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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21284.052 

Artigos

O modelo comunitário regional e a equidade na Educação Superior brasileira

The regional community model and equity in Brazilian Higher Education

El modelo comunitario regional y la equidad en la Educación Superior brasileña

Julio Cesar Godoy Bertolin* 
http://orcid.org/0000-0002-5547-1550

Olmiro Cristiano Lara Schaeffer** 
http://orcid.org/0000-0003-4594-5449

Cassiano Cavalheiro Del Ré*** 
http://orcid.org/0000-0002-2720-7904

*Professor na Universidade de Passo Fundo (UPF). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: <julio@upf.br>‬.

**Professor na Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre em Educação pela UPF. E-mail: <miro@upf.br>.

***Professor na Universidade de Passo Fundo (UPF). Mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). E-mail: <delre@upf.br>.


Resumo

Esta pesquisa avaliou a contribuição das Universidades Comunitárias Regionais (UCRs) para a ampliação da parcela de concluintes de menor nível socioeconômico na comparação com os modelos federal e mercantil. Por meio de dedução lógica entre teorias de equidade na Educação Superior e microdados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), contextualizados por dados sociodemográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), infere-se que as UCRs responderam melhor às políticas de democratização de acesso das últimas décadas. Entre dois ciclos avaliativos do Enade (2009-2011 e 2015-2017), as UCRs avançaram na inclusão de estudantes de origem social desfavorecida, de forma mais intensa do que os demais modelos, em cinco das seis comparações realizadas. No âmbito privado, as UCRs constituem alternativa mais adequada do que as mercantis para expansão da Educação Superior com qualidade e equidade.

Palavras-chave: Educação Superior; Equidade; Universidade Comunitária Regional

Abstract

This research evaluated the contribution of Regional Community Universities (RCUs) to the expansion of the portion of lower socioeconomic graduates in comparison with the federal and for-profit models. Through a logical deduction between theories of equity in Higher Education and microdata from the National Student Performance Exam (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes - ENADE), contextualized by sociodemographic data from the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE), it is inferred that the RCUs responded better to the policies of democratization of access in recent decades. Between two ENADE evaluation cycles (2009-2011 and 2015-2017), the RCUs advanced in the inclusion of students from disadvantaged social backgrounds, more intensely than the other models, in five of the six comparisons made. In the private sphere, the RCUs constitute a more adequate alternative than the for-profit ones for the expansion of Higher Education with quality and equity.

Keywords: Higher Education; Equity; Regional Community University

Resumen

Esta investigación evaluó la contribución de las Universidades Comunitarias Regionales (UCRs) para la ampliación de la proporción de egresados ​​de nivel socioeconómico más bajo en comparación con los modelos federal y mercantil. Por medio de deducción lógica entre teorías de equidad en la Educación Superior y microdatos del Examen Nacional de Desempeño de los Estudiantes (Enade), contextualizados por datos sociodemográficos del Instituto Brasilero de Geografía Estadística (IBGE), se infiere que las UCRs respondieron mejor a las políticas de democratización de acceso de las últimas décadas. Entre dos ciclos de evaluación del Enade (2009-2011 y 2015-2017), las UCRs avanzaron en la inclusión de estudiantes de origen social desfavorecido, de forma más intensa que los demás modelos, en cinco de las seis comparaciones realizadas. En el ámbito privado, las UCRs constituyen una alternativa más adecuada que las mercantiles para la expansión de la Educación Superior con calidad y equidad.

Palabras clave: Educación Superior; Equidad; Universidad Comunitaria Regional

Introdução

A Educação Superior é um direito humano universal e um fator de desenvolvimento social. É considerada um recurso estratégico para a redução das desigualdades na Agenda 2030, conforme a Organização das Nações Unidas - ONU (2015), e pode contribuir para a mobilidade social. Para isso, sistemas de Educação Superior devem ser equânimes, de forma que as desigualdades sociais e a origem das pessoas não limitem suas oportunidades de acesso à universidade e às realizações acadêmicas.

No Brasil, a universidade é, notadamente, um forte condicionante de maiores recompensas no mundo do trabalho e maior status social e profissional - enquanto, na média, nos países da Organisation for Economic Co-Operation and Development (OECD), os graduados ganham 1,6 vezes mais de quem possui apenas Ensino Médio, no Brasil ganham três vezes mais (OECD, 2018). Logo, uma expansão da Educação Superior com equidade impacta positivamente a mobilidade social.

Para McCowan (2016, p. 13), a equidade é alcançada em um sistema de Educação Superior quando se assegura disponibilidade de vagas suficientes, com acessibilidade e diferenciação horizontal entre instituições. Um sistema de educação sem horizontalidade, com forte estratificação em termos de qualidade e prestígio entre instituições, tende a ratificar desigualdades existentes na própria sociedade.

O sistema brasileiro de Educação Superior possui dois modelos principais, o das instituições federais e o das privadas com fins lucrativos (ou mercantis). Esses dois modelos foram avaliados em termos de equidade no contexto de expansão da Educação Superior e de políticas de democratização do acesso (Lei de Cotas e Programa Universidade para Todos - Prouni) por McCowan e Bertolin (2020) em estudo para o Instituto de Pesquisa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Social. Os autores descrevem o sistema brasileiro como injusto pois, apesar de certos avanços, não apresenta equidade. Além das restrições de acessibilidade, destaca-se a estratificação do sistema (falta de horizontalidade): jovens de grupos socioeconômicos favorecidos tendem a acessar instituições e cursos mais disputados e com melhor desempenho em avaliações de qualidade, enquanto estudantes de grupos sociais desfavorecidos, em grande parte, têm oportunidades limitadas ao acessarem instituições e cursos com pouco reconhecimento.

Todavia, o sistema brasileiro possui outros modelos institucionais, como o das Universidades Comunitárias Regionais (UCRs). Esse modelo pode ser alternativa para a expansão da Educação Superior, visto que se mostra, especialmente na esfera privada, potencialmente mais alinhado com o interesse público (FIOREZE, 2017) e com reconhecimento por qualidade (BANCO MUNDIAL, 2017). As UCRs são instituições públicas não-estatais, que surgiram em meados do século XX no Sul do Brasil, no interior dos estados do Rio Grande do Sul (RS) e de Santa Catarina (SC). Em 2018, havia 17 UCRs nesses dois estados, que concentravam cerca de 30% de todos os estudantes de graduação, conforme o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep (2019).

Além dos aspectos de relevância e qualidade, o modelo comunitário regional também deve ser avaliado em termos de contribuição para a equidade. Fato que ainda não ocorreu. Então, surgem as seguintes questões: no mesmo período analisado por McCowan e Bertolin (2020), as UCRs conseguiram contribuir para a equidade do sistema em suas regiões? Em relação aos modelos mercantil e federal, as UCRs responderam melhor às políticas de democratização de acesso?

Este artigo debruça-se sobre essas questões com o objetivo de avaliar a contribuição das UCRs para a equidade do sistema de Educação Superior por meio da ampliação da parcela de concluintes de menor nível socioeconômico e sua comparação com os modelos federal e mercantil. Para tanto, identifica a ampliação da representatividade de estudantes concluintes desses grupos entre dois Ciclos Avaliativos do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), cotejando os resultados das UCRs com os resultados das federais e das mercantis obtidos por McCowan e Bertolin (2020). Os grupos desfavorecidos avaliados são: (a) escolaridade da mãe até a 5ª série; (b) cor ou etnia autodeclarada como não branca; e (c) renda familiar de até três salários-mínimos mensais. A verificação da proporção desses estudantes em dois ciclos do Enade permite observar o desenvolvimento longitudinal do modelo institucional avaliado em termos de equidade, no contexto de expansão da Educação Superior.

Equidade e expansão da Educação Superior

No Direito Romano, equidade foi concebida como a imparcialidade no reconhecimento de direitos. Na filosofia política, Rawls (2003) sustentou a sua proposta de justiça social a partir da equidade (fairness), conciliando a liberdade com a igualdade por intermédio de dois princípios:

(a) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e (b) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade. (RAWLS, 2003, p. 60).

Igualdade equitativa de oportunidade, conforme Swift (2014), corresponde ao ideal de que todos tenham as mesmas possibilidades de adquirir as competências relevantes para o trabalho ou a educação que aspiram. As perspectivas derivadas dessas possibilidades deveriam depender apenas de habilidade e esforço, nunca de origem social. Essa concepção pressupõe o reconhecimento de que fatores sociais e condições arbitrárias podem se constituir como desvantagens injustas. Exige ações afirmativas para equalizar as diferentes condições dos indivíduos em obter oportunidades e direitos. Busca assegurar que os diferentes resultados reflitam as decisões e não diferenças arbitrárias.

Nas políticas educacionais, a promoção da equidade consiste em mudar a composição da participação dos grupos populacionais para alcançar uma proporção equânime dos grupos sociais na educação. O debate é sobre quais são os arranjos institucionais justos para uma distribuição equitativa de oportunidades educacionais. Sobre como os sistemas educacionais justos devem ser, de forma que a porcentagem de matrículas dos diferentes grupos sociais seja equivalente à desses grupos na sociedade.

Marginson (2011), contudo, aponta limitações dessa estratégia e advoga em prol da promoção da equidade alicerçada na inclusão. O autor apoia-se na ideia de justiça de Sen (2011) e sua crítica sobre as limitações da abordagem do institucionalismo transcendental utilizada por Rawls. Como alternativa, Sen propõe uma estratégia focada na inclusão, que compara as realizações de diferentes grupos em sociedades reais, de forma a aumentar, pura e simplesmente, a representação dos grupos desfavorecidos.

Sob essas influências é que a equidade e a sua promoção na Educação Superior estão presentes na pauta internacional. Na Agenda 2030, equidade soma-se aos adjetivos do tipo de educação desejada para o desenvolvimento sustentável expressos no objetivo 4: “Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (ONU, 2015).

No relatório Tertiary Education for the Knowledge Society [Educação Superior para a Sociedade do Conhecimento], da OECD (2008), o objetivo da equidade é o alcance de uma população de estudantes que reflita a composição da sociedade. O documento define sistemas de Educação Superior equitativos como aqueles em que a conquista do potencial educacional seja resultado da capacidade inata dos indivíduos e dos esforços de estudo, e garantam que não seja resultado de circunstâncias pessoais e sociais, como fatores socioeconômico, de gênero, etnia etc.

McCowan (2016, 2019) elabora sua concepção de equidade na Educação Superior articulada às reflexões sobre o direito à educação e o desenvolvimento sustentável. A partir da concepção de equidade como igualdade equitativa de oportunidade, McCowan (2016) reflete sobre os fatores que se transformam em vantagens ou desvantagens arbitrárias provenientes da origem social e que favorecem ou restringem o ingresso à universidade. A proposta de um sistema de Educação Superior com equidade, para McCowan (2016, p. 4), corresponde ao alcance de três fatores: disponibilidade, acessibilidade e horizontalidade. A disponibilidade refere-se à existência de vagas de Educação Superior suficientes para os que desejam e tenham preparo mínimo ao ingresso. A acessibilidade refere-se às condições para a ocupação efetiva dessas vagas. E a horizontalidade refere-se ao tipo de diferenciação entre as instituições e os cursos. Na diferenciação horizontal, as instituições distinguem-se por tamanho, missão, ethos e foco disciplinar, resguardando a diversidade do sistema e a plasticidade no atendimento às diferentes necessidades e aos contextos sociais. Na diferenciação vertical (estratificação), as instituições e as carreiras distinguem-se por qualidade, prestígio e status, limitando aos estudantes de grupos desfavorecidos as instituições e os cursos de menor prestígio, qualidade e valor posicional.

A dimensão da horizontalidade pressupõe igualdade equitativa de oportunidades, em que os diferentes grupos sociais acessam e concluem cursos e frequentam instituições de qualidade e prestígio similares. As diferentes condições de origem são observadas não para limitar suas oportunidades, mas para produzir ações afirmativas eficazes, justamente para que as diferenças não se constituam em desigualdades de oportunidades.

Quanto à expansão da Educação Superior, McCowan (2016, p. 2) alerta que ela não produz necessariamente mais oportunidades para os grupos desfavorecidos, pois as oportunidades estão correlacionadas ao seu valor posicional. Trata-se do reconhecimento de que os graus de educação e os locais (curso e instituição) onde foram obtidos, de modo geral, posicionam os sujeitos em lugares hierárquicos diferentes na sociedade. A conclusão e o acesso à Educação Superior, o prestígio do curso e da instituição são bens posicionais adquiridas pelas pessoas em comparação àquelas que não tiveram acesso às mesmas oportunidades.

A equidade na Educação Superior é um desafio ainda maior em países altamente desiguais. Quando as condições de acesso e conclusão são muito diferentes, as relações entre as desigualdades educacionais e as sociais são mais intensas. Somados a contextos de rápida expansão e desregulação do setor privado mercantil, crescem instituições de baixa qualidade e reconhecimento. Intensifica-se a estratificação entre instituições, cursos e modos de estudo reconhecidos por qualidade e àqueles sem o mesmo reconhecimento. O acesso de grupos sociais desfavorecidos acaba predominantemente voltado a esses últimos, com menor valor posicional.

A expansão da Educação Superior no Brasil, neste século, além da ampliação mercantil, foi acompanhada de políticas públicas de democratização de acesso. São ações afirmativas com vistas à equidade, sendo as mais significativas a Lei de Cotas e o Prouni. A primeira destinada às Instituições de Educação Superior (IES) públicas e a segunda às privadas. A Lei de Cotas, regulamentada por meio da Lei No 12.711, de 29 agosto de 2012 (BRASIL, 2012), reconhece condições socioeconômicas desfavoráveis para o acesso às IES públicas federais, como: rede onde realizou o Ensino Médio; renda familiar; cor da pele e etnia; e deficiência. No cômputo do sistema criado pela Lei, são reservadas 50% das vagas para estudantes de grupos desfavorecidos. O Prouni, instituído pela Lei No 11.096, de 13 de janeiro de 2005 (BRASIL, 2005), delimita a oferta de bolsas de estudo integrais e parciais (50%) em IES privadas. As IES privadas também possuem financiamentos e bolsas institucionais próprios. As privadas sem fins lucrativos, em especial, adequaram seus programas de financiamento e bolsas às imposições da Lei Nº 12.101, de 27 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009) - que define as condições de isenção fiscal para entidades beneficentes que prestam serviços de educação -, favorecendo a adesão ao Prouni.

O estudo de McCowan e Bertolin (2020), sobre a recente expansão da Educação Superior no Brasil, conclui que, apesar da implementação de ações afirmativas, persistem condicionantes socioeconômicos, característica de um sistema de Educação Superior injusto. As desigualdades sociais estão sendo reproduzidas, em alguma medida, no acesso e na conclusão de cursos de Graduação. Os bens posicionais e as oportunidades de desenvolvimento oferecidos pela Educação Superior são distribuídos de forma desigual. Estudantes oriundos de grupos socioeconômicos desfavorecidos têm suas oportunidades limitadas em relação àqueles pertencentes aos demais grupos sociais.

A expansão da Educação Superior no Brasil, no início desse século, manteve, em grau significativo, a reprodução das desigualdades sociais, tanto no modelo público federal, quanto no modelo privado com fins lucrativos (mercantil), cada qual com suas especificidades. No modelo federal, a Lei de Cotas promoveu o acesso de populações desfavorecidas, mas não o suficiente para superar as desigualdades educacionais e a reprodução das desigualdades sociais. No modelo mercantil, especialmente, na modalidade a distância, a expansão do acesso de populações desfavorecidas deu-se de modo mais intenso (MCCOWAN; BERTOLIN, 2020).

Um importante desafio para a universidade brasileira é guindar condicionantes socioeconômicos ao máximo possível quando estudantes de grupos desfavorecidos ingressam no curso superior. Outro é o de que, quando estudantes de menor nível socioeconômico acessam a Educação Superior, não ocorra preponderantemente em instituições e cursos considerados de qualidade inferior, mas, sim, em instituições com compromisso social, valores acadêmicos e reconhecimento da comunidade, como muitas instituições comunitárias regionais. Portanto, no contexto da avaliação da resposta dos diferentes modelos de instituição às políticas de democratização na Educação Superior, importa verificar se as universidades comunitárias conseguiram ampliar a conclusão de estudantes de grupos desfavorecidos. Busca-se, assim, verificar em que medida as UCRs se comportaram de forma semelhante ou diferente das federais e das mercantis.

As universidades comunitárias regionais do Sul do Brasil no contexto de expansão da Educação Superior

As UCRs, um tipo de Instituição Comunitária de Educação Superior (ICES), estão presentes no Sul do Brasil, especialmente no interior dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. A criação desse modelo é atribuída à “[...] tradição associativa inaugurada no século XIX, particularmente nas regiões de colonização alemã e italiana” (SCHMIDT, 2017, p. 40), com a intenção de suprir a demanda educacional local frente à ausência do Estado. Para Fioreze (2017, p. 7), são “[...] experiências públicas não-estatais, que emergiram da iniciativa das sociedades locais e caracterizam-se pelo engajamento em suas regiões de abrangência”.

Este estudo considera UCRs as 17 instituições1 que, em 2018, se caracterizavam como: (a) universidades, nos termos legais da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996); (b) instituições comunitárias de ensino, em consonância com a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e a Lei Nº 12.881, de 12 de novembro de 2013, a Lei das Comunitárias (BRASIL, 2013); (c) não-confessionais, ou seja, sem vínculo com mantenedora confessional; (d) com sede nos estados do Sul do Brasil.

Um conjunto de pesquisas já descreveu e analisou características das UCRs, como: os tensionamentos da natureza pública não-estatal (FIOREZE, 2017); a identidade comunitária (LONGHI, 1998); o conceito de comunidade e seus pilares fundantes (SCHMIDT, 2017); a gênese das primeiras instituições (VANUCCHI, 2013).

Sobre as IES comunitárias (ICES), Bittencourt et al. (2014) identificaram o melhor desempenho dessas instituições em comparação com as IES privadas, em qualquer nível de formação, em quesitos do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Esses autores defendem a valorização do modelo comunitário diante de sua história e impacto regional e concluem que essas instituições “[...] poderiam exercer um papel complementar ao das IES públicas” (BITTENCOURT et al., 2014, p. 267) na expansão da Educação Superior.

O tratamento dos microdados do Censo da Educação Superior 2018 (INEP, 2019) permite situar quantitativamente as UCRs no contexto nacional e nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. No Brasil, em 2018, foram contabilizadas 2.537 IES, 38.256 cursos de Graduação, nos quais estavam matriculados 8.451.748 estudantes. A rede pública estatal (federal, estadual e municipal) representou apenas 10,8% das IES do Brasil, mas ofereceram 27,7% de todos os cursos de Graduação a 24,3% dos estudantes matriculados no país. Já a rede privada representou a imensa maioria das IES (88,2%), com 71,8% dos cursos de Graduação, reunindo pouco mais de 3/4 (75,4%) dos estudantes matriculados. A rede privada divide-se em IES com fins lucrativos (mercantis) e IES sem fins lucrativos, correspondendo a 51,4% e 36,9% das IES brasileiras, respectivamente.

No Censo da Educação Superior, as UCRs são classificadas como IES privadas sem fins lucrativos. Na classificação proposta neste artigo (Figura 1), as 17 UCRs representaram apenas 0,7% das IES brasileiras, com a oferta de 3,2% dos cursos de Graduação e 2,1% dos estudantes matriculados no país. Entretanto, é no recorte dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, onde atuam as UCRs, que sua representatividade ganha destaque. Mesmo com apenas 7,8% das IES desses estados, as UCRs foram as que mais ofereceram cursos de Graduação (30,7%) e as com mais estudantes matriculados (29,7%). Nessas regiões, a participação das IES mercantis é menor, corresponde a 45% das instituições (no Brasil é 51,4%), com 22,9% dos cursos de Graduação oferecidos (no Brasil é 41,7%) e 20,2% dos estudantes matriculados (no Brasil é 50,3%).

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos microdados do Censo da Educação Superior do Brasil (INEP, 2019).

Figura 1 Matriculados na Educação Superior, por tipo de IES, em 2018 

Quanto à organização acadêmica, o sistema brasileiro distingue Faculdade, Centro Universitário e Universidade. Para ser reconhecida como Universidade, a IES necessita atender critérios mais exigentes, um conjunto de dispositivos legais expressos na Constituição Federal e na LDB/1996 quanto ao corpo docente, o desenvolvimento de ensino, pesquisa, extensão e stricto sensu. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, a Tabela 1 evidencia o protagonismo e a representatividade das UCRs no sistema regional, totalizando 50% de todas as 34 universidades desses estados.

Tabela 1 Universidades do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina 

Categoria Administrativa RS SC Total % %
Pública Federal 6 2 8 23,5% 32,3%
Pública Estadual 1 1 2 5,9%
Pública Municipal 0 1 1 2,9%
Comunitária Regional 8 9 17 50,0% 67,6%
Comunitária Confessional 6 0 6 17,6%
Privada com fins lucrativos (mercantil) 0 0 0 0,0% 0,0%
Total 21 13 34 100,0% 100,0%

Fonte: Elaborada pelos autores a partir do Cadastro e-MEC (BRASIL, 2022).

No Rio Grande do Sul, também há forte presença de mais seis Universidades Comunitárias Confessionais. Já as 11 universidades públicas estatais (federais, estaduais ou municipal) estão localizadas predominantemente nas maiores cidades. Entre as instituições privadas com fins lucrativos (mercantis), não há nenhuma universidade no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina nessa categoria, somente faculdades e centros universitários.

No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, o modelo comunitário, dado o seu protagonismo histórico e a ausência de universidades mercantis, contribui para a percepção das UCRs como modelo tradicional de universidade, semelhante às universidades federais. Também desfrutam de reconhecimento por qualidade, como evidenciam as notas do Conceito Institucional (CI)2 na Tabela 2. No Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, a média do CI das UCRs (4,2) é superior às das universidades federais (3,7). Todas as UCRs possuem CI entre 4 e 5 (máximo). Como não há universidades mercantis nesses estados, para efeito de comparação, tomou-se a média dos Centros Universitários e Faculdades Privadas Mercantis (3,6), inferior aos outros modelos, com instituições alcançando CI inferiores (2).

Tabela 2 Conceito Institucional de IES do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, média por modelo 

Modelo Institucional IES (Qt.) Média CI Variação de CI no modelo
Universidades Federais 8 3,714 de 3 a 5
Universidades Comunitárias Regionais 17 4,200 de 4 a 5
Centros Universitários e Faculdades Privadas Mercantis 142 3,644 de 2 a 5

Fonte: Elaborada pelos autores a partir do Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Educação Superior - Cadastro e-MEC (BRASIL, 2022).

Em ranqueamentos nacionais, como o Ranking de Universidades 2019, da Folha de São Paulo (2019), seis UCRs são listadas entre as 100 primeiras posições. No ranking internacional Latin America University Rankings 2021, da Times Higher Education (2021), quatro UCRs são listadas, entre as posições 80 e 150.

No contexto contemporâneo, as UCRs encontram-se repletas de desafios, como o de manter o caráter público e a responsabilidade social diante de ameaças à sustentabilidade financeira em virtude da retração de políticas públicas e da competição com IES mercantis. Para Schmidt (2017, p. 21), o resguardo das características centrais das universidades comunitárias as torna, “[...] juntamente com as universidades públicas estatais, o principal baluarte contra a crescente mercantilização da educação superior”.

Ao investigar as características da natureza híbrida das UCRs, Fioreze (2017) conclui que o modelo comunitário é dotado de plasticidade, resiliência (capacidade de adaptar-se às novas situações e demandas, preservando os valores acadêmicos) e compromissos com o bem público. Para a autora, “[...] a força da universidade comunitária está presente no modelo enquanto tal, e não nas instituições tomadas isoladamente” (FIOREZE, 2017, p. 295). Ela alerta ainda que isoladamente as UCRs têm mais dificuldade em resistir ao capitalismo acadêmico.

O atual desafio imposto às UCRs é o de financiamento de suas atividades. Está em jogo sua sobrevivência no cenário de expansão mercantil da Educação Superior. Isso depende, em parte, do reconhecimento - interno, público e governamental - da contribuição desse modelo para a expansão do sistema nacional, ao que este artigo busca contribuir com evidências empíricas.

Métodos e dados

Para gerar inferência por dedução lógica, toma-se como referencial teórico a ideia de equidade na Educação Superior. Comparam-se os resultados sobre a ampliação da parcela de concluintes de menor nível socioeconômico em instituições federais e mercantis - publicados por McCowan e Bertolin (2020) -, com dados gerados sobre as UCRs por meio de estatística descritiva, a partir dos Microdados dos Ciclos Avaliativos do Enade, Ciclo 1 (2009, 2010, 2011) e Ciclo 3 (2015, 2016 e 2017). Os grupos avaliados são: (a) escolaridade da mãe até a 5ª série; (b) cor ou etnia autodeclarada como não branca; e (c) renda familiar de até três salários-mínimos mensais. Para explorar os resultados, utilizou-se, complementarmente, os Microdados do Censo da Educação Superior de 2018 (INEP, 2019), do Censo Populacional de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010) e os Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral de 2012 e de 2017 (IBGE, 2020).

Os dados da ampliação da parcela de concluintes de menor nível socioeconômico em instituições federais e mercantis obtidos por McCowan e Bertolin (2020) são reproduzidos na Figura 2.

Fonte: Extraída de McCowan e Bertolin (2020, p. 18).

Figura 2 Dados produzidos sobre a evolução de concluintes de nível socioeconômico mais baixo no Enade, em IES federais e mercantis 

Os dados sobre o modelo comunitário foram obtidos por meio de estatística descritiva, com os mesmos procedimentos metodológicos e nas mesmas fontes utilizadas por McCowan e Bertolin (2020). Os dados das UCRs foram produzidos a partir dos Microdados do Enade 2009, 2010, 2011, 2015, 2016 e 2017, disponíveis no site do Inep (2021). Para o tratamento dos dados, foi utilizado o software Microsoft Excel. Os dados do estudo de McCowan e Bertolin (2020) e os produzidos sobre as UCRs foram reunidos e sistematizados na Figura 3.

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados sobre IES federais e com fins lucrativos em McCowan e Bertolin (2020, p. 17-18) e sobre as UCRs a partir dos Microdados do Enade 2009, 2010, 2011, 2015, 2016 e 2017 (INEP, 2021).

Figura 3 Evolução de concluintes de grupos sociais desfavorecidos no Enade, em IES federais, mercantis e UCRs 

A parte inferior da Figura 3 descreve a proporção de concluintes nas populações analisadas, no Ciclo Avaliativo 2009, 2010 e 2011 (C1) e no Ciclo Avaliativo 2015, 2016 e 2017 (C3) do Enade. Já a parte superior destaca a evolução entre os dois ciclos.

Discussão sobre os resultados

A seguir são apresentadas as análises sistematizadas dos resultados obtidos pelo grupo das UCRs em comparação às instituições federais e privadas com fins lucrativos (mercantis) nas três categorias observadas: escolaridade da mãe até a 5ª série; cor ou etnia autodeclarada não-branca; e renda familiar de até três salários-mínimos.

Escolaridade da mãe até a 5ª série

O grau de escolaridade da mãe é um fator importante em relação ao desempenho e ao sucesso educacional (BERTOLIN; AMARAL; ALMEIDA, 2019). Nesse indicador, as UCRs partiram (C1) de posição semelhante às federais, em torno de 15%, e demonstram melhor desempenho de evolução. No Ciclo Avaliativo 3 (C3), esse índice alcançou 29%, um crescimento de 86%, especialmente significativo em comparação às demais instituições. Federais e privadas tiveram baixo crescimento desse público entre seus concluintes, menos de 20%. Esses resultados posicionam as UCRs no C3 próxima das mercantis e adiante das federais. É nesse indicador que as federais e mercantis têm pior desempenho. No C3, concluintes do modelo federal com mães que estudaram até a 5ª série não chegam a representar 1/5 do total.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral (IBGE, 2020) indicam proporção similar da população com instrução até o nível fundamental incompleto no Brasil e nos Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Em 2012, esse grupo era equivalente a 47,3% da população do Brasil e 46,4% desses dois estados. Após uma melhora de cerca de 5% em 2017, pessoas com instrução até o fundamental incompleto compunham 42,7% da população total no Brasil e 41,2% no Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Os dados indicam haver sub-representação de concluintes com mães que estudaram até a 5ª série em todos os modelos avaliados, exigindo a atenção de políticas públicas e institucionais em termos de equidade.

Cor ou etnia autodeclarada como não branca

Origem étnica e cor da pele estão relacionadas a restrições de mobilidade social e de oportunidades de acesso às instituições, aos serviços e aos bens públicos. Não se trata apenas do reconhecimento das injustiças históricas, como a escravidão de indígenas, africanos e seus descendentes no Brasil, mas da perpetuação da reprodução dessas injustiças no tempo presente, como o racismo estrutural.

Nos dados apresentados na Figura 3, no Ciclo 1, os concluintes autodeclarados não brancos representavam quase a mesma proporção nas instituições federais (32%) e privadas (30%). No Ciclo 3, as federais cresceram 31% e as mercantis 50%, alcançando proporções de 42% e 45%. Mesmo com a importante contribuição da Lei de Cotas no modelo federal, o sistema mercantil conseguiu evolução superior. Isso pode estar relacionado a outros fatores arbitrários como a competição dos exigentes exames usados para admissão no sistema federal (vestibulares e Sistema de Seleção Unificada - Sisu) e mesmo aos preconceitos do imaginário social de que esses espaços não são destinados a determinados grupos sociais desfavorecidos.

Já as UCRs apresentaram baixos índices totais e de crescimento da proporção de concluintes não brancos. Esse é o indicador em que o modelo comunitário tem o pior desempenho nesta pesquisa: no Ciclo 1, alcançava meros 8%; e, no Ciclo 3, apenas 11%. Mesmo o crescimento de 44% foi inferior ao setor mercantil. Esse resultado exige a exploração de informações relacionadas à composição étnica da região.

As grandes populações de povos tradicionais (Kaingang, Guarani, Minuano, Charrua, Carijó e Xokleng), que habitavam a região dos atuais estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, diminuíram drasticamente até meados do século XX, forçados a emigrarem, escravizados, dizimados ou mesmo completamente extintos. A ocupação do território por etnias europeias deu-se inicialmente por portugueses e espanhóis a partir do século XVI, e foi ampliada a partir do século XIX com a promoção estatal da ocupação por imigrantes alemães, italianos e poloneses. Outro fator importante na composição étnica da população atual deu-se por meio da escravidão de povos africanos trazidos à força para o território a partir das ocupações portuguesa e espanhola. Consequentemente, também estão presentes os fatores de miscigenação (PESAVENTO, 1997).

A partir do Censo 2010 (IBGE, 2010), é possível relacionar a proporção de estudantes autodeclarados não brancos no Ciclo 1 do Enade (2009, 2010 e 2011) com a composição da população residente e alfabetizada, por cor ou etnia autodeclarada nos contextos nacional e dos estados das UCRs (Figura 4). Há importante diferença entre os dois contextos. Em 2010, a proporção das populações autodeclaradas não-branca no Brasil era de 50,3%, enquanto nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina somava 15,8%.

Fonte: Elaborada pelos autores a partir do Censo 2010 (IBGE, 2010).

Figura 4 Composição por cor ou etnia autodeclarada, da população residente e alfabetizada, no Censo 2010 no Brasil e na região das UCRs (RS e SC) 

Ao cruzar os dados da proporção de concluintes não-brancos no Ciclo 1 (Figura 3) com a proporção da população não-branca nos devidos contextos (Figura 4), obtêm-se os resultados descritos na Tabela 3. Para que o resultado dessa equação evidencie justiça social, é necessário que a Relação Contextual (RC) seja no mínimo de 100% - ou seja, que a proporção de estudantes não-brancos seja a mesma de seu contexto. Esse fato revelaria apenas uma visão de igualdade. Para a justiça como equidade, esse resultado precisa ser, ao menos durante certo período, maior do que 100%.

Tabela 3 Proporção de concluintes não-brancos x População não-branca 

Tipo de IES Proporção de concluintes não-brancos no Ciclo Enade (P1) Proporção da população não-branca no contexto (P2) Relação da proporção da IES com o contexto RC = P1 / P2
Federal 32% Brasil: 50,3% 63,6%
Mercantis 30% Brasil: 50,3% 59,6%
UCRs 8% RS e SC: 15,8% 50,6%

Fonte: Elaborada pelos autores.

Os resultados permitem explorar argumentos confrontando concepções de igualdade e equidade. Sob a óptica da simples igualdade, pode-se argumentar que, em 2010, a proporção de não-brancos nas federais e mercantis equivalia a cerca de 60% da população não-branca no Brasil, o dobro do índice P1. Nas UCRs, a proporção de 8% de concluintes não-brancos significa uma representatividade de apenas 50% dessas populações nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. A partir da concepção de equidade, esses dados demonstram alto grau de injustiça, ainda mais intenso nas UCRs.

É certo que o crescimento da proporção de estudantes não-brancos nas instituições no Ciclo 3 mostram certo avanço. Contudo, o fato de esse avanço ser maior no setor mercantil pode indicar estratificação do sistema de Educação Superior. As instituições federais alcançaram o menor percentual de evolução, mesmo no período de vigência da Lei de Cotas, o que demonstra a necessidade de sua continuidade e ampliação. No caso das UCRs, visualizam-se muitos desafios. Tanto o resultado P1 quanto RC evidenciam pouca contribuição do modelo nesse quesito. Uma nova análise relacional a partir dos dados de um novo censo permitirá comparações com os resultados do Ciclo Avaliativo 2018/19/21 (C3).

Renda familiar de até três salários-mínimos mensais

A renda familiar influencia a capacidade de acesso ao setor privado e o pagamento das mensalidades, assim como as condições de permanência na Graduação e do desenvolvimento, ou não, de atividade profissional concomitante aos estudos. Além disso, é fator condicionante da reprodução de desigualdades sociais.

Os dados da Figura 3 mostram que a proporção de concluintes com renda familiar de até três salários-mínimos, nas IES federais e nas mercantis alcançava, no Ciclo 1 do Enade, pouco mais de 30%, sendo levemente superior nas federais. No Ciclo 3 do Enade, a evolução foi maior no setor mercantil, que alcançou 49%, enquanto as federais avançaram apenas para 39%. O avanço desse grupo de concluintes nas federais foi de apenas 26%, já nas mercantis o crescimento foi de 63%. A evolução nas UCRs foi ainda maior, mais do que dobrou, passando de 15% no Ciclo 1 para 33% no Ciclo 3, uma evolução de 118%. Contudo, apesar da melhora significativa, o índice nas UCRs ainda é inferior aos demais modelos e constitui questão a ser observada para a expansão desse modelo com equidade.

Com os dados do Censo 2010 (IBGE, 2010), é possível identificar a distribuição de renda no Brasil e relacioná-los ao contexto dos estados de atuação da UCRs (RS e SC) no Ciclo 1 do Enade. A Figura 5 apresenta a distribuição da população por rendimento e destaca a proporção daqueles com renda de até três salários-mínimos (SM) mensais.

Fonte: Elaborada pelos autores a partir do Censo (IBGE, 2010).

Figura 5 Proporção da população de dez anos ou mais por classe de rendimento nominal mensal no Censo 2010 no Brasil e na região das UCRs (RS e SC) 

Observam-se melhores rendimentos na população dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, em comparação ao total do Brasil em 2010. Havia mais pessoas no Brasil sem rendimentos (8,6 pontos percentuais a mais) e até um salário-mínimo (5,6) do que no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, uma diferença total de 14,2 pontos percentuais. Nesses estados, a proporção da população com um a dois salários-mínimos era quase oito pontos percentuais maior do que a média nacional. Entretanto, ao condensar os rendimentos até três salários-mínimos, percebe-se que a proporção da população até três salários-mínimos é relativamente semelhante entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina (86,6%) e a média nacional (89,7%), mantendo nos dois cenários alta concentração na distribuição de renda.

Confrontando tais dados do Censo 2010 (IBGE, 2010) com o Ciclo Avaliativo 1 do Enade, identifica-se que 85% dos estudantes concluintes das UCRs (Figura 3) correspondiam à população com rendimentos acima de três salários-mínimos que, por sua vez, representavam apenas 13,4% da população desses estados. Isso significa que aqueles com rendimento até três salários-mínimos e que correspondem à maioria da população (86,6%) só estavam representados por 15% dos concluintes. A proporção dessa desigualdade era menor na média nacional, em torno de 70% dos estudantes tinham renda acima de três salários-mínimos. Observa-se injustiça no acesso à Educação Superior no Brasil naquele Ciclo do Enade e de forma ainda mais importante nas UCRs.

Duas constatações podem ser produzidas. Uma, positiva, toma o índice de crescimento das UCRs (118%) e compreende que, se mantida a qualidade e o reconhecimento institucional durante a expansão, significa que o modelo comunitário está no caminho de contribuir com a acessibilidade e equidade. Outra, negativa, toma a proporção de concluintes de baixa renda (33%) e compreende que ainda não é suficiente para abalar a estratificação e a injustiça do sistema, sendo necessária atenção contínua e especial das políticas educacionais sobre esse quesito.

Conforme o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD (2022), em 2010, o Brasil alcançou Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) alto de 0,727 e, em 2017, evoluiu para 0,778. No mesmo período, o estado do Rio Grande do Sul evoluiu de 0,746 para 0,787, e o estado de Santa Catarina evoluiu de 0,774 para 0,808, este alcançando classificação de IDHM muito alto, na 3ª melhor posição no Brasil. Quanto à alfabetização, no Censo de 2010, o Rio Grande do Sul e Santa Catarina possuíam índice de 88,4% da população total alfabetizada, contra 82,6% no Brasil (IBGE, 2010).

Outros indicadores contextualizam as desigualdades brasileiras. O Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD) posicionou o Brasil em 97º entre 152 países avaliados em 2019 (PNUD, 2022). O Índice de Gini de 2020 (COUNTRY ECONOMY, 2022) situou o Brasil na 159ª posição entre 167 países, o nono mais desigual. A injustiça da desigualdade para o desenvolvimento humano torna ainda mais relevante a avaliação da expansão da Educação Superior com equidade.

A discussão dos resultados desenvolvida pode ser sintetizada assim:

  • a) A contribuição mais importante das UCRs para a equidade do sistema de Educação Superior no Brasil, segundo esta análise, ocorre sobre o indicador de “escolaridade da mãe até a 5ª série”. Tendo quase dobrado a proporção de concluintes no período de expansão avaliado, as UCRs aproximaram-se dos índices de acessibilidade das mercantis, mas posicionam-se como alternativa de qualidade a esse público. As federais, de forma mais restrita, e as mercantis parecem não serem capazes de ampliar essa proporção no mesmo ritmo das comunitárias.

  • b) Sobre o aspecto da “renda familiar de até três salários-mínimos mensais”, o modelo comunitário apresentou seu maior avanço, mas ainda não o suficiente para fazer frente aos demais modelos e contribuir para a equidade. É nesse público que as IES mercantis mais avançaram, ultrapassaram as federais, sendo quase metade de seus concluintes pertencentes a esse grupo.

  • c) O indicador de “cor ou etnia autodeclarada como de não-branca” constitui-se como o mais problemático das UCRs e no qual pouco contribui para a promoção da equidade. É o aspecto em que tem menor evolução, mesmo sob análise contextual - relação dos concluintes não-brancos x população não-branca do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

Conclusões

A notável expansão do acesso à Educação Superior brasileira em razão, por um lado, da abertura da oferta às instituições privadas com fins de lucro a partir de meados da década de 1990 e, por outro, neste século, de políticas de democratização do acesso como a Lei de Cotas e o Prouni, trouxe novas discussões de fundo. Com o aumento das possibilidades de ingresso, a discussão passou a abarcar também a relação existente entre o perfil socioeconômico e cultural dos graduandos e a qualidade e o prestígio das instituições acessadas, uma abordagem mais ampla sobre o nível de equidade do sistema.

Com grande relevância, os aspectos socioeconômicos, ainda que não únicos, mostram-se como importante fator condicionante do acesso, permanência, aprendizagem e conclusão. Em um sistema hierárquico como o brasileiro, com enormes diferenças qualitativas e de prestígios entre as institucionais acadêmicas, é grande a possibilidade de estudantes de origem social privilegiada obterem vantagens em relação aos estudantes de grupos desfavorecidos. Daí a importância dos estudos sobre qual papel cumprem os diferentes modelos de instituição na diminuição das desigualdades sociais, chaga que colabora para o atraso no desenvolvimento humano, social e econômico do país.

O presente artigo avaliou um aspecto da equidade na Educação Superior, a ampliação da parcela de concluintes de menor nível socioeconômico no modelo comunitário regional em comparação com as federais e mercantis. Os dados revelaram que as UCRs possuem parcelas de concluintes pertencentes a grupos desfavorecidos inferiores às mercantis (em todos os três critérios utilizados) e às federais (em dois critérios). Todavia, como nas últimas décadas a Educação Superior brasileira desenvolveu políticas de democratização do acesso (Lei de Cotas e Prouni), realizou-se uma análise na perspectiva longitudinal, ou seja, de como tais indicadores se comportaram ao longo do tempo. Também foram consideradas especificidades sociodemográficas regionais da abrangência dos modelos de instituição, visto que o Brasil é um país heterogêneo e de dimensões continentais e as UCRs concentram-se na região Sul.

Os achados permitem argumentar que o modelo comunitário regional guarda significativo potencial de desenvolvimento da equidade. Entre o período de dois ciclos avaliativos considerados no estudo, as UCRs apresentaram maior evolução da parcela de estudantes de menor nível socioeconômico que os demais modelos em cinco das seis comparações realizadas. Sob essa perspectiva, pode-se dizer que o modelo comunitário regional respondeu melhor às políticas de democratização de acesso das últimas duas décadas, avançando de forma mais significativa na inclusão de estudantes de origem social desfavorecida.

Sabe-se do enorme desafio para incluir, cada vez mais, e com mais qualidade, as populações desfavorecidas na Educação Superior. Os achados deste estudo ratificam o argumento de que o modelo público não-estatal pode ser uma alternativa mais adequada ao modelo mercantil para expansão da Educação Superior brasileira. O tema, certamente, recomenda um olhar mais atento das políticas de Educação Superior sobre o modelo das UCRs.

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1No Rio Grande do Sul: Universidade de Caxias do Sul (UCS), Universidade de Cruz Alta (Unicruz), Universidade de Passo Fundo (UPF), Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Universidade do Vale do Taquari (Univates), Universidade Feevale (Feevale), Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) e Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI). Em Santa Catarina: Universidade Alto Vale do Rio do Peixe (Uniarp), Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), Universidade da Região de Joinville (Univille), Universidade do Contestado (UNC), Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc), Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Não há UCRs no Paraná.

2Conceito Institucional (CI) é um indicador do Sinaes, “[...] resultante de avaliações in loco realizadas a cada ciclo avaliativo. O CI passou a ser referência para atestar a qualidade da IES [...]” (BITTENCOURT et al., 2014, p. 259).

Recebido: 21 de Novembro de 2022; Revisado: 15 de Maio de 2023; Aceito: 16 de Maio de 2023; Publicado: 10 de Junho de 2023

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