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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 11-Ago-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21374.064 

Artigos

Confluências na formação de educadores das áreas de Ciências da Natureza e Linguagens a partir da Tecnologia Social das tintas de terra

Confluences in the training of educators in the areas of Natural Sciences and Languages from the Social Technology of earth paint

Confluencias en la formación de educadores en las áreas de Ciencias de la Naturaleza y Lenguajes a partir de la Tecnología Social de pinturas de tierra

Anielli Fabiula Gavioli Lemes* 
http://orcid.org/0000-0002-0786-291X

Luiz Henrique Magnani** 
http://orcid.org/0000-0001-7128-9604

Maurício Teixeira Mendes*** 
http://orcid.org/0000-0001-9619-5903

Luciana Resende Allain**** 
http://orcid.org/0000-0002-7050-1164

*Doutora em Ensino de Ciências pela Universidade de São Paulo (USP). Docente do curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências, Matemática e Tecnologia (PPGECMaT). E-mail: <anielli.lemes@ufvjm.edu.br>.

**Bacharel e licenciado em Letras e mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), tendo realizado período sanduíche na University of Manitoba (UoM), Canadá. Professor e pesquisador da área de linguagens na UFVJM, atua no curso de Licenciatura em Educação do Campo da universidade desde 2015. E-mail: <luizhenrique.magnani@ufvjm.edu.br>.

***Doutorando em Estudos de Linguagens no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). Mestre em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Licenciado em Educação no Campo pela UFVJM com habilitação na área de Linguagens e Códigos. Integrante do projeto de pesquisa: INFORTEC - Núcleo de Pesquisa Linguagem e Tecnologia - CEFET-MG. E-mail: <mauricioedocampo@gmail.com>.

****Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), docente do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas e do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências, Matemática e Tecnologia da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). E-mail: <luciana.allain@ufvjm.edu.br>.


Resumo

O presente trabalho discute o potencial da Agroecologia como ponto de confluência e mobilização de diferentes saberes e práticas em contextos educativos diversos, em especial na formação inicial de professores. Para tanto, parte-se da análise de um acontecimento pedagógico envolvendo diferentes turmas de licenciatura em distintas habilitações: Ciências Biológicas e Educação do Campo em Ciências da Natureza e em Linguagens e Códigos. Do ponto de vista teórico, propõe-se o exercício de articular referenciais de distintas comunidades científicas, tendo por foco priorizar posturas dialógicas e ecológicas. As reflexões apresentadas almejam contribuir com um debate mais amplo sobre práticas pedagógicas emancipadoras, sustentáveis e cooperativistas, as quais são aqui compreendidas como importantes na formação cidadã tanto nas escolas do campo quanto nas da cidade.

Palavras-chave: Agroecologia; Ecologia de práticas; Educação dialógica

Abstract

This work discusses the Agroecology potential as a point of confluence and mobilization between different knowledge and practices in different educational contexts, especially in teaching degrees. For this, it starts from the analysis of a pedagogical event involving different undergraduate classes in different qualifications: Biological Sciences and Rural Education in Natural Sciences and in Languages and Codes. From a theoretical point of view, it is proposed the exercise of articulating references from different scientific communities, focusing on prioritizing dialogic and ecological postures. The reflections presented aim to contribute to a broader debate on emancipatory, sustainable and cooperative pedagogical practices, which are understood here as important in citizenship education both in rural and urban schools.

Keywords: Agroecology; Ecology of practices; Dialogic education

Resumen

El presente trabajo discute el potencial de la Agroecología como punto de confluencia y movilización de diferentes saberes y prácticas en diversos contextos educativos, en especial en la formación inicial de profesores. Para ello, se parte del análisis de un suceso pedagógico que involucra diversos grupos de licenciatura en distintas especialidades: Ciencias Biológicas y Educación de Campo en Ciencias de la Naturaleza y en Lenguajes y Códigos. Desde el punto de vista teórico, se propone el ejercicio de articular referentes de distintas comunidades científicas, teniendo como foco priorizar posturas dialógicas y ecológicas. Las reflexiones presentadas pretenden contribuir para un debate más amplio sobre prácticas pedagógicas emancipatorias, sostenibles y cooperativas, que son aquí comprendidas como importantes en la formación ciudadana, tanto en las escuelas de campo como urbanas.

Palabras clave: Agroecología; Ecologia de prácticas; Educación dialógica

Introdução

A inspiração para a sistematização de nossas discussões, reflexões e inquietações na forma de artigo acadêmico ocorreu a partir de uma oficina que abordou a tecnologia social das geotintas (ou tintas de terra), no contexto da permacultura, realizada pelos licenciandos de um curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, para os licenciandos da Licenciatura em Educação do Campo da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), no âmbito de um projeto de extensão alinhado a quatro unidades curriculares que descreveremos mais adiante. Utilizamos para o planejamento e a execução dessa atividade uma perspectiva dialógica, no sentido freireano, em que se parte do diálogo para uma educação como prática da liberdade (FREIRE, 2015). O desenvolvimento da oficina partiu do desejo de trazer, nas paredes da faculdade, uma expressão da identidade dos estudantes em forma de mural, trabalhando os conhecimentos tradicionais em torno da tinta de terra e expansão do entendimento do grafite ou mural como gênero discursivo, e ao mesmo tempo, contribuindo com a formação desses estudantes como professores.

Baseados na cosmopolítica de Stengers (2005) e no seu conceito de acontecimento cósmico (STENGERS, 2005, p. 194, tradução nossa), esta oficina será aqui tratada como um “acontecimento pedagógico”. Essa paráfrase mostra-se pertinente porque o acontecimento cósmico articula pontos em mundos divergentes sem pretender que esses mundos se integrem. A palavra “confluência”, que dá nome a este artigo, se baseia no mestre quilombola Antônio Bispo dos Santos, que traduz “confluência” como “a lei que rege a relação de convivência entre os elementos da natureza e nos ensina que nem tudo que se ajunta se mistura, ou seja, nada é igual” (SANTOS, 2015, p. 89). Ana Mumbuca (2018) transformou o termo “confluência” (SANTOS, 2015) no verbo confluenciar, para se referir ao movimento dos encontros entre práticas diversas que têm alguma coisa em comum.

Assim, argumentamos que a Agroecologia pode favorecer confluências significativas em uma prática educativa situada, contextualizada e preocupada com a formação crítica da comunidade envolvida. A partir disso, questionamos: quais os caminhos e as possibilidades para confluírem saberes aparentemente tão dissociados, como os da prática ancestral de se fazer tintas a partir da terra; das teorias do campo da linguagem e estudos linguísticos; dos conhecimentos das ciências “duras”, como a Físico-química e a Biologia; e da formação de professores?

Referenciais em diálogo

Articulamos, na presente seção, referenciais que sustentam as reflexões propostas no artigo. Iniciaremos por referenciais mais gerais, que dão suporte para escolhas pedagógicas e procedimentais mais amplas, e depois traremos nas outras seções aprofundamentos específicos, destacando possibilidades de confluências em diferentes áreas.

Primeiro, assumimos um “acontecimento cósmico” (STENGERS, 2005, p. 194, tradução nossa) - lido por nós na condição de um “acontecimento pedagógico”, manifestado a partir de uma sequência de práticas letradas em específico e observação reflexiva, com a noção de práxis de Freire (2003) - como ponto de partida para refletirmos sobre o potencial da Agroecologia na construção de uma educação que borre barreiras entre disciplinas, bem como entre práticas acadêmicas e não acadêmicas, incluindo seus saberes e modos de sistematização de conhecimentos. O acontecimento em questão foi somente possível pela confluência de diferentes práticas e posturas dialógicas ocorridas nos limites institucionais de diferentes unidades acadêmicas de diferentes licenciaturas da UFVJM. Tais posturas também confluem outras preocupações em comum, tais como a necessidade de se pensar em saberes, pensamentos, cosmologias de modo ecológico, contextualizado e crítico, por exemplo.

A respeito da “lei da confluência”, consideramos Faria (2020), quando explica ser algo que pode se relacionar parcialmente à proposição da ecologia das práticas (STENGERS, 2005). A autora considera a sabedoria dos praticantes das ciências como “ecológica”, uma vez que, “[...] assim como nenhuma espécie de ser vivo pode ser classificada como qualquer outra espécie, nenhuma prática pode ser definida como qualquer outra prática” (STENGERS, 2005, p. 184, tradução nossa). As práticas de conhecimento em cada disciplina nas ciências são singulares, assim como as vivências e os saberes de diferentes coletivos no planeta. Tentamos colocar essas ideias em confluência como parte de uma busca por um fazer acadêmico que cultive e valorize o que Code (2006) concebe como pensamento ecológico, em contraponto a uma monocultura epistemológica que se apresenta como dominante tanto na academia quanto na vida cotidiana.

Essas proposições também se alinham ao entendimento de que a razão indolente (SANTOS, 2008) que se torna hegemônica no pensamento científico europeu e se expande ao redor do globo se desenha como um “império cognitivo” (SANTOS, 2018) que invisibiliza vozes, vivências, saberes e trajetórias outras. Faria (2020) alerta que há áreas das ciências que buscam um conhecimento universal, uma espécie de equação única, capaz de explicar tudo (HARAWAY, 1995; STENGERS, 2005). Essa é uma “[...] universalidade a serviço de categorizações e ordenações hierárquicas, que decidem de maneira unilateral o que é ou não é conhecimento válido” (HARAWAY, 1995, p. 16-17). Diferentemente, a proposta cosmopolítica (STENGERS, 2005) conecta-se necessariamente ao que os praticantes fazem, impedindo que ela seja universalmente válida para todos(as), sem hierarquizações. Faria (2020) reforça que a cosmopolítica é uma proposição que resiste ao enquadramento de algo como “normal” ou “bom”, que complica deliberadamente a definição de um “mundo ideal”.

A cosmopolítica multiplica as possibilidades de colocar em questão o que estamos fazendo, de prestar atenção às tensões, nem sempre fáceis e tranquilas. Para Santos (2008, p. 27), “[...] a impossibilidade de captar a infinita diversidade epistemológica do mundo não nos dispensa de procurar conhecê-la, pelo contrário, exige-o”. Tal exigência seria o que o autor entenderia por uma “ecologia de saberes”, em que, segundo o autor, há uma necessidade da convivência de diferentes saberes que precisam ser construídos na junção de diferentes perspectivas, contextos e linguagens que permitam que a ecologia de saberes aconteça.

Tais ideias nos provocam a pensar na produção de conhecimento enquanto prática complexa, situada, culturalmente informada. Para refletir a respeito de tal condição, recorremos também a Freire (2015), para quem a construção do conhecimento ocorre de modo dialógico: os sujeitos, seres históricos necessariamente inacabados, educam-se entre si, mediatizados pelo mundo. Nessa perspectiva, o educador, embora permaneça tendo um papel diretivo, atua na mediação e na mobilização de tais conhecimentos a partir da realidade concreta e situada, valorizando, nesse processo, a articulação entre diferentes saberes - considerados científicos ou não. Localizar especificamente o discurso teórico como produção situada no tempo e no espaço (NUNES, 2005) chama a atenção inclusive para a especificidade cultural e histórica da construção de saberes ditos acadêmicos, ocorrência que aqui se materializa, por exemplo, em gênero e esfera de circulação (BAKHTIN, 2003) relativamente estáveis na sociedade ocidental contemporânea: um artigo científico.

Assim como o acontecimento pedagógico que nos inspirou, a própria construção deste artigo tem por intuito romper com algumas dicotomias e divergências já tão decantadas no fazer acadêmico que soam como naturais, óbvias ou inquestionáveis, mas que não fogem de ser construtos históricos e, portanto, dinâmicos e passíveis de disputa e transformação. Seriam alguns exemplos não só a busca por uma construção conjunta que permita colocar em confluência distintos modos de pensar a ciência e de validar algum conhecimento como científico - dadas as diferentes comunidades científicas (KUHN, 1997) das quais cada autor parte - além de campos semânticos distintos, chegando inclusive a colocar em negociação, entre autores a própria forma de construir um artigo acadêmico - algo que também varia a depender da área em que a pessoa se insere.

Confluências entre as Tecnologias Sociais da permacultura e Agroecologia na formação de professores

A permacultura propõe uma reorganização na vida dos seres humanos em relação com a natureza, tentando superar a dependência atual de recursos energéticos como petróleo, as monoculturas e a mineração predatória. Busca, portanto, superar a exploração capitalista tanto da natureza como dos seres humanos (FAGUNDES; COSTA, 2021). Sua proposta integra suprir necessidades básicas de moradia, alimentação e energia, combinando conhecimentos tradicionais com tecnologias e recursos contemporâneos próprios da sociedade ocidental urbana e industrializada, se sobrepondo aos princípios da Agroecologia, quando se contrapõe, por exemplo, ao modelo de agricultura convencional. Nesse contexto, a prática com tecnologias sociais - como a das geotintas, que integra as técnicas de manejo de bioconstrução que a permacultura utiliza - pode se configurar como um tema que suscite reflexões para a reorganização das formas de viver no campo, incluindo, por exemplo, a produção de alimentos integrados com moradia. Isso seria algo especialmente relevante no Vale do Jequitinhonha - nosso contexto de atuação - em que o conhecimento sobre a “caiada com tabatinga” (AMÂNCIO, 2018, p. 34) é comum entre as comunidades tradicionais.

A utilização de alternativas mais sustentáveis e economicamente viáveis na construção civil tem resgatado práticas milenares, como a bioconstrução e a pintura com tintas à base de terra, que têm forte apelo socioambiental, já que seus impactos no ambiente e na saúde humana são mínimos. Vital et al. (2013) destacam que as tintas à base de terra, ou geotintas, compreendem produtos, técnicas e metodologias que visam a transformação social e comunitária, desenvolvendo a criatividade e ocasionando a melhoria da autoestima e da renda dos envolvidos. Nesse sentido, as geotintas podem ser consideradas tecnologias sociais, pois, ao contrário das tecnologias convencionais - produzidas em larga escala, com objetivos comerciais -, as tecnologias sociais visam atender uma demanda da comunidade, sendo necessária uma adequação aos contextos sociais específicos (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004). Duque e Valadão (2017) explicam que a tecnologia social precisa estar diretamente relacionada ao cenário e aos sujeitos que irão usufruir dela; assim sendo, “[...] a tecnologia [medeia] e molda os grupos sociais que, por sua vez, [medeiam] e moldam a tecnologia” (FEENBERG, 2009, p. 115). Dessa forma, entendemos que a tecnologia não é neutra, pois quem a produz possui determinados interesses políticos, econômicos e sociais.

A expansão de tecnologias como a das tintas industrializadas e sua associação com o progresso e a praticidade trazem uma concepção pejorativa ao uso das tintas de terra, comumente associadas à pobreza e à escassez. Nesse sentido, faz-se ímpar valorar os saberes e fazeres das comunidades tradicionais. Mais baratas, mais sustentáveis e mais saudáveis que as opções industrializadas, as tintas de terra podem, por exemplo, gerar autonomia às comunidades que as utilizam, diminuindo a dependência das indústrias de construção civil, favorecendo também um resgate cultural, o fortalecimento identitário dessas comunidades e a retomada de outra relação ser humano-natureza.

A Agroecologia é uma ciência, prática e movimento que transcende o modo de produção agrícola, a qual parte de critérios ecológicos, sociais, culturais e políticos para criar, adaptar e selecionar técnicas e tecnologias de produção e reprodução da vida camponesa, refletindo também na mudança (ou retomada) da relação sociedade-natureza-trabalho (GUHUR; SILVA, 2021). Ela contribui para o debate e a construção de um novo projeto de sociedade, valorizando os conhecimentos tradicionais e, assim, dialoga com a utilização de recursos naturais locais para fabricação e uso, por exemplo, de tintas de terra, no intuito de integrar aos conhecimentos de produção, solos, moradia e bem viver (MARIANO et al., 2020), objetivos também relacionados à permacultura. Articulando aspectos ecológicos com socioculturais, a Agroecologia é uma área interdisciplinar, em que, nas práticas educativas a partir dela, pode possibilitar a desfragmentação do conhecimento, inspirando outras organizações e experiências curriculares nas escolas, principalmente, mas não só, as do campo (CALDART, 2017).

Trabalhar em torno da Agroecologia é formação para a emancipação (PINTO et al., 2016). Assim sendo, defendemos que a Agroecologia é uma possibilidade educativa significativa na formação inicial de professores não só de Ciências da Natureza, mas também das áreas de linguagens; e não só em cursos voltados à educação do campo, mas em qualquer licenciatura, pretendendo superar, inclusive, a dicotomia campo e cidade. Tal proposta pode fomentar, a partir de perspectivas inter e transdisciplinares, um entendimento mais amplo dos conhecimentos em torno da relação entre a sociedade-natureza, além de provocar reflexões a respeito das atuais relações sociais vigentes no contexto da civilização ocidental. A prática pedagógica de professores que tenham na sua formação a Agroecologia como pauta pode favorecer uma mudança nas formas de produzir, de ter acesso a alimentos saudáveis, acesso e permanência no território e a melhorias no modo de trabalho e de vida. Mais ainda, sendo a Agroecologia conteúdo teórico e experimentação prática, ela pode possibilitar ações e interações entre os sujeitos, na perspectiva da transformação social, colocando em articulação as comunidades acadêmicas e escolares, além da sociedade em geral.

Na formação inicial de professores, em uma perspectiva dialógica, na qual os formadores partem dos conhecimentos tradicionais do perfil cultural dos estudantes, dialogam-se com os conhecimentos científicos da área de linguagens e Ciências da Natureza, em uma perspectiva de se combater a “invasão cultural” (FREIRE, 2015, p. 205). A invasão cultural é uma modalidade das ações antidialógicas, praticada com o objetivo de apagar o conhecimento do oprimido para substituir por outro conhecimento, o do dominador/invasor/opressor. Isso porque se pretende que permaneça as estruturas sociais que favorecem os opressores. Em oposição a isso, a prática dialógica coloca os dois mundos (o do educador e o do educando) em mesma perspectiva, não considerando o estudante como uma tábula rasa, com a valorização e respeito aos seus conhecimentos em uma síntese cultural entre os atores. Nas palavras de Freire (2015, p. 120): “Nosso papel não é de falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa”. Nesse sentido, tentamos dialogar com os licenciandos, aproximando o conhecimento tradicional das suas comunidades, com o mundo do “tornar-se professor” (FLORES, 2010, p. 182), em sua complexidade e múltiplas dimensões: dos conhecimentos de especialidade científica a ensinar (Química, Biologia e Português), dos conhecimentos científicos educacionais que reflitam em suas práticas (dialogicidade) quando forem professores, para que, a partir da escola, haja possibilidade de transformação da sociedade no viés da Agroecologia.

Partimos, então, da ecologia dos saberes, mas com horizonte na transformação social por meio da Agroecologia, da valoração de outros saberes epistêmicos na universidade e para a formação de professores. É a partir desses saberes e com esses saberes, que propusemos trazer os conhecimentos científicos para proporcionar a construção de instrumentos para a transformação da relação sociedade-natureza. Assim, como professores formadores, na “corporeificação das palavras para o exemplo” (FREIRE, 2003, p. 36), que proporcionamos esse acontecimento pedagógico para produzir condições dos licenciandos aprenderem a ser professores nessa perspectiva dialógica e contra as assimetrias estabelecidas. Tentar, assim, promover a formação de educadores a partir do exemplo e respeito dos saberes dos educandos por meio do diálogo.

Agroecologia, linguagem, letramento

Ainda que já respaldada por uma literatura robusta, consideramos que a educação do campo, seus procedimentos, metas e mesmo utopias ainda estão em uma fase de intensa construção. A partir de Magnani, Castro e Marques (2018), argumentamos que a institucionalização da educação do campo no ensino superior público - construída com base em vontades, projeções, construções que tinham por base experiências análogas - gerou uma reorganização na ordem das sensíveis (RANCIÈRE, 2005, 2011). Hoje, assim, há eventos, práticas e acontecimentos que antes talvez sequer seriam plausíveis, ainda que imaginados ou projetados por quem lutou anteriormente por tal institucionalização. Desse modo, os agora implementados cursos superiores em regime de alternância fazem emergir tanto desafios práticos não previsíveis antecipadamente, como também possibilidades pedagógicas que não poderiam antes ocorrer.

Assim sendo, são necessárias produções voltadas a refletir sobre práticas empíricas decorrentes da institucionalização dos cursos de licenciatura em educação do campo no contexto brasileiro. A partir das proposições e reflexões de Rancière (2005, 2011), é possível pensar não apenas que o discurso teórico é gênero e representação situados em locais de produção específicos (NUNES, 2005), mas também que tais condições envolvem fazeres acadêmicos que se configuram como práticas letradas específicas, marcadas por condicionamentos materiais relativos às suas condições de produção. Defende-se, ainda, a necessidade de se pensar em práticas letradas que, no contexto acadêmico, favoreçam essas novas disposições acadêmicas.

Sendo letramento um termo plural e de natureza conflituosa, vale apresentar um recorte de como o conceito está sendo mobilizado no presente artigo. Em geral, quando se fala em letramento, aponta-se para processos de aprendizado e práticas de uso de linguagem, costumeiramente envolvendo símbolos e registros na forma escrita, embora o conceito - em especial mais recentemente - possa se expandir para o domínio de sistemas semióticos diversos e não necessariamente verbais. Assim, não é difícil ter contato com termos como “letramento visual” ou “letramento espacial”, entre outros. Diante das possibilidades de uma literatura bastante extensa a respeito de letramento, optou-se por priorizar alguns referenciais que favorecessem o diálogo com diferentes áreas científicas, com a ideia de uma ecologia de saberes e também com os pressupostos já destacados da Agroecologia.

Leva-se em conta, por exemplo, trabalhos que passaram a investigar a relação entre práticas letradas e contexto de uso de linguagem (HEATH, 1983; SCRIBNER; COLE, 1981; STREET, 1984) em resposta a uma percepção em que “letramento” se associava a uma variável psicológica individual passível de ser acessada e quantificada (BARTON, 1994). Ao apresentarem e analisarem situações nas quais o contexto e a coletividade tinham papel fundamental em práticas de leitura e processos de construção de sentido, trabalhos focados em práticas sociais ofereciam um contraponto à visão “baseada em habilidades”, a qual lidava com a leitura, a escrita e mesmo o aprendizado escolar de modo individual, abstrato e descolado da materialidade, independente de contexto. Sendo a leitura, a escrita e diversas outras práticas com a linguagem aprendidas conforme necessidades concretas e a partir de experiências culturais situadas no tempo e no espaço, problematizam-se os limites dessa ideia de letramento como conjunto de habilidades e competências individuais ou como processo individual de aquisição de tais habilidades e competências. Tendo tais contribuições por base, inclusive, Barton (1994) apresenta e defende a ideia de uma visão “ecológica” de letramento, a qual pode se alinhar com noções como ecologia de saberes (SANTOS, 2008, 2018), ecologia das práticas (STENGERS, 2005) e pensamento ecológico (CODE, 2006) anteriormente mobilizadas.

A partir de categorias freireanas, De Souza (2011) nos recorda que tanto leitor quanto autor estão no mundo e com o mundo, na condição de sujeitos históricos. Ler a palavra-mundo, nesse sentido, envolve perceber-se também tendo seu próprio mundo e palavra - seus valores e significados - como herdeiros de uma coletividade sócio-histórica específica. Assim, a significação no texto é um processo de construção que não necessariamente caminha para categorias universais e convergências. Na realidade, a própria crença em uma prática com a linguagem que seja universal é, em si, algo a ser questionado na visão de letramento aqui defendida: é necessário sabermos ler a nós mesmos, nossas contingências e subjetividades e como isso afeta nossos processos de construção de sentido, trazendo assim “o corpo de volta” (DE SOUZA, 2019, p. 10, tradução nossa).

Inspirados em categorias de Freire (1989), podemos pensar letramento como algo que envolve tanto a “leitura de mundo” - um processo mais amplo, voltado a uma percepção de regularidades locais, dinâmicas, expressas em outras formas e modalidades de linguagem - bem como a “leitura de palavra” propriamente dita - representada nas ideias do autor especialmente pela palavra escrita. Compreende-se também que a produção de sentidos frente a um texto é mais um processo de construção do que de exegese (CERVETTI; PARDALES; DAMICO 2001; DE SOUZA, 2011). Desse modo, práticas letradas como a leitura são processos em que atribuímos sentidos aos textos, em vez de extrairmos sentidos previamente prontos acondicionados em tais textos. Todo e qualquer ato de leitura, toda e qualquer forma de construção de sentido, pois, depende da ação dos interlocutores envolvidos. Importante ressaltarmos, ainda, que, na perspectiva do presente artigo, “texto” se refere a diferentes formas de organização simbólica e convencional, podendo, portanto, referir-se à escrita ou não.

Se a junção entre Agroecologia, linguagens e letramento é possível de se estabelecer por meio de variadas articulações, no presente artigo, levamos especialmente em conta o trabalho já realizado por Castro e Menezes (2022), que desenvolveram atividades relacionadas à Agroecologia e gêneros textuais com estudantes do Ensino Médio. Esses autores afirmam que mesmo a Agroecologia tendo sua gênese no contexto campesino, ela se mostra como um conceito potencial, que, além de promover práticas integradoras entre a relação humano, natureza e produção, ainda pode estreitar os laços entre as culturas camponesas e urbanas, principalmente no que diz respeito à sustentabilidade. Dessa maneira, um sujeito que tenha essa temática em sua formação pode entender de maneira mais sistemática a responsabilidade do cuidado com o ambiente em diferentes práticas.

Se os estudos do letramento se desdobram internamente em perspectivas plurais, concorrentes e em debate, questionamentos como os apresentados nem sempre ocorrem para além dos limites de uma comunidade científica muito específica. Práticas acadêmicas hegemônicas ainda tratam questões de letramento e leitura - quando o fazem - de forma abstrata, fragmentada e descontextualizada. Assim como há uma monocultura de saberes a ser questionada tanto por um pensamento Agroecológico, também é de se considerar a monocultura de práticas letradas que o fazer acadêmico costumeiramente incentiva ou mesmo impõe. A emergência de novas práticas e novas formas de pensar a educação, propiciadas tanto pela educação do campo como também pela Agroecologia podem, portanto, ajudar a levantar esse questionamento para além dos limites dos estudos da linguagem, dado ser uma questão que afeta toda e qualquer prática educativa.

Advoga-se aqui, portanto, uma contribuição não só para a educação do campo, mas também para diversas outras comunidades e públicos, como educadores de modo geral, pessoas interessadas em discussões sobre inter- e transdisciplinaridade, entre outros. Especialmente dentro do conceito de educação popular com o qual geralmente a educação do campo dialoga intimamente, vale ressaltarmos a importância da ideia de uma práxis, no sentido freireano de uma relação dialógica e dinâmica entre teoria e prática (FREIRE, 2003). Levando em consideração tais aspectos, pretendemos explorar na próxima seção o potencial transformador, educativo e reflexivo de práticas pedagógicas que busquem estar em linha com a Agroecologia e com a busca por colocar em diálogo de modo ecológico diferentes saberes, práticas, trajetórias, conhecimentos, epistemologias. Para tanto, iremos apresentar e refletir um acontecimento pedagógico experienciado na articulação entre diferentes licenciaturas da UFVJM.

Confluências e acontecimentos

A UFVJM, campus Diamantina, cenário deste trabalho, está localizada em uma região de Minas Gerais que, por um lado, abriga vasta riqueza sociocultural ancestral, com movimentos sociais que são exemplo de luta e resistência, e, por outro, vem sendo submetida a ações de violência territorial, por meio da exploração por grandes corporações de suas riquezas minerais, pela plantação de monoculturas, como as de eucalipto e pela instalação de usinas hidroelétricas, trazendo um cenário de insegurança hídrica para a região. Soma-se a isso a existência de contradições entre um alto índice de analfabetismo e a alta concentração de renda “[...] em uma elite aristocrática, e a escassez de projetos concretos baseados na valorização e respeito aos modos de vida e saberes ancestrais” (FIGUEIREDO et al., 2020, p. 57, grifo nosso).

Além disso, os Vales ainda apresentam uma elevada carência educacional, com alta demanda de docentes em todas as áreas, para atuarem em escolas do campo e da cidade. Daí resulta o desafio da UFVJM em atuar na formação de professores, tendo como preocupação a reparação das injustiças históricas nesses territórios, que são diuturnamente ameaçados por projetos do capital, que visam a exploração de suas riquezas naturais. Nesse contexto, os cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas e Licenciatura em Educação do Campo buscam desenvolver ações com o compromisso de uma formação emancipadora dos/as futuros/as professores e professoras.

Uma dessas ações é o projeto de extensão “Diálogos entre Educação e Permacultura”, que integra o Programa “Encontro de Saberes: construindo pontes e ações entre os saberes de matrizes indígenas, afrodescendentes e populares com a produção do conhecimento científico”. O Encontro de Saberes da UFVJM é uma política que provoca o reconhecimento e a valorização de mestres e mestras de notório saber nas várias áreas de ensino, pesquisa e extensão, ao promover diálogos e integração entre os conhecimentos acadêmicos e os saberes tradicionais das culturas populares, indígenas e quilombolas no âmbito das universidades brasileiras (INCTI1, 2019). O projeto de extensão em tela tem, portanto, o compromisso com uma educação intercultural, na medida em que busca divulgar a permacultura para professores e estudantes, tendo em vista que ela envolve saberes tradicionais, que ainda tem pouca circulação na universidade. Embora ainda pouco valorizados nos fóruns acadêmicos, as práticas ancestrais e os conhecimentos tradicionais têm grande importância no mundo contemporâneo e se conectam com várias áreas do saber. A título de exemplo, Guimarães et al. (2016) sinalizam que as tecnologias de cultivo, pesca, coleta e manejo florestal praticadas pelas sociedades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, vêm sendo apontadas como soluções de segurança alimentar, pela capacidade que possuem em manter vivas grande diversidade de grãos, frutas e peixes.

O acontecimento pedagógico em torno da oficina de tintas de terra

Desde a concepção da oficina de tintas de terra a ser aqui relatada, até a decisão de formalizarmos e publicizarmos em artigo certos conhecimentos vividos e sistematizados por meio de tal ação, fomos orientados por uma busca por “coalizão” (LUGONES, 2006) entre diferentes áreas do conhecimento, comunidades científicas, procedimentos metodológicos, posições epistemológicas, trajetórias e lócus de enunciação. Assim, essa conversa entre diferenças foi uma tônica de todo o processo, algo a ser destacado inclusive como parte inerente do acontecimento pedagógico como aqui concebido. Houve uma busca por diálogo entre diferenças e entrecruzamentos que favoreceu novos possíveis, sensíveis e dizíveis (RANCIÈRE 2005).

Como parte desse confluenciar, emergiu a necessidade de se colocar em diálogo especialmente os diferentes modos de fazer e pensar a pesquisa de campo qualitativa, bem como a forma de retextualizá-la no gênero artigo científico, algo que também varia conforme a comunidade científica. Como estratégia que emerge dessa situação concreta, boa parte desse processo foi inspirado por possibilidades em comum nas diferentes áreas em diálogo nesse processo. Seriam alguns exemplos a perspectiva etnográfica (LIMA, 2013), um movimento de práxis (FREIRE 2003) próprio da atividade cotidiana professor-pesquisador, e uma chave interpretativa da Agroecologia. Ressaltando que o próprio artigo aqui apresentado é, inclusive, em termos de forma, um produto dessas buscas mencionadas: um diálogo inclusive entre diferentes expressividades e formas de apresentar, por escrito, reflexões acadêmicas.

Levando tais questões em consideração, descreveremos e discutiremos neste tópico diferentes modos de conhecer mobilizados no acontecimento pedagógico em pauta, buscando provocar os limites das diferentes áreas acadêmicas envolvidas, bem como fronteiras traçadas entre práticas consideradas científicas e tradicionais. Assim como em Lima (2013), o exercício reflexivo diante da oficina mencionada, envolvendo desde seus preparativos a seus desdobramentos é atravessado por um modo de pensar

[...] de um tipo etnográfico, em que nos é dada a liberdade de produzir um sentido ‘atual’, e ‘pessoal’, para um material a partir do qual selecionamos informações em benefício de um insight, um plano que permanece relativamente vago ou pré-consciente, pois seu contorno, para ganhar alguma nitidez, depende inteiramente do material que o nutre e com o qual se avêm. Mas esse plano é autônomo para decidir o que selecionar. (LIMA, 2013, p. 19).

Ressalta-se que a produção dos dados aqui apresentada utilizou a observação, a memória e o diário de campo como instrumentos de geração de dados, e que esta produção se vincula a uma pesquisa mais ampla, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, sob CAAE n° 03347318.4.0000.5108.

O acontecimento a ser explorado no presente artigo ocorreu, entre outras motivações, a partir do desejo de registrar, nas paredes da referida universidade, um pouco mais de uma expressividade e estética local. Isso, ao mesmo tempo em que se desejava, de modo prático e experimental, provocar o desenvolvimento de mais atividades que, borrando fronteiras historicamente construídas entre disciplinas acadêmicas, concretizassem, de fato, alguns dos objetivos da formação em licenciatura em educação do campo: a superação da fragmentação do conhecimento, do trabalho isolado e individualizado na escola (CALDART, 2010), além da necessária e importante incorporação da Agroecologia à educação para construção de um novo projeto de campo e sociedade (CALDART, 2017).

Diante de todos os desafios de se colocar em prática pautas e possibilidades muitas vezes aventadas somente na teoria, a oficina de tintas de terra foi uma atividade interdisciplinar do referido projeto de extensão, que partiu do exercício de regência dos estudantes de Licenciatura em Ciências Biológicas (LCB) na unidade curricular (UC) “Metodologia do ensino de Ciências e Biologia” sobre o tema. Essa ação envolveu a integração desses estudantes com os estudantes da Licenciatura em Educação do Campo (LEC), confluenciando as unidades curriculares de “Físico-química” da habilitação em Ciências da Natureza, e das unidades curriculares “Linguística Aplicada e a Formação do Educador do Campo” e “Gêneros Textuais/Discursivos” da habilitação em Linguagens e Códigos.

A UC “Metodologia do ensino de Ciências e Biologia”, do curso do LCB, tem o objetivo de familiarizar os licenciandos com diferentes tipos de planejamento educacional, evidenciando a relação entre os objetivos, os conteúdos, as metodologias e as avaliações no ensino de Ciências e Biologia. Busca também explorar métodos e estratégias de ensino, dialogando com tendências pedagógicas do campo da pesquisa em Educação em Ciências, e colocá-los em prática em situações reais de ensino. Dessa forma, foi proposto aos licenciandos da disciplina o desafio de planejar, executar e avaliar uma intervenção junto aos estudantes da LEC. A escolha pela temática das tintas de terra se deu em função da suposição de que este seria um tema relevante para os estudantes da LEC, tendo em vista que vivem e atuarão como professores em comunidades do campo, e que tais vivências favoreceriam pensar nessa prática como algo significativo. O desafio também envolveu planejar uma ação que seria desenvolvida com um público também do ensino superior em similar etapa formativa. Foi também uma preocupação a escolha de uma prática teoricamente referenciada, no caso, a partir dos Três Momentos Pedagógicos (DELIZOICOV; ANGOTTI; PERNAMBUCO, 2011), ferramenta metodológica do ensino de Ciências, baseada nas ideias de dialogicidade e problematização freireanas. A escolha pela estratégia pedagógica oficina também se deu de forma intencional, a fim de promover uma postura ativa do estudante ao longo do processo de construção do conhecimento em torno do tema, a partir de seus conhecimentos prévios (FERNANDES; ALLAIN; DIAS, 2022). O plano de aula a seguir (Quadro 1) foi, então, elaborado pelos discentes da LCB.

Quadro 1 Planejamento da Oficina de tintas de terra 

Tema: Geotintas
Público-alvo: estudantes da LEC
Tempo estimado: 2 horas
Objetivos e habilidades
Objetivo geral: apresentar o processo de confecção das geotintas, evidenciando seus benefícios econômicos e socioambientais em relação às tintas industrializadas.
Habilidades esperadas:
a) no âmbito do conhecimento:
Avaliar potenciais prejuízos de diferentes materiais e produtos à saúde e ao ambiente, considerando sua composição, toxicidade e reatividade, como também o nível de exposição a eles, posicionando-se criticamente e propondo soluções individuais e/ou coletivas para o uso adequado desses materiais e produtos.
b) no âmbito da aplicação:
Analisar as propriedades específicas dos materiais para avaliar a adequação de seu uso em diferentes aplicações (industriais, cotidianas, arquitetônicas e tecnológicas) e/ou propor soluções seguras e sustentáveis.
c) no âmbito da solução de problemas:
Analisar e debater situações controversas sobre a aplicação de conhecimentos da área de Ciências da Natureza com base em argumentos consistentes, éticos e responsáveis, distinguindo diferentes pontos de vista.
Caracterização dos conteúdos
a) Conteúdos conceituais - O estudante deverá saber sobre: geotintas, ciclos biogeoquímicos/composição química dos materiais/ligação química/misturas; cadeia alimentar - bioacumulação; granulometria de solos; composição química de amidos e amilopectina; Espectrometria de cores; medidas de área, volume, proporções; plastídeos, fotossíntese, pigmentos fotossintéticos.
b) Conteúdos procedimentais - O estudante deverá saber fazer: seleção de solo e material adequado para a geotinta; extração do pigmento; preparação do grude; uso de diferentes tipos e formas de medida.
c) Conteúdos atitudinais - O estudante deverá demonstrar: cooperação; solidariedade; trabalho em grupo; capacidade de argumentar.
Procedimentos metodológicos (baseados nos três momentos pedagógicos)
1º Momento: Problematização - No primeiro momento da prática será apontado o tema “o uso das tintas convencionais” que será problematizado ao longo da oficina. Nesse momento, os educadores devem incentivar a participação dos estudantes, a fim de que eles se posicionem em relação ao tema. Ao longo da discussão, o educador precisa problematizar os posicionamentos e argumentos dos estudantes para que eles avancem das concepções intuitivas para concepções pautadas em pesquisas científicas. Portanto começamos perguntando: “Vocês já ouviram falar em geotintas? Por que a utilizamos? Qual é o problema da tinta industrializada? Você sente algum incômodo (cheiro forte, dor de cabeça) ao pintar com a tinta comprada? As tintas industrializadas são caras? O que tem nas tintas industrializadas? Vamos ver o rótulo? Antes das tintas industrializadas, como se faziam as tintas?”.
2º Momento: Organização do conhecimento - No segundo momento da prática, será necessário pontuar as etapas que serão realizadas na oficina, sempre correlacionando os conteúdos (conceituais, atitudinais e procedimentais) de forma interdisciplinar. Como a oficina visa a confecção de geotintas, é necessário demonstrar todas as etapas de sua confecção até o produto final. Para isso, a oficina deve ser dividida em quatro etapas: tipos de solo, extração de pigmentos naturais, colorimetria e confecção do grude.
3º Momento: Aplicação do conhecimento - O terceiro momento refere-se à confecção da tinta propriamente e a retomada das questões da problematização. O importante dessa etapa é resgatar os conhecimentos aprendidos, buscando extrapolá-los para outros contextos possíveis. Nessa etapa, os estudantes pintam os desenhos. É interessante aproveitar o momento para estimular o protagonismo dos estudantes, ao retratarem seus temas de interesse.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Nota-se que o planejamento em questão não foi realizado de forma intencionalmente integrada às outras unidades curriculares. As conexões “aconteceram” a partir da abertura prevista para a atividade em comum acordo entre educadores envolvidos. Desse modo, a oficina se configurou como ponto de encontro entre tal UC própria da LCB e atividades de diferentes unidades curriculares da LEC, uma vez que cada um dos demais grupos vinham, cada qual, de outras trajetórias e momentos formativos. Vale ressaltarmos, inclusive, a esse respeito, que cada grupo viveu em tal oficina não apenas uma articulação com diferentes turmas, mas também um diálogo entre o momento em si e as pautas e discussões que traziam do percurso pedagógico próprio de cada UC.

A UC de “Físico-química” iniciou com esse acontecimento pedagógico, partindo do entendimento de que a formação inicial de professores é muito mais do que um bom conhecimento sobre a “matéria” que ele vai ensinar como professor (MALDANER, 2000). Por meio da abordagem Freiriana, na perspectiva dialógica, a temática de geotintas materializou o início do diálogo do mundo da química e o mundo dos estudantes. Teve o intuito de exemplificar, por meio da práxis, como se pode concretizar o diálogo em aulas de Química proporcionando possibilidades de se pensar em uma reelaboração pedagógica para as escolas que irão atuar futuramente. Essa UC foi ofertada para o sexto período, e trabalha conhecimentos relativos à energia produzida e consumida e ao tempo envolvido nas transformações químicas sempre relacionando com a realidade campesina. Dessa forma, os licenciandos, mesmo nas aulas de conteúdo específico, refletiram sobre a prática pedagógica nas aulas de Química. Além disso, a integração de diferentes estudantes (licenciandos das Ciências Biológicas, da habilitação em Linguagens e Códigos e da habilitação de Ciências da Natureza) na atividade, proporcionando o exercício do trabalho interdisciplinar, tão almejado nas práticas educativas na escola.

Iniciar a UC valorizando o conhecimento que eles trazem das comunidades teve o objetivo de mostrar qual abordagem que foi escolhida para as aulas de Química, reforçando o diálogo para combate à invasão cultural (FREIRE, 2015). O desenvolvimento da UC objetivou dar elementos para a superação de situações-limite, como a inferiorização dos conhecimentos sobre as tintas de terra em comparação a tintas industrializadas. A pretensão foi contribuir para a valorização desse conhecimento e para incentivar uma prática pedagógica diferente. Outra questão importante de relatarmos foi a outra configuração de sala de aula, em um exercício prático de diálogo entre áreas de Ciências da Natureza e Linguagens, por meio das geotintas, mediado pelos professores. Todos esses aspectos refletiram na motivação dos estudantes nas aulas subsequentes. Como resultado, os estudantes escolheram, para realização do trabalho no Tempo Comunidade, estudar temas relacionando com conceitos de físico-química sobre queijo, sabão, produção e processamento da mandioca (do plantio à produção de farinha), gordura de coco macaúba, artesanato com bambu, cachaça, vinho, cocada caseira, pão caseiro e biofertilizante.

Mesmo dentro da habilitação em Linguagens e Códigos, as duas turmas que fizeram parte desse encontro estavam em momentos diferentes do curso: a UC “Gêneros Textuais/Discursivos” estava sendo ofertada para estudantes do sexto período do curso, ao passo que “Linguística Aplicada e a Formação do Educador do Campo” é prevista no oitavo e último período do curso.

No contexto da UC “Linguística Aplicada e a Formação do Educador do Campo”, o eixo condutor da prática residia em uma reflexão ativa a respeito do que significava ser educador do campo na área das Linguagens. Grosso modo, seguindo o pressuposto da Linguística Aplicada de compreender o acontecimento de linguagem - sem estar higienizado de seu contexto social de produção - como objeto de atenção (SIGNORINI, 1998), toda a UC foi desenhada para proporcionar experiências e reflexões a respeito da própria formação vivenciada na LEC, em um esforço de observar se as proposições, vontades e expectativas postas no projeto pedagógico do curso estavam e estiveram em linha com a formação experienciada na prática ao longo dos períodos. A oficina, portanto, ocorreu como parte de uma proposta mais ampla de licenciandos em processo de finalização do curso refletirem sobre sua própria formação. Vale lembrarmos que o acontecimento de linguagem é um objeto investigativo comum da Linguística Aplicada, e, tendo isso em conta, parte da atividade envolveu intencionalmente mobilizar licenciandos a vivenciar e experienciar também analiticamente o referido acontecimento pedagógico.

Em parte, dada a importância da transdisciplinaridade no fazer acadêmico da Linguística Aplicada, uma das sequências propostas ao longo da UC envolveu discutir o conceito a partir de referencial da área, participarem da oficina e, ao fim, produzirem uma síntese - orientada por um pequeno roteiro de perguntas não obrigatório como suporte - a respeito da vivência realizada. A expectativa era de a síntese trazer um pouco da descrição da oficina e de uma reflexão que mobilizasse leituras dos estudos linguísticos e, especificamente, conceitos de inter- e transdisciplinaridade tanto com a vivência recém-experienciada da oficina quanto com outras práticas ao longo da licenciatura, refletindo se e como tais conceitos se materializariam em atividades práticas no contexto educativo.

A UC “Gêneros Textuais/Discursivos” tinha como objetivo compreender o funcionamento de gêneros de texto e discurso, com vistas a aplicá-los ao ensino da Língua Portuguesa. Os estudantes dessa turma estavam cursando o sexto período da LEC na habilitação Linguagens e Códigos. Na perspectiva bakhtiniana todas as esferas interacionista/dialógica da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da linguagem que se manifesta em uma constante produção de gêneros discursivos, ou seja “[...] tudo o que fizermos linguisticamente pode ser tratado em um ou outro gênero” (MARCUSCHI, 2003, p. 35). Partindo dessa premissa, problematizamos que as práticas de ensino tradicional desconsideram a variedade dos gêneros textuais/discursivos que fazem parte do contexto dos estudantes, limitando-se, por exemplo, “[...] a abordar somente os gêneros escritos literários de maior prestígio - o conto, o romance, às vezes a crônica, raramente a poesia -, e desprezando quase completamente o estudo dos gêneros textuais característicos das práticas orais” (BAGNO, 2002, p. 46).

A partir dessa interpretação sobre gêneros textuais, na finalidade de preparar os estudantes para a oficina de tintas de terra, que culminaria na pintura (de uma parede) que retratasse uma imagem significativa para os estudantes, amparamo-nos em Viana (2017) que analisa grafite e a pichação na perspectiva de gênero textual/discursivo para o entendimento do mural de tintas de terra como gênero textual/discursivo. A autora parte da perspectiva da Semiótica Social para explorar os modos semióticos visuais e de escritas presentes nas pichações como uma alternativa textual para a expressão de ideias e argumentos, tanto de formas escritas como por desenho.

Entrecruzando coletividades: a oficina de tintas de terra como acontecimento pedagógico

O acontecimento pedagógico teve início com uma breve apresentação da proposta a todos os grupos, enfatizando-a como uma busca coletiva por maior integração entre unidades, cursos e agendas que, por tradição, costumam ocorrer em paralelo. Em seguida, estudantes da UC “Gêneros Textuais/Discursivos” trouxeram uma exposição sobre a noção de gêneros textuais/discursivos para além das práticas tradicionais de ensino, tendo como enfoque o gênero pichação. Na sequência, o professor da UC de Linguística Aplicada trabalhou brevemente a questão da ubiquidade da linguagem em nossa sociedade, ressaltando-a como uma pauta cara não apenas ao futuro professor de português e língua estrangeira, mas a todo e qualquer educador. Essas articulações buscavam colocar em diálogo trajetórias acadêmicas tradicionalmente segmentadas e afastadas e chamar a atenção, a partir de uma concepção mais ampla de linguagem, para o fato de que, fora dos muros da escola e da universidade, os objetos se apresentam de modo muito mais complexo e integrado e que, portanto, são bem-vindas análises e reflexões que partam de um pensamento ecológico (CODE, 2006).

Dando prosseguimento, iniciou-se a parte mais específica da oficina de tintas de terra, na qual estudantes da LCB buscaram trazer, de início, algumas considerações teóricas para, posteriormente, ensinar, pela prática, os procedimentos de fabricação das tais tintas. Destacando o caráter dialógico da atividade, vale ressaltarmos que o planejamento original realizado na disciplina de “Metodologia do Ensino de Ciências e Biologia” foi modificado pelos estudantes de LCB, que sentiram necessidade de iniciar com essa exposição teórica sobre o assunto, por meio de slides. Havia, entre eles, a preocupação em apontar, aos colegas estudantes da LEC, as possíveis conexões entre as diferentes etapas da oficina com os conteúdos escolares, em especial das Ciências da Natureza. Essa escolha propiciou um diálogo com os estudantes da LEC, que participaram da exposição relatando seu conhecimento sobre a tecnologia das geotintas, à qual já estavam familiarizados. Por outro lado, restou pouco tempo para a execução prática da oficina e a posterior pintura do mural.

Ao iniciar a oficina, foi desenvolvida uma problematização inicial acerca do uso de tintas industrializadas, abordando seus malefícios à saúde e ao ambiente, além do alto valor financeiro. Essa problematização ocorreu a partir do exame dos rótulos das tintas industrializadas, que continham informações sobre sua composição química e advertências quanto aos cuidados no manejo das tintas - como o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) - e cuidados no descarte das embalagens no meio ambiente.

No decorrer dessa problematização, algumas considerações sobre língua, linguagem e letramento, antes expostas de modo mais breve e abstrato, puderam ser retomadas. Nesse momento em específico, por exemplo, os professores da área de linguagem apontaram como os rótulos possuem convencionalmente certas características, próprias desse gênero discursivo. Esse entendimento sobre gênero discursivo, mais que repetir fórmulas e listas sobre o tema que costumam ser apresentadas estritamente a educandos de linguagem, buscava chamar a atenção para os gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados que ocorrem em esferas específicas de interação social (BAKHTIN, 2003) e que deixam pistas, dicas, sinais, padrões que auxiliam em sua interpretação. Nesse sentido, conforme também foi pautado na atividade em questão, a própria oficina de geotintas se configuraria como um gênero, com algumas características prototípicas que permitiam que as pessoas envolvidas identificassem ali um certo tipo de atividade pedagógica, com certos procedimentos, certo registro linguístico, entre outros.

Partindo ainda a respeito das características dos rótulos em debate, a relação entre linguagem e poder também foi objeto de discussão. Ressaltou-se que, mais que uma escolha neutra, o uso de uma linguagem considerada mais codificada, repleta de termos técnicos e científicos que não são usuais no nosso cotidiano, tinha desdobramentos de sentido. Além de criar um efeito de sentido de maior credibilidade às tintas industrializadas, o jargão técnico também afastaria potencialmente o consumidor da leitura e do entendimento do rótulo.

Posteriormente, essa questão entre linguagem e poder ainda foi retomada. Os proponentes da oficina buscavam saber se os demais conheciam a prática com geotintas, embora sem retornos afirmativos explícitos. A partir do momento que alguém do público percebeu que se tratava de “tintas de terra”, a conversa mudou. Muita gente que até então imaginava se tratar de algo externo ou distante passou a trazer exemplos e práticas com tais tintas no contexto da “roça”, como costumam chamar o próprio território. Assim, vale notarmos que o termo mais acadêmico - geotintas - formado inclusive a partir de um resgate intencional de um prefixo grego, prática corriqueira na formação de palavras para fins técnicos ou científicos - era o que gerava uma sensação de distanciamento, não o objeto em si. Não à toa, a partir desse momento, a oficina passou a ser muito mais dialógica, configurando-se mais propriamente como um encontro entre saberes e práticas, colocados então de modo mais ecológico em tal acontecimento pedagógico.

Consideradas tais problematizações, cada um dos quatro oficineiros da LCB se encarregou de conduzir a discussão sobre um aspecto específico das geotintas nas Ciências da Natureza, o segundo momento pedagógico do plano, abordando quatro aspectos. Buscou-se inicialmente discutir conceitos utilizando da demonstração de diferentes amostras de solo. Os demais estudantes foram convidados a tocar as amostras de solo para perceber suas diferentes texturas. Na execução da oficina, os estudantes peneiraram um dos tipos, a tabatinga, preparando-a para a base da tinta de terra. Um segundo aspecto abordado foi a extração de pigmentos naturais, com o objetivo de discutir alguns conceitos de botânica, além de apresentar algumas técnicas de extração de pigmentos através da maceração de partes das plantas. Uma maquete de célula vegetal, confeccionada em isopor, foi exposta aos estudantes, para que reconhecessem o cloroplasto, organela onde se localiza o pigmento fotossintético das plantas. Nesse momento, os professores da área de Linguagens exploraram a maquete como mais um gênero discursivo, dado que a maquete pode se configurar como um tipo relativamente estável de enunciado com características composicionais recorrentes, como a busca por uma representação - embora em diferente escala -de outro objeto ou cenário. Na execução da oficina foram macerados urucum, açafrão, beterraba, couve, flores, carvão, que posteriormente foram dissolvidos em álcool. Depois de peneirada, a solução resultante foi usada para tingir a tabatinga.

O terceiro aspecto explorado foi a colorimetria. Iniciou-se com perguntas problematizadoras sobre locais como o céu e objetos como o sol. Após uma exposição sobre comprimento de onda e espectro de cores, foi feita uma demonstração experimental da cromatografia em papel, para que os estudantes visualizassem a separação dos diferentes componentes da solução de corantes de folhas maceradas. Professores da área de Linguagem interagiram demonstrando como características dos slides (tipos de letra, cores e figuras) são reconhecidas como parte de um gênero específico. Tratou-se, por fim, da confecção do grude, alternativa mais econômica que a cola branca no processo de fixar a tinta na superfície a ser aplicada. Ao explicar sobre o processo de cozimento do grude, discutiu-se sobre pesos e medidas e fomentou-se a curiosidade dos estudantes a respeito da mistura, de ligações químicas presentes, da consistência gelatinosa resultante e sua relação com os amidos, como o polvilho, tão presentes no nosso cotidiano. Destacou-se haver diferentes receitas de grude e de geotinta que, como toda tecnologia social, também pode ser adaptada de acordo com o contexto no qual ela será desenvolvida.

Durante a confecção da tinta de terra, que contou com a participação dos estudantes e professores, um grupo de estudantes se deslocou para o laboratório da LEC, onde uma parede foi escolhida para a realização de desenhos na forma de um mural, que posteriormente foram pintados com as tintas de terra. Assim, a culminância da oficina imprimiu a identidade na construção do mural que é uma produção textual, conectando com a cultura e a identidade da comunidade envolvida.

Em suma, a execução da oficina permitiu a ocorrência de um acontecimento pedagógico, pois possibilitou a confluência de várias práticas divergentes entre áreas e em dois “tipos” de cursos. Também confluíram, nesse acontecimento pedagógico, práticas da permacultura e Agroecologia e, mais amplamente, saberes e fazeres acadêmicos e não acadêmicos.

Desdobramentos e reflexões

A partir das análises de um acontecimento pedagógico em específico, vale compartilharmos algumas últimas reflexões e impressões. Observa-se, no caso estudado, o acontecimento pedagógico como um espaço para o encontro e para a mobilização de saberes. Configura-se, ainda, como um momento complexo como toda a vivência real o é e que, por conta disso, necessariamente transcende abstrações como disciplinaridade e universalidade - embora ainda seja, por razões históricas que o próprio artigo considera, ainda nitidamente atravessado por essas categorias. O acontecimento pedagógico pode contribuir para o contato com outro entendimento entre relação ser humano-natureza-linguagem-tecnologias/sociais, por meio de uma troca de experiência entre professores-formadores e licenciandos.

O histórico da implementação das Licenciaturas em Educação do Campo no Ensino Superior, como já dito, cria uma situação na qual há muitas expectativas postuladas de antemão do que seria esse fazer transdisciplinar, situado, transformador, centrado em realidades, lógicas e temporalidades do campo; tudo isso em contraponto à uma prática cotidiana de um sistema que resiste às mínimas mudanças, pois foi pensado pelo e para o modelo tradicional de academia (MAGNANI; CASTRO; MARQUES 2018). Na história recente da LEC-UFVJM, a pretendida relação entre as habilitações de Ciências da Natureza e Linguagens e Códigos, mesmo que antevista no projeto pedagógico do curso, ainda é pouco explorada no cotidiano prático da LEC. Pode-se dizer que, ao envolver a pauta da Agroecologia, essa prática se torna algo ainda menos expressivo, uma vez que é algo abordado apenas como parte de uma UC do curso para as duas habilitações, no contexto da Educação Ambiental.

Desse modo, experiência do acontecimento pedagógico em questão, ao mesmo tempo ajuda a consolidar essa interação, além de se configurar como um marco concreto, um exemplo de ação possível, viável e existente na memória coletiva do curso a estruturar, atualmente, projetos de pesquisa e extensão (com aprovação em agência de fomento e editais internos da universidade). Ações como essas, em curso no momento da escrita final do presente trabalho, envolvem não só autores do artigo, mas outros professores da LEC, promovendo maior amadurecimento na articulação das diferentes áreas em diálogo no curso e em suas ações pedagógicas. Vale ressaltarmos ainda que essa aproximação teórica e prática entre princípios e práticas da Agroecologia e estudos dos letramentos também não é uma discussão já posta ou consolidada nos espaços acadêmicos, ainda mais quando centradas em experiências empíricas. Assim, esse acontecimento mobiliza perguntas e novas possibilidades epistêmicas ou procedimentais para além da realidade do curso.

Nesse contexto, o acontecimento pedagógico ocorreu por meio da importante integração da Agroecologia nos cursos de formação inicial de professores. Partimos do entendimento de que a produção de alimentos são base para a sustentação humana, direito de todos, e, por isso, de grande importância que eles sejam saudáveis, não somente em relação com o não uso de sementes transgênicas, fertilizantes e agrotóxicos, mas também em relação saudável no modo entorno da sua produção: modo de trabalho e vida, relação com a natureza, uso e propriedade e permanência na terra, entre outras questões.

Advogamos, neste artigo, que a Agroecologia tem esse potencial de confluir práticas educativas diversas. Valorar o conhecimento e a prática da utilização de tintas de terra (geotintas), nesse contexto, foi ampliar um entendimento integrado de produção de alimentos e moradia, em uma perspectiva ecológica, que preserva não só a saúde dos solos e das águas, mas também a saúde humana e de outros animais, plantas, o ambiente como um todo. Também em uma perspectiva ecológica dos saberes, onde se visibiliza outras epistemes, confluenciando, a partir da discussão em torno das geotintas, os conhecimentos de Ciências da Natureza e práticas letradas que favoreçam a criticidade e novo modo de ver e estar no mundo.

A Agroecologia, aqui, então, é defendida como um conceito importante para a formação humana. Assim sendo, ela é central na formação de professores, em especial aos professores do campo. Na formação destes, pensando que a Educação do Campo não é só uma prática diferente, mas luta por um modelo de campo e de sociedade pautados na reforma agrária, na busca por uma educação pública de qualidade construída com a valoração da identidade e diversidade cultural dos povos do campo, a Agroecologia deve ser a espinha dorsal dessa formação. O resultado do acontecimento pedagógico, processo de execução e o mural, possibilita uma outra leitura de mundo, a qual alimenta o simbólico das lutas identitárias, diferentes formas de comunicação das Ciências da Natureza e das Linguagens e na difusão da prática Agroecológica nas escolas.

Referências

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1Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia (INCTI).

Recebido: 01 de Dezembro de 2022; Revisado: 24 de Junho de 2023; Aceito: 26 de Junho de 2023; Publicado: 07 de Julho de 2023

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