociológicas das modalidades de formação constituem aspectos importantes que devem ser contemplados se, de facto, se pretende alcançar uma melhoria do desempenho profissional de todos os professores. […] importância de se recorrer a modelos de análise em investigação educacional que possibilitem a análise a vários níveis do discurso pedagógico, usando os mesmos princípios e conceitos. […] foram usados os mesmos conceitos ao meso-nível (na formação de professores) e ao micro-nível (na sala de aula). Tal foi possível devido à forte estrutura conceptual e grande poder explicativo da teoria em que a investigação se fundamentou.” (pp. 29-30).

Com base em resultados de estudos desenvolvidos no âmbito das três áreas de investigação, o trabalho de Ana Maria Morais envolveu também propostas de atividades de intervenção pedagógica. Num desses trabalhos (Morais, Neves, Ferreira, Afonso e Silva, 2020), em que dá particular relevo ao nível de exigência conceptual que deve caracterizar a educação científica, é exemplificada a articulação e a coerência conceptual que devem existir em contextos de ensino e de aprendizagem de conhecimentos científicos e discutida de que forma se pode elevar o nível de exigência conceptual, tendo em conta os vários níveis de escolaridade e a relação conceptual entre esses níveis. Constituindo uma proposta de intervenção pedagógica em sala de aula, parte de argumentos de natureza epistemológica, psicológica e sociológica para sustentar a importância do nível de exigência conceptual em educação científica, em particular quando se defende o acesso de todos os alunos ao conhecimento que é valorizado, em determinado momento, pela comunidade científica e pela sociedade.

Do ponto de vista da metodologia de investigação, Ana Maria Morais recorreu também a conceitos de Bernstein, sendo pioneira na adoção de uma abordagem metodológica mista caracterizada por um posicionamento epistemológico que conjuga modelos mais associados a metodologias quantitativas de base estruturalista com modelos mais associados a metodologias qualitativas de base interpretativa. Como expresso em Morais e Neves (2007):

“Uma das características da investigação que se tem vindo a realizar está relacionada com a implementação de uma metodologia cujo posicionamento epistemológico se afasta daquele que tem orientado fundamentalmente a comunidade académica no campo da investigação educacional e que representa uma mudança de ‘paradigma’. Este facto levanta questões relacionadas com o número de grupos de investigação que podem partilhar resultados, na base de um mesmo ‘paradigma’, factor que poderá limitar o avanço do conhecimento na área em que se tem estado a trabalhar. […] Contudo, acredita-se que, ao desenvolver uma metodologia de investigação com uma estrutura que pode ser aplicada a investigações baseadas noutras teorias, que não a de Bernstein, poder-se-á contribuir para a construção de conhecimento na área das metodologias de investigação.” (p. 99-100).

Segundo Ana Maria Morais, o recurso à teoria de Bernstein como suporte conceptual e metodológico de toda a sua investigação - permitindo o esbatimento de fronteiras entre o ensino das ciências e a sociologia da educação - foi possível graças ao poder de descrição, explicação, diagnóstico, previsão e transferência contido nessa teoria. A linguagem interna de descrição Bernsteiniana, ao criar a possibilidade de recorrer aos mesmos conceitos, permitiu a construção de modelos e instrumentos de análise com indicadores passíveis de serem utilizados em contextos diversificados de investigação (família, escola, formação de professores). Foi esta gramática discursiva que lhe permitiu alargar as relações estudadas e alcançar uma conceptualização de nível elevado, sem perder a relação dialética entre o teórico e o empírico. Este reconhecimento é explicitado em Morais (2001):

“I contend that Bernstein’s theory, which departs from other sociological theories in many aspects, can be seen as characterised by a strong grammar […] the strong conceptualisation that it contains, its evolution to higher and higher levels of abstraction, its power of description, explanation, diagnosis, prediction and transferability have appealed to science educators. These science educators are those who have an interest in the sociological […] and who have found in Bernstein’s theory a ‘form of thinking’ closer to the vertical structures in which they were socialised. However, many have felt that the theory is very complex and have not been prepared to make the effort to learn it. They have already been socialised into psychological and epistemological theories and most sociological analyses and interventions have led them to think it is not worth the effort. And, because they don’t know the theory, they have not been aware of how much they are missing in their educational analysis and intervention. If things are somehow different in my own country, it is because my former science education students and myself have systematically taught Bernstein’s theory and the empirical research based on it to undergraduate and research students. This has always been done not by undervaluing psychological and epistemological approaches but by giving to sociological approaches the same level of importance. In this way we have tried to weaken the classification between usually strongly classified fields, that is, we have pushed further something Basil Bernstein did himself.” (p. 32). 7

Como uma das discípulas de Bernstein, defensoras da sua teoria, Ana Maria Morais assumiu uma voz crítica em relação a trabalhos de outros investigadores baseados nessa teoria. Com base nos conceitos de linguagem interna e linguagem externa de descrição e de gramáticas fortes e fracas de Bernstein, Ana Maria considerava que a forma como a teoria de Bernstein tem sido usada nesses trabalhos corresponde a uma recontextualização da teoria no sentido de uma diminuição do seu nível de conceptualização. Como referido em Morais e Neves (2018):

“We clearly acknowledge our commitment to using a Bernsteinian internal language of description for developing our own external language of description. Some researchers use Bernstein’s theory together with other sociological theories (for example, Maton, 2006), to develop their work. This corresponds, in Bernstein terms (1999), to using distinct horizontal structures of knowledge, each with a specific set of questions and relations, and with a different set of theoreticians/speakers. On the other hand, and simultaneously, Bernstein’s theory has in many cases been recontextualised, in the direction of diminishing its level of conceptualization (for example, Maton, 2006; Sadovnik and Semel, 2000). This means, in Bernstein’s terms, using a theorisation that has moved from strong to weak grammar.” (p. 276)8

Para além da consistência e profundidade da investigação que desenvolveu, resultante não só da sua base teórica, como também da permanente relação empírica entre resultados de estudos realizados nas várias áreas de intervenção, há igualmente a salientar a extensão dessa mesma investigação. Essa investigação incluiu estudos a vários níveis de escolaridade (do jardim de infância ao ensino superior), com alunos e famílias de diferentes grupos socioculturais e envolvendo escolas e professores de várias regiões do país (urbana e rural).

A posição de Ana Maria Morais no meio académico nacional e internacional pode ainda ser destacada pelas várias funções que desempenhou. Foi membro do Conselho Editorial de várias revistas portuguesas e estrangeiras - International Studies in Sociology of Education; Journal of Research in Science Teaching; Pedagogies: An International Journal; Práxis Educativa; Revista de Educação; Revista Inovação; Revista Portuguesa de Educação. Colaborou com diversas instituições estrangeiras, no âmbito da investigação realizada pelo grupo ESSA e por projetos desenvolvidos por investigadores dessas instituições - Divisió de Ciéncies de l’Educació da Universidade de Barcelona; Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade de São Paulo; Freie Universität de Berlim; Instituto de Educação da Universidade de Londres; King’s College - School of Education da Universidade de Londres; Universidad del Valle, Cali, Colômbia; University of Cape Town.

Como orientadora de teses de mestrado e de doutoramento, teve sempre uma postura próxima e ativa durante o desenvolvimento das respetivas investigações e tal postura permitiu-lhe adquirir o estatuto de coautora de muitos dos trabalhos resultantes dessas teses.

Ana Maria Morais angariou, ao longo do seu percurso, vários colaboradores e amigos. Era uma boa conversadora, política e socialmente atualizada, que tinha sempre uma ideia a defender ou uma palavra a dizer. Dada a sua personalidade, nem sempre captava de imediato a simpatia de alguns colegas ou de alguns alunos mas, após uma relação mais próxima, era unânime o sentimento de todos quanto à sua disponibilidade, dedicação e simpatia. A sua sensibilidade aos problemas dos outros, a sua generosidade e o seu espírito aberto não serão, assim, esquecidos por todos os que com ela trabalharam.

Agradecimentos

A autora agradece a Sílvia Ferreira (Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Educação e UIDEF, Instituto de Educação da Universidade de Lisboa) e a Jefferson Mainardes (Universidade Estadual de Ponta Grossa) a revisão e sugestões ao texto.

Referências

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1“Se desejar pode ficar, mas não penso que isto [o seminário] tenha alguma utilidade para si”. Foi assim que fui aceite nos seminários de sociologia do Professor Bernstein, há cerca de 20 anos.

2A Professora Ana Maria Morais nasceu na Covilhã em 22 de janeiro de 1939 e faleceu em Lisboa em 24 de janeiro de 2022. Integrava o Conselho de Consultores da revista Práxis Educativa, desde o ano 2007. Foi uma ativa colaboradora da revista, na qual publicou diversos artigos com suas colegas do Grupo ESSA.

3O trabalho realizado pelo Grupo ESSA pode ser consultado em https://essa.ie.ul.pt

4Assim, ao variar os valores de classificação e de enquadramento sobre diferentes elementos da prática pedagógica, poderíamos avaliar os seus efeitos nas realizações das crianças. Por outras palavras, poderíamos desenhar práticas pedagógicas com uma base racional e avaliar os seus resultados. Ana Maria Morais et al fez exatamente isso [...] O notável estudo de Morais mostra de uma maneira única as íntimas relações entre a teoria, os princípios de descrição e a pesquisa [...] (p. 103).

5A pesquisa de Domingos (Morais) é o estudo mais exaustivo e detalhado, sobre o processo de transmissão/aquisição respeitante à classe, género e raça, que conheço. É também uma exploração fundamental sobre a utilidade da teoria. (p. 124).

6Este livro recebeu, em 1994, o prémio Rui Grácio atribuído pela Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação.

7“Considero que a teoria de Bernstein, que se afasta de outras teorias sociológicas em muitos aspetos, pode ser vista como tendo uma gramática forte [...] a forte conceptualização que contém, a sua evolução para níveis sucessivamente mais elevados de abstração, o seu poder de descrição, explicação, diagnóstico, previsão e transferência têm sido apelativos para educadores de ciências interessados pela dimensão sociológica [...] e que encontram na teoria de Bernstein uma ‘forma de pensamento’ mais próxima das estruturas verticais em que foram socializados. Contudo, muitos têm sentido que a teoria é complexa e não foram preparados para fazer o esforço de aprendê-la. Foram socializados em teorias psicológicas e epistemológicas e muitas análises e intervenções sociológicas levam-nos a pensar que não vale a pena esse esforço. E, por desconhecerem a teoria, não têm consciência da falta que ela lhes faz nas suas análises e intervenções educativas. Se a situação é de alguma forma diferente no meu país, é porque os meus ex-alunos de ensino das ciências e eu própria temos ensinado sistematicamente a teoria de Bernstein, e a pesquisa empírica baseada nela, para estudantes de licenciatura e de pós-graduação. Isso sempre foi feito não por subestimar as abordagens psicológicas e epistemológicas, mas por conferir às abordagens sociológicas o mesmo nível de importância. Desta forma, temos tentado enfraquecer a classificação usualmente existente entre campos fortemente isolados, ou seja, temos feito avançar algo que o próprio Basil Bernstein fez.”

8“Reconhecemos claramente o nosso compromisso em usar a linguagem interna de descrição de Bernstein para desenvolver nossa própria linguagem externa de descrição. Alguns investigadores usam a teoria de Bernstein juntamente com outras teorias sociológicas (por exemplo, Maton, 2006), para desenvolverem o seu trabalho. Isto corresponde, nos termos de Bernstein (1999), a usar distintas estruturas horizontais de conhecimento, cada uma com um conjunto específico de questões e de relações, e com um conjunto diferente de teóricos/oradores. Por outro lado, e simultaneamente, a teoria de Bernstein tem sido em muitos casos recontextualizada, no sentido de diminuir o seu nível de conceptualização (e.g., Maton, 2006; Sadovnik & Semel, 2000). Isso significa, nos termos de Bernstein, usar uma teorização que se move de uma gramática forte para fraca.”

Recebido: 31 de Março de 2023; Aceito: 16 de Abril de 2023; Publicado: 24 de Abril de 2023

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