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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21348.051 

Artigos

Percepções da velhice e transição para a aposentadoria de pessoas adultas mais velhas

Perceptions of old age and transition to retirement of older adults

Percepciones de la vejez y transición a la jubilación de personas adultas mayores

*Mestrado em Educação e Formação, área de especialidade em Desenvolvimento Social e Cultural, Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Membro da Diretoria Executiva da Associação Nacional de Gerontologia - Regional Pernambuco. E-mail: <mariadanevessilva965@gmail.com>.

**Doutoramento em Ciências da Educação, área de especialidade em Formação de Adultos, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Professora e investigadora do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (UIDEF). E-mail: <carmen@ie.ulisboa.pt>.


Resumo

O aumento da longevidade provocou o incremento da população adulta mais velha. Assim sendo, este texto visa analisar percepções sobre a velhice e as transições para a aposentadoria em pessoas adultas mais velhas. Os dados empíricos resultaram de entrevistas biográficas com seis pessoas adultas aposentadas, decorrentes de uma investigação biográfica. O quadro conceptual incide nas histórias de vida e nas transições biográficas, na velhice e no envelhecimento, na aposentadoria e na formação experiencial. As pessoas adultas aposentadas entrevistadas evidenciam uma tendência de associação do envelhecimento e da velhice à incapacidade e à inatividade. A transição para a aposentadoria é vivenciada de múltiplas formas, de acordo com a experiência e a singularidade de cada sujeito. Contudo, há uma tentativa generalizada de preservação da autonomia, do reconhecimento de si e da identidade. Na vivência da adultez tardia, os sujeitos valorizam capacidades essenciais para a vida como o poder de falar, o poder de narrar e o poder de agir.

Palavras-chave: Pessoas adultas mais velhas; Transição; Aposentadoria

Abstract

The increase in average life expectancy led to an increase in the older adult population. Thus, this text aims to analyze perceptions about old age and transitions to retirement in older adults. Empirical data resulted from a biographical investigation carried out with six retired adults, through biographical interviews. The conceptual framework adopted focuses on life stories and biographical transitions, in aging, old age and retirement, and experiential learning. Retired adults participating in the research show a tendency to associate aging and old age with disability and inactivity. The transition to retirement is experienced in multiple ways, according to the experience and uniqueness of each adult. However, there is a widespread attempt to preserve autonomy, self-recognition and identity. In the experience of late adulthood, the person value essential skills for life such as the power to speak, the power to narrate and the power to act.

Keywords: Older adult people; Transition; Retirement

Resumen

El aumento de la longevidad ha provocado incremento de la población de adultos mayores. Así, este texto visa analizar percepciones sobre la vejez y las transiciones para la jubilación de personas adultas mayores. Los datos empíricos resultaron de entrevistas biográficas con seis personas adultas jubiladas, resultantes de una investigación biográfica. El marco conceptual incide en las historias de vida y en las transiciones biográficas, en la vejez y el envejecimiento, en la jubilación, y en la formación experiencial. Las personas adultas jubiladas muestran una tendencia de asociación del envejecimiento y la vejez con la incapacidad y la inactividad. La transición a la jubilación es vivenciada de múltiples maneras, de acuerdo con la experiencia y singularidad de cada sujeto. Sin embargo, hay un intento generalizado de preservación de la autonomía, del reconocimiento de sí y de la identidad. En la vivencia de la adultez tardía, los sujetos valoran capacidades esenciales para la vida, como el poder hablar, el poder narrar y el poder de actuar.

Palabras clave: Personas adultas mayores; Transición; Jubilación

Introdução

Nas últimas décadas, o aumento da longevidade, resultante da conjunção de diversos fatores (econômicos, científicos, sociais, políticos etc.), constituiu-se um fenômeno global e um avanço considerável na vida em sociedade. Esse fenômeno global, uma das conquistas mais significativas da Humanidade, repercutiu-se na necessidade de assegurar a qualidade de vida dos adultos mais velhos. Assim sendo, neste texto, visamos analisar experiências de vida de pessoas adultas aposentadas e as suas percepções sobre a velhice.

Os dados empíricos apresentados advieram do recorte de uma investigação biográfica com o objetivo de compreender as histórias de vida e o processo formativo de pessoas adultas aposentadas. A investigação biográfica permitiu aceder à interpretação realizada pelos próprios sujeitos, sobre as suas experiências de vida, nomeadamente as que caracterizam a transição para a aposentadoria. A investigação privilegiou as “[...] vozes dos próprios adultos mais velhos, amplamente ignoradas” (WITHNALL, 2006, p. 30, tradução nossa) e silenciadas, com o intuito de contribuir para a construção de conhecimento científico baseado na perspectiva do sujeito. Filiada na hermenêutica, a investigação biográfica convoca o sujeito participante a realizar um processo de reflexão, de atribuição de sentido e de apropriação das suas experiências, permitindo-lhe (re)construir e socializar a história de vida (DELORY-MOMBERGER, 2019a; PINEAU, 2019). A entrevista biográfica estimula a biografização e a socialização da história de vida de cada sujeito, na tentativa de captar a singularidade da sua experiência e de compreender a interdependência de fatores pessoais e sociais na individuação. Com a entrevista biográfica é reconhecido o lugar central do narrador na qualidade de “[...] sujeito-autor da sua história de vida” (DELORY-MOMBERGER, 2019b, p. 342, tradução nossa).

No domínio conceptual, adotou-se o quadro teórico sobre histórias de vida, transição biográfica, transição para a aposentadoria, idades da vida, envelhecimento e velhice e formação experiencial. As histórias de vida são narrativas construídas pelo sujeito, no seguimento da (re)interpretação das suas vivências. A (re)construção é suportada em processos reflexivos e subjetivos, por meio dos quais o sujeito atribui sentido, (re)elabora e apropria as experiências (DELORY-MOMBERGER, 2019a; PINEAU, 2019). As transições biográficas, interdependentes dos contextos sócio-históricos e do modo como cada sujeito percepciona os acontecimentos da sua vida, são processos fluídos, diluídos e contínuos no tempo (BURNINGHAM; VENN, 2020), que originam transformações no sujeito. Tais transformações, traduzidas em saltos qualitativos, rupturas, novas abordagens e autonomia, dão lugar a processos educacionais de transição, nos quais o sujeito altera a sua visão de si e do mundo e pode operar mudanças na estrutura que o influencia (ALHEIT, 2021). A aposentadoria implica transições biográficas quando o sujeito é confrontado com a necessidade de operar transformações, de viver a potencialidade da vida “não vivida” e de aproveitar as “oportunidades biográficas” (ALHEIT, 2021, p. 120, tradução nossa).

A representação da vida em três idades distintas - juventude, adultez e velhice - tem subjacente a ideia de que ocorrem transições biográficas significativas na passagem de uma idade para outra (KADDOURI, 2019). Entretanto, a complexidade dos fenômenos sociais, das últimas décadas, interferiu nos marcadores que definiam as idades da vida, prolongando as diferentes fases e tornando-as mais voláteis, difusas e hibridas. Neste artigo, consideramos que a vivência das idades da vida depende, simultaneamente, de dimensões cronológicas, biológicas, psicológicas, sociais e culturais, o que origina uma configuração muito variável e única em cada sujeito. O aumento da expectativa de vida, devido ao avanço da ciência, à melhoria das condições de vida e de acesso a cuidados de saúde, contribuiu para um incremento da população adulta mais velha, originando uma alteração demográfica muito significativa no âmbito mundial. As representações e as vivências da adultez tardia assumem um caráter cultural (BEAUVOIR, 2018; TAVOILLOT, 2017), o que justifica a evolução e a diversidade de entendimentos nesse domínio.

A formação experiencial, resultante da reflexão, da atribuição de sentido e da apropriação das experiências de vida, origina processos de transformação, associados a todos os tempos e espaços de vida, interferindo na globalidade do sujeito - nas dimensões física, cognitiva, afetiva, espiritual, identitária e existencial (CAVACO; PRESSE, 2022). Esse processo, interdependente da diversidade e da complexidade das experiências inerentes à trajetória de vida, justifica a singularidade de cada pessoa e o seu processo de individuação. Na adultez tardia, acontecem processos de formação experiencial devido às vivências específicas dessa idade e ao processo reflexivo de balanço e (re)construção de experiências de vida.

Este texto está organizado em três pontos: no primeiro, explicitamos o quadro conceptual sobre histórias de vida, transições biográficas, formação experiencial, envelhecimento, aposentadoria e velhice; no segundo, abordamos a metodologia; e no terceiro, incidimos na apresentação e na análise de resultados da investigação.

Histórias de vida e transições biográficas

A história de vida ganha forma quando o sujeito reflete e elabora narrativas sobre as suas vivências (DELORY-MOMBERGER, 2019a; PINEAU, 2019). Assim, a história de vida é a narrativa criada pelo sujeito quando reflete, atribui sentido e se apropria de fatos vivenciados (PINEAU, 2019), transformando-os em experiências, é dinâmica e em permanente evolução. O vivido é interiorizado e obtém sentido por meio de narrativas que contamos a nós mesmos e aos outros. Nas narrativas biográficas, que construímos e partilhamos no cotidiano, os acontecimentos vividos são expostos, organizados e sistematizados em torno de um enredo, situado no tempo e no espaço, o que lhes dá coerência, consistência e sentido. Esses enredos definem a história de vida, porquanto asseguram coerência e articulação em acontecimentos fragmentados, heterogêneos e imprevisíveis. As narrativas biográficas permitem, por meio de um processo contínuo e dinâmico, a edificação da história de vida de cada sujeito, desempenhando um papel estruturante na vida individual e coletiva. Contar histórias sobre os acontecimentos da vida é uma solução para superar os desafios da construção e do reconhecimento do eu, mas também para promover a partilha e a circulação dos saberes construídos pela Humanidade (DAMÁSIO, 2010).

As vivências cotidianas transformam-se em experiências quando o sujeito realiza um processo de reflexão, na relação consigo próprio e/ou com outros. A (re)elaboração da experiência implica a construção de narrativas de si, que podem ser incorporadas e guardadas pelo sujeito, mas que, com frequência, são partilhadas com outros, ou seja, socializadas. As narrativas são interpretações do vivido realizadas pelo sujeito, tendo como referência as experiências anteriores, os quadros de pensamento e de ação do sujeito. Desse modo, a interpretação do vivido e a (re)elaboração da experiência dependem, simultaneamente, da influência de fatores individuais e de fatores sociais e culturais. Assim, a (re)elaboração da experiência tem subjacente um processo de biografização que implica trabalho psicocognitivo, através do qual o sujeito realiza a construção de si, na sua singularidade, mas também na sua sociabilidade, revelando-se como “ator social individual” (ALHEIT; DAUSIEN, 2006, p. 180). O eu autobiográfico (DAMÁSIO, 2010), essencial na biografização e na individuação, é formado na relação dialética entre o individual e o social. As vivências e o processo de formação são influenciados por “[...] critérios de diferenciação social - a classe social, o sexo, a origem étnica” (ALHEIT; DAUSIEN, 2006, p. 180). Os sujeitos apropriam-se da sua vida quando a (re)constroem por meio de histórias, que funcionam como sincronizadores pessoais de diferentes temporalidades que nos compõem e decompõem (PINEAU, 2019).

Ao longo da vida, ocorrem múltiplas transições biográficas, nomeadamente quando o sujeito é confrontado com acontecimentos marcantes, que exigem alterações na forma de se entender a si, os outros e a vida. Nas últimas décadas, as histórias de vida eram frequentemente estruturadas “[...] em torno de três instâncias - a escola, o trabalho e a reforma, e de três momentos significativos - a juventude, a idade adulta e a terceira idade” (KADDOURI, 2019, p. 183, tradução nossa). Contudo, essas segmentações no curso de vida perderam, progressivamente, sentido na medida em que não possibilitam a compreensão da diversidade e da singularidade das trajetórias individuais. As mudanças permanentes, a aceleração dos ritmos de vida e a instabilidade originaram uma maior diversidade, imprevisibilidade e complexidade dos percursos biográficos e, consequentemente, das transições biográficas. Esses fenômenos conduzem a um questionamento da “[...] representação da vida recortada em três idades distintas (formação, atividade profissional, aposentadoria)” (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 106).

Ao longo da vida, dá-se uma imbricação entre períodos de formação, atividade e descanso, de forma alternada ou simultânea (HESLON, 2019). O investimento em formação acadêmica pode ocorrer em qualquer idade da vida, inclusive durante a aposentadoria. Além disso, a atividade profissional é cada vez mais comum durante a aposentadoria. Nessa fase da vida, o sujeito pode dar continuidade à sua atividade profissional ou realizar uma reconversão e iniciar novos projetos no mercado de trabalho. O prolongamento da juventude e da formação, o desemprego, a antecipação e o adiamento da aposentadoria, e a coexistência da aposentadoria com o trabalho são concomitantes com dinâmicas biográficas de destandartização das idades da vida (JULHE; LECLERCQ; ROUX, 2023). Esses marcadores, que visam caracterizar as especificidades de cada idade da vida, já não são úteis como no passado, pois na sociedade contemporânea a diversidade, a imprevisibilidade e a complexidade tornaram as biografias menos lineares, padronizadas e marcadas pela idade cronológica. A idade adulta, anteriormente associada à estabilidade, à continuidade e à permanência, tem vindo a ser cada vez mais afetada pela instabilidade, ruptura e mudança.

Na atualidade, as histórias de vida revelam a fluidez, a diversidade de trajetórias pessoais e a importância da subjetividade individual nas biografias compostas por acontecimentos segmentados, por vezes interrompidos e sem ligação aparente. A insegurança, a incerteza e a imprevisibilidade que caracterizam a vida na sociedade contemporânea suscitam e naturalizam mudanças permanentes, a um ritmo acelerado, repercutindo-se na complexidade e na diversidade de transições biográficas. As transições biográficas acontecem, no cotidiano, quando o sujeito é confrontado com acontecimentos que originam rupturas e transformações na sua vida, requerendo mudanças nos esquemas de pensamento e de ação, na forma de se entender a si, de entender os outros e de percepcionar a vida. Na sociedade contemporânea, a vida é repleta de reorientações, reposições e reconfigurações em todas as idades. Isso porque “[...] as bifurcações, as reconversões e as transições biográficas deixaram de ser excecionais e assumem um papel cada vez mais significativo nas nossas vidas” (KADDOURI, 2019, p. 183, tradução nossa). Os novos começos biográficos são mais comuns no cotidiano do que suspeitamos; assim, as transições biográficas são cada vez menos acopladas a pontos fixos no ciclo de vida (ALHEIT, 2021).

As transições biográficas originam transformações identitárias e existenciais, porquanto o sujeito é inscrito em uma fase intermédia, em que a identidade e a existência se reconstroem para dar lugar a algo novo e diferente. Essa fase intermédia, característica das transições biográficas, gera “inquietação, instabilidade e dúvida” (KADDOURI, 2019, p. 184, tradução nossa) e, consequentemente, reconfigurações e transformações do próprio sujeito. As transições biográficas, resultantes de acontecimentos marcantes, confrontam o sujeito com rupturas e bifurcações no seu percurso de vida, interferindo com os equilíbrios anteriormente estabelecidos (KADDOURI, 2019).

Envelhecimento, velhice e transições para a aposentadoria

O envelhecimento é um processo natural, global e contínuo, presente em todas as idades da vida, que se configura em transformações silenciosas (JULLIEN, 2009), porquanto é difícil de captar na sua continuidade, globalidade e evolução. O envelhecimento é um processo que consiste em ocorrências, ações e etapas que envolvem mudanças; nesse sentido, pode-se considerar a trajetória do envelhecer. Influenciadas, simultaneamente, por fatores biológicos, sociais, culturais e individuais, as idades da vida têm sofrido reconfigurações, devido à diversidade e à mutação das vivências, tornando-se mais difusas e menos padronizadas. Nas últimas décadas, as dinâmicas sociais, econômicas, políticas, sociais e educativas contribuíram para a emergência da juventude como categoria sociocultural da modernidade, o aumento da longevidade, o aparecimento da terceira e da quarta idade. A diversidade e a rapidez das mudanças, “[...] a pressão para tomar decisões sempre novas, para mudar continuamente de orientação, é interiorizada de maneira mais ou menos clara pelos próprios indivíduos” (ALHEIT; DAUSIEN, 2006, p. 184), o que tornou as trajetórias de vida mais imprevisíveis e complexas. Esses fenômenos originaram “metamorfoses nas idades da vida” (VAN DE VELDE, 2015, p. 42, tradução nossa), tornando-as “[...] esbatidas e menos claras do que no passado […] [e] as identidades menos fixas e as transições mais flutuantes” (TAVOILLOT, 2011, p. 32, tradução nossa). Contudo, apesar das reconfigurações e do seu caráter mais difuso, continuam a funcionar como dimensões identitárias na construção de si e na organização da vida social (TAVOILLOT, 2011). Desse modo, é relevante compreender o modo como, individual e coletivamente, são vividas as idades da vida no plano identitário e existencial. As idades da vida são construtos sócio-históricos, como tal vão evoluindo em função das dinâmicas sociais, culturais e científicas (RENNES, 2019; TAVOILLOT, 2011).

O aumento da longevidade tem vindo a possibilitar, a um número cada vez mais significativo de pessoas, a chegada até à adultez tardia. Os vários campos científicos (antropologia, filosofia, história, sociologia, psicologia etc.) vêm a problematizar o modo como a pessoa adulta mais velha “[...] interioriza sua relação com o próprio corpo, com o tempo, com os outros” (BEAUVOIR, 2018, p. 15). A adultez tardia é marcada por fenômenos muito diversificados - de natureza biológica, econômica, social, política e religiosa. O entendimento da adultez tardia, à semelhança das outras idades da vida, assume um caráter eminentemente cultural (BEAUVOIR, 2018), notório nos paradoxos que afetam essa idade. Por um lado, tornou-se cada vez mais desejada, mais certa e mais durável. Por outro lado, vem sendo cada vez mais evitada, estigmatizada, negada e silenciada, devido à valorização da mudança, dos ritmos de vida acelerados e do culto do novo (MAIA, 2021; TAVOILLOT, 2017). O adulto mais velho, na atualidade, tem-se deparado com a diversidade de experiências em função, inclusive, da longevidade que vem caracterizando a adultez tardia. Aspectos que concorrem para a busca por “compartilhar sua história de vida”, nem sempre de interesse das pessoas (ALMEIDA; GRUBITS, 2023, p. 45). Desse modo, como, afirma Tavoillot (2017, p. 139, tradução nossa), “[...] o tempo social parece ir contra essa idade da vida”, como se houvesse uma predisposição para a promoção do mais velho ao refugo. Essa situação relaciona-se, em grande medida, com estereótipos, preconceitos e discriminação em função da idade, ou seja, do idadismo. Esse conceito se refere às formas negativas citadas, divulgadas no âmbito social, promotoras de sentimentos, atitudes e noções geradoras de menos valia em relação aos adultos mais velhos. Tais “[...] crenças sociais negativas acerca do envelhecimento” (MAIA, 2021, p. 170) e das pessoas adultas mais velhas podem gerar comportamentos preconceituosos das pessoas mais jovens sobre os adultos mais velhos e atitudes depreciativas das pessoas velhas em relação a si mesmas. Alguns estudos que possuem como sujeito a pessoa adulta mais velha apresentam chavões tais quais: “[...] envelhecimento bem-sucedido, resgate da cidadania, reinserção social, realização pessoal, redefinição da imagem do idoso, despertar da consciência para um envelhecimento saudável, melhora na qualidade de vida” (SIQUEIRA, 2023, p. 31). Expressões amplamente usadas para caracterizar a adultez tardia que, todavia, podem alimentar e estimular preconceitos.

Nas sociedades tradicionais, a velhice era valorizada, individual e coletivamente, porque o passado era reconhecido como uma dimensão estruturante da evolução civilizacional; assim, a velhice era percepcionada como sabedoria e realização, ou seja, o sinal de uma vida bem-sucedida (TAVOILLOT, 2017). Na sociedade contemporânea, procura-se adiar e evitar essa fase da vida, na tentativa de ocultar e silenciar os efeitos do envelhecimento. O referido paradoxo está na base da desvalorização, da estigmatização e da discriminação dos adultos mais velhos. A discriminação das pessoas mais velhas resulta da interseccionalidade de diversos fatores como gênero, classe social e nível de escolaridade, pois esses marcadores sociais influenciam o “[...] acesso a benefícios, papéis e posição social na velhice” (NERI, 2013, p. 19). Devido ao prolongamento da expectativa de vida, os investigadores dedicados às idades e ao curso de vida têm vindo a sublinhar a importância de se equacionarem quatro idades, como é o caso de Peter Laslett (1994), ao considerar a primeira idade focada na educação e na socialização, a segunda idade centrada nas responsabilidades familiares e profissionais; a terceira idade caraterizada pelo prolongamento da independência e da maturidade, orientada para a autonomia e a realização de si; e a quarta idade referente a níveis de dependência crescente. Nesse sentido, as investigações associam a vivência da adultez tardia a uma idade multiativa ou, mesmo, hiperativa (HESLON, 2019), devido à atividade social e física, à redefinição da atividade remunerada e não remunerada, à autonomia, à maturidade e à realização de si (VAN DE VELDE, 2015).

A vivência da adultez tardia é diversificada, devido à influência de uma multiplicidade de fatores. A centralidade do trabalho na vida atual tem reflexos no modo como é vivida a adultez tardia, principalmente por meio de aposentadoria antecipada, adiada ou concomitante com a atividade profissional. A diversidade de modos como cada sujeito vivencia essa fase da vida origina a aposentadoria plural (GAULLIER, 2004), o que também decorre do caráter voluntário e programado ou, pelo contrário, involuntário e não programado (GENEROSO; FRAGOSO, 2021). No passado, a aposentadoria era tida como uma das últimas transições psicossociais da idade adulta (FOUQUEREAU et al., 2002), devido à suspensão da atividade profissional e às mudanças que isso provocava na vida do sujeito. Entretanto, na atualidade, a aposentadoria não significa, necessariamente, o fim do trabalho, por isso as transições biográficas nessa fase da vida também não são tão lineares como no passado. Nessa fase da vida, surgem as carreiras tardias (FROIDEVAUX; MAGGIORI, 2020), quando os adultos dão continuidade às suas carreiras profissionais, ou iniciam atividade em outras áreas profissionais. Além disso, o fim da atividade profissional pode ser concomitante com um aumento de outro tipo de atividades, não remuneradas. Assim, a aposentadoria não significa inatividade.

Na adultez tardia, o sujeito é confrontado com a transição para a aposentadoria, o que é vivenciado em função de fatores contextuais, individuais, sociais e culturais. Nessa fase, os trabalhadores mais velhos podem explorar diferentes possibilidades de envolvimento ou, pelo contrário, de desinvestimento na vida profissional, em função dos seus interesses, motivações e projetos de vida. Na aposentadoria, o fim da atividade profissional implica a alteração de diversas dimensões associadas ao trabalho, que têm de ser reinventadas, tais como a gestão do tempo, as relações interpessoais, o estatuto, as realizações, o sentido e a utilidade (FROIDEVAUX; MAGGIORI, 2020). Nessa fase, em função da análise da situação, os sujeitos podem optar pelo adiamento da aposentadoria, a aposentadoria antecipada, o emprego-ponte, ou a carreira tardia, de acordo com aquilo que mais associam ao equilíbrio entre o bem-estar, a sua identidade e o reconhecimento. Tais elementos dependem e interferem no modo como a pessoa adulta mais velha se percepciona a si própria, aos outros e ao mundo, nomeadamente, como se posiciona face aos ritmos da existência e ao “sentido da vida” (TAVOILLOT, 2010, p. 8, tradução nossa).

Formação experiencial

A experiência de vida resulta da apropriação realizada pelo sujeito no decurso de processos de reflexão e de atribuição de sentido. A experiência apresenta um potencial formativo que se materializa quando o sujeito realiza a biografização, em outras palavras, um “[...] trabalho psicocognitivo de configuração temporal e narrativa das vivências” (DELORY-MOMBERGER, 2014, p. 16, tradução nossa). Essa configuração temporal e narrativa permite ao sujeito encontrar sentido(s) para o vivido, apropriar, reelaborar e socializar a experiência. A formação experiencial resulta do inacabamento e da consciência deste por parte do ser humano; assim, o processo de formação é permanente, ilimitado e afeta todas as dimensões do sujeito (DEWEY, 1960; FREIRE, 1967; ILLICH, 1985). É essa dimensão que justifica a continuidade e a globalidade desse processo, que ocorre em todos os tempos e espaços de vida, pois, na qualidade de sujeitos “[...] histórico-sócio-culturais, mulheres e homens nos tornamos seres em quem a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mais ainda, a curiosidade é já conhecimento” (FREIRE, 1996, p. 29). Trata-se de um contínuo educativo que envolve os tempos históricos do desenvolvimento humano, em que se encontram instalados os fatos significativos da vida, campo de interesse do estudo realizado, no qual estimulamos a memória enquanto patrimônio e testemunho de uma lógica por meio da qual “[...] o indivíduo humano vive cada instante de sua vida como o momento de uma história: história de um instante, história de uma hora, de um dia, de uma vida” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 525). A explicitação e a escuta de histórias de vida de pessoas adultas mais velhas são processos que contribuem para a formação do narrador e de quem escuta, concorrendo para o entendimento da aposentadoria e da adultez tardia. Os adultos mais velhos almejam narrar e socializar suas histórias de vida, nem sempre encontrando pessoas disponíveis para essa escuta (ALMEIDA; GRUBITS, 2023).

O entendimento amplo da formação materializa-se no reconhecimento do potencial educativo da experiência. Quando a experiência é vista como primeira e básica condição para a aprendizagem, observa-se uma valorização dos processos experienciais. Nesse caso, a formação é entendida como “[...] uma tomada de consciência reflexiva (presente) de toda uma trajetória de vida percorrida no passado” (NÓVOA; FINGER, 2014, p. 26). Nesse sentido, a formação experiencial permeia todas as etapas do desenvolvimento humano, a infância, a juventude, a adultez e a velhice. Esse processo ocorre em função da diversidade e da complexidade das experiências a que tenhamos sido submetidos nas nossas trajetórias de vida, e em função das estruturas intelectuais, afetivas, perceptivas, das motivações e dos níveis conscienciais de cada sujeito (CAVACO; PRESSE, 2022). As nossas trajetórias de vida e os processos de formação auxiliam na análise e na seleção dos caminhos a seguir (DOMINICÉ, 2006).

A experiência de vida é permanentemente reelaborada e reconfigurada por meio de processos reflexivos, com frequência não conscientes. Diante da solicitação para refletir e narrar a experiência de vida, faz-se necessário um movimento de distanciamento, de organização e de sistematização. Trata-se, assim, de um processo que surge “[...] à posteriori e resulta de um reforço de racionalização da ação, sendo bastante exigente para quem o realiza, uma vez que a maior parte da informação resultante da ação pertence ao domínio do não consciente” (CAVACO, 2009, p. 221). Nesse sentido, percebe-se a necessidade de observar as conexões que nos possibilitam entender possíveis sequências e/ou encadeamentos de períodos entre si, de forma a “[...] compreender a dinâmica do sujeito na sua maneira de fazer escolhas” (JOSSO, 2014, p. 75). Isso torna importante compreender as trajetórias de vida e os processos formativos que marcam as biografias das pessoas adultas mais velhas, a partir de um entendimento amplo de formação e do reconhecimento do contributo da experiência de vida. Experiência que se constitui única, particular, circunscrita à unicidade de sua identidade, em que a diversidade e a riqueza dos contextos são fatores muito relevantes. A formação experiencial perpassa a dinâmica da vida, dos “[...] primeiros passos e de nossas primeiras palavras até a nossa idade mais avançada, fazemos experiências novas, adquirimos novos saberes e novas competências” (ALHEIT; DAUSIEN, 2006, p. 177).

A formação ocorre em todos os tempos e espaços de vida; desse modo, é uma dimensão presente e importante na adultez tardia. As pessoas mais velhas são vítimas de estereótipos que funcionam como barreiras à sua vida e participação na sociedade, originando múltiplas discriminações. Entre esses estereótipos, destacam-se as ideias de que não têm nada de importante para dizer, que sofrem de esquecimento e são lentas a realizar novas aprendizagens, que têm problemas de mobilidade, de audição e de visão, que vivem ancoradas ao passado e não gostam de mudança, e que não estão interessadas em aprender (WITHNALL, 2005). As experiências anteriores, os estilos e modos de vida, os projetos e as atividades influenciam os processos de formação das pessoas adultas mais velhas. Os adultos mais velhos envolvem-se em dinâmicas de educação formais, não formais e informais, atribuindo-lhes um significado importante na sua vida, em termos de aprendizagens, de manutenção e diversificação de relações sociais e de ocupação do tempo livre. Contudo, nas últimas décadas, as políticas públicas de emprego, educação e formação têm privilegiado as pessoas com idade inferior a 65 anos, contribuindo para a discriminação e a falta de oportunidades das pessoas adultas mais velhas, nomeadamente das aposentadas.

Na aposentadoria, as pessoas mais velhas tanto podem investir em processos de formação relacionados com a experiência de vida e os seus interesses anteriores, como decidir realizar aprendizagens em novos domínios para adquirir outras capacidades e competências (WITHNALL, 2005). A sua mobilização para a formação é notória quando atribuem sentido e importância às dinâmicas em que se envolvem, e quando são entendidos como sujeitos, com saberes, capacidades e motivações. As investigações demonstram a ligação positiva entre a aprendizagem de pessoas adultas mais velhas e a boa saúde mental e física (WITHNALL, 2005). Na adultez tardia, são reconhecidas as vantagens da manutenção de uma vida ativa na promoção do bem-estar. O envolvimento em dinâmicas formativas contribui para manter as pessoas adultas mais velhas ativas, por meio da realização de aprendizagens, do reconhecimento dos seus saberes e das suas capacidades, e de estabelecimento de contatos sociais. Tais fatores são determinantes para a promoção da autonomia, participação e qualidade de vida. O reconhecimento da importância dos processos de formação no envelhecimento ativo tem contribuído para a reivindicação do direito à educação das pessoas adultas mais velhas e para a ampliação do entendimento de atividade, anteriormente limitada à atividade física e laboral (FORMOSA, 2019). Além disso, permitiu também “[...] o questionamento dos estereótipos de gênero que caracterizam a velhice como um período de passividade e dependência, colocando a ênfase na autonomia e na participação” (FORMOSA, 2019, p. 5, tradução nossa). O processo de formação na adultez tardia, por meio da aquisição e do aperfeiçoamento de múltiplos saberes, assume um relevo significativo em diversos domínios, principalmente no apoio à superação de problemas e desafios colocados pela transição para a aposentadoria, no acesso a conhecimento útil e do interesse do sujeito, na mitigação e na prevenção das consequências do envelhecimento, na informação e na reivindicação dos direitos sociais e políticos dos adultos mais velhos, na atitude crítica de defesa da autonomia e da participação, na busca pessoal da realização e do reconhecimento de si, por intermédio da fruição do tempo, do corpo e do estilo de vida. A formação de pessoas adultas mais velhas apresenta potencial para a promoção da emancipação e da mudança (FORMOSA, 2019), na medida em que contribui para o sujeito reconhecer, apropriar e reivindicar o seu poder de agir e de se formar.

Metodologia da investigação

A investigação, ancorada no campo das Ciências da Educação, filiou-se na abordagem biográfica. A abordagem biográfica é “[...] uma corrente de pesquisa-ação-formação existencial” (PINEAU, 2006, p. 336), porquanto possibilita promover a autoformação e a investigação sobre a formação experiencial. A investigação biográfica permite aceder às experiências e à história de vida, aos momentos de transição e à formação experiencial, na perspectiva dos sujeitos implicados, possibilitando uma compreensão “holística da formação” (NOVOA; FINGER, 2014, p. 22). À medida que o sujeito adentra a sua vida e traz à tona os dados que marcaram a sua existência, ocorre “uma tomada de consciência” (DOMINICÉ, 2014, p. 82) sobre a experiência e o processo de formação. A investigação biográfica afigurou-se, do ponto de vista metodológico e epistemológico, a abordagem mais adequada para a investigação sobre as histórias de vida, as transições e o processo de formação de pessoas adultas mais velhas. Na investigação biográfica, realizada com pessoas adultas mais velhas, assumiu-se o “[...] reconhecimento e a exploração do biográfico como dimensão constitutiva de processos de individuação, subjetivação e socialização” (DELORY-MOMBERGER, 2019a, p. 250, tradução nossa). Esse movimento contribuiu, assim, para a análise de experiências de vida, da percepção do envelhecimento e da velhice, dos processos de formação e de transição, a partir de uma dupla hermenêutica, resultante da interpretação realizada pelos adultos participantes e pela própria investigadora. Isso tende a colaborar no reconhecimento de si e na elevação da autoestima, porquanto ocorre a compreensão e a apropriação do poder de falar, do poder de narrar e do poder de agir (RICŒUR, 2005), além do entendimento do legado individual e coletivo que vem sendo historicamente escrito e disponibilizado para a memória do patrimônio das ciências humanas.

No âmbito da pesquisa, realizamos entrevistas biográficas, em formato presencial e on-line, com seis pessoas adultas de idade superior a 60 anos, residentes no município de Recife, no Brasil. Das seis pessoas entrevistadas, quatro são do sexo feminino e duas do sexo masculino. Quanto à escolaridade, cinco dos sujeitos participantes possuem nível superior completo ou pós-graduação e um possui nível médio. Identificamos os sujeitos de pesquisa a partir da rede social de contatos das autoras. A entrevista biográfica permite aceder a narrativa do sujeito com o objetivo de “[...] apreender a singularidade de uma fala e de uma experiência” (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 526). A entrevista biográfica possibilitou o acesso ao modo como as pessoas adultas mais velhas narram e interpretam a sua experiência de vida, os momentos e as relações humanas significativos, as encruzilhadas da vida e o processo de formação, com especial enfoque na transição para a adultez tardia, ou seja, para a velhice. As narrativas construídas pelos sujeitos participantes no momento da entrevista biográfica permitem compreender a globalidade, a complexidade e a singularidade inerentes ao processo formativo, carregado dos equívocos, das dúvidas, das incertezas e das contradições vividas e impregnadas “[...] por uma bipolaridade de rejeição e de adesão” (DOMINICÉ, 2014, p. 89).

As entrevistas biográficas foram agendadas previamente e realizadas nos locais combinados entre os sujeitos participantes e a investigadora. As entrevistas registradas em áudio, com autorização dos participantes, foram posteriormente transcritas, procurando-se que fornecessem subsídios, caminhos, “[...] traços pessoais, mas também sociais, da produção da vida psíquica e intelectual” (PINEAU, 2020, p. 64) dos sujeitos implicados na investigação. No tratamento e na análise das entrevistas, procurou-se captar a globalidade da história de vida de cada sujeito, mas também os vários temas em estudo - a formação experiencial, o envelhecimento e a velhice. Assim, realizou-se uma análise global do percurso de vida de cada sujeito e uma análise temática centrada em cada um dos eixos da investigação. No recorte que se apresenta neste texto, incide-se apenas na análise temática, nas categorias anteriormente destacadas.

Ao longo da investigação, procuramos seguir os princípios éticos inerentes à investigação biográfica e os referidos na Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (SPCE, 2020), nos vários momentos e procedimentos, principalmente na produção de dados, na interação com os sujeitos da pesquisa, na análise e na disseminação de resultados. A metodologia, os princípios e os procedimentos éticos foram aprovados pela Comissão de Ética da instituição de Ensino Superior associada ao projeto de investigação. Considerou-se o direito dos sujeitos da investigação quanto ao recebimento de informação sobre os pontos que caracterizam sua atuação no estudo e o modo como se usam os dados empíricos produzidos. Adotou-se o procedimento denominado Consentimento Informado que lhes foi solicitado como autorização para a produção dos dados empíricos, bem como a possibilidade de alterar os termos do citado consentimento em qualquer momento. As entrevistas biográficas, após a transcrição, foram revistas e validadas por cada um dos participantes. Ao longo da pesquisa, procuramos promover relações de empatia e respeito, baseadas no reconhecimento e na horizontalidade. Na disseminação dos resultados, optamos pelo recurso a nomes fictícios para assegurar o anonimato dos participantes.

Resultados

As entrevistas biográficas realizadas, por meio de incentivo intencional à elaboração da história de vida e à sua socialização, permitiram a explicitação da experiência de vida e do processo de formação experiencial de pessoas adultas mais velhas. Consideramos, para tanto, as potencialidades dessa abordagem no reconhecimento de si, assim como na partilha e na circulação de saberes construídos pela Humanidade (DAMÁSIO, 2010). Devido ao recorte adotado, apresentamos apenas os dados empíricos sobre as percepções que as pessoas adultas mais velhas têm do envelhecimento e da velhice e o modo como têm gerido a transição para a aposentadoria. As percepções do processo de envelhecimento e da velhice decorrem de fatores sociais e culturais, mas também de fatores individuais. Os fatores individuais, objetivos e subjetivos, explicam a multiplicidade e, simultaneamente, a singularidade das percepções sobre o envelhecimento, a velhice (BEAUVOIR, 2018; TAVOILLOT, 2017) e a transição para a aposentadoria.

No geral, as pessoas adultas mais velhas entrevistadas procuram manter-se ativas, por intermédio da manutenção ou da iniciação de rotinas de trabalho e/ou de lazer. Quando têm doenças que interferem na mobilidade e/ou na sensorialidade, destacam a capacidade de realização de atividades estruturantes na sua vida, como o pensar e o falar. Nas situações em que assumem a velhice, associam-na à dimensão espiritual, nomeadamente à sabedoria de vida e à plenitude. Enquanto processo de significativa diversidade e complexidade, o envelhecimento extrapola os contadores cronológicos que a sociedade classifica como a entrada da velhice. Constituindo imperativo a escuta dos sujeitos “[...] e suas histórias de vida para compreendermos mais profundamente a heterogeneidade dos modos de sermos nossos corpos com os outros e com o mundo” (TODARO; CACHIONI, 2021, p. 2):

Envelhecer só quando eu parar de falar. Eu sou muito tímida, quando eu parar de falar acho que eu envelheci, enquanto eu estiver falando, não. Velho é quando a pessoa não consegue mais fazer nada. Está ou muito doente ou desiste de viver. Eu não desisti. (Francisca).

Mentalmente, me sinto muito ativa. Não me sinto incapacitada, ou envelhecendo. Dentro do campo espiritual, me sinto uma anciã do passado, trazendo lembranças de ensinamentos. Me incomoda só os joelhos, é a artrose. Se não fosse isso, estaria viajando, fazendo mil coisas que eu gosto de fazer. (Clara).

Não me preocupo com a velhice, nem com a minha idade. Vou vivendo dentro do conceito que tenho de qualidade de vida, de fazer aquilo que eu gosto. Sem me preocupar, trabalhar descansado. Todo dia faço coisas, todo dia tem o que fazer. (Pedro).

A velhice chegou mesmo. Talvez tenha aprendido no Espiritismo. Tenho duas opções: […] sempre opto pelo bem. Tem pessoas que falam que nunca pensaram em envelhecer. Escolhi viver bem e ser feliz, não quero que nada perturbe o meu sorriso. (Joana).

As pessoas adultas mais velhas participantes da investigação manifestam, no geral, uma percepção da velhice que coincide com a perspectiva social hegemônica, pois associam essa fase da vida às consequências negativas do envelhecimento, nomeadamente à incapacidade e à inatividade. Essas percepções individuais, resultantes de constructos sociais que interiorizam, influenciam os esquemas de pensamento e de ação de cada sujeito. Essas estratégias colocam em evidência a necessidade de o sujeito continuar a sentir-se integrado, capaz e ativo, evitando a desvalorização, a estigmatização e a discriminação (BEAUVOIR, 2018; NERI, 2013; TAVOILLOT, 2017). As pessoas adultas mais velhas sublinham o seu dinamismo, a sua atividade e capacidade de mudança, elementos requeridos pela sociedade e valorizados pelos próprios sujeitos.

A atividade profissional ocupa um lugar muito importante na vida em sociedade, sendo determinante para as condições de vida do sujeito e de sua família e, além disso, para o seu reconhecimento e identidade. A centralidade do trabalho, a importância atribuída à atividade e às mudanças permanentes interferem nas transições biográficas na adultez tardia, tornando-as mais esbatidas e flutuantes do que no passado (TAVOILLOT, 2011). A valorização do trabalho e a diminuição de rendimentos na aposentadoria são fatores determinantes para a continuidade da vida profissional na adultez tardia. Entre as pessoas adultas aposentadas, o trabalho assalariado continua a marcar algumas biografias, o que indica a vontade de continuar ativo, de se sentir útil, de ser reconhecido e de evitar a perda de identidade associada à profissão, assim como das relações interpessoais estabelecidas em contexto profissional. Por meio do trabalho, o sujeito assegura a continuidade das rotinas, evitando transições biográficas associadas à aposentadoria:

Eu tenho 40 anos de trabalho, ainda está sendo. Estou vivendo a melhor fase da minha existência. Sou muito feliz. Eu amo o que faço, conheço cada aluno da escola pelo nome e sobrenome. Eu não admitia me afastar da escola. Fiquei sem querer me aposentar, ia morrer de saudades dos meninos. Dei entrada na aposentadoria, me afastei do Estado, permaneci na prefeitura. (Francisca).

Não houve preparação. Pedi a aposentadoria [mas] continuei frequentando quase todos os dias a delegacia, o trabalho, vendo colegas, indo almoçar […], encontrar em campo de futebol, em qualquer lugar. Após aposentado, voltei a trabalhar ainda na estrutura da polícia e sou bem cogitado. Depois de 10 anos de aposentado, estou lá e a amizade é a mesma. Converso com os mais novos, com os mais velhos, com o mesmo prazer de trabalhar, com as mesmas atitudes. Os superiores me respeitam como se eu fosse igual a eles porque eu sou mais velho que eles. Eu estou lá e sempre com alegria. (João).

Alguns adultos aposentados asseguram a continuidade de relações interpessoais, associadas ao contexto profissional, através do contato sistemático com os ex-colegas de trabalho, os quais continuam a fazer parte do grupo de pertença e de amizade, suavizando alguns efeitos da aposentadoria, como a perda ou a redução da rede de contatos sociais:

[As] colegas eram muito boas, até hoje eu tenho contato com elas, a gente se encontra. Até hoje desde o ano de 1958, sempre estamos nos encontrando, conversando. (Margarida).

Nas transições para a aposentadoria, algumas pessoas adultas mais velhas concretizam um conjunto de mudanças na sua vida, com o objetivo de se envolverem em novas rotinas, atividades e relações interpessoais, em função de antigos ou novos interesses. Na adoção dessas estratégias, manifestam vontade de aproveitar a vida, por meio da socialização, do estabelecimento de relações humanas significativas, da amizade, da diversão e do tempo para si. Além disso, ressaltam capacidade para implementar mudanças, investir em novas atividades, decidir o modo de ocupação do tempo e, também, o dinamismo e a autonomia:

Estou estudando ainda é Braille, no Instituto dos Cegos e depois na Associação Pernambucana de cegos. Lá tem festa também. A AABB [Associação Atlética Banco do Brasil] eu também vou. As reuniões são no Sport Clube. Os bailes são na AABB. Tem com quem dançar. Os dançarinos dançam com a gente. (Margarida).

Além da Cruz Vermelha, trabalhar pelo mundo fora. Tenho o GEFA [Grupo Espírita Francisco de Assis], lugar que eu me identifico muito. Gosto muito das pessoas de lá, são minhas amigas, para tomar uns cafezinhos, conversar, dar risadas. Então eu acho que continuo no GEFA. Porque envelhecer só quando eu parar de falar. (Francisca).

Recebi um convite, estou com uma oficina para fazer. Sinto que eu não quero fazer isso mais. Prefiro me dedicar à medicina Ayahuasca. A iniciação que eu estou fazendo é maravilhosa. A gente vai se descobrindo cada vez mais. Agora eu sinto mais necessidade de estar comigo, de focar mais na cerâmica, nos ritos que eu já participo. (Clara).

Projeto não tenho. É viver o momento, se aparecer [qualquer] coisa interessante, tentar, prosseguir. Nossa vida é diferente de quase todo mundo. [Antes] vivíamos sempre em tensão [devido à] responsabilidade dos outros e da gente. Hoje [é diferente]. É aquela inércia. Não conheço ninguém que falou: na aposentadoria vou fazer alguma coisa. (João).

Não quero preocupação. Me convidaram para abrir restaurante, […] eu não quis, não quero responsabilidade. (Pedro).

A autonomia financeira é muito importante durante a vida adulta e ganha relevo na adultez tardia, pois isso tem consequências no modo como o sujeito se posiciona face a si e aos outros e no estilo de vida que pode adotar. A preparação para essa fase da vida, especialmente no domínio financeiro, é determinante para assegurar meios compatíveis com o acesso a bens e a serviços considerados essenciais para uma vida digna na adultez tardia - com independência e autonomia. As condições financeiras favorecem ou, pelo contrário, condicionam o poder de agir (RICŒUR, 2005) do sujeito, o que é destacado pelos entrevistados:

Os que vão se aposentar devem poupar. Durante a vida toda e, principalmente, quando se aproximar da aposentadoria. Poupar ou fazer uma previdência privada. Quando eu fui me aposentar ainda faltavam três anos e eu fiquei pagando. Quando chegou a idade, comecei a receber a previdência privada. (Margarida).

Um objetivo mais ou menos longínquo, era trabalhar trinta anos e conseguir me libertar econômica e socialmente. Ser independente de patrão, ser independente hoje. Por isso, eu me considero um vencedor. Eu sou um vencedor. O objetivo de vida que tinha era essa aposentadoria que tenho. Eu sou dono de mim, vou para onde eu quero, não tenho satisfação a dar a ninguém. Isso tudo foi conquistado por esse objetivo, com disciplina e foco, eu consegui. (Pedro).

Quando os meninos cresceram e eu estava com condição de trabalhar, voltar para o mercado de trabalho, precisei parar para investigar uma doença congênita. O tempo foi passando e não consegui trabalhar a ponto de recolher. Não deu nem para contar para uma aposentadoria. Eu tive que recorrer ao BPC, que é o Benefício de Prestação Continuada. Me preparei para viver cada idade no seu tempo. (Joana).

As pessoas adultas mais velhas vivenciam a transição para a aposentadoria de modo muito diversificado. Essa transição é mais diluída entre os sujeitos que dão continuidade à vida profissional no mesmo domínio em que sempre trabalharam, porquanto mantiveram as rotinas, o estilo de vida, as redes de socialização e as condições financeiras. No entanto, as transições biográficas são mais evidentes entre os sujeitos que não deram continuidade à atividade profissional após a aposentadoria, pois surgiram diversas mudanças e rupturas na sua vida. Após a superação da ruptura, passam a valorizar a autonomia que têm para decidir o que fazer com o tempo e a vida - a possibilidade de vivenciar outras experiências, de adquirir novos conhecimentos, de fazer novas amizades e de integrar novos grupos sociais. Essa transição biográfica é muito significativa e opera transformações no modo de ser, de se relacionar e de pensar do sujeito, o que justifica novas (re)configurações identitárias e existenciais.

Eu sou uma buscadora e há quatro anos vim aqui para uma comunidade Xamânica. Encontrei uma outra família. Aqui, eu me sinto bem, posso ser eu, fato que marcou muito minha vida. Aqui […] vivo um dia a cada dia, vendo o mundo diferente em todos os campos, me dando espiritualmente. [Aprendi a] descobrir o melhor de mim, a despertar, como ser luz, aceitando também a minha sombra, tenho aprendido esse equilíbrio, o caminho do meio. (Clara).

A formação experiencial ocorre em todos os momentos e espaços de vida, mas é particularmente visível nos momentos de transição biográfica, pois o sujeito é confrontado com a necessidade de refletir, de ponderar e de realizar escolhas. As transições são momentos-charneira na história de vida do sujeito, que conduzem a processos formativos muito significativos, associados à emergência de novas formas de pensar, sentir e perceber. Nesses momentos de mudança e ruptura, o sujeito precisa (re)configurar os seus esquemas de pensamento e de ação, porque os anteriores deixam de ser apropriados e perdem sentido, o que desencadeia transformações identitárias e existenciais, como destaca Clara: “sou uma outra pessoa”, “eu me desconstruí, tenho hoje novos conceitos, uma nova visão de vida”. A transformação, decorrente da transição biográfica é, por vezes, tão profunda que o sujeito considera ter renascido, como menciona Clara: “é como se eu tivesse uma morte em vida, vim de um renascimento”, “me sinto um ser renascido”. Nas transições biográficas, quando é superado o desequilíbrio gerado pela ruptura, o sujeito estabiliza novos quadros de pensamento e ação, apercebendo-se do seu poder de agir (RICŒUR, 2005) e do seu poder de se (trans)formar, o que desencadeia o reconhecimento de si e gera sentimentos positivos, como refere Clara: “Isso me faz mais forte, me deixa feliz”.

Discussão dos resultados e considerações finais

As pessoas adultas mais velhas participantes da pesquisa, por intermédio da entrevista biográfica, foram convidadas a (re)construir e a socializar a sua história de vida (DELORY-MOMBERGER, 2019b; PINEAU, 2019), por meio da reflexão, da atribuição de sentido, da apropriação e da partilha da experiência. As narrativas biográficas produzidas no âmbito da investigação, por meio de um processo de biografização, permitiram aceder às experiências de transição para a aposentadoria de adultos mais velhos, um tema que carece de aprofundamento do conhecimento científico. A investigação biográfica realizada, filiada à hermenêutica, permitiu o reconhecimento das vozes de adultos mais velhos, habitualmente silenciados (WITHNALL, 2006), na tentativa de compreensão de fenômenos sociais caraterizados pela diversidade e pela complexidade. A explicitação e a socialização da narrativa, que deram forma à história de vida de cada sujeito através de um enredo singular que define o eu-autobiográfico (DAMÁSIO, 2010), refletiram processos de individuação, a identidade e a existencialidade de cada adulto. Embora as narrativas biográficas, elaboradas no âmbito da pesquisa, sejam estruturadas em torno de três instâncias clássicas - a escola, o trabalho e a aposentadoria -, denota-se uma vivência fluída, marcada por processos intrincados, híbridos, não lineares e reversíveis, o que questiona a pertinência da representação da vida nessas três fases, como se fossem distintas (DELORY-MOMBERGER, 2008; KADDOURI, 2019).

As narrativas elaboradas pelos adultos são elucidativas do modo como entendem o envelhecimento, a velhice e a aposentadoria, e como vivenciam essa fase da vida. Apesar da singularidade da trajetória de vida de cada sujeito, registram-se entendimentos comuns sobre a velhice. No geral, adotam uma imagem social negativa do envelhecimento e da velhice, vinculando essa fase da vida à incapacidade e à inatividade, adotando o discurso social hegemônico. Desse modo, constroem uma narrativa na qual se percebe que as suas vivências na transição para a aposentadoria são caraterizadas pelo dinamismo e pela realização de múltiplas atividades. Na sua perspectiva, esse dinamismo, nos domínios pessoal, familiar, social e profissional, evita a transição da adultez tardia para a velhice. Nesse sentido, os sujeitos entrevistados não se percepcionam enquanto adultos idosos, ideia que recusam peremptoriamente, considerando, essencialmente, a preservação das suas capacidades motoras e/ou cognitivas, as atividades realizadas e seus projetos. As suas narrativas retratam histórias de vida caraterizadas pela imbricação entre períodos de formação, atividade e descanso (HESLON, 2019), nas várias fases da vida, nomeadamente na adultez tardia. Essa situação confirma o caráter dinâmico e fluído das idades da vida, no decurso de mutações sociais, culturais e demográficas, e a dimensão subjetiva da idade, vivenciada de modo singular por cada sujeito. As dinâmicas biográficas dos sujeitos participantes da pesquisa são reveladoras de metamorfoses e da destandartização das idades da vida (JULHE; LECLERCQ; ROUX, 2023; VAN DE VELDE, 2015).

Apesar de traços comuns, os sujeitos entrevistados apresentam singularidades relativas às experiências na fase da vida em que se encontram, o que nos permite corroborar vivências múltiplas da aposentadoria, ou seja, a aposentadoria plural (GAULLIER, 2004). Alguns adultos mais velhos referem o desconforto gerado na transição para a aposentadoria e a necessidade de assegurar a continuidade da vida profissional, na tentativa de preservação do estilo de vida, das redes sociais, da identidade e do reconhecimento. Nesses casos, há um investimento na vida profissional e nas carreiras tardias (FROIDEVAUX; MAGGIORI, 2020), na recusa da aposentadoria como inatividade. O sujeito evita possíveis rupturas na transição para a aposentadoria com o prolongamento da inserção no mercado de trabalho. Nesses casos, a transição para a aposentadoria é esbatida, embora se verifique, porquanto, o sujeito é confrontado com a mudança de estatuto ou de local de trabalho. Os adultos mais velhos que decidiram não dar continuidade ao trabalho assalariado mencionam as mudanças realizadas na sua vida e a diversidade de atividades nas quais estão envolvidos, sublinhado o entusiasmo e a vitalidade. Nesses casos, a transição para a aposentadoria é caraterizada por decisões autônomas do sujeito, de acordo com a sua vontade, os seus interesses, as suas motivações, os seus projetos e ritmos de vida, traduzindo a intenção de vivência dessa fase da vida com liberdade e autonomia, o que é gerador de bem-estar. Ao realçarem a sua atividade e dinamismo durante a aposentadoria e ao reforçarem uma ideia de autonomia, de sabedoria e de plenitude, os adultos mais velhos posicionam-se e reivindicam o reconhecimento de si, enquanto atores com poder de dizer, poder de narrar, poder de agir (RICŒUR, 2005) e poder de se (trans)formar. Na perspectiva de “[...] entrar em si mesmo, mesmo no fim, para formar e ser formado” (PINEAU, 2020, p. 61).

As pessoas adultas mais velhas entrevistadas projetam uma imagem de si caraterizada por aquilo que é valorizado socialmente, ou seja, a capacidade e vontade de fazer coisas novas, a mudança permanente e os ritmos de vida acelerados (ALHEIT; DAUSIEN, 2006; TAVOILLOT, 2010, 2017). A aposentadoria é caracterizada por transições esbatidas e flutuantes (TAVOILLOT, 2011), vivenciadas como processos fluídos, diluídos e contínuos no tempo (BURNINGHAM; VENN, 2020), percebendo-se o evitamento de rupturas destabilizadoras do sujeito, porquanto são geradoras de inquietação e de instabilidade. Os adultos mais velhos entrevistados destacam um conjunto de reorientações e reconfigurações da sua vida, mas também as continuidades que procuram assegurar na fase da aposentadoria. Vivenciam a aposentadoria mantendo, por opção, uma vida muito ocupada, com diversas atividades de natureza profissional, pessoal, familiar e social, o que afirma a adultez tardia como uma idade-ativa e, até mesmo, hiperativa (HESLON, 2019).

A transição para a aposentadoria, vivenciada em função do modo como o sujeito se posiciona face aos ritmos da existência e ao sentido da vida (TAVOILLOT, 2010), implica mudanças programadas e intencionais, mudanças impostas e não consentidas, ou estratégias para assegurar uma certa continuidade. Os sujeitos dão continuidade às suas atividades e/ou decidem investir em novas dinâmicas, mobilizam os seus conhecimentos e saberes e, também, investem no aperfeiçoamento e no desenvolvimento de novos, na fase da aposentadoria. Os adultos mais velhos entrevistados destacam o investimento em processos de formação intencionais e sistemáticos durante a aposentadoria, o que contraria os estereótipos associados a essa idade da vida.

As narrativas biográficas dão conta do seu envolvimento em dinâmicas formativas e da importância que atribuem à educação formal, não formal e informal. Além das aprendizagens realizadas, essas dinâmicas permitem a ocupação do tempo com a emergência de novas rotinas, a expansão da rede social de contatos e o estabelecimento de relações humanas significativas. Essa formação, relacionada às áreas de interesse do sujeito, pode surgir em áreas de continuidade ou de ruptura face à experiência anterior (WITHNALL, 2005). Nesse sentido, podem reforçar ou emergir novas formas de viver, de pensar, de sentir e de entender - o mundo, a vida, os outros e a si próprio -, o que o conduz a transformações identitárias e existenciais, o que implica o sujeito num processo de formação experiencial.

As experiências vivenciadas durante a aposentadoria, articuladas com as experiências anteriores, contribuem para a consolidação de um processo de formação experiencial que acompanha o sujeito em todas as idades da vida. À semelhança dos resultados obtidos na investigação, os adultos entrevistados confirmam a importância do envolvimento em processos de formação na sua autonomia e bem-estar, o que ressalta a importância do investimento em políticas públicas de educação de adultos que contemplem os adultos mais velhos (FORMOSA, 2019).

Atendendo à diversidade e à complexidade da problemática em estudo, consideramos importante o investimento em pesquisa centradas na compreensão das experiências de vida e das percepções de pessoas adultas mais velhas, nomeadamente em uma perspectiva de interseccionalidade. Embora aposentados, assumir o risco, ter a coragem de mostrar-se abertamente constitui momento de alta complexidade na aprendizagem concreta de si mesmo. Interpretar-se como um sujeito de relação pressupõe “[...] conjugar movimentos opostos de centralização/descentralização, de conhecimento/reconhecimento sóciopessoal” (PINEAU, 2020, p. 64). Em investigações futuras, seria importante analisar o modo como a aposentadoria plural está associada a percepções e experiências de velhice influenciadas pelo gênero, cor de pele, classe social e etnia. Além disso, seria importante investir em investigações centradas nos processos formativos de adultos mais velhos, durante a aposentadoria.

Referências

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Recebido: 01 de Dezembro de 2022; Revisado: 22 de Maio de 2023; Aceito: 24 de Maio de 2023; Publicado: 13 de Junho de 2023

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