Introdução
Este estudo fundamentou-se na perspectiva teórica da história cultural, utilizando-se dos conceitos de cultura escolar e cultura material escolar. Tomando por base tais pressupostos, a pesquisa sobre o Grupo Escolar Senador Correia e o Ginásio Regente Feijó na cidade de Ponta Grossa, Paraná (PR), teve como objetivo evidenciar elementos de apropriações no que se refere ao processo de formação de uma cultura escolar, ao verificar questões atinentes à internalização de ações no cotidiano escolar bem como à sistematização e à normatização do ambiente escolar. Para Chartier (2002, p. 26), a noção de apropriação pode ser entendida como uma “[...] história social das interpretações, remetidas para suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem”. Daí a necessidade de se reconhecer as “[...] práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação” (CHARTIER 2002, p. 28).
Nesse sentido, a cultura escolar como categoria de análise e campo de investigação na História da Educação perpassa pela compreensão dos diferentes contextos de produção e de recepção desse conceito no Brasil e do seu constante “refinamento metodológico e analítico” (FARIA FILHO et al., 2004, p. 154). Certeau (2011, p. 46), ao se referir à operação historiográfica, atenta para a questão da “particularidade do lugar de onde falo” enquanto “marca indelével” do “fazer história”: “Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa estendê-las, capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que realizo uma investigação”. A busca pelo método parte também do princípio do que Certeau (2011, p. 15) indica quando assinala que, para compreender, é preciso “[...] encontrar na informação histórica o que a tornará pensável”, permitindo “[...] levantar uma série de indícios até então inobservados”.
Este artigo, portanto, é resultado de investigações realizadas no âmbito da História da Educação1 e, mais especificamente, sobre o contexto de criação de duas instituições referenciais para a educação pública em Ponta Grossa. Em um primeiro momento, aborda-se sobre o processo histórico de formação de uma cultura escolar no Grupo Escolar Senador Correia, no período de 1912 a 1930. O contexto foi delimitado a partir da análise da documentação consultada, notadamente os livros de atas desde 1912, registro da primeira ata, até 1930, justamente por ser nessa periodização que se encontraram detalhes mais pormenorizados e que permitiram o estudo em questão. Por meio de pesquisa documental, verificaram-se especificidades que permeavam o cotidiano escolar como práticas, normas, regras e vivências escolares da primeira instituição de educação pública em Ponta Grossa. A criação do Grupo Escolar Senador Correia insere-se no período da Primeira República (1889-1930), em um contexto educacional que se almejava, politicamente, um redimensionamento para a instrução pública por meio da idealização de grupos escolares enquanto modelos para a escola primária no Brasil (SOLOMON, 2017).
Em um segundo momento, discorre-se sobre a educação secundária em Ponta Grossa, o Ginásio Regente Feijó, primeiro no interior do Paraná. A criação do Ginásio foi em 1927, mas a pesquisa documental teve como foco de análise o recorte temporal de 1933 a 1945, período que diz respeito ao Estado Novo no Brasil (1937-1945), porém a delimitação temporal tomou em conta, notadamente, os registros encontrados nas fontes consultadas do arquivo escolar da instituição pesquisada. Dentre tais documentos, foram utilizados, para o presente artigo, os relatórios de ensino e o regimento escolar, os quais permitiram também abordar questões substancias sobre a cultura material escolar e o alcance dessa materialidade nas ações dos sujeitos envolvidos. Foi possível verificar algumas das apropriações da legislação educacional do período, elementos que delinearam aspectos que envolveram ações bem como expressões modernizantes ao ensino secundário no Brasil na primeira metade do século XX (MARTINS, 2022).
Importante frisar que a investigação somente foi possível porque foram encontrados os documentos escolares para tal fim. De acordo com o que adverte Vidal (2017, p. 260), um dos maiores obstáculos nas pesquisas que dizem respeito à cultura material escolar reside nas “[...] mudanças administrativas ou de endereço, as alterações pedagógicas e de finalidades da escola [que] promovem o descarte de tudo ou quase tudo que ficou em desuso”, acarretando o “[...] desaparecimento de parte significativa da cultura material escolar”.
Tratar de duas instituições públicas de ensino na primeira metade do século XX requer, fundamentalmente, a análise de registros escolares enquanto vestígios da produção documental escolar. São vestígios reveladores de detalhes microscópicos que permeavam o ambiente escolar e que, por conseguinte, se referem à cultural material escolar, perpassando pelo que norteava a organização e o funcionamento escolar, o cotidiano e as suas interlocuções com as esferas políticas condizentes. Portanto, observar uma instituição escolar, materialmente e em específico, enquanto um espaço múltiplo, histórico e sociocultural, pautada em relações sociais, ações pedagógicas, normatizações e resistências, significa, similarmente, adentrar as questões referentes à cultura escolar, às formas de sociabilidades e às estruturas hierárquicas de poder. A partir da percepção sobre a materialidade das fontes, o passado pode ser revisitado, tendo em conta novas formulações de problemáticas na consulta às fontes escolares enquanto evidências históricas. As discussões concernentes a esse campo da História da Educação podem ser também associadas à “[...] concepção de patrimônio histórico-educativo, da intervenção museológica e da reconstrução etnográfica da memória educativa” (VIDAL, 2017, p. 259).
Dentre o universo entre cultura escolar e cultura material escolar, essencial referenciar-se no que Benito (2017, p. 122) define por um conjunto de três culturas: cultura empírica, referindo-se a uma “[...] perspectiva etno-histórica, por meio de registros hoje guardados pelos museus e centros de memória da educação”; a cultura acadêmica e científica, que se “[...] objetiva nos textos científicos produzidos pela comunidade intelectual que cultiva esse setor do conhecimento, cada vez mais em expansão” (BENITO, 2017, p. 123); e a cultura política ou normativa, que se “[...] materializa nos textos e ações dos planejadores e gestores da educação formal e dos agentes sociais, que intervêm em sua dinamização” (BENITO, 2017, p. 123), evidenciando, dentre outras questões sobre as dimensões da cultura escolar, os cenários e os espaços, os indicadores de controle e avaliação, as “[...] interações entre o sistema político de educação e os diversos contextos sociais com os quais habitualmente se relaciona [...]” (BENITO, 2017, p. 124). Embora sejam culturas que acabam por se entrelaçar, foi especialmente a partir da última, com foco para as normativas que sustentam a organização educacional, que se buscou aprofundar no presente artigo.
Instrução pública em Ponta Grossa: Senador Correia, o primeiro grupo escolar
Na Primeira República (1889-1930), desde as primeiras edificações dos grupos escolares no final do século XIX, é possível apontar intencionalidades do Estado republicano em redimensionar objetivos para a instrução pública. É nessa direção que a literatura educacional aponta para a criação de grupos escolares e sua implementação enquanto modelos para a escola primária no Brasil (SOLOMON; WEBER, 2023). No Paraná, Curitiba e algumas cidades do interior do estado, receberiam iniciativas para a instalação de grupos escolares a partir dos primeiros anos do século XX, dentre as quais Ponta Grossa, que se destacava no cenário político e econômico regional.
Em um contexto de efervescência cultural e de fomento econômico da produção da erva-mate, as primeiras décadas do século XX são representativas do processo de urbanização de cidades do chamado Paraná Tradicional (MACHADO, 1963), como Curitiba e Ponta Grossa, em que se evidenciavam elementos de crescimento populacional, socioeconômico e de movimentos culturais significativos, dentre os quais o simbolismo e o paranismo, que impulsionaram “[...] produções acadêmicas, literárias e artísticas do Paraná” bem como a eleição de “[...] elementos simbólicos na definição de uma identidade regional” (WEBER, 2009, p. 14) a partir de um discurso autorizado de formação social e histórica paranaense. É nesse cenário de urbanização e de constantes debates intelectuais que se criou o primeiro grupo escolar na cidade de Ponta Grossa, em meio a um contexto nacional e regional de implementações educacionais que pressupunham mudanças de caráter inovador e de modernização educacional.
No Brasil, a escola graduada de ensino primário, compreendendo múltiplas salas de aula, várias classes de alunos e um professor para cada uma delas apareceu, pela primeira vez no ensino público, no estado de São Paulo, na década de 1890. O primeiro edifício projetado para abrigar uma escola primária na capital do Estado foi o da Escola Modelo da Luz, mais tarde denominada Grupo Escolar Prudente de Moraes, situado na Avenida Tiradentes. O projeto era de autoria de Ramos de Azevedo e a construção iniciou-se em 1893. A pujança da economia cafeeira e os incipientes processos de industrialização e urbanização permitiram aos reformadores da instrução pública vislumbrar as escolas graduadas como um melhoramento e um fator de modernização cultural e educacional. (BUFFA; PINTO, 2002, p. 33-34).
A construção de grupos escolares diz respeito à implementação de um sistema público de ensino primário, desde fins do século XIX, a exemplo das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, então capital do Brasil, e, posteriormente, nas cidades mais representativas dos demais estados brasileiros. A finalidade do Estado republicano era intensificar a orientação acerca da construção de espaços apropriados e em consonância com os princípios sanitaristas e higiênicos daquele contexto.
Logo nos primeiros anos do século XX, o sucesso da experiência paulista fez com que vários outros Estados como Paraná, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, adotassem também o modelo do grupo escolar como aquele que deveria ordenar o ensino primário, exemplo este seguido por Santa Catarina e Paraíba, na década de 1910. (BENCOSTTA, 2011, p. 70).
No Paraná, o primeiro grupo escolar denominado Dr. Xavier da Silva, foi inaugurado em 19 de dezembro de 1903, justamente em um dia comemorativo da emancipação política do Paraná (19/121853) e sob um dos quatro mandatos do governador Francisco Xavier da Silva, do Partido Republicano Paranaense. Fundamental notar que a experiência modelar dos grupos escolares acabava por estabelecer escalas de oficialidade e alavancava uma determinada sistematização de normas e práticas escolares, ainda que problemas de recursos orçamentários persistissem, seja pela falta de materiais pedagógicos, seja por índices elevados de infrequencia escolar referentes ao contexto da primeira metade do século XX, enfim, elementos recorrentemente apontados na literatura da História da Educação no Brasil.
Faria Filho e Vidal (2000) apontam que pesquisar sobre os tempos e os espaços escolares é atentar-se para a relevância do estudo histórico na própria estruturação do sistema público. A constituição das séries, das classes, da ordenação do tempo, a organização da sala de aula, o uso de carteiras escolares enfileiradas, de lousa, de materiais pedagógicos, a inserção e a ordenação do tempo do recreio, a regularização de exames, o ensino simultâneo, a divisão de alunos e alunas por sexo e idade, a sistematização dos conteúdos das disciplinas, enfim, a uniformização da rotina escolar, são elementos constitutivos dos direcionamentos do Estado referentes à instrução pública primária na Primeira República. É nesse contexto educacional que ocorreu a instalação do primeiro grupo escolar em Ponta Grossa, o Grupo Escolar n.º 2 ou Escola Promíscua, que, posteriormente, receberia a denominação de Grupo Escolar Senador Correia, registrada, no termo de abertura de atas no dia 18 de maio de 1912 e assinada pela primeira diretora, a Professora Luzia Fernandes2, conforme se pode visualizar materialmente pela grafia do fragmento de ata na Figura 1 a seguir.
Naquele ano de inauguração, ainda de acordo com Luporini (1987), foi ofertado ensino primário a 127 crianças. Um ano após, a questão do espaço predial foi registrada em ata, alegando-se não ser suficiente para comportar o número de alunos matriculados. Atentava-se, ainda, para as más condições do mobiliário escolar, embora por ocasião da visita da inspetoria, fossem registrados “asseio e ordem” (SENADOR CORREIA, 1913, p. 18).
O Grupo Escolar Senador Correia viria a suprir a necessidade de escolarização de um percentual da população local e regional, evidenciando uma projeção do Estado republicano para além das capitais, porém, é importante frisar, em cidades do interior que fossem as mais representativas econômica e politicamente. Contexto educacional que, de acordo com Buffa e Pinto (2002, p. 18): “Impossível não distinguir com clareza, na paisagem da cidade, um edifício imponente onde funcionava um grupo escolar construído nos primeiros tempos do regime republicano”. Para Bencostta (2011), a construção dos edifícios deveria proporcionar funcionalidade na organização administrativo-pedagógica. Seriam necessários, portanto, mobiliários e materiais pedagógicos apropriados, condizentes com os novos métodos de ensino e com a faixa etária dos alunos. Nesse sentido, pode-se pressupor que a prerrogativa das inspetorias seria também averiguar a materialização de tais objetivos.
A própria arquitetura dos grupos escolares expressava a centralidade da educação na pauta governamental, que se configurava tanto geograficamente, sob o ponto de vista da localização, ou seja, os grupos escolares eram geralmente construídos em regiões privilegiadas, quanto estrategicamente, no que se refere às exigências prediais de caráter higiênico, conforme critérios e concepções sanitaristas da primeira metade do século XX. Bencostta e Braga (2011) atentam também para a importância de se compreender a arquitetura escolar enquanto espaço de expressão, de um tipo singular de linguagem que absorve seus interlocutores.
Por intermédio da Lei Nº 1.201, de 28 de março de 1912, foi nomeado Grupo nº 2; e pelo Decreto Nº 324, de 13 de abril de 1912, foi denominada Casa Escolar Senador Correia, localizada na Praça Roosevelt (LUPORINI, 1987). O grupo escolar nasceu da fusão de duas escolas isoladas (LUPORINI, 1987). Esse grupo escolar manteve a mesma arquitetura até os primeiros anos da década de 1960 (SOLOMON, 2020); no entanto, a extinção dos grupos escolares ocorreu de forma paulatina nos primeiros anos da década de 1970, tendo em conta a Lei Nº 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971). Luporini (1987) assinala alguns indicativos da representatividade do lugar escolhido para se construir a então Casa Escolar Senador Correia, em 1912, tendo em vista que, nos seus arredores, habitavam famílias de prestígio político e econômico local, em sua grande maioria “[...] casas comerciais dedicadas às atividades de atacado e varejo, de secos e molhados” e “[...] fazendeiros que passavam a maior parte do ano em suas fazendas, abrindo suas residências na cidade apenas para comemorar as festas de Nossa Senhora de Sant’Ana e o Natal” (LUPORINI, 1987, p. 43, 47). Interessante também salientar que o endereço ainda hoje se refere à Praça Roosevelt; no entanto, “[...] o local que anteriormente recebia a denominação de Largo da Cadeia, depois Praça Municipal, nunca teve o aspecto de uma praça no sentido próprio da palavra”, tendo sido também, anteriormente, mercado municipal, em 1897 (LUPORINI, 1987, p. 42-43).
Pode-se dizer que a construção dos edifícios escolares seguia, ao menos parcialmente, os modelos propostos pelo governo republicano, que, segundo Faria Filho e Vidal (2000):
Monumentais, os grupos escolares, na sua maioria, eram construídos a partir de plantas-tipo em função do número de alunos, em geral 4, 8 ou 10 classes, em um ou dois pavimentos, com nichos previstos para biblioteca escolar, museu escolar, sala de professores e administração. Edificados simetricamente em torno de um pátio central ofereciam espaços distintos para o ensino de meninos e de meninas. (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 25).
Faria Filho e Vidal (2000) apontam, ainda, para a questão das barreiras socioeconômicas e para os preceitos higiênicos no que se refere aos conteúdos, aos espaços e à sistematização do tempo escolar. O eixo articulador dos grupos escolares “[...] atravessou o século XX, constituindo-se em referência básica para a organização seriada das classes, para a utilização racionalizada do tempo e dos espaços e para o controle sistemático do trabalho das professoras, dentre outros aspectos” (FARIA FILHO; VIDAL, 2000, p. 32).
Quanto à estrutura física da Casa Escolar Senador Correia, havia cinco salas de aula, um gabinete para o diretor e uma pequena sala que era utilizada para outras atividades do cotidiano escolar. A separação entre meninos e meninas era feita por turnos da manhã e da tarde, respectivamente. Os sanitários eram separados do prédio, os quais ficavam próximos aos muros, nos fundos da escola. A denominação de “Senador Correia” data de 1912, embora somente a partir de 1917 conste nos documentos oficiais (LUPORINI, 1987).
Os registros nas atas consultadas referentes ao período de 1912 a 1930, conforme apontado na introdução, possibilitaram a análise dos discursos institucionais expressos em normativas que proporcionavam sustento à organização educacional (BENITO, 2017). Assim, pela consulta às fontes, verificaram-se questões sobre o trabalho de inspeção em consonância com o trabalho da direção. Dentre os pontos que podem ser destacados como evidências do estudo, saliente-se as implicações referentes ao controle do tempo e da ordem que a nova organização requeria.
Um aspecto que foi recorrentemente registrado na maior parte dos avisos do diretor aos professores e alunos diz respeito ao apelo para a disciplina e para o silêncio no ambiente escolar: “Appéllo para o auxilio extraordinariamente efficaz e indispensavel das senhoras professoras no sentido de se manter disciplina entre os discentes dos diversos cursos deste Grupo”. 3 Desse modo, o objetivo era “[...] introduzir no espirito da creança a comprehensão de seus deveres escolares”, no sentido mesmo de “[...] refrear os seus instinctos [...]”, pois era necessário alcançar “[...] o todo, homogeneo, disciplinado, modelar” (SENADOR CORREIA, 1928a, p. 57).
Pode-se depreender, por conseguinte, que o controle do tempo das atividades escolares, assim como o cumprimento devido aos horários propostos nessa nova organização escolar era fundamental para a concretização idealizada. O trabalho do professor4, na sua tarefa de fiscalização, deveria se constituir pautado na rigidez que se pressupunha ao ambiente escolar. De acordo com Julia (2001, p. 10-11): “Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação”.
É justamente nessa direção que, desde o Aviso de n.º 1, primava-se pelo controle do tempo, dentro e fora da sala de aula, conforme previa o regimento interno: “De accordo com o Art. nº 3 do Regimento Interno todas as professoras devem estar no Grupo 15 minutos antes do inicio do trabalho sob penna de perderem a gratificação diária” (SENADOR CORREIA, 1926, p. 49). E ainda: “Todo o tempo em que os alumnos permanecerem no pateo é considerado recreio, e portanto, necessita de fiscalisação das professoras para corrigirem os brinquedos e o modo de tratar dos collegas. Fiscalisar, não é formar grupo de prof. aqui e acolá e palestrar [...]” (SENADOR CORREIA, 1926, p. 49).
No que se refere aos deveres do professor dos grupos escolares, ressalte-se a necessidade de exaltação do sentimento de civismo, diretamente relacionado à “competência, dedicação e idoneidade profissional”, já que, na incumbência do professor, estaria a missão de “[...] trazer sempre viva no espirito da creança, a idéa da Patria [...] como também, para exercício diariamente da voz”, a exemplo do canto em coro do hino “[...] no inicio e no final de cada periodo escolar” (SENADOR CORREIA, 1928b, p. 53). E a direção escolar deveria zelar pelo “cumprimento fiel destas instrucções sem qualquer obstáculo” (SENADOR CORREIA, 1928b, p. 53). De acordo com Bencostta (2011, p 75-76), “[...] a inculcação de valores patrióticos nas mentes das crianças, que supostamente garantiria a construção de uma nação civilizada, pode ser compreendido através de determinadas práticas escolares”, dentre as quais a incorporação do programa de educação moral e cívica e os desfiles patrióticos que impingiam sentimentos cívicos na comunidade escolar frente à vida social.
Do professor exigia-se essencialmente ordem e pontualidade, inclusive sob pena de advertência do não recebimento de gratificações. Quanto ao aluno, punia-se pela perda do horário do recreio e também pela proibição de usufruírem do espaço da sala de aula durante esse tempo. Tais alternativas eram recorrentes, conforme o Aviso de n.º 2: “Scientifico-vos que de hoje em diante fica por esta Directoria, prohibido a permanencia de alumnos na sala de aula durante o tempo de recreio, quer estejam de castigo ou terminando trabalhos” (SENADOR CORREIA, 1925, p. 46). Ou, ainda, “[...] é preciso cortar, correrias e gritarias dos alumnos no pateo sob pena das classes ficarem sem recreio” (SENADOR CORREIA, 1925, p. 46).
Quanto às formas de organização do espaço e do tempo escolar, perceberam-se alguns elementos que permeavam as práticas escolares, especialmente a questão da disciplina e da hierarquização, demonstrativas das relações de poder entre as figuras do Inspetor Geral de Ensino, Inspetor Escolar, Diretor, Professor e Aluno. Pode-se considerar que os sujeitos que faziam parte daquele espaço escolar foram adquirindo posturas e comportamentos condizentes com a nova organização e sistematização do ensino. Exemplo disso foram os registros de enaltecimento do professor que se comprometia com as regras e os “feitos escolares”. Dessa maneira, dever-se-ia cumprir com a “missão” cívica tendo como argumento o “saber” em contraposição às “trevas da ignorância”, conforme sinalizava o teor da ata do dia 21 de setembro de 1921:
[...] é a missão de professora que em sua escola manifesta e insista nos espíritos de seus alumnos os santos princípios do saber, arrancando das trevas da ignorância os nossos futuros homens, melhor é o dever de tornar esses ensinamentos quando relacionados com o Paiz o mais entusiástico eloquentes patrioticos possiveis, pois que ignorou que do sentimento infantil jamais se apagaram esses factos, é ignorar a propria infancia e querer apagar de memoria esses feitos que tanto prazer nos causam e que sublime recordação deixou em nossa alma.
Basta que lembremos de nossos primeiro[s] dia de escola para que a voz da consciência determine, ordene, hoje, o cumprimento desses deveres. Infeliz daquele que, quando criança não encontram um mestre que lhe fizesse assinar esse chamar de sentimento pátrio no intimo da consciência, porque então, a fora, depois de ter passado pela infância silenciosa, não pode avaliar o valor dos feitos escolares. (SENADOR CORREIA, 1921, p. 40-41).
Para tais objetivos, ainda que as resistências possam ser notadas pelos constantes avisos de punições registradas, havia a necessidade da rigidez no cumprimento das normativas, seja pela imposição do silêncio e da fiscalização dos horários e metas, seja pelos enaltecimentos ou pelas avaliações por distinções. Elementos que formavam o composto essencial para a formação de uma cultura escolar nos grupos escolares, conforme se demonstrou no Grupo Escolar Senador Correia. Se cultura escolar é “[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar [...]”, é importante ressaltar que “[...] cultura escolar não pode ser estudada sem a análise precisa das relações conflituosas ou pacíficas que ela mantém” (JULIA, 2001, p. 10), e que estas aconteciam permeadas por um processo de disciplinarização de sujeitos e de preceitos modernizantes para a educação nacional no contexto da primeira metade do século XX.
Instrução secundária em Ponta Grossa: Ginásio Regente Feijó, o primeiro no interior do Paraná
Dentre as instituições precursoras do ensino secundário no Brasil, citem-se o Colégio Pedro II (1837) e o Colégio Estadual do Paraná (1846), as quais se constituíram em referências para o estudo da história do Ginásio Regente Feijó. Tais instituições, em seus contextos de criação, traziam consigo características arquitetônicas e instrumentalizações de ensino específicas para esse nível de ensino, produzindo e propagando noções modelares de modernidade educacional. Segundo Dallabrida (2009), mesmo com o tom enciclopedista atribuído ao secundário desde o fim do Império, e até mesmo após a Reforma Francisco Campos, essa nova organização de ensino com maior enfoque aos estudos científicos estabeleceu novas metodologias e novas aplicações aos procedimentos didático-pedagógicos. Especialmente a partir da fundação do Colégio Pedro II, em 1837, imprimia-se uma referência de ensino secundário à nação brasileira. Importante lembrar que um ano após se fundava o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, e, conforme assinala Bittencourt (2004):
A presença do poder político no IHGB foi constante durante todo o império, tendo D. Pedro II participado assiduamente de suas reuniões. Não é, também, por mero acaso que encontramos na lista do IHGB vários nomes de professores do Colégio Pedro II e muitos deles foram os responsáveis pelas mais conhecidas e divulgadas obras didáticas destinadas ao curso secundário. (BITTENCOURT, 2004, p. 481).
O contexto tem a marca da Primeira Conferência Nacional de Educação, promovida pela Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1927. A busca pelo esforço em inserir a modernização educacional em contexto nacional foi pauta da Conferência, e o fato de Curitiba ter sido sede para o evento, nas palavras de Vieira (2001, p. 59), “[...] significava estar à frente daquele que era considerado como o principal problema nacional, ou seja: a causa da educação”.
No âmbito paranaense, o Colégio Estadual do Paraná foi a primeira instituição de ensino destinada à instrução secundária, cuja inauguração ocorreu no ano de 1846 e, no decorrer de sua história, algumas denominações lhe foram atribuídas, como Liceu de Curitiba, Liceu Paranaense, Instituto Paranaense, Ginásio Paranaense e Colégio Estadual do Paraná. A instituição foi criada em moldes que exprimiam ensejos de modernidade, que podem ser constatados tanto por suas características arquitetônicas quanto por seus instrumentos educacionais tidos como vanguarda para a época.
A necessidade de implantação de uma instituição pública de ensino secundário no interior do Paraná pautava-se pela demanda de alunos provenientes de diversas localidades do próprio estado. É nesse contexto que o Ginásio Regente Feijó foi fundado em 1927, na cidade de Ponta Grossa. Organizado e distribuído em cinco séries, portanto com cinco anos de duração, atendia à legislação federal de ensino. Mensalmente, eram produzidos relatórios de ensino, contendo informações, como listagens com nomes dos alunos, turmas, frequências, notas de provas e exames, notas dos exames de arguição, nomes de componentes de bancas examinadoras, relações por séries, disciplinas, professores e conteúdos ministrados. Os documentos escolares eram depositários de registros de diversas informações, inclusive das inspeções de ensino, aspectos referentes às normativas da sua organização educacional (BENITO, 2017). A Figura 3, que segue, mostra a primeira sede do Ginásio Regente Feijó.
Como exemplo, importante assinalar as listagens dos exames de admissão do Ginásio Regente Feijó que apresentavam número do certificado do exame prestado, nome do candidato, filiação, naturalidade, data de nascimento e data de aprovação, conforme determinava o Decreto Nº 19.890, de 18 de abril de 1931, que instituiu a obrigatoriedade dos exames de admissão aos estabelecimentos de ensino secundário do país:
Art. 18 - O candidato à matrícula na 1ª série do estabelecimento de ensino secundário prestará exame de admissão na segunda quinzena de fevereiro.
§ 1º A inscrição neste exame será feita de 1 a 15 do referido mês, mediante a requerimento, firmado pelo candidato ou seu representante legal.
§ 2º Constarão do requerimento a idade, filiação, naturalidade e residência do candidato.
§ 3º O requerimento virá acompanhado do atestado de vacinação anti-variólica recente e do recibo de pagamento da taxa de inscrição. (BRASIL, 1931, n.p.).
Registrava-se, de forma detalhada, a nota alcançada em cada disciplina do exame, sendo: Português e Matemática, que contavam com a prova escrita e oral; e História, Geografia e Ciências Naturais, apenas com prova escrita. É possível perceber também a autenticidade das fontes ao observar o rodapé das páginas, onde constava o carimbo da instituição e os selos do Ministério da Educação e Saúde Pública, a saber: “Thesouro Nacional’ e Estado do Paraná”. Em relação às taxas de pagamento dos exames de admissão, foi possível constatar em quase todas as informações das listagens registradas a menção ao nome, ao ano e ao valor pago por cada candidato.
Pode-se dizer que a partir da criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, sob o ministério de Francisco Campos (1930-1932), legislou-se com a intenção de alterar e instituir graus e modalidades de ensino. O Decreto Nº 19.890/1931 atribuiu ao ensino secundário um grau de maior organicidade ao currículo seriado, bem como a frequência obrigatória e a exigência de diploma de conclusão do ensino secundário para o ingresso ao ensino superior. O referido Decreto instituiu a subdivisão do secundário em ciclos: fundamental, com duração de cinco anos, e o complementar, com dois anos (BRASIL, 1931). O alcance dessas ações políticas no âmbito da extensão nacional visava uma padronização na organização do ensino secundário no Brasil. É nesse contexto educacional que o ensino secundário oficial teria como finalidade paradigmática o ensino ministrado no Colégio Pedro II, a ser seguido em estabelecimentos sob regime de inspeção federal. É o que se pode notar pela documentação consultada no Ginásio Regente Feijó, notadamente pela seguinte frase de cabeçalho oficial em quase todas as páginas dos relatórios de ensino consultados: “Equiparado ao Pedro II por Decreto n. 21.523 de 13 de junho de 1932” (Figura 4), Decreto este que concedia ao Ginásio Regente Feijó, de Ponta Grossa, as prerrogativas de estabelecimento equiparado de ensino secundário.
Em 1932, portanto, consolidava-se, também, a própria organização do ensino secundário pela divisão em cursos seriados fundamental e complementar, por meio do Decreto Nº 21.241, de 4 de abril de 1932 (BRASIL, 1932). O curso fundamental, com duração de cinco anos, distribuía-se da seguinte forma:
1ª série: Português - Francês - História da Civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais - Desenho - Música (canto orfeônico). 2ª série: Português - Francês - Inglês - História da Civilização - Geografia - Matemática - Ciências físicas e naturais - Desenho - Música (canto orfeônico). 3ª série: Português - Francês - Inglês - História da Civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - História Natural - Desenho - Música (canto orfeônico). 4ª série: Português - Francês - Inglês - Latim - Alemão (facultativo) - História da Civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - Historia Natural - Desenho. 5ª série: Português - Latim - Alemão (facultativo) - História da Civilização - Geografia - Matemática - Física - Química - Historia Natural - Desenho. (BRASIL, 1932, n.p.).
E o curso complementar:
Art. 4º O curso complementar obrigatório para os candidatos à matrícula em determinados institutos de ensino superior, será feito em dois anos de estudo intensivo, com exercícios e trabalhos práticos individuais, e compreenderá as seguintes disciplinas: Alemão ou Inglês, Latim, Literatura, Geografia, Geofísica e Cosmografia, História da Civilização, Matemática, Física, Química, História Natural, Biologia Geral, Higiene, Psicologia e Lógica, Sociologia, Noções de Economia e Estatística, História da Filosofia e Desenho. (BRASIL, 1932, n.p.).
Segundo o Decreto supracitado, no requerimento para o exame de admissão, deveria constar: idade, filiação, naturalidade e residência do candidato; acompanhado do atestado de vacinação antivariólica recente e do recibo do pagamento da taxa de inscrição. As regras para as provas eram descritas no Art. 24: “O exame de admissão constará de provas escritas, uma de português, (redação e ditado) e outras de aritmética (cálculo elementar), e de provas orais sobre elementos dessas disciplinas e mais sobre rudimentos de Geografia, História do Brasil e Ciências Naturais” (BRASIL, 1932, n.p.).
Outro documento fundamental para a pesquisa foi a Regimento Interno do Ginásio Regente Feijó, datado de 1937, datilografado e acervado, conforme se pode visualizar no fragmento da Figura 5 a seguir.
O Regimento era composto por 30 páginas e 22 capítulos que retratam a organização interna do Ginásio, a saber: horários e programas; admissão e matrícula de alunos; aulas e frequência; corpo docente; comissões; penalidades passíveis ao corpo docente; licenças e férias; penalidades e funções cabíveis aos alunos e funcionários administrativos; diretor e vice-diretor; inspetores; secretários; chefes de disciplinas; bibliotecário; porteiro; taxas e disposições gerais. Era, assim, um documento que regia as atividades administrativas e pedagógicas, demonstrativo de aspectos burocráticos e organizacionais, assim como de condutas de comportamento, e que vigorava em consonância com o já mencionado Decreto Nº 21.241/1932, que organizava o ensino secundário no país. O Regimento prescrevia sobre deveres burocráticos e normas a serem seguidas pelos funcionários, professores e alunos, como exemplificado no seu sexto capítulo, em que se relatam as formas de contratação de professores (catedráticos e auxiliares de ensino) e funcionários, por meio de concurso público (GINÁSIO REGENTE FEIJÓ, 1937, p. 5). Importante frisar que o professor que não cumprisse suas funções, ou não atingisse as expectativas e/ou resultados, sofreria penalidades, como o desconto na folha de pagamento e advertências feitas pelo diretor, ou suspensão de oito a 30 dias do exercício de suas funções.
Analisar as instituições de ensino secundário no Paraná na primeira metade do século XX é também perceber a conjuntura em termos nacionais. O Paraná contava com nove estabelecimentos de ensino secundário, todos sob regime de inspeção. Até o final de 1934, a ação da Inspetoria Geral do Ensino Secundário, no Paraná, estendia-se pelos seguintes estabelecimentos: Ginásio Paranaense (Internato e Externato), Ginásio Iguassú, Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Colégio Novo Atheneu, Colégio Parthenon Paranaense, Colégio Progresso, Lyceu Rio Branco, Instituto Santa Maria e Ginásio Regente Feijó (MARTINS, 2006). Somente os Ginásios Paranaense e Regente Feijó eram de caráter público. O que também revela uma face da iniciativa particular para a manutenção de espaços educativos no âmbito paranaense.
Destaque-se o Ginásio Regente Feijó como uma instituição pública, equiparada ao Colégio Pedro II e que, naquele contexto, foi a única instituição de ensino ginasial de ensino no interior do Paraná. Ponta Grossa estava, portanto, inserida em um contexto de modernização de pressupostos norteadores da racionalização de recursos e da modernização educacional.
Considerações finais
A pesquisa sobre o Grupo Escolar Senador Correia e o Ginásio Regente Feijó foi elaborada, essencialmente, a partir da análise das fontes encontradas nos arquivos escolares de ambas as instituições. Também foi consultado o acervo do Museu Campos Gerais, pertencente à UEPG, como se pode notar pela fotografia da primeira sede do Ginásio Regente Feijó. No estudo, foi necessário, portanto, utilizar-se de algumas noções de arquivística referentes às práticas de conservação e organização documental, questões atinentes à própria cultura material escolar. Considera-se que os arquivos escolares são de extrema relevância para as pesquisas na área da História da Educação, pois parte-se do entendimento de que esses espaços não se constituem apenas como um conglomerado de informações que atendia às necessidades burocráticas da escola em seus contextos de produção, mas como um material fecundo que permite dimensionar ações da comunidade escolar inserida em seus universos conjunturais, a exemplo do presente estudo sobre o processo de criação das instituições em pauta.
Evidenciaram-se elementos de apropriações no que se refere à formação de uma cultura escolar em que se verificou a internalização do cotidiano escolar devidamente normatizado nas especificidades de interlocução hierárquica com as esferas políticas que compunham a educação pública local, regional e nacional nas primeiras décadas do século XX. É nesse contexto de sistematização da educação pública que ocorreu a criação do primeiro grupo escolar em Ponta Grossa, o Grupo Escolar Senador Correia, a exemplo de outras localidades representativas em território nacional. Também no que tange ao Ginásio Regente Feijó, evidenciaram-se normativas sobre os percursos que levaram à sua criação e à sua organização interna no decorrer dos primeiros anos de funcionamento, tendo como mote a relevância geopolítica de Ponta Grossa e as demandas econômicas e educacionais, de orientações modernizantes e permeadas, enfim, pelo processo de equiparação com instituições de maior visibilidade nacional e regional, notadamente o Colégio Pedro II e o Ginásio Paranaense.
Por fim, a presente pesquisa sobre elementos de escolarização primária e secundária em um contexto local e regional é significativa, fundamentalmente, para a apreensão da própria historicidade do acesso ao ensino primário e, posteriormente, secundário, pela via da educação pública. Entretanto, necessário ressaltar, era apenas para uma parcela da população brasileira, devidamente compatível com os padrões higiênicos, cívicos e socioeconômicos daquele contexto. Assim, é imprescindível compreender e, também, interrogar sobre o processo histórico da educação, ou seja, debruçar-se sobre o registro das evidências documentais, mas de forma a abrir horizontes para indicativos de lacunas historiográficas.