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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21293.050 

Artigos

Heidegger e a Universidade: acerca do vínculo essencial entre ciência e formação

Heidegger and the University: on the essential link between science and education

Heidegger y la Universidad: acerca del vínculo esencial entre ciencia y formación

*Professor do curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutor em Educação pela UPF. E-mail: <marcelodoro@upf.br>.


Resumo

Este artigo apresenta, como resultado de uma pesquisa bibliográfica, as linhas gerais da crítica de Heidegger à Universidade de seu tempo, marcada pela fragmentação crescente das ciências em disciplinas especializadas e pelo consequente rompimento com um ideal efetivo de formação humana. Além disso, busca estruturar uma compreensão geral da proposta de reforma universitária que o filósofo anuncia no Discurso do reitorado, cujo núcleo é o reestabelecimento da Universidade enquanto espaço privilegiado para a transformação da existência individual e coletiva. A tese de fundo é que Heidegger procura devolver à Universidade o seu papel formativo, já concebido por Humboldt, mas pelo caminho do questionamento ontológico. Guardadas as diferenças contextuais e as transformações que atingiram a instituição universitária desde a época em que Heidegger produziu suas reflexões, na primeira metade do século XX, acredita-se que elas são ainda pertinentes para mobilizar o debate na atualidade.

Palavras-chave: Universidade; Ciência; Formação humana

Abstract

This article presents, as a result of a bibliographical research, the general lines of Heidegger’s criticism of University from his time, marked by the growing fragmentation of sciences into specialized disciplines and by the consequent rupture with an effective ideal of human formation. In addition, the article seeks to structure a general comprehension of the university reform proposal that the philosopher announces in the Rector’s Speech, which core is centered in the reestablishment of the University as a privileged space for the transformation of the individual and collective existence. The fundamental thesis is that Heidegger seeks to restore to the University its formative role, already conceived by Humboldt, but through the path of ontological questioning. Bearing in mind the contextual references and the transformations that have affected the university since the time when Heidegger carried out his reflections, in the first half of the 20th century, it is believed that these ponderations are still relevant to mobilize the debate today.

Keywords: University; Science; Human formation

Resumen

Este artículo presenta, como resultado de una investigación bibliográfica, las líneas generales de la crítica de Heidegger a la Universidad de su tiempo, marcada por la fragmentación creciente de las ciencias en asignaturas especializadas y por el consecuente rompimiento con un ideal efectivo de formación humana. Además, busca estructurar una comprensión general de la propuesta de reforma universitaria que el filósofo anuncia en el Discurso del rectorado, cuyo núcleo es el restablecimiento de la Universidad en cuanto espacio privilegiado para la transformación de la existencia individual y colectiva. La tesis de fondo es que Heidegger busca devolver a la Universidad su papel formativo, ya concebido por Humboldt, pero por el camino del cuestionamiento ontológico. Guardadas las diferencias contextuales y las transformaciones que alcanzaron a la institución universitaria desde la época en que Heidegger produjo sus reflexiones, en la primera mitad del siglo XX, se cree que ellas son aún pertinentes para movilizar el debate en la actualidad.

Palabras clave: Universidad; Ciencia; Formación Human

Cometi muitos erros no que a administração da universidade comporta sob os aspectos técnico e humano. Mas nunca sacrifiquei ao Partido o espírito e a essência da ciência e da Universidade; pelo contrário, tentei renovar a Universitas.

(Martin Heidegger)

Introdução

A principal referência para exploração do tema da Universidade na obra de Heidegger é o seu discurso de posse como reitor da Universidade de Freiburg, intitulado A autoafirmação da Universidade Alemã (Die Selbstbehauptung der Deutschen Universität). O título já declara o que está em questão para o filósofo, sobretudo se ouvimos o termo Selbstbehauptung no sentido proposto por Fédier (1997, p. 39) 1, enquanto esforço para “[...] manter a si mesmo quando se está ameaçado no próprio ser”. Trata-se, para Heidegger, de reafirmar a essência da Universidade no momento em que ela se encontra sob forte ameaça.

O Discurso do reitorado, como é frequentemente referido, levanta questões que, a nosso ver, tem uma importância duradoura para a debate em torno do sentido e do futuro da Universidade. Jacques Derrida localiza esse documento, na tradição do Conflito das faculdades, de Kant, e dos grandes textos filosóficos em torno da Universidade de Berlim, como “[...] o último grande discurso no qual a Universidade ocidental tenta pensar sua essência e sua destinação em termos de responsabilidade” (DERRIDA, 1999, p. 90). Há, contudo, em geral, muito pudor em se lidar com esse escrito, em vista do contexto em que foi produzido, marcado pelo envolvimento de seu autor com o Nazismo. Isso explica em parte a pouca atenção que o discurso tem recebido, sobretudo nas discussões sobre a Universidade em língua portuguesa.

O envolvimento de Heidegger com o Nazismo é, sem dúvida, um tópico muito complexo, em relação ao qual não podemos deixar de fazer, aqui, alguns breves apontamentos.2 Inicialmente, por um lado, convém reconhecer o fato de o filósofo ter visto com entusiasmo a ascensão do nacional-socialismo e de ter se disposto a colaborar com o movimento enquanto reitor, inclusive para a implementação do Gleichschaltung, o alinhamento da política universitária com o projeto de Estado de Hitler. Além disso, por outro lado, é preciso notar a discrepância entre a leitura que Heidegger fez do movimento, em uma perspectiva espiritual e particularmente filosófica (seu “nacional-socialismo privado”), e a visão que se tornou hegemônica, calcada em um racismo biológico que foi explicitamente criticado por ele. Cabe acrescentar, ainda, que, em reflexões posteriores, o filósofo admite tanto o erro de ter assumido o reitorado quanto as falhas cometidas enquanto esteve no cargo (HEIDEGGER, 1997); contudo, sem jamais manifestar claramente um pedido de desculpas, uma retratação pública por ter colaborado e emprestado sua fama ao movimento que levou a um dos maiores e mais cruéis genocídios da época moderna.

Do ponto de vista filosófico, no que tange à discussão estrita das ideais, poder-se-ia buscar a separação do pensador e suas reflexões, de um lado, do indivíduo e suas ações, de outro. A obra e a biografia poderiam, nesse sentido, ser tratadas de forma independente. Contudo, isso não é tão simples no caso de Heidegger, uma vez que implica a suposição de que não há influência de sua filosofia nas decisões políticas e nem das decisões políticas na sua filosofia. Definitivamente, as coisas não se passam desse modo. O próprio filósofo reconheceu que seu envolvimento com o nacional-socialismo teve como pano de fundo uma compreensão filosófica do movimento e que suas iniciativas, enquanto reitor, se apoiavam em posições filosóficas há muito refletidas; e, além disso, sua obra dá testemunho de um esforço posterior de pensamento em parte motivado pela experiência fracassada no reitorado (HEIDEGGER, 1997). Ainda assim, mesmo que não possamos separar o pensamento do pensador, entendemos como viável uma apreciação das reflexões filosóficas de Heidegger ao mesmo tempo em que condenamos suas decisões políticas ingênuas e desastradas.

O que poderia, de fato, constituir uma razão para a recusa do pensamento de Heidegger seria a contatação de uma identidade interna de suas posições filosóficas fundamentais com os princípios grotescos do nacional-socialismo. Essa tese, levantada por Farias (1998), dentre outros, não resiste a um exame cuidadoso das noções centrais da filosofia heideggeriana. Não há como conciliar, por exemplo, a noção de autenticidade, apresentada em Ser e tempo, com a submissão irrefletida a um líder; da mesma forma, não há como conciliar a compreensão heideggeriana da condição existencial do ser humano, enquanto ser-no-mundo, com a pretensão nazista de afirmar a superioridade racial e biológica dos arianos. Quando Heidegger fala do povo alemão, trata-se antes de uma identidade histórica e espiritual, não racial e biológica.

No que se refere mais especificamente ao Discurso do reitorado, em que o vocabulário filosófico de Heidegger é integrado a uma fala de apoio ao Nazismo, é preciso distinguir o que ali é fruto de seu compromisso entusiasmado de tomar parte do movimento e o que constitui sua compreensão filosófica sobre a crise da Universidade e o projeto para sua radical transformação. Entendemos que não se pode simplesmente reduzir o conteúdo do discurso às circunstâncias específicas em que foi proferido. De fato, como mostram Milchman e Rosenberg (1997), o projeto de Heidegger de transformar a Universidade data de seus primeiros cursos na Universidade de Freiburg, em 1919, e constitui marca registrada de seu pensamento muito antes da ascensão de Hitler ao poder.

É para esse projeto heideggeriano de transformação da Universidade que se volta este estudo, que, na sequência, se encontra dividido em duas partes. A primeira tem como objetivo apresentar as linhas gerais da crítica de Heidegger à Universidade de seu tempo, com foco na fragmentação crescente das ciências (Wissenschaften3) em disciplinas especializadas e seu consequente rompimento com o ideal da formação humana (Bildung). Cumprida essa etapa, a segunda parte busca expor uma compreensão da proposta de reforma universitária que o filósofo apresenta no Discurso do reitorado, cujo núcleo é o reestabelecimento da Universidade enquanto espaço privilegiado para uma transformação da existência como um todo. A tese de fundo é que Heidegger procura devolver à instituição de ensino superior o seu papel formativo, já concebido por Humboldt, mas pelo caminho do questionamento ontológico, ou seja, da reflexão sobre os fundamentos histórico-existenciais da ciência.

A Universidade e a crise da ciência

No semestre pós-guerra de 1919, quando ainda se encontrava na condição de professor não remunerado (Privatdozent), na Universidade de Freiburg, Heidegger abre um curso sobre a ideia de filosofia e o problema da concepção do mundo com considerações sobre “ciência e reforma universitária” (HEIDEGGER, 2005, p. 3).4 Em um tom combativo, ele critica as pretensões de reforma universitária em voga por serem totalmente equivocadas e ignorarem completamente qualquer autêntica revolução do espírito. O que está em questão, para ele, não é a necessidade da reforma, com o que ele concorda, mas a falta de maturidade para conduzi-la de modo adequado, visando a renovação da Universidade pela restauração da consciência científica e seus vínculos com a vida. Milchman e Rosenberg (1997) observam ser uma marca desse período a lamentação de Heidegger em relação à ossificação da Universidade, algo que ele pessoalmente buscava enfrentar por meio do pensamento e do questionamento radical.

Há, sem dúvida, nessa posição do jovem Heidegger, uma influência direta do mestre Husserl, com quem ele aprendeu ir direto às coisas mesmas, rompendo, assim, com as posições dogmáticas e as interpretações cristalizadas da tradição. Também vem de sua apropriação da fenomenologia husserliana a percepção de fundo de que há uma tendência geral da vida em se estabelecer em padrões de comportamento e pensamento adquiridos, avessos à renovação. Seus primeiros cursos já podem ser lidos como uma reação a tudo isso. Hannah Arendt dá testemunho do impacto dessa reação, na época, ressaltando que

[...] o decisivo no método [de ensino de Heidegger] era que, por exemplo, não se falava sobre Platão e não se expunha sua doutrina das ideias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente contemporânea. (ARENDT, 2008, p. 279, grifo da autora).

Que essa forma de proceder, hoje tão familiar, tenha rendido à Heidegger a fama de “rei secreto no reino do pensar” (ARENDT, 2008, p. 280), apenas confirma indiretamente o diagnóstico do filósofo quanto ao enrijecimento de uma Universidade que se encontrava demasiadamente afastada da vida e do questionamento.

Em Ser e tempo, publicado em 1927, o problema da ossificação do pensamento surge, na perspectiva da tradição filosófica, como esquecimento da questão fundamental que colocou em marcha as filosofias de Platão e Aristóteles, a questão sobre o ser. A recolocação dessa questão fundante inclui, por isso, metodologicamente, a destruição da história da ontologia, o que deve ser entendido como um exercício de desconstrução voltado à renovação do vigor do pensamento originário em seus limites e suas possibilidades. Trata-se de romper, no âmbito da filosofia, com aquela tendência geral de manter-se em padrões de comportamento e pensamento enrijecidos, que em Ser e tempo receberá o nome de decadência, um modo de ser cotidiano marcado pela falação, pela curiosidade e pela ambiguidade. A falação indica o comportamento de simplesmente repetir e passar adiante o que se ouve dos outros, sem uma apropriação genuína daquilo sobre o que se fala. A curiosidade alimenta a falação na medida em que abastece os indivíduos com novidades, ao mesmo tempo que impede o demorar-se compreensivo junto às coisas mesmas. Por fim, a ambiguidade aponta para a confusão compreensiva que resulta da falação e da curiosidade, quando já não se sabe o que foi e o que não foi suficiente e genuinamente alcançado.

Franco de Sá (2008) encontrou indícios, nos cursos de Heidegger anteriores a Ser e tempo, de que a descrição da decadência, em especial do fenômeno da falação, tem como alvo o afastamento da vida universitária das coisas mesmas e da verdade. Ele cita passagens do curso que Heidegger ofereceu no Semestre de Verão de 1925, em que o filósofo lamenta o fato de se tomarem decisões sobre metafísica ou coisas mais elevadas em congressos, onde todos se pronunciam, mesmo que tenham compreendido muito pouco sobre a coisa em questão; e, assim, conclui o filósofo, pulando-se de um colóquio para outro alimenta-se a impressão de que algo está sendo feito, quando no fundo se está apenas a buscar na falação um refúgio para a própria incompreensão (FRANCO DE SÁ, 2008). O que está em jogo nessa crítica é, ainda, a ausência de um pensamento e de um questionamento radicais que Heidegger reivindica como essencial à Universidade.

É, contudo, no curso Introdução à filosofia, do Semestre de Inverno de 1928/1929, onde consta, em nosso entendimento, a mais ampla caracterização da crise que Heidegger identifica na ciência e, por decorrência, na Universidade. Ali, como faz em muitos de seus cursos e escritos, ele parte da condição mais imediata daqueles a quem se dirige para enraizar a reflexão pretendida. No caso específico desse curso, ele inicia explicando que introduzir significa pôr em curso o filosofar a partir da situação concreta do existir, já sempre situado em uma dada conjuntura, e uma vez que a ciência constitui um dos poderes que determinam a “atmosfera da universidade” em que se encontram os cursistas, convém levantar a questão sobre a relação da ciência com a filosofia. Seguindo essa trilha, após recusar a classificação da filosofia como uma ciência, Heidegger busca clarificar o modo como a ciência enquanto tal está presente na filosofia. A investigação se volta, então, para essência da ciência, que o filósofo pretende iluminar por meio da meditação sobre a crise tripla que a atinge: a crise na estrutura interna da própria ciência; a crise da ciência no tocante à sua posição no todo da existência histórico-social; e a crise na relação do indivíduo com a própria ciência (HEIDEGGER, 2009).

A crise na relação do indivíduo com a ciência: ruptura formativa

Heidegger inicia suas considerações pela terceira das crises mencionadas. Ela teria sido pressentida ainda nos anos imediatamente anteriores à Primeira Guerra Mundial, quando sua geração frequentava como estudante a Universidade.

Suspeitávamos a presença de uma paralisia no funcionamento da ciência acadêmica e, juntamente com essa paralisia, o advento de uma especialização que, por exemplo, não fazia esforços supremos de apropriação [...], constituindo-se como uma especialização por detrás da qual se escondia uma impotência: a impotência de transmitir de uma maneira simples e em direta comunicação com a existência, o conteúdo ontológico primário e originário da ciência. (HEIDEGGER, 2009, p. 30).

A paralisia de que fala o filósofo parece remeter àquilo que mais tarde Thomas Kuhn (1998) chamaria de ciência normal, em que as investigações se restringem aos domínios de um quadro conceitual vigente. Já em Ser e tempo, Heidegger (2012, p. 52, grifo do autor) sustentava que “[...] o efetivo ‘movimento’ das ciências ocorre na revisão mais ou menos radical dos conceitos fundamentais [...]” e que “[...] o nível de uma ciência é determinado pela medida em que é capaz de uma crise de seus conceitos fundamentais”. A ausência de questionamento acerca de seus fundamentos constitui, assim, o traço característico de uma ciência que se burocratizou em procedimentos técnicos, que as muitas especializações fazem avançar guiadas por interesses práticos, eclipsando muitas vezes o propósito originário da investigação científica em buscar a verdade e, com ela, reposicionar os indivíduos em seu mundo. A ciência que se paralisa pela falta de questionamento radical, operando por meio de disciplinas cada vez mais especializadas, também perde com isso sua capacidade de diálogo com a existência.

Em notas que fez para um curso restrito com professores da Faculdade de Ciências e Medicina da Universidade de Freiburg, no semestre de inverno de 1937-1938, Heidegger oferece exemplos concretos desse descolamento da ciência de seu solo existencial. Há, observa o filósofo, biólogos que já não tem e tampouco precisam ter qualquer relação (no sentido essencial e não sentimental) com a natureza viva para obter resultados de investigação e satisfazer assim as exigências do seu ramo e de seus progressos; há, ainda, acrescenta ele, historiadores de arte que, enquanto historiadores, já não tem quanto à obra de arte nenhuma relação medida pela verdade de uma experiência, isto é, sentida no coração de uma paixão (HEIDEGGER, 1997). Tudo isso em função da precedência do método e de seu enrijecimento técnico, que operam no interior e a partir da própria ciência e que acabam gestando em seu interior sua ameaça mais contundente, a saber, a ausência de fundo e de solo.

Tudo isso tem um grande impacto para o modo de ser da Universidade, cuja unidade só pode ainda ser mantida “[...] pela organização técnica de universidades e faculdades [...]” e só obtém sentido “[...] pela fixação das finalidades práticas das especialidades” (HEIDEGGER, 1999, p. 51). Outra consequência da paralisia reflexiva e da crescente especialização das ciências atinge o propósito formativo que, ao menos desde Humboldt5, é esperado da Universidade enquanto centro de investigação científica.

A essa paralisia e a essa busca de especialização no funcionamento da ciência acadêmica veio se aliar algo mais que só podíamos pressentir e expressar de maneira obscura: não podia permanecer velado por mais tempo que, em meio aos progressos das ciências particulares, a conexão entre as ciências e seu conteúdo, por um lado, e um vivo ideal de formação efetiva, por outro, tinha se rompido, e que essa ruptura só permanecia encoberta de maneira artificial. (HEIDEGGER, 2009, p. 30).

Heidegger está reclamando, aqui, claramente, da ausência de impacto do fazer científico no auto cultivo das individualidades daqueles que fazem ciência ou com ela se ocupam. Anteriormente, no mesmo curso, ao retomar o vínculo entre filosofia e paideia, ele havia assinalado seu entendimento da formação enquanto “[...] o compreender das possibilidades fundamentais [da existência humana] na totalidade [...]”, que precisa ser conquistado por meio de “[...] esforço particular e constante” (HEIDEGGER, 2009, p. 24-25). Na terminologia de Ser e tempo, pode-se dizer que o processo de formação constitui a luta contra a tendência decadente de fechamento das possibilidades mais próprias de ser que libera o indivíduo para uma decisão autêntica acerca de seu projeto existencial. Decisivo, nesse ponto, é atentar para o fato de a formação demandar um incremento qualitativo de compreensão do mundo, sem o que o indivíduo permanece invariavelmente preso aos padrões de comportamento e pensamento disponíveis em seu cotidiano mais imediato.6 Justamente para isso deveria contribuir a ciência, se sua paralisia problematizadora e sua progressiva especialização não a tivessem descolado da existência concreta.

Em suma, a crise na relação do indivíduo com a ciência reside na incapacidade de a ciência especializada e automatizada em procedimentos técnicos propiciar uma abertura privilegiada do mundo e do lugar em que cada um se encontra nele, de modo a impactar os projetos de vida individuais. O resultado (previsível) são cientistas muito bem-preparados para atuar em suas especializações, mas que, de resto, permanecem presos às visões rasteiras do cotidiano, reproduzindo até mesmo os preconceitos mais grotescos do senso comum.

A crise da ciência no tocante à sua posição no todo da existência histórico-social

O problema segue sendo a ruptura da conexão entre a ciência e um ideal efetivo de formação, mas agora com foco na existência coletiva. Não apenas a ciência deixa de ser efetiva para a autoformação individual de quem se ocupa diretamente com ela, como também se torna pouco claro, constata Heidegger (2009, p. 33), de que maneira “[...] os resultados da ciência e a própria formação científica devem ser transmitidos e incorporados ao plácido desenvolvimento de uma formação autêntica das comunidades humanas”.

É como reação e fuga diante dessa conjuntura de crise que o filósofo interpreta o empenho pela popularização da ciência, que se intensificava em seu tempo. Ele observa que a instrução do povo, que do ponto de vista social é necessária, quando não parte das próprias ciências, se torna pretexto e ocasião para se tirar vantagens. Assim, conclui que, enquanto a popularização não for ativamente acionada pelas próprias ciências, ela será um mal justamente pela incompreensão que promove em torno da essência da ciência.

Por mais que possa ser pautada por motivos sérios, toda popularização da ciência é uma agressão contra a essência da ciência. Isso se dá, uma vez que toda popularização desconhece o fato de a ciência não poder ser equiparada a seus resultados, que são então continuamente transmitidos de mão em mão em uma apresentação qualquer. Essa equiparação não deve ser rejeitada simplesmente porque a ciência, no assim chamado progresso científico, sempre vai além de seus resultados, mas porque ela realmente nunca se manifesta como ciência nos resultados. [...]. A popularização choca-se contra a essência da ciência porque o essencial da ciência não reside no que é meramente transmissível, no que pode ser passado de mão em mão, mas no que é sempre apropriado novamente. (HEIDEGGER, 2009, p. 34-35).

Heidegger não está dizendo que é ruim divulgar os resultados das pesquisas científicas, mas que a popularização da ciência por esse viés deixa pelo caminho o que é o mais importante do fazer científico, que é uma certa postura diante das coisas, diante do mundo, e que tem a ver com a paixão pelo perguntar, com o entusiasmo pelo descobrir, com o compromisso de prestar contas, de demostrar e de fundamentar. Essa posição fundamental do fazer científico é que poderia constituir uma orientação efetiva para a formação das comunidades humanas. Além disso, a disseminação dos resultados obtidos pelas ciências pode favorecer a falação, enquanto repasse de informações que não foram apropriadas em sua significação. É o que acontece quando por todo lado se passa a reproduzir discursos sobre, por exemplo, a física quântica, sem uma compreensão originária da coisa em questão.

Tanto essa crise relacionada ao lugar e à função da ciência no todo da existência coletiva quanto a crise na relação do indivíduo com a ciência ocultam, no entender de Heidegger, uma incompreensão da essência da ciência enquanto tal, que se faz notar no modo como são encaradas suas crises internas.

A crise na estrutura interna da própria ciência

Essa crise se anuncia, diz Heidegger (2009, p. 37), por meio do que se costuma chamar de “crise dos fundamentos” e que tem a ver, grosso modo, com o questionamento de princípios e conceitos basilares que funcionam como diretrizes para as ciências particulares. Tais crises, que podem ser verificadas nas diferentes áreas, fazem parte de todas as ciências e desde sempre. Elas são, no entender de Heidegger, um movimento pertencente a própria essência da ciência. Conforme mencionado anteriormente, é justamente a capacidade de sofrer crises, isto é, de revisar seus conceitos fundamentais, que determina o nível de uma ciência. Assim, o decisivo em relação a crise de uma ciência é que se tenha a força e a disposição para penetrá-la. “Pois a crise não deve ser superada. Ao contrário, ela deve se tornar vital” (HEIDEGGER, 2009, p. 41).

No entanto, não é isso que o filósofo identifica na Universidade de seu tempo. Ao contrário, ele observa que a maioria dos pesquisadores se opõe à tarefa de promover uma reflexão clarificadora dos fundamentos de sua ciência. Não querendo saber dessas “coisas difusas e genéricas”, eles tendem a refugiar-se na solidez e na constância das investigações específicas (HEIDEGGER, 2009, p. 39). E os poucos que compreendem a necessidade de meditar sobre os conceitos basilares de sua área de investigação, acrescenta Heidegger, acreditam poder levar adiante essa tarefa com os recursos da própria ciência - como se fosse possível, por exemplo, conceber matematicamente a essência e os fundamentos da matemática.

Assim, na Universidade, diante da crise da ciência,

[...] dá-se o caso de que, por um lado, as ciências e os seus representantes apelam para os fatos e métodos consolidados - uma teimosia que se entrincheira por detrás do acúmulo de resultados - e, por outro lado, operam rápido demais com ideias e conceitos filosóficos tomados de empréstimo em algum lugar qualquer e trazidos de fora para o interior da ciência. Em meio à crise da ciência, a ciência e seus representantes são jogados para cá e para lá entre aquela teimosia e a efusividade de uma atmosfera ávida por inovação, sendo que, com isso, nunca saem do lugar. Dessa forma, é preciso confessar que essas crises dos fundamentos não são seriamente abordadas e compreendidas, que elas só mostram o quão extraordinariamente longe as ciências estão hoje - em todos os progressos e todos os resultados - de uma compreensão ainda que apenas da crise como tal, isto é, o quão distantes elas estão da intelecção da essência da ciência. (HEIDEGGER, 2009, p. 39-40).

Com isso, fica marcado claramente aquele que é o núcleo da crítica de Heidegger a Universidade de seu tempo, enquanto instituição devotada a pesquisa científica: procede-se mediante uma incompreensão flagrante da essência da ciência, o que inviabiliza a adequada compreensão de suas crises e, mais que isso, consolida seu descolamento da existência e seu consequente esvaziamento formativo. A reversão desse quadro exige uma reforma profunda que, em 1933, Heidegger acredita poder introduzir por meio de sua atuação política.

A afirmação da Universidade em sua essência

Heidegger (1997, p. 93) abre o Discurso do Reitorado vinculando a “essência da Universidade” à “missão espiritual” de submeter o destino do povo alemão à marca de sua própria história, para em seguida constatar que, independentemente desta missão espiritual ser ou não conhecida, a questão que se impõe é: estariam os professores e os estudantes daquela Escola Superior enraizados verdadeira e comunitariamente na essência da Universidade alemã? Querer coletivamente tal enraizamento, afirma ele, é fazer a autoafirmação dessa instituição.

Mas qual é, afinal, a essência da Universidade alemã? A resposta de Heidegger (1997, p. 94): “A Universidade alemã é para nós a Escola Superior que, a partir da ciência e graças à ciência, pretende educar e disciplinar os líderes (die Führer) que velam pelo destino do povo alemão”. Há, aqui, uma explícita afirmação da finalidade formativa da ciência, primeiro, em relação aos indivíduos enquanto líderes e, por meio deles, em relação ao todo da cultura alemã e sua destinação. Trata-se de uma resposta direta às crises da ciência arroladas no curso Introdução à filosofia, que, como veremos, implica uma revitalização da própria ciência com base em sua concepção grega originaria. Naquele curso, inclusive, encontram-se reflexões importantes sobre liderança (Führerschaft) que ajudam a elucidar muito do que aparece sem maior desenvolvimento no Discurso do Reitorado.

Heidegger (2009) sustenta, no curso Introdução à filosofia, que o ingresso na universidade coloca para o indivíduo o compromisso de ser uma liderança no todo da comunidade humana, mas não uma liderança no sentido de desempenhar aqui e acolá o papel de superior ou diretor; ao contrário, diz o filósofo, a liderança deve ser entendida no sentido do comprometimento com uma existência que, em certa medida, compreende de maneira mais originária, global e definitiva as possibilidades humanas, devendo, por isso, funcionar como modelo. Dito de outro modo, liderança significa “[...] o dispor de possibilidades mais elevadas e mais ricas da existência humana que não se impõem aos outros, mas, de maneira discreta, são exemplares e, assim, particularmente eficazes” (HEIDEGGER, 2009, p. 9). Os líderes, na perspectiva heideggeriana, são o que são não pelas posições sociais de destaque que possam vir a ocupar e nem pelo conhecimento específico que acumulam em uma área qualquer, mas, sim, por uma abertura compreensiva privilegiada que alcançam em relação ao mundo e às possibilidades nele contidas. É pelo cultivo da pesquisa científica e, mais precisamente, pela formação científica que transmite, que a Universidade logra romper com as visões de mundo cristalizadas no cotidiano mais imediato das pessoas, abrindo um horizonte diferenciado para a existência e a convivência. O decisivo, portanto, não é qualquer modificação externa que possa decorrer de uma titulação de nível superior, mas a conquista de uma nova posição compreensiva em relação a si mesmo e ao mundo, livre dos equívocos ingênuos, superstições e arbitrariedades da perspectiva pré-científica que acompanha as ocupações e a convivência cotidiana.

Temos assim a resposta para a superação da crise na relação do indivíduo com a ciência: a pesquisa científica e a formação científica precisam abrir para o indivíduo a possibilidade de uma nova postura frente ao mundo e, consequentemente, frente à sua própria existência. Esse é o caminho para o enraizamento da ciência na vida. E, ao mesmo tempo, na medida em que os indivíduos que alcançam essa nova postura se tornam líderes discretos da comunidade em que estão inseridos, a ciência também reencontra sua posição no todo da cultura, moldando o “mundo espiritual” que orienta a existência histórico-social do povo. O mundo espiritual de um povo, explica Heidegger (1997, p. 98) no Discurso do Reitorado, “[...] é o poder da experiência mais profunda das forças que ligam um povo à sua terra e ao seu sangue, como poder do mais íntimo despertar e da mais extrema vibração do seu Dasein [i.e., do seu existir]. Só um mundo espiritual é, para um povo, garantia de sua grandeza”.

Essa reinvindicação de que a ciência e, por meio dela, a Universidade adentrem o mundo espiritual do povo é especialmente significativa no contexto em que foi manifesta e pode ajudar a entender (sem desculpar), ao menos em parte, o envolvimento do filósofo com a política. Na época, conforme mostra Fédier (1997), o povo alemão testemunhava o fracasso da República de Weimar e sentia o crescente assédio de modelos externos, o Russo e o Estadunidense, que, justamente por serem externos, eram vistos como estranhos ao destino da Alemanha. Nesse contexto, o movimento nacional-socialista passou a ser visto por muitos como uma opção que preservaria a autenticidade do destino do povo alemão; Heidegger, ao que tudo indica, estava entre estes que apostavam na autenticidade e, segundo sua própria versão dos fatos7, teria assumido a Reitoria para tentar viabilizar o tipo de reforma necessário para que a Universidade pudesse guiar espiritualmente o movimento.

Tudo isso, no entanto, dependia de a Universidade querer se afirmar em sua essência e, consequentemente, na essência da ciência. “O querer que quer a essência da Universidade alemã quer ao mesmo tempo a ciência, na medida em que quer a missão historicamente espiritual do povo alemão como povo que se reconhece no seu Estado” (HEIDEGGER, 1997, p. 94). A missão do povo alemão remete a tarefa de cunhar seu próprio destino nesse tempo de penúria em que “Deus está morto” (Nietzsche), ou seja, em que já não se pode contar com segurança de um plano metafísico para a derivação de um dever-ser existencial. Em decorrência desse movimento niilista, também se deu aquela perda de efetividade das forças de formação tradicionais que, no século XIX, ainda determinavam a existência: o ideal clássico de formação, caracterizado por nomes como Goethe e Schiller, e a religiosidade cristã (HEIDEGGER, 2009). Os caminhos possíveis para a formação individual e coletiva precisariam ser buscados, doravante, no seio da própria realidade histórica, e caberia à ciência orientar essa busca; caberia à ciência a tarefa de dar à humanidade o horizonte de seu acontecer no mundo.

Essa tarefa não é, porém, qualquer ciência que pode levar a cabo. Certamente, não é algo que Heidegger entendesse possível pelo modelo de ciência predominante na Universidade de seu tempo (que, em grande parte, também é o nosso), a saber, uma ciência hiper especializada, burocratizada em processos técnicos de coleta e análise de dados, comprometida com fins econômicos (industriais e profissionais) e, enquanto tal, descolada das questões mais amplas da existência individual e coletiva. Seria preciso, por isso, recuperar o sentido essencial da ciência em sua origem grega. Nas palavras de Heidegger (1997):

Temos de nos situar de novo sob o poder do começo de nosso Dasein [i.e., de nosso existir] histórico pelo espírito. Esse começo é a ruptura pela qual se inaugura a filosofia grega. Aí se edifica o ser humano ocidental: a partir da unidade de um povo, em virtude da sua língua, pela primeira vez voltado para o ente em seu todo, questiona-o e capta-o enquanto o ente que é. Toda ciência é filosofia, quer seja capaz de o saber, quer não. Toda ciência continua imbricada nesse começo da filosofia. É dele que extrai a força da sua essência, supondo que ela continua ainda à altura desse começo. (HEIDEGGER, 1997, p. 95).

“Toda ciência é filosofia”, diz Heidegger, não para reivindicar a vinculação administrativa das ciências especializadas à Faculdade de Filosofia, nem para denunciar a natureza filosófica dos postulados científicos. Antes disso, o que lhe interessa é a retomada daquela postura distintiva que marca a irrupção da filosofia entre os gregos, delineando o destino científico do ocidente assim como o conhecemos. Trata-se, por certo, da postura teórica, enquanto interesse em manter-se próximo ao real e sob sua coação.8 A ciência, enquanto teoria, não era para os gregos nem um bem cultural, nem um simples meio para tornar consciente o que antes era inconsciente; ela era, antes, “[...] o meio mais intimamente determinante de toda a existência popular-estatal” e “[...] o poder que segura e envolve toda a existência” (HEIDEGGER, 1997, p. 96). O traço principal da ciência em sua emergência grega, como filosofia, e que interessa sobretudo à Heidegger, é a postura questionadora frente ao real (ou ao ente na totalidade, na terminologia heideggeriana). Para Heidegger (1997), a ciência é o firmar-se no questionamento em meio do ente no seu todo, o qual constantemente se encobre”.

Isso que a ciência foi em sua origem não é, afirma Heidegger (1997, p. 97), algo que se encontra atrás de nós, mas, ao contrário, algo que está a nossa frente enquanto aquilo que há de maior no horizonte do fazer científico. Grandiosa em sua origem, a irrupção da ciência entre os gregos tornou-se um destino e, como tal, mantém-se como uma referência ou, mais que isso, como um apelo para que recuperemos mais uma vez sua grandeza. E é apenas pelo resgate de sua grandeza originária que a ciência pode se tornar, novamente, determinante para a nossa existência individual e coletiva. Do contrário, observa Heidegger (1997, p. 97), “[...] ela continuará a ser uma ocorrência em que nos encontramos por acaso, ou então o conforto aprazível de uma ocupação sem perigo, a de contribuir para o simples progresso dos conhecimentos”. Não se trata, obviamente, de negar o valor do conhecimento científico, mas de reivindicar que ele venha acompanhado de uma postura questionadora que seja também delineadora e impulsionadora de uma forma de vida consciente de suas circunstancias mundanas. Mais uma vez: se “Deus está morto”, é preciso que os caminhos humanos sejam conquistados, abertos pelo pensamento questionador, em face da realidade histórica.

Então, o que inicialmente foi a tarefa dos gregos - a resistência admirativa perante o ente - transforma-se na de se estar, plenamente a descoberto, exposto ao que se retira e é incerto, ou seja, ao que é problemático, i.e., digno de ser posto em questão. Questionar, então, não é já somente a fase superável que precede a resposta que não seria outra coisa do que o saber. Questionar, pelo contrário, torna-se em si mesmo a figura em que o saber culmina. O questionamento desenvolve a sua força maior, a de abrir e descobrir o essencial de todas as coisas. O questionar força então a simplificar ao extremo o olhar dirigido para o incontornável. (HEIDEGGER, 1997, p. 97).

A atitude questionadora do real e dos pressupostos de nossa relação com ele é precisamente o que Heidegger busca devolver à ciência a partir de sua designação como filosofia. A afirmação de que toda ciência é filosofia mostra-se agora sob o aspecto do questionamento. Contrastando com um modelo de ciência que progride suavemente através do acúmulo de conhecimento, ele defende que a ciência se coloque ao lado da filosofia como promotora de ruptura e de perplexidade. Tanto quanto a filosofia, e sendo também filosófica em sua origem, a ciência precisa recuperar seu poder de perturbação e inquietação. Para Heidegger, como já assinalamos, o decisivo para as ciências é justamente sua capacidade de instaurar crises que mobilizem a reflexão em torno de seus postulados. E ele, conforme avaliação de Milchman e Rosenberg (1997, p. 81), fez mais do que registrar tais crises nas ciências, buscando mesmo provocá-las ou induzi-las no seio da própria Universidade. Assim pode ser resumida sua tarefa de reforma da Universidade, alimentada desde muito antes de sua assunção ao cargo de Reitor: a radicalização reflexiva do fazer científico, que pelo questionamento do que é essencial, poderia enraizar-se novamente no seio da existência e recuperar, assim, seu caráter formativo e seu papel no todo da cultura.

Uma ciência enraizada na vida e na cultura de um povo, dirá Heidegger em discurso pronunciado em Leipzig, em novembro de 1933, está ligada e reconduz-se à necessidade de uma existência coletiva responsável por si; ela é movida pela coragem inicial de, em face ao real, crescer em contato com ele, ou quebrar; uma coragem que convida a ir à frente, rompendo com o que está posto, arriscando o inabitual e o imprevisível (HEIDEGGER, 1997). É pelo questionamento que a ciência desestabiliza a compreensão comum e, mais significativamente, abre novos horizontes de possibilidades para o entendimento e a edificação do existir humano no mundo. Justamente no efeito desestabilizador que tem em relação aos conhecimentos e aos modos de vida vigentes, bem como na capacidade de abertura de novas possibilidades de compreensão e realização é que residem o valor e o poder do questionamento para um povo que quer assenhorar-se de seu destino. Pois é no jogo das possibilidades que o destino se resolve; e poder abrir para si novas possibilidades é que constitui efetivamente a liberdade de escolha de um povo.

O questionamento do tipo filosófico que Heidegger reivindica para a ciência, na Universidade, teria ainda o efeito de manter o foco das diversas e dispersas disciplinas científicas naqueles tópicos centrais que são também nucleares para estruturação da vida humana. O raciocínio, quanto a isso, é relativamente simples: quando desafiadas a retomar seus fundamentos e sempre de novo pô-los em questão, as ciências precisam se colocar diante dos grandes temas aglutinadores da existência humana em sua historicidade, como natureza, povo, pensamento, finitude, técnica etc., religando-se, assim ao mundo histórico daqueles que a promovem.

Questionar assim faz com que se quebrem o isolamento e a esclerose das ciências em disciplinas separadas, reúne-as a partir da sua dispersão sem limite e sem finalidade em campos e sectores dissociados, e expõe de novo a ciência imediatamente à fecundidade e aos benefícios de todas as potências configuradoras-de-mundo do Dasein [i.e., do existir] humano e histórico, tais como: natureza, história, língua; povo, costumes, Estado; poesia, pensamento, fé; doença, loucura, morte; direito, economia, técnica. (HEIDEGGER, 1997, p. 97-98).

Ao recuperar a grandeza de sua origem enquanto postura questionadora, a ciência voltaria, enfim, a encontrar sua unidade na missão de renovação do espírito do mundo de onde também se levanta como possibilidade criativa e transformadora. De um só golpe, resultaria contornado ainda o problema da fragmentação crescente das disciplinas científicas em especializações e a sua burocratização metódica que desenraizam e descaracterizam a ciência em relação ao seu vínculo existencial. Sendo esse o ponto nuclear do plano de reforma universitária de Heidegger, a sequência de seu Discurso do Reitorado busca estabelecer as condições para que essa transformação tenha lugar.

Antes de tudo, Heidegger insiste na necessidade de o corpo de professores e alunos quererem efetivamente a essência filosófica da ciência, recuperada junto à sua origem grega, e, com ela, a essência da própria Universidade. Uma vez assumido, esse querer demanda uma ressignificação da liberdade acadêmica. No que se tornou um dos pontos mais controversos de seu discurso, o filósofo declara que a tão celebrada “liberdade universitária” está sendo excluída da Universidade alemã, por ser unicamente negativa e representar despreocupação, arbitrariedade de intenções e de inclinações, bem como ausência de laços nos fatos e nos gestos (HEIDEGGER, 1997, p. 99).9 Em outras palavras, Heidegger denuncia o mau uso da liberdade acadêmica como escudo para pesquisas que, segundo ele, não guardam qualquer compromisso com os propósitos maiores da ciência e da Universidade. Essa liberdade negativa deve, por isso, dar lugar à liberdade positiva de se colocar sob a lei do que é essencial na ligação com o povo, com seu destino e com sua missão espiritual. Essa tripla ligação deve se concretizar, no entender do filósofo, mediante os serviços de trabalho, de defesa e de saber. Embora apareça enumerado em terceiro lugar, o serviço de saber é o primeiro em importância, pois “[...] o que se trata de meditar, é que o trabalho e a defesa são, como toda atividade humana, fundados num saber e iluminados por ele” (HEIDEGGER, 1997, p. 220).10

O corpo discente tem papel de destaque no plano de Heidegger para a transformação da Universidade. Em conferência pronunciada em junho de 1933, em Heidelberg, da qual temos apenas uma recensão publicada pelo jornal local, o então Reitor da Universidade de Freiburg teria protestado o fato de há décadas o ensino ser pensado em função da pesquisa, correspondendo esse modo de ver sempre ao ponto de vista do professor (HEIDEGGER, 1997). Ele reivindica, em oposição, um importante papel para os estudantes na Universidade a ser transformada de acordo com seu projeto, um papel ligado justamente à exigência de um saber mais enraizado no mundo histórico e no contexto presente dos estudantes. Isso, é claro, sempre por meio do questionamento. O tipo de pergunta a ser dirigida aos professores pelos estudantes é exemplificado por Heidegger na alocução pronunciada por ocasião da cerimônia de matrícula dos estudantes, em novembro de 1933. O estudante, diz ele, pode lançar sua ofensiva e perguntar ao professor: “Como é que manténs a tua relação com a natureza? Onde e como, no meio das investigações que fazes, a potência da natureza vem ao nosso encontro e aparece?”; ou, então: “Como é que manténs a tua relação com a filosofia de Kant? Não é verdade que o ‘chinês de Königsberg’, ou melhor, a sua obra, ocasionou um abalo na existência do ser humano? Chegamos ainda a sentir o choque desse abalo?”; ou, ainda: “Como é que manténs a tua relação com o Estado? O nosso dever é simplesmente o de tomar conhecimento de todas as opiniões que até agora puderam ser proferidas ‘sobre’ o Estado? Ou será que o teu questionamento nos instala diretamente no meio do campo de forças dessa realidade?” (HEIDEGGER, 1997, p. 122-123). O filósofo segue apresentando outras indagações possíveis que, ao seu ver, poderiam ser levantadas pelos estudantes como intuito de manter desperta a nova modalidade de saber que ele esperava ver despontar na Universidade. Interessa-nos, quanto a isso, demarcar os traços de uma nova concepção de ensino que acompanha esse maior protagonismo estudantil, distinta da mera transmissão do conhecimento produzido pelos professores em suas pesquisas, com vistas a sua assimilação por parte dos estudantes. “O novo ensino - é disso que se trata - não significa acumular conhecimentos, mas significa, pelo contrário: fazer aprender e levar a aprender. Isso quer dizer: deixar-se ficar sob o desconhecido num saber que o compreende, tornar-se seguro no olhar que é preciso lançar sobre o essencial” (HEIDEGGER, 1997, p. 138).

Essa concepção de ensino, que não é de todo clara em suas especificidades, parece reivindicar a realização daquele tipo de transformação individual demandada pela formação no sentido do auto cultivo. Ensinar é fazer e permitir que algo ocorra com quem aprende. Ensinar parece demandar a criação de condições e desafios para que o estudante experimente e se adapte à posição do questionamento que abre a realidade histórica que é a sua para outras possibilidades de compreensão e realização. “Deixar-se ficar sob o desconhecido num saber que compreende”, ao que parece, significa: estranhar o próprio mundo e fazê-lo mostrar-se sobre outras ópticas por meio do questionamento, do pensamento. Da mesma forma que o sentido essencial da ciência advém de seu enraizamento no mundo existencial, também o ensino que se dá por intermédio dela, na Universidade, deve retirar seu sentido da interlocução com a realidade mais imediata em que atuam professores e estudantes.

A concepção de ensino de Heidegger guarda parentesco com as concepções clássicas da formação, sobretudo no que diz respeito à busca da autonomia de pensamento, aos moldes do esclarecimento kantiano. Todavia, a principal influência atuando nela é a grega. Como bem notado por Sinclair (2013, p. 12), se a concepção de ensino de Heidegger em 1933-1934 é revolucionária, é porque é uma recuperação revolucionária de ideias pedagógicas a tradição filosófica, em especial, de Platão. Quanto a isso, vale a pena resgatar uma passagem do texto “A teoria platônica da verdade”, publicada em Marcas do caminho, em que Heidegger faz uma leitura apropriativa da paideia platônica. Ele afirma, ali, que a palavra paideia corresponde o melhor possível à palavra alemã “Bildung” (formação), mas que é preciso devolver a essa palavra a sua força original de nomeação: “[...] a paideia não tem a sua essência em entulhar a alma despreparada com meros conhecimentos, como se faz com um recipiente vazio”; ao contrário, “[...] a verdadeira formação apanha e transforma a própria alma na totalidade, alocando o homem antes de tudo em seu lugar essencial e com ele acostumando-o” (HEIDEGGER, 2008, p. 229).

Transformar a “alma” humana, isto é, nossa condição essencial; fazer isso colocando-nos em nosso lugar essencial, em nosso mundo histórico e nos acostumando a ele, quer dizer, tornando-nos resistentes às incertezas do real; eis aqui uma síntese do que Heidegger pretendia como tarefa da Universidade pautada no questionamento.

Conclusão

Tentamos apresentar o projeto de Heidegger para a reforma da Universidade como uma reação a um diagnóstico de crise, que já vinha sendo refletida por ele há mais tempo e que se revela no crescente afastamento da ciência em relação à existência individual e coletiva. Tratamos desse afastamento como um rompimento do papel formativo que, ao menos no contexto alemão, era esperado como resultado da ciência feita na Universidade.

Paralelamente, comentamos alguns aspectos do envolvimento de Heidegger com o Nazismo. E, nesse ponto, por mais benevolente que sejamos em relação ao seu projeto para a transformação da Universidade, é difícil não concluir, como fazem Milchman e Rosenberg (1997, p. 92), que sua reitoria foi baseada em um “pacto com o diabo”: acreditando que a ascensão de Hitler ao poder tinha potencial para uma renovação completa da existência e do espírito do povo alemão, ele parece ter aceitado a política nazista de ódio e segregação no interior da própria Universidade como um preço aceitável a ser pago.

Há, inegavelmente, um erro pessoal de graves consequências na avaliação que Heidegger faz do Nazismo e de seu líder, tanto quanto de sua possibilidade de influenciar filosoficamente o movimento na condição de reitor. Contudo, ao lado do reconhecimento desse fracasso pessoal, acreditamos que há também elementos em suas ideias e reflexões que merecem ser mantidos no horizonte de nossas discussões em torno do papel da ciência e da Universidade na sociedade atual.

Em primeiro lugar, importa reter a questão sobre a essência da Universidade. Quer dizer, importa perguntar pela razão de ser dessa instituição, sua natureza e seus propósitos. A resposta de Heidegger aponta para a responsabilidade da Universidade com o destino da sociedade, que ela busca influenciar por meio da formação de lideranças e da problematização dos temas configuradores do mundo. Em contraste, atualmente, vemos a Universidade comprometer-se sobretudo com a indústria, por meio de pesquisas encomendadas para aplicação prática imediata, e com a qualificação profissional, mediante a preparação de trabalhadores alinhados com as demandas do capitalismo de mercado. No interesse de atender a essas duas tarefas de grande apelo social, e sem dúvida relevantes, presenciamos o atrofiamento do questionamento e da formação crítica. Se a Universidade seguir por esse caminho, para qual outra instituição caberá a incumbência de guardar e renovar o espírito crítico no seio de nossas sociedades democráticas? Ou acreditamos poder prescindir dessa formação?

Em segundo lugar, merece atenção a preocupação de Heidegger com o desenraizamento existencial da ciência desenvolvida na Universidade. É claro que a ciência impacta significativamente nossas vidas, já impactava no tempo de Heidegger, mas isso ocorre sobretudo em consequência da aplicação de seus resultados. O filósofo coloca em questão outra coisa, a saber, a possibilidade de nos orientarmos e nos guiarmos no mundo com base em uma postura científica, isto é, questionadora, crítica e criativa. Nada expressa melhor o problema desse afastamento da ciência em relação aos rumos da existência do que a constatação, já óbvia, de o avanço do conhecimento científico se faz acompanhar por ondas de obscurantismo, negacionismo e desinformação. Diante desse quadro, ainda cabe a questão pelo papel e pela função da ciência no todo da cultura. O valor da ciência está apenas no conhecimento que ela produz ou caberia esperar dela algum impacto no modo como nos portamos enquanto sociedade, na condução de nossas vidas? Diante de uma resposta afirmativa, como viabilizar o impacto esperado no contexto das disciplinas científicas cada vez mais restritas e técnicas?

Por fim, em terceiro lugar, caberia recuperar com Heidegger a questão sobre a possibilidade de formação em um modelo de Universidade alheio ao questionamento. Não do questionamento enquanto exercício de curiosidade gratuita ou de ceticismo obstinado, mas como postura disruptiva que abre perspectivas para formas criativas e inovadoras de relação com o mundo. Em linguagem heideggeriana, trata-se do questionamento ontológico, da pergunta pelo ser. No entanto, isso não tem outro sentido que não a indagação pelas forças histórico-culturais que determinam nossa experiência do real, de nós mesmos e do mundo com um todo. É possível falar em formação na Universidade se esta já não preserva espaço para a reflexão indagadora de nossa própria condição humana e histórica?

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1Com base nesse sentido especial do termo Selbstbehauptung, Fédier sugere que o discurso do reitorado seja traduzido por “A Universidade Alemã frente a tudo e contra tudo ela mesma”. E é com esse título que o texto aparece nos Escritos políticos (HEIDEGGER, 1997).

2Há uma ampla literatura sobre esse tópico, algumas produções aparentemente mais comprometidas com a promoção da polêmica do que com o esclarecimento e a avaliação dos fatos. Cabem, por isso, algumas indicações. Para uma avaliação filosófica cuidadosa do caso, o livro Heidegger réu: um ensaio sobre a periculosidade da filosofia, de Loparic (1990), segue sendo uma importante referência. Para uma visão geral dos fatos, a biografia Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal, assinada por Safranski (2005), pode ser bastante útil. Por fim, o prefácio de Fédier (1997) para os Escritos Políticos de Heidegger oferece uma ampla contextualização histórico-cultural da ascensão do Nazismo, que também importa para a compreensão do envolvimento de Heidegger com o movimento.

3Embora traduzido comumente por “ciência”, o termo Wissenschaft comporta, em língua alemã, um sentido mais amplo do que, de imediato, entendemos por ciência na língua portuguesa. Genericamente, Wissenschaft comporta tanto as ciências da natureza (Naturwissenschaften) quanto as ciências do espírito (Geisteswissenschaften), que inclui uma gama bem ampla de áreas e disciplinas. Pela sua amplitude semântica, o termo Wissenschaft pode ser entendido como representativo de tudo o que tomamos em sentido lato como “estudo acadêmico”.

4Thomson (2003) recupera o contexto cultural e intelectual desse período para mostrar que Heidegger estava, na ocasião, se posicionando em relação a um debate maior cujos expoentes eram Oswald Spengler e Max Weber. Tratava-se, em resumo, de um embate em torno do papel a ser desempenhado pelos intelectuais diante da crise histórica que era pressentida e que fora agravada com a derrota alemã na primeira Guerra Mundial. No livro que se tornou muito popular, O declínio do ocidente, Spengler faz um chamado aos intelectuais para que se tornassem líderes espirituais do povo alemão, em uma tentativa de reversão da crise que se instaurava. Weber reage a esse chamado quando, na conferencia Ciência como vocação, defende o afastamento do fazer científico das avaliações de valores e reafirma o compromisso dos intelectuais com a análise e apresentação dos fatos. Na interpretação de Thomson (2003), nesse período, Heidegger conserva em sua posição o aspecto da liderança intelectual reivindicada por Spengler, mas agrega a ela a demanda weberiana de uma ciência objetiva.

5O compromisso das instituições científicas com a formação intelectual e moral é estabelecido já no primeiro parágrafo de famoso texto Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim e, depois, sintetizada nos seguintes termos: “[...] a organização interna das instituições científicas superiores se caracteriza pela combinação de ciência objetiva e formação subjetiva” (HUMBOLDT, 1997, p. 79). Uma análise detalhada de pontos de convergência e divergência entre as posições pedagógicas de Humboldt e Heidegger, tendo como foco a Universidade, pode ser conferida em Sinclair (2013).

6Apesar de não conter referências diretas ao tema da formação, o modo como é desenvolvida a noção de cuidado em Ser e tempo repercute claramente questões tradicionais da formação humana. Em especial, vale destacar que o tema da autenticidade, que faz recair sobre o indivíduo a responsabilidade pelo seu ser, segue de perto a lógica moderna da formação compreendida como autoformação. Para uma discussão mais detalhada dos pontos de continuidade e ruptura de Heidegger com a tradição da formação (Bildung), tendo como referência Ser e tempo, ver Doro (2020, p. 117-122).

7Em carta encaminhada ao presidente da Comissão Política de Saneamento, datada de 15 de dezembro de 1945, ao comentar sua postura em relação à Gleischaltung, Heidegger afirma que sua intensão “[...] não era, como nunca foi, pôr a Universidade à mercê do Partido - mas, pelo contrário, tentar, no próprio seio do socialismo nacional e relativamente a ele, impulsionar uma modificação espiritual” (HEIDEGGER, 1997, p. 185). No amplo estudo que Derrida realiza sobre o tema do espírito na obra de Heidegger, o Discurso do Reitorado é apontado como o local de uma “exaltação do espiritual” (DERRIDA, 1990, p. 47), que pode ser lida como uma estratégia de Heidegger para conferir a mais segura e mais elevada legitimidade a suas decisões e ações. Interpretando-se por esse viés, observa Derrida (1990, p. 49-50), “[...] poder-se-ia dizer que ele espiritualiza o nacional-socialismo [...]” e “[...] poder-se-ia criticá-lo por isso, como ele criticará, mais tarde, Nietsche por ter exaltado o espírito de vingança, num ‘espírito de vingança espiritualizado ao máximo’”; mas, em paralelo, também se pode dizer que “[...] correndo o risco de espiritualizar o nazismo, ele pode querer resgatá-lo ou salvá-lo”, o que “[...] ao mesmo tempo demarca o engajamento de Heidegger e interpreta uma vinculação. Esse discurso parece não pertencer simplesmente ao campo ‘ideológico no qual se faz apelo para as forças obscuras, as forças que em si seriam não espirituais mas naturais, biológicas raciais”.

8Na interpretação proposta por Heidegger, desaparece a oposição entre teoria e prática. A própria theoria, em sentido grego, precisa ser entendida, segundo ele, como uma forma de práxis; ela é também uma das formas, a mais elevada delas, de efetivação da atividade humana (HEIDEGGER, 1997). Sobre essa base ele recusará também a divisão hierarquizada do trabalho intelectual e manual.

9Na entrevista concedida a revista Der Spiegel, em setembro de 1966, mas somente publicada após a morte do filósofo, em 1976, ele é questionado sobre essa afirmação em torno da liberdade acadêmica e mantém sua posição original: “Sim, mantenho o que disse. Pois essa ‘liberdade acadêmica’ era, no fundo, puramente negativa: a liberdade de não fazer o esforço de se abrir à reflexão e à meditação que exigem os estudos científicos” (HEIDEGGER, 1997, p. 218, grifo do autor).

10A infame rejeição autoritária da liberdade acadêmica, em prol de laços e serviços comunitários, contrasta com sua afirmação, mais ao final do Discurso, de que “[...] liderar implica em todas as circunstâncias, que jamais seja recusado àqueles que obedecem o livre uso da força. Obedecer comporta em si a resistência. Este antagonismo essencial entre dirigir e obedecer, não pode ser atenuado, nem sobretudo apagado” (HEIDEGGER, 1997, p. 102). Isso parece afastar ou, ao menos, atenuar posições dogmáticas que, certamente, seriam nocivas ao bom êxito dos processos reflexivos que ele deseja para a Universidade e para o Nacional Socialismo. Estranho é que Heidegger não tenha flagrado, desde o início, a total incompatibilidade dessas suas ideias reformistas e de sua visão do movimento com a realidade do projeto político de Hitler.

Recebido: 22 de Novembro de 2022; Revisado: 22 de Maio de 2023; Aceito: 23 de Maio de 2023; Publicado: 06 de Junho de 2023

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