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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21324.055 

Artigos

O processo instituinte da política de formação de professores da Universidade Federal do Rio Grande no contexto da Resolução CNE/CP Nº 2/2015

The establishing process of the teacher education policy of the Federal University of Rio Grande in the context of the Resolution CNE/CP no. 2/2015

El proceso instituyente de la política de formación docente de la Universidad Federal de Rio Grande en el contexto de la Resolución CNE/CP N° 2/2015

*Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: <derlan.trombetta@uffs.edu.br>.

**Doutora em Educação pela Michigan State University. Professora no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: <lucemb@ufrgs.br>.


Resumo

O objetivo da pesquisa foi investigar o processo instituinte da Política Institucional (PI) de formação de professores na Universidade Federal de Rio Grande (FURG) a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais emanadas da Resolução CNE/CP Nº 2/2015. Foi uma pesquisa qualitativa, de cunho documental, que se utilizou do recurso de entrevistas semiestruturadas, com sujeitos-chave na atuação da política. Tendo como referencial a Teoria da atuação da política de Ball, Maguire e Braun (2016), o processo de atuação dessas diretrizes no contexto da prática foi analisado, por meio dos documentos, textos, artefatos e discursos dos sujeitos-chave, para mapear o movimento de interpretação e tradução dessa política no processo instituinte que resultou na aprovação da PI de formação de professores dessa universidade.

Palavras-chave: Formação de professores; Atuação da política; Política Institucional

Abstract

The aim of the research was to investigate the establishing process of the Institutional Policy (IP) of teacher education at the Federal University of Rio Grande (FURG) accordingly the Nacional Curriculum Guidelines issued by Resolution CNE/CP no. 2/2015. It was a qualitative documental investigation, supported by semi-structured interviews with key subjects in the actuation process of the policy. Based on the Theory of policy enactment of Ball, Maguire and Braun (2016), the enactment process of these guidelines in the context of practice was investigated, through documents, texts, artefacts and discourses of key-subjects, in order to map the interpretation and translation movement of this policy, which resulted on the approved IP on teacher education at that university.

Keywords: Teacher education; Policy enactment; Institutional Policy

Resumen

El objetivo de la investigación fue investigar el proceso instituyente de la Política Institucional (PI) de formación de profesores en la Universidad Federal de Rio Grande (FURG) a partir de las Directrices Curriculares Nacionales emanadas de la Resolución CNE/CP Nº 2/2015. Fue una investigación cualitativa, de carácter documental, que utilizó el recurso de entrevistas semiestructuradas, con sujetos-clave en el desempeño de la Política. Teniendo como referencia la teoría de la actuación política de Ball, Maguire y Braun (2016), el proceso de actuación de estas directrices en el contexto de la práctica fue analizado, por medio de documentos, textos, artefactos y discursos de los sujetos-clave, para mapear el movimiento de interpretación y traducción de esta política en el proceso instituyente que resultó en la aprobación de la PI para la formación de profesores de esta universidad.

Palabras clave: Formación de profesores; Actuación de la política; Política Institucional

Introdução

Em pesquisa recente, investigamos a atuação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a formação de professores, procedente da Resolução Nº 2, de 1 de julho de 2015, do Conselho Nacional de Educação/Conselho Pleno (CNE/CP) (BRASIL, 2015), em quatro universidades federais. Neste artigo, destacamos a Universidade Federal do Rio Grande (FURG) para identificar o processo de interpretação e tradução dessas diretrizes curriculares no contexto da prática, porque elas atuaram de forma bastante intensa na maioria das universidades federais (DOURADO; TUTTMAN, 2019) que assumiram o desafio de construir a Política Institucional (PI) de formação de professores.

O movimento que fizemos nesta pesquisa para nos aproximarmos do âmbito da prática possibilitou que interrogássemos sobre o papel do contexto e como se deu a atuação1 dessa política na singularidade de cada universidade investigada. Perseguindo esse objetivo, interessou-nos compreender a dinâmica instituinte da política nos espaços da FURG, desde a aprovação da Resolução CNE/CP Nº 2/2015.

Durante a pesquisa, seguimos ancorados nas proposições teóricas de Stephen Ball e Richard Bowe, construídas em conjunto com outros colaboradores (BALL, 1994; BALL; BOWE, 1992; BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016; BOWE; BALL; GOLD, 1992). No processo de investigação de políticas educacionais, Ball, Maguire e Braun (2016) separam o texto da política do discurso da política para, desse modo, explorar a complexidade que envolve a pesquisa e a análise das políticas educacionais. Ao debruçarem-se sobre a questão da interpretação e do discurso em políticas, os autores analisam a posição dos sujeitos na significação destas. Ball, Maguire e Braun (2016) entendem que tais sujeitos não são meros agentes produzidos pelo discurso das políticas, mas são também atores que a interpretam. Assim, propõem a superação dos modelos lineares e tecnicistas de análise, tomando o espaço de atuação em política como um espaço singular, no qual o processo de interpretação e tradução ganha contornos próprios, à medida que é autuado por diferentes sujeitos com interesses distintos.

A partir de uma pesquisa sobre a atuação das políticas em escolas da Inglaterra, Ball, Maguire e Braun (2016) concluíram que as políticas educacionais não são meramente implementadas, mas que estão sujeitas a modificações nos processos de recontextualização e recriação, pois se tornam vivas e atuantes na prática. Dito de outro modo, as políticas educacionais são interpretadas e materializadas de diferentes formas, nas múltiplas instituições de formação. Assim, os autores formularam a teoria de atuação da política e perceberam que compreender e documentar o modo como uma política é colocada em ação não é um processo simples, tampouco linear; antes, configura-se em grande desafio e exige muita atenção aos movimentos e às interpretações feitas, porque as maneiras como uma política faz sentido dentro de diferentes instituições são muito diversas. Portanto, o processo de entrada de uma política no contexto da universidade implica movimentos que podem ir desde conflitos, divergências, propostas e acordos até um confronto de ideias, disputas teórico-metodológicas e mesmo a negação daquilo que a política indica, quando não a negação das próprias políticas.

Na pesquisa aqui apresentada, levamos em consideração a construção teórico-metodológica proposta por Ball, Maguire e Braun (2016), que olha para as políticas como um processo instituinte, um tornar-se, que envolve sempre atuações coletivas e colaborativas, que se dão na interação com muitos “atores, textos, conversas, tecnologias e objetos (artefatos)” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 15), que são as respostas às políticas. Dessa perspectiva, não há um tempo específico para a política, ela “[...] é sempre um processo de ‘tornar-se’, mudando de fora para dentro e de dentro para fora” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 15). Também não é fixa e definitiva, mas está permanentemente sendo “[...] analisada e revista, bem como, por vezes, dispensada ou simplesmente esquecida” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 15).

Ao investigarmos como as diretrizes de formação de professores da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 atuaram para fazer sentido na instituição pesquisada, e como foram traduzidas em documentos institucionais, focamos nas três facetas ou aspectos constitutivos da pesquisa em atuação da política abordadas por Ball, Maguire e Braun (2016, p. 30): “o material, o interpretativo e o discursivo”. Contudo, não os tomamos de forma isolada, porque nenhum deles “[...] é suficiente isoladamente para capturar, entender e representar a atuação; todos são necessários” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 30). Procuramos, então, analisar o material produzido no processo de interpretação e de tradução da política, integrado com os discursos dos sujeitos-chave.

No percurso do estudo, organizamos um quadro de registros com notícias, documentos e artefatos que constituem o material produzido pelo processo de atuação dessa política. Na sequência, trabalhamos com as ações desenvolvidas para compreender e operar com a política - o interpretativo . Por fim, selecionamos os sujeitos-chave da política: aqueles que mobilizaram e/ou coordenaram os processos de interpretação e tradução da política na universidade, procurando levar em consideração que, em cada contexto, os seus atores trazem suas próprias experiências, seus ceticismos, suas crenças e seus valores, ou seja, a leitura e a interpretação dos documentos de política como feitas, a partir de suas convicções, de suas identidades e subjetividades, constituindo assim o processo discursivo da política.

Nesta investigação, as categorias interpretação e tradução são tomadas como peças-chave do processo de atuação da política e na articulação desta com a prática no processo instituinte das políticas de formação de professores na universidade investigada. A categoria interpretação , na perspectiva construída por Ball, Maguire e Braun (2016), é aqui tomada como a primeira leitura feita pelos sujeitos que recepcionaram a política na instituição. Para compreendê-la, os sujeitos fazem uma “decodificação” do texto, buscando o seu sentido no contexto institucional. É um movimento “retrospectivo” que dialoga com a própria história da instituição formadora, sua posição em relação à política, seus compromissos, suas prioridades e sua estrutura, bem como “[...] com as biografias das políticas dos atores-chave” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 68). Já a tradução, segundo Ball, Maguire e Braun (2016), é uma forma de leitura ativa da política, que se dá em um processo complexo e diversificado de ações que objetivam transformar as expectativas da política em ações que se encaixam na história, nos textos e na estrutura de cada instituição formadora. Por isso, a tradução é sempre um processo de re-representação, reordenação e refundamentação que se efetiva por intermédio de inúmeras “práticas discursivas e materiais” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 73).

A atuação da política depende, em grande parte, de sujeitos-chave. Eles são os atores políticos que têm o desafio de apresentar as políticas e decidir, individual ou coletivamente, o que pode e o que deve ser feito. Segundo Ball, Maguire e Braun (2016), são tais agentes que trabalham para construir um equilíbrio entre tornar a política aceitável, palatável e assim produzir os mecanismos e os processos que a possibilitam, unindo as coisas e as pessoas para avançarem. A atuação desses sujeitos criativos é, porém, limitada pelo contexto discursivo em que eles e a política estão inseridos. À medida que a política entra nas instituições, ela não destrói o contexto local, ocorre um processo de filtragem e adaptação, feito a partir do olhar, do entendimento e da atuação dos sujeitos-chave.

Na pesquisa, que teve como locus de investigação uma universidade federal, interrogamos sobre o processo instituinte da política de formação de professores dessa instituição, olhando para a singularidade da interpretação e da tradução das diretrizes curriculares advindas da Resolução CNE/CP Nº 2/2015. No percurso da investigação, percebemos que, no processo de construção da política, foi mobilizada uma intrincada rede de interesses e negociações, e, para compreendê-la, fazia-se necessário identificar os diferentes palcos nos quais esses atores assumiram o protagonismo e interferiram direta e indiretamente na tradução do texto das diretrizes para a formação de professores. Observamos que as instituições universitárias, como no caso da FURG, tendem a não implementar direta e linearmente a política, mas que ela é atuada por meio de sujeitos-chave que fazem proposições, promovem debates e negociações, traduzindo o texto oficial em um texto próprio, singular.

O recorte temporal considerado nesta pesquisa é de aproximadamente seis anos, desde o momento de aprovação da Resolução CNE/CP Nº 2/20152 seguindo até 2021, quando a FURG aprovou sua PI. Mesmo que a Resolução CNE/CP Nº 2, de 20 de dezembro de 2019 tenha revogado a Resolução CNE/CP Nº 2/2015 (BRASIL, 2019b), esta como outras instituições continuam construindo seu Projeto Institucional, em 2020 e 2021, com base na Resolução de 2015.

Os artefatos e os sujeitos-chave da política

O trabalho com os documentos, textos e artefatos das políticas foi fundamental nesta pesquisa porque possibilitou identificarmos o processo de atuação da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 no contexto da prática. No primeiro momento, focamos nos documentos que foram mostrando como, no processo instituinte da política de formação de professores, os sujeitos-chave significaram as Diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE), em suma, como se deu o processo de interpretação da política . Esse exercício foi organizado seguindo alguns focos de atenção, começando por identificarmos a leitura inicial, as explicações produzidas, os esclarecimentos, o que foi decidido fazer e a organização do cronograma e a agenda das ações. O segundo momento se constituiu no exercício de compreendermos o processo de tradução da política. Portanto, momento de investigar quais leituras ativas3 foram feitas e se resultaram em desdobramentos, reordenação ou refundamentação da política na construção da PI de formação de professores. Esses movimentos ajudaram-nos a identificar, então, o processo de produção do texto institucional que colocou as diretrizes da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 em ação naquele contexto.

Partindo do acesso à página oficial da universidade, procuramos notícias, materiais de divulgação, vídeos, documentos e outros registros que nos fornecessem informações sobre o percurso de atuação da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 no processo instituinte da PI de formação de professores e nos aproximasse do objeto de pesquisa. Com os descritores, foi possível encontrarmos um rico material para análise: relatos, eventos, folders, cartazes, chamamentos, vídeos, convites, súmulas, sistematizações, regulamentos, minutas, resoluções, entre outros documentos, que organizamos em um quadro que possibilitou a visualização dos movimentos feitos para colocar a política em ação. Os descritores relacionados foram: política institucional de formação de professores; Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para a formação de professores; Resolução CNE/CP Nº 2/2015; reforma curricular das licenciaturas; reformulação dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) das licenciaturas, todos associados ao nome da instituição.

Com base em Ball, Maguire e Braun (2016), nesta pesquisa, os sujeitos-chave são vistos como os participantes, os receptores e os agentes da política. São os atores políticos que têm o desafio de apresentar as políticas e decidir, individual ou coletivamente, o que pode, o que deve e como elas devem atuar naquele contexto. São eles que trabalham para esclarecer, sensibilizar e construir equilíbrios entre tornar a política aceitável e produzir os mecanismos e processos que a possibilitarão acontecer. Esse processo envolve resgate histórico, novas narrativas, às vezes sofisticadas, com o objetivo de aglutinar as pessoas e os processos para fazer as coisas avançarem ou para produzir rupturas.

Os instrumentos que utilizamos para a coleta de dados só foram adquirindo sentido à medida que os articulamos com a problemática de estudo e o referencial que construímos para analisá-los. Utilizamos a entrevista não como uma mera técnica para coletar dados, mas como parte da construção do objeto de estudo, que passou pela análise dos documentos dentro do contexto geral do objeto desta pesquisa e no diálogo com os sujeitos-chave. Com um roteiro pré-elaborado segundo algumas hipóteses e categorias estabelecidas no processo de análise documental, nosso propósito foi o de investigar o papel, o discurso e as ações desses sujeitos-chave na construção da PI, uma vez que foram/são esses os sujeitos que fizeram/fazem a filtragem, a mobilização e a indicação do foco da política para colocá-la em ação.

A escolha dos sujeitos-chave se deu a partir da recorrência de seus nomes nos documentos e nas notícias disponíveis nas páginas oficiais, comumente por terem coordenado o processo ou ocupado funções na gestão e nos coletivos de docentes das instituições. Além da pesquisa documental, houve visita presencial à instituição investigada, antes das entrevistas, para conhecer alguns desses sujeitos-chave que colocaram essa política em evidência nos espaços de gestão em que atuaram. Tal aproximação possibilitou melhor acesso a detalhes do processo e identificação dos sujeitos.

Assim, a partir do referencial teórico e do objeto de estudo, organizamos as questões prévias para a entrevista. Os temas estruturantes foram fundamentais, tanto para coletar as informações necessárias quanto para organizar a interação com os sujeitos-chave e as análises posteriores. Divididos em cinco categorias, os temas dialogam entre si e com os objetivos da pesquisa:

  • a) Identificação dos sujeitos-chave em relação ao processo de atuação da política no contexto institucional.

  • b) Questões contextuais e de concepção da política: a forma como os sujeitos-chave percebem o contexto mais amplo em que as políticas são elaboradas, em outras palavras, o contexto de influência das políticas e as concepções a ele subjacentes.

  • c) Identificação das diferentes formas, movimentos e instrumentos utilizados para interpretar a política no momento de seu acesso.

  • d) Processo de tradução da política nos documentos institucionais para investigar a política em ação, o movimento feito pela Instituição de Ensino Superior (IES) e o papel dos sujeitos-chave na elaboração dos documentos institucionais da política.

  • e) Estratégia da política, para investigar o lugar dessa política nas ações institucionais, resistências e o papel dela em relação à nova mudança nas diretrizes curriculares no final de 2019.

Selecionamos três sujeitos-chave para entrevista e, para preservar o anonimato, usaremos a sigla S-C para representar sujeito-chave, seguido de numeração representando cada um dos três participantes (S-C1; S-C2; S-C3).4

A escolha pela FURG como objeto desta pesquisa foi em função de sua trajetória muito singular de estruturação como universidade e, especialmente, na criação e na consolidação dos cursos de licenciaturas que, desde o início, têm se ocupado da formação inicial e continuada de professores na sua região. Contudo, foi nas últimas duas décadas que esse campo, na FURG, se ampliou e assumiu protagonismo nos movimentos em defesa e fortalecimento da formação de professores, no âmbito local, regional e nacional.

Além das estruturas institucionais que fazem a gestão dos cursos de graduação na FURG, os cursos de licenciatura, ao longo de sua trajetória, construíram espaços coletivos de articulação, discussão e de proposição de políticas que foram importantes para a construção da identidade dos cursos e para a defesa como cursos de formação de professores, tanto internamente quanto no fortalecimento das relações interinstitucionais. O Fórum das Licenciaturas e o Núcleo Pangea, embora só institucionalizados em 2021, constituíram-se em espaços importantes de articulação das licenciaturas, tanto nas discussões internas quanto nas relações com a Educação Básica e com outras universidades e órgãos de governo. Vale destacarmos que esses dois espaços estiveram em evidência no processo de construção da PI de formação de professores por se constituírem em espaços de construção coletiva.

A interpretação da política no contexto da FURG

A partir dos documentos, artefatos e conteúdo das entrevistas com os sujeitos-chave, foi possível analisarmos o processo de interpretação das DCN da Resolução CNE/CP No 2/2015 no contexto da FURG. A interpretação foi o primeiro movimento político institucional que envolveu um conjunto de ações com o objetivo de compreender o que a política orientava e exigia. Inicialmente, procuramos identificar como os sujeitos-chave e os documentos registravam o contexto mais amplo de elaboração da política, as influências e as concepções a ela subjacentes. Tomando as contribuições, os relatos e as problematizações do contexto de emergência da política, feitas por S-C3 durante a entrevista, foi possível acompanharmos as articulações contextuais em que se apresentavam essas novas diretrizes para a formação de professores e como elas dialogaram com o contexto institucional.

A entrevistada S-C3 destacou que, em 2015, havia um contexto favorável, no âmbito do CNE, para construir, pensar e propor políticas vinculadas às demandas históricas dos movimentos educacionais. Boa parte das discussões do CNE se vinculavam com os debates e as pesquisas das universidades públicas e de entidades educacionais como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae), a Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação (Anfope) e o Fórum Nacional de Diretores de Faculdades e Centros de Educação (ForumDir). Segundo S-C3:

Não significa que em alguns momentos as resoluções do CNE não eram alvo de críticas, de questionamentos, mas era um período em que as resoluções e o grupo que estava no CNE, procuravam atender aos anseios das universidades, das entidades. Inclusive, fazendo o esforço, que eu chamo de conciliatório, de trazer no documento anseios, desejos e propostas de diferentes grupos.

Para S-C3, a Resolução CNE/CP Nº 2/2015 é resultado de um diálogo preocupado em atender diferentes demandas, aproximando-se das proposições dos movimentos educacionais que tinham reivindicações históricas para a formação de professores e que se colocavam na contramão das proposições dos organismos internacionais da área da Educação. A entrevistada destaca aspectos que considera avanços nas diretrizes de 2015:

Primeiro, a organicidade dessa Resolução, que pensa a formação inicial articulada com a formação continuada, que era uma discussão histórica. Pela primeira vez, nós temos uma Resolução que pensa a formação continuada articulada com a afirmação inicial. [...]. O segundo ponto é a proposta de que cada instituição tenha o seu Projeto Institucional de formação de professores [...]. A proposta de uma política institucional potencializou superar essa fragmentação, eu não sei se ela vai dar conta disso também, mas ela potencializa a questão da identidade das licenciaturas nas universidades [...]. O terceiro ponto tem a ver com o capítulo que vai falar da valorização profissional, que também é uma grande inovação.

Ao descrever o contexto e o significado das novas diretrizes para a FURG, S-C1 fê-lo com entusiasmo. Afirmou que, em junho de 2014, estava representando a FURG em um evento no Ministério da Educação (MEC), em Brasília, e, naquele momento, teve acesso a uma primeira versão das novas diretrizes. Disse ela:

Eu fiquei muito emocionada quando eu li o “rascunho” da política! Por quê? Porque ela traz aspectos, ela inaugura aspectos que nós lutamos desde a década de 1980. Em dois aspectos principais, a formação continuada e a valorização profissional [...] e já comecei a pensar como fazer na FURG esse debate.

Tanto a entrevista de S-C1 quanto a de S-C3 explicitam uma aproximação com o debate feito no âmbito do CNE naquele momento, inclusive por meio da participação em reuniões com os conselheiros e compreendendo as implicações dessas novas diretrizes no âmbito institucional. Quando da aprovação das diretrizes pelo CNE, S-C3 relatou que representantes das universidades federais foram chamados para uma reunião junto ao CNE para fins de esclarecimentos e detalhamentos da Resolução CNE/CP Nº 2/2015. Na oportunidade, ela fora designada com uma colega para representar a FURG. S-C3 afirmou:

Fomos para ouvir, para tomar pé das diretrizes, de algo que não estivesse claro. Quando o conselheiro Luiz Dourado apresentou a concepção de projeto institucional do CNE [...], ele colocou o projeto institucional num status que a leitura que eu tinha feito anteriormente do texto não dava [...]. Começamos a falar, isso aqui é muito importante, isso aqui é muito sério, tem que acontecer, isso vai mexer com a universidade, porque todo mundo vai ter que discutir. É igual construir um projeto pedagógico institucional, a gente vai ter que fazer isso pensando as licenciaturas.

Percebemos, aqui, o esforço dos atores em interpretar, dar sentido a essa política no contexto institucional. O fragmento anterior expressa quão importante foi dialogar com os formuladores da política para compreender o seu sentido e como entendimentos anteriores podem atribuir sentidos diferentes ao desconhecer percursos de sua elaboração. Relataram, ainda, a reação de surpresa das colegas da Pró-reitoria de Graduação diante da concepção de projeto institucional explicitado pelo CNE. Constataram, ao rever o documento, que havia um equívoco de entendimento do que seria o Projeto Político Institucional e a PI de formação de professores5. Desse encontro com a política, em suas concepções e propostas, resultaram as primeiras ações da reitoria, que começou a planejar as discussões e criou uma primeira comissão para conduzir o processo.

Assim que aprovadas as diretrizes, relatou S-C1, o documento foi encaminhado aos coordenadores dos cursos de licenciatura para estudo e discussão prévias e, na sequência, houve uma reunião do Comitê de Graduação (Comgrad) com o objetivo de apresentar e aprofundar o conhecimento sobre o documento. Destaca a professora que nunca são tranquilas essas mudanças, ocorrem reações, e, na FURG, não foi diferente, até porque alguns cursos recém haviam feito reformas curriculares. S-C1 relatou:

Quando chegou a Resolução CNE/CP Nº 2/2015, a gente retomou o debate da Base Comum das Licenciaturas. Botamos para o debate, aproximamos com esse documento que desperta um intenso debate [...] porque ele demanda um Projeto Institucional articulado com a rede de educação básica, que é a marca da nova Resolução. Isso demandou no Comgrad a formação de uma comissão com representação da educação básica - estado e município - e representantes das licenciaturas para estudar o texto da política, e começar a pensar as diretrizes para o Projeto Institucional da formação inicial e continuada.

As falas dos sujeitos-chave evidenciam a preocupação e o esforço em interpretar a política, entender o que propõe e o que é necessário para que faça sentido no contexto da instituição. Isso envolve um conjunto de reuniões e eventos, em que as equipes gestoras e/ou sujeitos-chave apresentam os documentos e focam naquilo que, institucionalmente, é necessário ser feito. Seguindo Ball, Maguire e Braun (2016, p. 69), esses encontros são compreendidos como “[...] momentos de recontextualização, diferentes pontos de articulação e autorização que torna algo uma prioridade, atribui um valor, alto ou baixo. [...] é um processo político institucional, uma estratégia [...]”. Nessa esteira, a interpretação da política é o momento dos esclarecimentos e da construção da agenda institucional para a tradução das diretrizes nacionais, na PI de formação de professores.

Nesses movimentos de construção de um projeto que resultará em modificações importantes, individual e coletivamente, são recorrentes a instalação de um clima de disputas, discussões, acordos e desacordos. As propostas são elaboradas e apresentadas de modo coletivo e/ou centralizado, dependendo do processo e do contexto em que emergem. Nessa direção, a forma, ou a metodologia do processo de atuação da política, também foi objeto de discussões e de disputas na FURG. Em determinado momento das discussões, segundo S-C3, a Pró-reitoria de Graduação (Prograd) apresentou um desenho pronto, construído pelas Pró-reitorias, o que despertou a reação do coletivo de professores, que reivindicou a construção da PI coletivamente, e não em um processo centralizado pela Prograd. Diante disso, a entrevistada destacou:

Veio em um determinado momento, um desenho pronto das Pró-reitorias para o PI. Nós desmontamos e dissemos não, ele vai ser construído coletivamente. Dissemos que a ideia que veio era importante como sugestão, mas que ele vai ser construído no processo. Nós trabalhamos naquele ano de 2016, lutamos muito para que houvesse o Fórum das Licenciaturas. Mas a forma como a Prograd organizou não foi a forma que nós desejávamos, por exemplo, fizeram uma agenda... não vou lembrar o número exato, mas acho que foram seis a oito fóruns das licenciaturas. Mas era assim: dia tal a discussão era ambientalização curricular, educação ambiental, questões étnico-raciais, então assim uma coisa muito picotada e não tão amplamente discutida.

Como os atores conduzem/atuam a política é sempre um ponto de tensão e disputa. Ball, Maguire e Braun (2016, p. 69) afirmam que “[...] a filtragem e a focalização seletiva feitas por diretores e suas equipes [...] é um aspecto crucial da interpretação da política”. Assim, a metodologia empregada pode resultar em disputas e determinar o sucesso ou o fracasso do processo, pois há, “[...] frequentemente, um bom equilíbrio entre fazer a política palatável e fazê-la acontecer” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 76).

Para além das contribuições por meio das entrevistas, também os documentos acessados no site da universidade possibilitaram localizar a primeira referência à atuação da política em questão. Trata-se de uma notícia anunciando a realização de um seminário6 no dia 12 de novembro de 2015, aproximadamente quatro meses depois da aprovação da Resolução CNE/CP Nº 2/2015. A notícia apresenta um resumo do evento, promovido pela Prograd via Diretoria Pedagógica, destacando que as novas Diretrizes para a Formação Inicial e Continuada de Professores haviam entrado em vigor em julho de 2015 e que isso impactaria diretamente nos “[...] itinerários formativos dos cursos de licenciatura e da formação continuada” (FURG, 2015, n. p.).

Com a temática “As novas diretrizes curriculares para a formação inicial e continuada de formação de professores”, o evento, em sua abertura, contou com a presença da Reitora e da Pró-reitoria de Graduação, que demonstraram receptividade à política, com muita deferência. As conferencistas convidadas foram as professoras Helena de Freitas e Dirce Zan, ambas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), nomes de referência no campo das pesquisas e dos movimentos em defesa da formação dos professores.

Esse movimento, feito pela instituição em relação à política, teve o efeito de aproximar os atores dessa política - professores, coordenadores dos cursos das licenciaturas e servidores técnicos - de um debate mais amplo, de modo a olhar o contexto em que a política foi produzida, para compreender o que quer, em que medida impacta a estrutura dos projetos de formação dos cursos de licenciatura e o que é necessário fazer em relação a ela.

Em um artigo na revista Formação em Movimento, da Anfope, Anadon, Mota e Gonçalves (2019) afirmaram que o início do processo de interpretação da política na FURG se deu com a criação de uma Comissão de Trabalho composta por representantes das Pró-reitorias, dos cursos de licenciatura, o Comitê Institucional de Formação Inicial e Continuada dos Profissionais da Educação Básica (Comfor), e representantes das redes de ensino. A incumbência inicial da Comissão foi resgatar a história da formação de professores na FURG. Na sequência, segundo as autoras, a comissão foi dividida em grupos de trabalho com temáticas de estudo definidas para cada um deles.

A leitura e a análise atenta dos eventos promovidos pela FURG contribuíram para identificar os sujeitos-chave que fariam parte da segunda fase de coleta de dados da pesquisa, a exemplo do Fórum das Licenciaturas realizado em 16 de março de 2016 (FURG, 2016b), quando pudemos identificar S-C3 como alguém que contribuiria sobremaneira às investigações. A organização desse Fórum representou, na construção da PI, um momento importante de discussão coletiva, cuja proposta de trabalho foi um exercício de comparação e de confronto entre o currículo dos cursos de formação de professores da FURG e a proposição das novas diretrizes. Explicita-se aí um exercício de interpretação dessa política, no sentido apontado por Ball, Maguire e Braun (2016), como um processo de significação da política, quando a instituição faz uma leitura política e substancial daquilo que é necessário fazer. É uma forma de decodificação, ou de ressignificação da política, que ocorre em uma relação direta com a “[...] cultura e a história da instituição e às biografias das políticas dos atores-chave” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 68). Nesses exercícios, mostram-se os sujeitos-chave que Ball, Maguire e Braun (2016) chamam de entusiastas ou influentes da política.

Entusiastas são, também, muitas vezes, tradutores - que planejam e produzem os eventos, os processos e os textos institucionais da política para os outros que estão, então, ativamente empossados dos “padrões discursivos” da política. Eles constituem em um núcleo de “ativistas da política” em qualquer escola. Tradução é um processo de animação; professores são atraídos por uma relação positiva e ativa com a política como encenadores. É um ponto de intersecção do discurso, incentivo e ação social. (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 88, grifo dos autores).

Pensando com os autores, naquele momento, na FURG, já se instalava um grupo de tradutores que assumia a função de intersecção do discurso, mobilizava ações que contribuíssem para imprimir significados à política e compreender os impactos e as implicações decorrentes dela. Nesse processo de animação, foi organizada a segunda reunião do Fórum das Licenciaturas, no dia 13 de abril de 2016, dessa vez colocando em foco “[...] a organização curricular da Educação Básica, a partir das atuais políticas públicas [...]” (FURG, 2016a, n. p.). Na ocasião, painéis com apresentação das diferentes diretrizes curriculares da Educação Básica subsidiaram a análise e a discussão acerca dos currículos nos cursos de licenciaturas ofertados pela universidade. Estiveram presentes diretores de unidades acadêmicas, coordenadores de cursos de licenciatura, representantes de núcleos docentes estruturantes das licenciaturas, professores da rede estadual e municipal de Educação Básica e futuros professores, além de técnicos administrativos em educação e a equipe da Prograd. Evidenciam-se, nessa ação, os primeiros registros e a organização do que viria a ser a PI de formação de professores da FURG, como registrado por Anadon, Mota e Gonçalves (2019):

As discussões na Comissão foram intensas e marcadas pela interlocução com as coordenações e com os Núcleos Docentes Estruturantes dos cursos. O estudo da Resolução configurava o escopo das atividades. Ainda em 2016 foi realizado o Fórum das Licenciaturas com uma palestra evidenciando o estudo da nova legislação e com atividades em grupos de trabalho. Nesse trabalho, uma primeira escrita do Projeto Institucional começava a delinear-se. (ANADON; MOTA; GONÇALVES, 2019, p. 436).

No que está exposto até aqui, podemos ver uma ação coletiva de discussão e elaboração da PI de formação de professores, marcando a diferença de processos de gabinete tão recorrentes no cotidiano dos espaços educacionais em todos os níveis. Na FURG, foram feitos vários movimentos internos e externos em diferentes espaços, inclusive participações e consultas ao MEC e ao CNE.

Esse esforço, feito pelos sujeitos-chave no processo de interpretação da política, estudando o documento, discutindo coletivamente e dialogando diretamente com os representantes do CNE, pareceu, em um primeiro momento, uma tentativa de capturar o sentido da política, como se fosse algo fixo. Contudo, como observam Ball, Maguire e Braun (2016, p. 21), quando as políticas chegam nos contextos da prática, elas “[...] não dizem normalmente o que fazer, elas criam circunstâncias nas quais as gamas de opções disponíveis para decidir o que fazer são estreitadas ou alteradas ou metas ou resultados particulares são definidos”. Nessa esteira, entendemos que as políticas não fazem sentido, nem são evidentes por si só. Elas demandam um processo de interpretação e de recontextualização, considerando que “[...] a política cria o contexto, mas o contexto precede a política” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 36).

O movimento inicial, de leitura e interpretação da política, aglutinou um conjunto de atores e ideias em torno da necessidade e pertinência da construção da PI de formação de professores nos termos propostos pela Resolução CNE/CP Nº 2/2015. Os documentos e os relatos dos sujeitos-chave entrevistados mostram um movimento contínuo e sequencial de interpretação e de compreensão, de dar sentidos à política até o final do primeiro semestre de 2016. A partir daí, houve uma descontinuidade, um hiato de aproximadamente um ano na atuação dessa política. Do segundo semestre de 2016 e do primeiro de 2017, não constam registros de atividades. Essa interrupção no processo coincidiu com a ruptura institucional produzida pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff e as incertezas decorrentes dele e, também, com a troca de gestão da universidade no início de 2017 e consequentes mudanças nas diretorias da Prograd.

A tradução da política: o processo instituinte da política de formação de professores da FURG

Neste momento da pesquisa, investigamos a forma singular como essa política foi traduzida no documento da PI da FURG. Conforme descrevemos anteriormente, depois de um período sem atividades, a política da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 voltou a atuar mais intensamente a partir do segundo semestre de 2017. Se, por um lado, o contexto de indefinição produzido pela conjuntura nacional e a troca de gestão na FURG deram uma pausa na atuação da política, por outro, foi justamente o contexto político desfavorável do cenário nacional que influenciou a retomada das discussões da PI. Isso ocorreu, segundo o relato da entrevistada S-C3, porque os principais atores do processo de construção da PI estavam envolvidos ativamente nas discussões nacionais promovidas pelo Movimento dos Educadores, especialmente pela Anfope. Esse envolvimento aumentou a convicção dos atores em relação à pertinência e à urgência da aprovação da PI. Diante de tantos retrocessos, ter a PI para a formação de professores aprovada, a partir de uma construção coletiva, seria um grande avanço, um exercício da autonomia universitária, configurando-se a institucionalização e a materialização da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 como um importante marco de resistência aos retrocessos das políticas dessa área.

Pode-se avaliar que um dos mais significativos avanços da Resolução 02/2015, foi criar a necessidade de que cada instituição de Ensino Superior estabeleça uma política de formação inicial e continuada de professores. Essa prerrogativa impele as instituições a assumir compromissos políticos e pedagógicos, demarcando suas ações, atividades e encaminhamentos. Definir uma política própria de formação de professores confere aos IE’s [Institutos de Educação] autonomia para colaborar na formação de professores e professoras contemplando as especificidades regionais e garantindo o diálogo necessário entre a universidade e as instituições de Ensino Básico. (ANADON; MOTA; GONÇALVES, 2019, p. 434-435).

Na entrevista, S-C3 destacou a importância estratégica da PI no cenário de retrocessos:

[...] com a ameaça de uma nova resolução, o que poderia nos respaldar, era ter um Projeto Institucional. No início, a gente não tinha clareza de como seria o formato desse PI. Se seria do tipo projeto pedagógico... que era a ideia inicial. Quando a gente leu o PI da UFFS [Universidade Federal da Fronteira Sul], que é em formato de resolução, a gente começou a ver que as políticas da universidade estão todas em formato de resolução. Nós tivemos que transpor tudo aquilo que estava escrito em forma de texto de concepções, para um formato de resolução, para enviar ao conselho superior da universidade.

O primeiro registro da retomada das discussões para a elaboração da PI encontramos em uma notícia do site da FURG, do dia 1 de novembro de 2017, sobre uma atividade do Núcleo Pangea, ocorrida no dia 25 de outubro daquele ano para estudar as mudanças propostas pela Resolução CNE/CP Nº 2/2015.

Coordenadores e membros de NDEs [Núcleos Docentes Estruturantes] dos cursos de licenciatura da FURG estudaram, em 25 de outubro, questões relativas às mudanças previstas pela Resolução nº 2/2015 e retomaram a história da formação de professores, resgatando o grupo Pangea. A ideia do grupo é constituir um espaço-tempo de discussão permanente sobre formação de professores buscando consolidar laços identitários entre as licenciaturas. O encontro reuniu docentes que estiveram à frente das discussões na Prograd. O Pangea se reunirá mensalmente e discutirá o núcleo comum e mudanças curriculares. (FURG, 2017, n. p.).

O Núcleo Pangea, criado em 2002, no contexto das mudanças curriculares dos cursos de licenciatura, promovido pela aprovação da Resolução CNE/CP Nº 2, de 19 de fevereiro de 2002 (BRASIL, 2002), ficou muitos anos inativo. Foi reativado pela Diretoria Pedagógica (Diped) em 2017 e, a partir daquele momento, tornou-se o espaço institucional das discussões e proposições para a PI. S-C2 relatou que, em 2017, ainda que retomados os textos dos Grupos de Trabalho que haviam sido elaborados em 2016, portanto durante a fase de interpretação da política, o tamanho do desafio se mostrava maior, especialmente pela desarticulação em que se encontrava a própria comissão. A reativação de espaços como o Pangea e o Fórum das Licenciaturas seria o caminho.

[...] O espaço político e pedagógico que discute as licenciaturas, a formação inicial e continuada de professores é o Pangea. O que a gente chama de Fórum das Licenciaturas é o encontro onde a gente chama a comunidade externa, a rede pública, chama professores, os Estudantes. [...]. Ele é um movimento, e como movimento ele pressionou, ele fez acontecer [...]. A Prograd que acolheu o Pangea. Partiu da Prograd ressuscitá-lo [...], resgatar essa ideia, eu acho que é uma ideia importantíssima porque é um espaço representativo. Hoje o Pangea está dentro do PI.

O entusiasmo da professora com o Pangea, sua retomada no percurso de elaboração da PI de formação de professores, evidencia o potencial aglutinador desse espaço para conferir coletividade aos processos de discussões sobre as licenciaturas e seus propósitos na formação inicial e continuada de professores. O Pangea assumiu, portanto, centralidade na elaboração da PI, funcionando como um espaço de apoio e de discussão de tal importância que, no documento final da PI, o Pangea deixou de ser informal e se tornou um espaço institucionalizado na FURG.

Seguindo a trilha das notícias, no dia 1 de novembro de 2017, após a reunião realizada no dia 25 de outubro de 2017, que resultou na reativação do Pangea, a Prograd/Diped, em parceria com esse grupo, promoveu uma nova edição do Fórum das Licenciaturas, como relatou S-C2: “Voltamos a mexer no PI. Ele tinha uma escrita inicial, eram textos soltos. Aí eu fui conhecer o PI da UFFS, achei o projeto e o processo muito legal. A gente começou a chamar e a organizar de novo e a discutir e a pensar a formação”.

Com o tema “Princípios e concepções para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica”, o fórum é voltado para coordenadores de curso, docentes, estudantes e Núcleos Docentes Estruturantes (NDEs) dos cursos de licenciatura. A atividade busca promover a discussão sobre as temáticas transversais que precisam ser contempladas nos currículos de formação de professores da educação básica, conforme a Resolução nº 2/2015 do Ministério da Educação, que dispõe sobre as diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial e continuada de professores da educação básica. (FURG, 2017, n. p.).

Pensando com Ball, Maguire e Braun (2016, p. 69), que a tradução “[...] é um processo interativo de fazer textos institucionais e colocar esses textos em ação, literalmente ‘atuar’ sobre a política usando táticas que incluem conversas, reuniões, planos, eventos [...]”, percebemos que o Pangea se constituiu no palco principal onde a política em questão foi colocada em ação, mobilizando efetivamente os atores da tradução da política e produzindo engajamento na construção do texto institucional. Foi aí que questões cruciais da política foram respondidas e disputadas, enquanto eram apresentados modelos e arquiteturas curriculares tangíveis para o contexto local pelos sujeitos-chave que trabalharam como seus entusiastas.

A redação final da minuta do documento da PI foi elaborada pelo Pangea ao longo do ano de 2018 e encaminhada à Prograd, que, ao final daquele ano, a submeteu ao Fórum das Licenciaturas para apreciação. A professora S-C2 descreveu esse momento:

No ano seguinte, a gente seguiu trabalhando... tínhamos encontros mensais desse grupo do Pangea, levamos o ano de 2018 todo construindo a minuta de PI, para, no final de 2018, fazer um Fórum das Licenciaturas com participação da comunidade interna e externa e aprovar o texto final. Tivemos várias disputas interessantes, do tipo: nós não vamos permitir estágio na iniciativa privada; os princípios já tinham sido aprovados no ano anterior; definir o núcleo comum das licenciaturas foi uma grande odisseia [...]; houve as disputas de unidades; se o Instituto de Educação deveria ficar com as disciplinas de fundamentos da educação [...]. No final de 2018, a gente aprova esse texto com a comunidade. E a indicação é que ele vá para o Consun [Conselho Universitário] para passar como Política Institucional. Aí a gente já tá naquela loucura de Bolsonaro!

A minuta da PI, então aprovada, está disponível no Sistema de Gerenciamento de Eventos (Sinsc) em formato de Resolução do Conselho Universitário (Consun) e traz no cabeçalho do documento a previsão de aprovação em 14 de dezembro de 20187.

Finalizando o processo a minuta foi apresentada no Fórum das Licenciaturas no segundo semestre de 2018. O Fórum reuniu a comunidade universitária vinculada aos cursos de Licenciatura e docentes das redes públicas de ensino da cidade de Rio Grande. Após as considerações e sugestões, o texto final foi enviado para correções e para apreciação no Conselho Universitário, no qual deverá ser votado até o final de 2019. (ANADON; MOTA; GONÇALVES, 2019, p. 437).

Ainda que prevista, essa aprovação da PI não se confirmou. A Reitoria não encaminhou para o Consun a minuta aprovada pelo Fórum das Licenciaturas, nem no final de 2018, que era a previsão inicial, nem ao longo de 2019. A entrevistada S-C2 resumiu assim essa situação: “O que aconteceu foi que a Reitoria se atrasou. Não fez o tema de casa e não encaminhou para o Consun. Não corrigiu, não discutiu.

Todos os esforços para produzir convencimento sobre a importância estratégica da PI e a consequente aprovação no Fórum das Licenciaturas não chegaram a bom termo, porque a gestão da universidade não acompanhou o movimento e o ritmo de atuação dessa política; e não submeteu o documento às instâncias superiores responsáveis por aprovar as políticas da universidade. Aquilo que os atores-chave da proposta de PI temiam ocorreu. No final de 2019, o CNE revogou a Resolução CNE/CP Nº 2/2015 e aprovou novas diretrizes com a Resolução CNE/CP Nº 2/2019, trazendo com ela mudanças substanciais, que denotam verdadeiros retrocessos.

O início do ano de 2020 é descrito como bastante conturbado pelos sujeitos-chave entrevistados: a PI não fora aprovada; havia nova Resolução do CNE promovendo mudanças nas diretrizes para a formação de professores; e a pandemia da covid-19 paralisou as atividades presenciais na universidade. A entrevistada S-C2 afirmou que, diante daquele quadro, foi necessário um grande esforço para resgatar a mobilização em torno da PI de formação de professores:

Chamamos o Pangea, já em modelo remoto. Foi muito legal o que aconteceu, porque em função do trabalho a distância as pessoas participaram mais do Pangea [...]. Tínhamos um coletivo de 16 coordenadores ajudando escrever [a nova versão da PI] e, em torno de 70 participantes, entre alunos e comunidade externa, para decidir. Foram muito ricos os encontros semanais. Eu comecei a pressionar o grupo e disse: corremos risco de perdermos o trabalho que fizemos durante os últimos três anos [...]. Eu fui para cima do pessoal, mobilizei, a gente conseguiu construir de uma maneira, eu diria, muito democrática, com discussões, com posições muito acirradas, foi muito interessante! Principalmente [as discussões] do núcleo básico que voltou.

Na pesquisa sobre a atuação da política, Ball, Maguire e Braun (2016, p. 82) identificam que “[...] um dos papéis políticos mais intrigantes [...]”, no contexto da prática, é o de “empreendedor” da política, que faz o trabalho de “defesa da política”.

São pessoas carismáticas, “personalidades persuasivas” e agentes fortes de mudança, nos quais pessoalmente se investe e se identifica com ideias de política e sua atuação. Eles procuram recrutar outras pessoas para suas causas [...] para construir uma massa crítica para a mudança e levar a cabo atuações de políticas. (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 82).

Esse papel, de entusiasta da política, assumido por S-C2, ficou em evidência ao longo da pesquisa. Não foi a única, mas, por estar em um espaço estratégico para a atuação da Política, ela assumiu o protagonismo do processo, com apoio dos colegas, no momento de traduzir o texto da política em um texto institucional.

O ano de 2020 foi de rediscussão e aprofundamento da versão da PI que havia sido aprovada no Fórum das Licenciaturas no final de 2018. O Pangea se consolidou como espaço de estudos, discussões e de proposições das licenciaturas. Foi destacada, nas falas das entrevistadas S-C2 e S-C3, a grande participação dos professores e dos coordenadores de curso nas discussões de 2020 e como esse debate fortaleceu a convicção da importância da PI. Nas palavras da S-C3:

Dos últimos anos, foram as reuniões de maior público do Pangea. [...] a gente discutiu: nós precisamos aprovar a PI! Como faremos isso com essa Resolução? Pedimos para trazer a política que tinha sido aprovada em 2018 e nós a revisamos. Tirando explicitamente as referências à Resolução de 2015 - aqui vou usar o conceito do Bernstein - recontextualizando os conceitos da política de 2019. Construímos a política durante todo o ano de 2020. No início, tínhamos reunião todas as quartas de manhã, depois ficou de quinze em quinze dias. Fomos discutindo ponto a ponto.

A partir dos fatos e percursos narrados e/ou noticiados, compreendemos que o contexto vivido pelas licenciaturas impactou na atuação dessa política. Fazendo uma leitura do contexto nacional, com a aprovação de novas diretrizes para a formação de professores e do contexto local, marcado pelo imobilismo ou resistência da gestão em encaminhar o texto para a aprovação da PI, percebemos o quanto essas posturas ou posicionamentos influenciaram na forma como a política foi recontextualizada naquele momento. Portanto, olhar para o contexto em que a política atua é indispensável para compreendê-la. Ball, Maguire e Braun (2016) identificaram que as políticas são colocadas em ação em determinadas condições materiais ou problemas específicos. Elas são definidas a partir de “[...] compromissos, valores e formas de experiências existentes” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 37). Dito de outro modo, ao analisarmos uma política em ação é necessário fazê-lo dentro de um “[...] conjunto de condições objetivas [...]” que se relacionam diretamente “[...] com um conjunto de dinâmicas ‘interpretativas’ subjetivas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 37).

Em 2020, os trabalhos no Grupo Pangea foram ampliados e intensificados, resultando em nova versão do documento da PI. No dia 30 de setembro, o Pangea organizou uma live8, no portal Profissão Professor9, para anunciar o início do Fórum das Licenciaturas de 2020, que iria aprovar a nova versão da minuta de PI de formação de professores. O evento teve como tema a Contextualização do Projeto Institucional e o objetivo inicial era mostrar para a comunidade acadêmica e regional a importância da PI para a FURG. Na sequência, mostrariam o trabalho feito até aquele momento pela comissão do Pangea e a metodologia de trabalho que seria utilizada para debater e aprovar a minuta de PI no Fórum das Licenciaturas.

Nesse encontro, a Comissão do Pangea anunciou a abertura do período de inscrição para participar do Fórum das Licenciaturas. Ao fazer a inscrição, os participantes recebiam uma cópia da proposta de PI para ler e fazer apontamentos. No dia 22 de outubro de 2020, os inscritos participaram de grupos de trabalho organizados para aprofundar e qualificar a minuta. As proposições dos grupos foram sistematizadas pela Comissão do Pangea e apresentadas para a aprovação do Fórum das Licenciaturas no dia 30 de outubro.

O Fórum das Licenciaturas, realizado no dia 30 de outubro de 2020, foi relatado em notícia do site da FURG no dia 13 de novembro. Com o seguinte título Fórum das Licenciaturas aprova Projeto Institucional de Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica, explica-se que o documento foi apresentado em plenária virtual e votado por mais de 150 participantes.

O projeto foi elaborado pelo grupo gestor das políticas de formação de professores da universidade, o Pangea, ao longo deste ano, num processo que começou em maio, envolvendo uma série de reuniões virtuais de estudo e discussão das atuais diretrizes nacionais da área, e culminou na proposta validada em votação. Puderam votar os 159 participantes inscritos, professores das mais diversas áreas de Licenciatura. (FURG, 2020, n.p.).

A Plenária do Fórum das Licenciaturas10 foi conduzida pela Diretora Pedagógica da FURG, Simone Anadon, e pelas professoras Lara Facioli, do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (ICHI), e Leila Finoqueto, do Instituto de Educação (IE). Na abertura do Fórum, o professor Renato Duro Dias, Pró-Reitor de Graduação, destacou a importância do Fórum, principalmente pelo contexto de incertezas daquele momento. Sublinhou, ademais, o significado da consolidação desses espaços coletivos para a formulação das políticas da FURG, de modo especial a construção de uma PI para a formação de professores, algo que, segundo ele, produziria uma identidade para esse campo de atuação da universidade e seria um marco da resistência e da luta em defesa de princípios e de concepções de formação de professores, construídos historicamente pelo Movimento dos Educadores. Desse momento o S-C2 destacou:

A gente fez o fórum virtual com a comunidade interna e externa, montamos uma comissão, maravilhosa! [...] a gente conseguiu fazer um fórum, com votação, com plenária. Foi cansativo, porque você vê de tudo no Fórum. Tem algumas pessoas que são hiper, megapolitizadas e que não abrem mão de algumas coisas, e outros que são completamente alienados. Foi muito louco, houve uns atravessamentos horrorosos, mas foi algo muito legal.

Em todas as manifestações dos sujeitos-chave e na forma como organizaram o processo de interpretação da política e de sua tradução na PI, esteve em evidência a preocupação de construir um processo que fosse democrático. Houve preocupação com o processo instituinte da política, compreensão e comprometimento de todos na construção, para que a política fizesse sentido naquele contexto e, ao ser traduzida, pudesse produzir as ações desejadas. Esse aspecto foi destacado por um dos atores do processo na plenária final e registrado na notícia divulgada no site da FURG no dia 13 de novembro de 2020:

[...] “um dos principais sinais que a FURG está produzindo [com o documento] é o destaque das construções democráticas nos assuntos educativos. A participação da comunidade, o diálogo entre diferentes atores, a pluralidade de pensamentos, enfim, a produção coletiva como eixos de processos que fundamentam a educação”. E quando avalia o movimento feito pelo fórum, constata: “sim, estivemos numa oportunidade de exercitar a democracia, a tolerância e o trabalho coletivo”. (FURG, 2020, n. p.).

A aprovação da minuta no Fórum das Licenciaturas, com 159 inscritos, foi muito comemorada pelos atores da política presentes naquele momento considerado histórico pelos membros do Pangea. Diante de todo esse movimento, a expectativa era que a Reitoria, ao receber a minuta, lhe faria tramitar com o máximo de agilidade no Consun, para ser aprovada ainda em 2020. Contudo, a expectativa não se confirmou. O ano de 2021 marcou o início de um novo mandato da gestão na universidade, com um novo reitor eleito. Mesmo que a nova Reitoria representasse o que se pode chamar de continuidade da gestão anterior, e mesmo diante do fato de que o novo reitor houvesse se comprometido na campanha com o encaminhamento da minuta de PI enviada pelo Fórum ao Consun, a nova gestão resolveu revisá-la, chegando a nomear uma comissão para isso, sem dialogar previamente com o Pangea. A ação da Reitoria gerou uma reação forte do Pangea, como descreveu S-C2:

O que aconteceu na sequência? No final do ano, a nova gestão foi nomeada e o projeto não foi para votação no Consun. Fiquei muito chateada! [...] a Reitoria queria rediscutir o projeto já aprovado no Fórum. E aí o grupo foi chamado no Pangea, foi para cima da Reitoria e “matou” [resistiu]! Eu me senti muito feliz, porque a FURG não tem uma tradição de reunir, de votar. [...]. Aí eles [Pangea] defenderam com “unhas e dentes” o projeto. Agora ele vai, o Consun do jeito como ele foi aprovado lá no final do ano passado [2020].

A forte pressão política gerada pela reação do Pangea às pretensões da Reitoria de revisar a minuta, aprovada duas vezes no Fórum das Licenciatura, levou-a a declinar da proposta de uma nova revisão e, em agosto de 2021, encaminhou a minuta para a apreciação do Consun. Após os trâmites no Conselho, o texto foi aprovado, no dia 8 de outubro de 2021, um ano depois de ter sido aprovado no Fórum das Licenciaturas.

Considerações finais

Como vimos, a PI de formação de professores da FURG foi o resultado da atuação da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 no contexto local. Essa política foi posta em ação naquele contexto, ao longo de, aproximadamente, seis anos, período em que a política (policy) proposta pelo CNE se confrontou com o contexto da prática e resultou em um conjunto de artefatos singulares, até ser traduzida na PI de formação de professores. Essa pesquisa mostrou que não houve uma mera implementação da política, mas que ela atuou no contexto local, foi colocada em cena de maneira original e criativa em um contexto discursivo em que textos, documentos e artefatos da política “[...] são complexamente configurados, contextualmente mediados e institucionalmente prestados” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 13). Ela foi atuada, dito de outro modo, encenada para fazer sentido naquele palco, naquele contexto singular em um processo instituinte de política.

No processo instituinte da Política na FURG, duas concepções de formação de professores estavam em disputa nas políticas de formação de professores. Uma, materializada na Resolução CNE/CP Nº 2/2015, construída em determinado contexto discursivo, aproximando-se das concepções e dos interesses dos principais atores da PI de formação de professores. A outra, presente na Resolução CNE/CP Nº 2/2019, referenciada em outro contexto discursivo, considerada pelos atores locais um retrocesso.

A aprovação da PI configurou-se em um marco de resistência, de acordo com os participantes desta pesquisa. Movimento de resistência, firmemente contrário aos retrocessos das políticas de formação implementadas pelo Governo Federal desde 2016 com a intervenção no CNE, aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Novo Ensino Médio e a BNC-Formação e seus desdobramentos. A PI de formação de professores da FURG é a expressão da resistência a esses retrocessos e da defesa de uma formação de professores pautada na participação e no trabalho coletivo construídos nos espaços do Grupo Pangea e no Fórum das Licenciaturas. Segundo relato da entrevistada S-C2:

Buscamos princípios e pressupostos. Aqueles pressupostos que a gente não abre mão e esses foram ao encontro das diretrizes de 2015. O nosso projeto institucional ficou muito próximo das diretrizes de 2015. Se lá em 2015 tínhamos ressalvas, essas diretrizes acabaram sendo nossa boia. Ou a gente a defende ou a gente fecha as portas, efetivamente, porque o que que tá vindo por aí, em termos de formação de professores, é voltar no tempo, pautar uma formação para professor tarefeiro, para transmissão de conhecimento.

Além de ser um marco de resistência, a PI é vista pelos atores da política como um documento que vai dar identidade às licenciaturas e construir uma unidade nos projetos de formação de professores, porque ele expressa o que a universidade pensa sobre a formação de professores e como os cursos podem organizar essa formação. S-C3 relatou:

A proposta de uma política institucional potencializa superar essa fragmentação, eu não sei se ela vai dar conta disso também, mas ela potencializa a questão da identidade das licenciaturas nas universidades. O que, enquanto FURG, nos identifica enquanto licenciaturas? Há ações muito isoladas nos cursos de licenciatura. Qual é a identidade dos cursos de licenciatura da nossa instituição? Então eu vejo que o projeto institucional tem um potencial inovador muito grande.

A PI da FURG - Resolução Nº 014, de 8 de outubro de 2021 (FURG, 2021) - está estruturada em duas partes. A primeira estabelece os objetivos, os princípios e as concepções de formação de professores consensuados ao longo da tradução da política no Grupo Pangea e no Fórum das Licenciaturas. A segunda parte estabelece as diretrizes para a formação inicial e continuada, com a estrutura dos cursos, e institucionaliza o Fórum das Licenciaturas e o Grupo de Estudos das Licenciaturas - Pangea.

Analisando o conjunto de proposições da PI e considerada na perspectiva daquilo que Stephen Ball denomina de “estratégia da política” (MAINARDES, 2006, p. 55), a tradução da Resolução CNE/CP Nº 2/2015 no contexto da FURG foi conduzida por um conjunto de sujeitos que atuaram estrategicamente nessa política para dar mais coesão ao projeto de formação de professores da universidade, articulando os cursos de licenciatura, consolidando espaços de participação e gestão coletiva e a articulação com as redes públicas da Educação Básica.

A PI da FURG (2021) traz avanços significativos para a qualificação da formação de professores. Referenciada na Resolução CNE/CP Nº 2/2015 sem fazer referência nominal a ela, uma vez que, no momento da sua aprovação, já estava em vigor a Resolução CNE/CP Nº 2/2019, sua redação reafirma o compromisso com a formação na perspectiva da gestão democrática, ausente na nova Resolução; consolida e amplia o Núcleo Comum das licenciaturas, estabelecendo um compromisso de todas as licenciaturas com a formação para a docência da Educação Básica; e, por opção política e epistemológica, não faz referência nem à BNCC, nem à BNC-Formação, nem ao currículo por competências. Mantém referência às temáticas transversais da Resolução CNE/CP Nº 2/2015, ignoradas na Resolução CNE/CP Nº 2/2019; e mantém, também, uma carga horária mínima de atividades curriculares complementares à formação, ausente nas novas diretrizes. Sem, portanto, ignorar as novas diretrizes, mas sem fazer referência direta a elas, a PI consolida a concepção de formação construída historicamente pelo Movimento dos Educadores e os espaços de participação, estreitando a relação com a Educação Básica.

Nesta pesquisa sobre a atuação das DCN para a formação de professores, da Resolução CNE/CP Nº 2/2015, no contexto da FURG, foi possível confirmar a hipótese levantada por Ball, Maguire e Braun (2016) que nos conduziu ao longo deste percurso: as políticas não são meramente implementadas, mas, no contexto da prática, elas passam por um processo instituinte em que sua interpretação e tradução produzem novas políticas, as Políticas Institucionais. À medida que esta pesquisa avançou e nos confrontamos com os artefatos e documentos da política, com as narrativas dos sujeitos-chave entrevistados, foi-nos possível identificar que as diretrizes da Resolução CNE/CP Nº 2/2015, no contexto da prática, com as estruturas institucionais, suas histórias, interesses, discursos, passou por um processo de recontextualização e adquiriu um sentido singular naquele contexto.

Neste momento histórico, a PI da FURG, organizada a partir das demandas da Resolução CNE/CP Nº 2/2015, está situada no contexto da estratégia dessa política, tanto nas articulações internas para defesa e fortalecimento das licenciaturas quanto nas lutas externas, no movimento de resistência ao retorno das políticas gerencialistas e performativas orientadas pelos interesses da razão do mercado, que estão sendo propostas pelas forças políticas reacionárias que assumiram o poder no Brasil em 2016. Hoje, há uma forte resistência à padronização curricular imposta pela BNCC, por meio da Resolução Nº 2, de 22 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017), e ao novo tecnicismo das diretrizes da BNC-Formação, que pretende submeter a formação de professores ao currículo da BNCC, concebendo os professores como meros práticos do currículo padronizado.

Por isso, as DCN para a formação de professores, propostas pela Resolução CNE/CP Nº 2/2015, na medida em que incorporam valores e princípios do comum construídos coletivamente pelo Movimento dos Educadores ao longo de mais de quatro décadas, assumiram um papel articulador e emancipador. De modo que, mesmo depois da sua revogação, em favor da Resolução CNE/CP Nº 2/2019, as diretrizes exaradas na Resolução CNE/CP Nº 2/2015 continuam sendo uma referência, na resistência dos comuns coletivos das instituições formadoras, contra as investidas das atuais políticas guiadas pela razão do mercado.

Referências

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1O termo “atuação”, nesta pesquisa, é usado como enactment da política, atribuído por Ball, Maguire e Ball (2016, p. 12), no sentido “teatral” em que os autores apresentam a política como um processo dinâmico, criativo e não-linear. Eles usam o termo para mostrar que as políticas não são simplesmente implementadas, mas “[...] são interpretadas e materializadas de diferentes formas” (BALL; MAGUIRE; BALL 2016, p. 12, nota de revisão).

2A baliza inicial do período investigado foi a data da Resolução CNE/CP Nº 2/2015, publicada em 1º de julho de 2015. Essa norma havia inicialmente estipulado dois anos para as IES “adequarem” seus projetos de formação às novas diretrizes (BRASIL, 2015). O CNE adiou esse prazo três vezes, sendo a última mudança dada pela Resolução CNE/CP Nº 1/2019, publicada em 2 de julho de 2019, que estabelece o “[...] prazo máximo de 2 (dois) anos, contados da publicação da Base Nacional Comum Curricular, instituída pela Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017” (BRASIL, 2019a) - adiou, desse modo, para o mês de dezembro de 2021. Como forma de resistência à BNC-Formação, muitas instituições continuaram construindo sua PI referenciadas na Resolução CNE/CP Nº 2/2015.

3Esse termo é usado no sentido cunhado por Ball (2011, p. 44) de que as políticas atuam em uma “ação social criativa”, por meio da interação complexa de identidade, interesses, coalizões e conflitos.

4O Projeto foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em dezembro de 2020 e aprovado em 7 de abril de 2021, com o Certificado de Apresentação de Apreciação Ética - CAAE nº 42399921.9.0000.5347.

5Utilizamos, nesta pesquisa, a partir da teoria de atuação política de Ball, Maguire e Braun (2016), o conceito de Política Institucional de formação de professores e não de Projeto Institucional de formação de professores, como é referido pela Resolução CNE/CP Nº 2/2015. Fizemos isso a partir da compreensão de que o processo de atuação dessa Resolução no contexto das instituições formadoras não produziu meros projetos de formação de professores, mas políticas orientadoras, porque “[...] atuações são sempre mais que apenas a implementação, elas reúnem dinâmicas contextuais, históricas e psicossociais em uma relação com os textos e os imperativos para produzir ação e atividades que são políticas” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 103).

6Seminário As Novas Diretrizes Curriculares para Formação Inicial e Continuada de Professores. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MwZniuY3uIs. Acesso em: 25 abr. 2021.

7O documento não chegou a ser apreciado pelo Consun. Disponível em: https://sinsc.furg.br/site/arquivos/download/744. Acesso em: 2 maio 2021.

8Live disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=apyxU-P2muI&ab_channel=FURG. Acesso em: 16 out. 2021.

9O portal é um espaço de socialização de saberes e de valorização do professor como profissão, que visa reunir pessoas e facilitar a comunicação entre os cursos de licenciatura da FURG, estudantes, comunidade escolar e sociedade.

10Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cDOvUDSoZnE&ab_channel=FURG. Acesso em: 14 nov. 2021.

Recebido: 26 de Novembro de 2022; Revisado: 25 de Maio de 2023; Aceito: 28 de Maio de 2023; Publicado: 14 de Junho de 2023

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