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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 18-Set-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21437.072 

Artigos

Currículo e cultura escolares: rareamento de práticas de leitura de alunos empobrecidos e periféricos*

Curriculum and school culture: scarcity of reading practices among impoverished and peripheral students

Currículo y cultura escolares: disminución de prácticas de lectura de alumnos empobrecidos y periféricos

Dayane Pereira Barroso de Carvalho**  , Levantamento bibliográfico, visita ao campo de pesquisa, observações, construção e documentação dos dados, escrita do artigo, análise e interpretação dos dados, revisão da escrita
http://orcid.org/0000-0002-7792-4514

Maria da Guia Taveiro Silva***  , Orientação da pesquisa, orientação da metodologia de investigação e construção dos dados, validação dos resultados, revisão final da escrita
http://orcid.org/0000-0002-6520-1845

**Mestra em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLe) da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL). E-mail: <dayanepereirabr@gmail.com>.

***Doutora em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB). Professora Adjunta no curso de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLe) da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL). E-mail: <maria.silva@uemasul.edu.br>.


Resumo

Este estudo teve como objetivo principal analisar como o currículo e a cultura escolares acabam por rarear as já escassas possibilidades de consolidação das práticas de leitura de alunos empobrecidos e periféricos. A metodologia é predominantemente qualitativa, com característica descritiva, a partir de uma experiência etnográfica. Como instrumento de construção de dados, realizou-se observação sistemática no primeiro semestre letivo de 2022, ocorridas uma vez por semana, sempre no mesmo dia, durante as aulas de língua portuguesa dos três 1os anos do turno vespertino. Os registros foram documentados em um diário de campo. Os resultados destacam que o currículo do Novo Ensino Médio (NEM), quando aplicado em territórios periféricos e empobrecidos, prioriza o mercado de trabalho em detrimento do pensamento crítico. Constatou-se, também, insatisfação entre os professores e falta de orientação para implementação do NEM. A falta de ênfase na leitura e a inclusão de disciplinas eletivas sem diretrizes claras prejudicam os objetivos educacionais de formação leitora.

Palavras-chave: Currículo escolar; Práticas de leitura; Escola de periferia urbana

Abstract

This study aimed to analyze how the school curriculum and culture end up reducing the already scarce possibilities of consolidating the reading practices of impoverished and peripheral students. The methodology employed was predominantly qualitative, with a descriptive approach based on an ethnographic experience. As a data construction instrument, a systematic observation was carried out in the first semester of 2022, which occurred once a week, always on the same day, during the Portuguese language classes of the three 1st grades in the afternoon shift. Records were documented in a field diary. The results highlight that the New High School curriculum, when applied in peripheral and impoverished territories, prioritizes the job market over the critical thinking. It was also observed the dissatisfaction among teachers and lack of guidance for the implementation of the New High School. The lack of emphasis on reading and the inclusion of elective subjects without clear guidelines hinder the educational goals of developing reading skills.

Keywords: School curriculum; Reading practices; Urban peripheral school

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo principal analizar cómo el currículo y la cultura escolares terminan por reducir las ya escasas posibilidades de consolidación de las prácticas de lectura de alumnos empobrecidos y periféricos. La metodología es predominantemente cualitativa, con característica descriptiva, a partir de una experiencia etnográfica. Como instrumento de construcción de datos, se realizó observación sistemática durante el primer semestre académico de 2022, ocurridas una vez por semana, siempre en el mismo día, durante las clases de lengua portuguesa en los tres primeros primeros años del turno vespertino. Los registros fueron documentados en un diario de campo. Los resultados resaltan que el currículo de la Nueva Educación Secundaria (NEM), cuando aplicado en territorios periféricos y empobrecidos, prioriza el mercado laboral en detrimento del pensamiento crítico. También se constató la insatisfacción entre los profesores y falta de orientación para la implementación de la NEM. La falta de énfasis en la lectura y la inclusión de asignaturas electivas sin directrices claras perjudican los objetivos educativos de formación lectora.

Palabras clave: Currículo escolar; Prácticas de lectura; Escuela de periferia urbana

Introdução

Abordar a questão do currículo escolar e práticas de leitura em escolas de periferias urbanas torna-se necessário e oportuno, considerando que professores e gestores, de modo geral, buscam estratégias para se adaptarem à nova formação curricular imposta às escolas de Educação Básica em todo o país, por meio da reforma do Ensino Médio. Neste estudo, consideramos a existência de três categorias educacionais nesses contextos, agrupadas por Garcia-Silva e Lima Junior (2020): Educação Tradicional de periferias urbanas; Educação Crítica de periferias urbanas; e Educação Pós-Crítica de periferias urbanas. Nossa ênfase articula argumentos que focam principalmente as categorias Crítica e Pós-Crítica de periferias urbanas, levando em consideração as contribuições de Apple (2008) sobre currículo escolar, ideologia e poder.

Constatamos haver certa escassez em relação à literatura que relaciona currículo escolar e educação em escolas de periferias urbanas. Isso também foi constatado por Garcia-Silva e Lima Junior (2020) ao afirmarem que o tema da educação nas periferias ainda não recebeu a devida atenção de forma consistente no Brasil. No entanto, é justamente por esse motivo que acreditamos que pesquisas relacionadas à educação em escolas periféricas urbanas devem ganhar cada vez mais destaque entre os pesquisadores.

Dito isso, apresentamos o objetivo principal deste estudo: analisar como o currículo e a cultura escolares acabam por rarear as já escassas possibilidades de consolidação das práticas de leitura de alunos empobrecidos e periféricos. Trata-se de um recorte da pesquisa intitulada Práticas de leitura de alunos de escola pública da cidade de Imperatriz/MA: uma análise sociolinguística (Carvalho, 2022) e insere-se no Grupo de Estudos Linguísticos do Maranhão (GELMA), aprovada sob o Certificado de Apresentação de Aprovação Ética (CAAE): 56529422.9.0000.5554. A abordagem metodológica é predominantemente qualitativa, descritiva e apresenta uma visão etnográfica (Gil, 2008). Como instrumento de construção de dados, realizamos observação sistemática no primeiro semestre letivo de 2022, ocorridas uma vez por semana, sempre no mesmo dia, durante as aulas de língua portuguesa dos três 1º anos do turno vespertino. Os registros foram documentados em um diário de campo. Além disso, buscou-se observar o processo de adaptação dos professores à nova formação curricular durante o semestre letivo 2022.1, verificando se a leitura estava sendo estabelecida como uma prioridade no planejamento escolar.

Apoiamo-nos em um quadro de referência estruturalista, que recorre à noção de estrutura para explicar a realidade em todos os seus níveis (Creswell, 2010). Fundamentamo-nos em estudiosos como Apple (2008) e Moreira (2017), que abordam o currículo escolar, ideologia e poder. As contribuições de Garcia-Silva e Lima Junior (2020) em pesquisas sobre educação em periferias urbanas também foram exploradas. Lahire (2004) é citado por suas considerações sobre as relações de interdependência para o desenvolvimento da autonomia de aprendizagem. Peroni, Caetano e Arelaro (2019) e Sena, Albino e Rodrigues (2021) contribuíram sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as influências do setor privado. As contribuições de Nunes (2021) e Neri e Osório (2021) sobre a evasão escolar de alunos de baixa renda durante a pandemia de covid-19 também foram consideradas. Silva, Bruno e Silva (2020) trouxeram importantes considerações sobre pobreza, enquanto Silva Filho (2019), Barros (2021), Lima e Monteiro (2022) e Esteves e Oliveira (2022) contribuíram sobre o Novo Ensino Médio (NEM).

A pesquisa contou com a colaboração de 19 professores efetivos e substitutos. Foi permitida a presença da pesquisadora durante as reuniões na sala dos professores, onde também ocorriam as reuniões pedagógicas e o conselho de classe. Ressaltamos que a maioria desses docentes possui uma longa experiência na escola, com mais de cinco anos de trabalho, e muitos deles estão próximos da aposentadoria. Além disso, eles foram professores de pelo menos duas gerações de estudantes na mesma escola, o que contribui para a sua compreensão ampla desse contexto educacional. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), em conformidade com as diretrizes estabelecidas pelo Comitê de Ética em Pesquisa e com a Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (Brasil, 2013), e a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 (Brasil, 2016), do Conselho Nacional de Saúde (CNS)

Estimamos que este estudo possa contribuir significativamente com o campo de pesquisa e estudos que abordam práticas de leitura em contextos de pobreza e periferia urbana ao analisar a relação entre currículo e cultura escolares e suas influências nas práticas de leitura de alunos dessas escolas. Fornecemos um olhar aprofundado sobre as experiências e as percepções dos professores em relação à implementação do novo currículo do Ensino Médio e a importância atribuída à leitura no planejamento escolar. Além disso, a colaboração com professores experientes e a utilização de um diário de campo como instrumento de registro contribuem para uma compreensão mais ampla do contexto educacional. As limitações do estudo são reconhecidas, mas os resultados apresentados podem fornecer uma base sólida para estudos a respeito das práticas de leitura em escolas de periferia urbana, de contextos de pobreza multidimensional.

O artigo está dividido em quatro seções. A primeira seção consiste nesta introdução, na qual realizamos uma contextualização do tema, a apresentação do objetivo do estudo, a abordagem metodológica, as limitações e a relevância do trabalho bem como o referencial teórico utilizado. Na segunda seção, abordamos a fundamentação teórica, que inclui os temas do currículo e da cultura escolar bem como a relação com a pobreza e as escolas de periferia urbana. A terceira seção trata da análise e da interpretação dos dados, revelando os principais desafios encontrados na implementação do novo currículo e no ensino da leitura em uma escola pública de periferia urbana e também relacionando esses dados ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola. Por fim, na seção de considerações finais, apresentamos os principais resultados e retomamos as limitações do estudo, além de sugerir a importância de pesquisas futuras.

Currículo e cultura escolares em contexto periférico

Os desafios encontrados no ensino e na aprendizagem em sala de aula, relacionados às diferenças culturais e linguísticas, têm sido extensivamente explorados no contexto brasileiro. Alguns pesquisadores destacam que esses conflitos podem ser um fator que contribui para o baixo desempenho acadêmico de estudantes de periferias urbanas (Garcia-Silva; Lima Junior, 2020). Silva (2014), contribuindo para o livro A escola e o mundo do aluno: estudos sobre a construção social do aluno e o papel institucional da escola, organizado por Burgos (2014), também aborda essas áreas periféricas, as quais chama de favela1. Para Silva (2014, p. 422), “[...] tudo o que diz respeito à favela parece revelar um efeito de lugar, de um efeito de vizinhança, ou mesmo de um… efeito de favela”. Assim, as favelas das grandes metrópoles, ou territórios periféricos de cidades interioranas, são os locais que melhor expressam os efeitos da marginalização e da discriminação urbana, que, por sua vez, possibilitam a manifestação de violências simbólicas.

Na revisão de literatura nacional e internacional sobre escolas situadas em periferias urbanas, realizada por Garcia-Silva e Lima Junior (2020), foi identificada uma tendência de argumentos que sugerem a necessidade de os estudantes construírem sua posição e identidade, assumindo um papel ativo em sua própria educação e criando significados por meio de uma reflexão crítica pessoal. Os pesquisadores identificaram argumentos de que, para tanto, seria necessário que os professores fossem capazes de promover a construção de identidade de seus alunos, levando em consideração as práticas sociais e culturais situadas como estratégia para abordar essa construção. Garcia-Silva e Lima Junior (2020, p. 226) enfatizam, no entanto, que “[...] o sistema de relações que produz e reproduz as relações periferia-centro não é exclusivamente escolar e, portanto, não pode ser completamente superado a partir de uma reforma restrita ao espaço escolar”. Tal argumento nos parece bastante pertinente, visto que “[...] a escola não poderá ser a salvadora de problemas cujas raízes estão cravadas em uma estrutura social mais amplamente desigual e excludente” (Carvalho, 2022, p. 139). Nesse sentido, argumentamos sobre a necessidade de considerar, em abordagens que contemplam a educação linguística em escolas de periferias urbanas2, tanto o sistema de classes quanto o sistema escolar e suas subjetividades.

As contribuições de Garcia-Silva e Lima Junior (2020), que classificam a educação nas periferias urbanas em três grandes grupos, são particularmente relevantes para a discussão que pretendemos abordar. Os grupos identificados pelos pesquisadores são: 1) Educação Tradicional das periferias urbanas; 2) Educação Crítica das periferias urbanas; 3) e Educação Pós-Crítica das periferias urbanas. O primeiro grupo refere-se à aquisição de atitudes favoráveis à educação científica3, colocando em segundo plano as desigualdades sociais que caracterizam a periferia e apresentando o currículo como se fosse neutro. O segundo está relacionado à problematização do currículo tradicional e à construção de um currículo crítico, explicitando o papel da escola tradicional na reprodução das desigualdades sociais e promovendo discussões sobre classe e justiça social. Já o terceiro apresenta uma variedade mais ampla de perspectivas educacionais, abordando temas como identidade, diferença, subjetividade, poder, entre outros, e trabalhando para resgatar a individualidade, sem que isso signifique uma adesão incondicional ao pensamento liberal.

Garcia-Silva e Lima Junior (2020) chamam a atenção para o fato de que a abordagem da Educação Pós-Crítica pode tender a adotar os conceitos iluministas de progresso, como se as etapas posteriores possuíssem clara vantagem sobre as anteriores, e destacam a importância de tratar esse aspecto com desconfiança, pois as questões de classe ainda são relevantes e não deixaram de existir simplesmente porque não são mais o centro das discussões. Eles ressaltam que, ao serem invisibilizadas, elas podem se tornar ainda mais poderosas. Nossos argumentos convergem com essa observação, especialmente em pesquisas que têm como lócus escolas localizadas em periferias urbanas, cujas principais características são as carências, as violências e a falta de recursos materiais e culturais dos mais diversos tipos.

Nessa linha de pensamento, Pereira (2019) ressalta a importância de reconhecer que não existem alunos prontos e iguais na escola e destaca a necessidade de considerar as diferenças sociais e o contexto em que as instituições educacionais estão inseridas. Para uma compreensão adequada, é essencial adotar uma visão ampla das condições sócio-históricas em que essas diferenças se manifestam. Na pesquisa de Pereira (2019, p. 13), por exemplo:

O grupo pesquisado se encontra em um espaço carente de vários recursos, apresentando uma biblioteca pequena, com um número reduzido de livros, dentre eles os clássicos; poucos computadores no laboratório de informática; pais que não acompanham a vida escolar do filho; pouco espaço para realizar atividades diferenciadas; despreparo de alguns professores etc.

Percebemos pelo menos três pontos fundamentais, elencados pela pesquisadora, na compreensão sobre o baixo rendimento de leitura dos alunos de escolas localizadas em áreas periféricas urbanas: 1) escassez de recursos diversos para fins de ensino-aprendizagem; 2) falta de acompanhamento dos pais na vida escolar de seus filhos; 3) despreparo dos professores. O primeiro aspecto recai sobre a responsabilidade do poder público, que não estrutura adequadamente as escolas nessas regiões, comprometendo a qualidade do ensino. O segundo ponto está relacionado à responsabilidade da família na educação dessas crianças, como mencionado por Lahire (2004) ao ressaltar a importância das relações de interdependências familiares para a educação dos filhos. Já o terceiro aspecto enfatiza a responsabilidade dos professores, que, segundo a autora, encontram-se despreparados para enfrentar os desafios no ensino de leitura nessas escolas.

Concordamos com Pereira (2019) em relação ao primeiro aspecto, uma vez que reconhecemos a importância do papel do Estado em viabilizar e democratizar os recursos materiais e humanos necessários para reduzir as desigualdades sociais e educacionais nas áreas periféricas. Ainda assim, é crucial considerar que forças econômicas, sociais e políticas também podem influenciar a experiência desses alunos na escola, o que implica reconhecer que a escola, por si só, não conseguirá resolver problemas que vão além de suas responsabilidades.

Em relação ao segundo aspecto, temos algumas observações, uma vez que consideramos importante levar em conta o contexto situado das famílias a fim de evitar generalizações precipitadas. Em uma pesquisa recente, constatamos que realmente existe um senso comum de que famílias mais pobres são negligentes em relação à educação de seus filhos (Carvalho, 2022). No entanto, apresentamos, também, dados que divergem dessa percepção. Famílias empobrecidas e periféricas não são pessoalmente negligentes com a educação de seus filhos. Pelo contrário, apesar das dificuldades extremas em várias áreas de suas vidas, a maior parte dos alunos relatou que seus pais e mães comparecem às escolas quando são chamados e os incentivam a se envolverem nas atividades de aprendizagem. Além disso, mais da metade dos alunos relataram que seus pais conversam constantemente sobre assuntos escolares, demonstrando supervalorização do ambiente escolar, aspecto importante, segundo Lahire (2004), nas relações de interdependência que promovem o sucesso acadêmico em meios populares.

A respeito do terceiro aspecto, também propomos um ponto de divergência, entendendo que muitas vezes os professores da Educação Básica em escolas localizadas em periferias urbanas enfrentam desafios profissionais. Em uma pesquisa publicada recentemente, pudemos apontar evidências de que a maioria dos professores inseridos nesses contextos demonstra insatisfação devido à baixa remuneração e longas jornadas de trabalho. Esses problemas, quando encobertos, afetam negativamente o trabalho docente (Carvalho; Silva; Santana, 2022), que não se limita ao tempo em sala de aula. O preparo, o planejamento e o desenvolvimento de projetos variados requerem recursos materiais, tempo e condições adequadas. Responsabilizar o professor pelos problemas em sala de aula, ou por um suposto despreparo, seria reproduzir um discurso que perpetua a exclusão e a discriminação dessa classe.

É fundamental relacionar essas questões às discussões sobre o currículo escolar em escolas de periferias urbanas, uma vez que o currículo envolve a seleção de informações e conhecimentos que serão ofertados ou não aos estudantes dessas escolas. Frisamos uma pertinente observação de Moreira (2017, p. 21) ao apontamento de que “[...] grande parte das teorias educacionais e curriculares tratou de maneira apolítica e a-histórica a aprendizagem, a organização e a seleção curriculares”, o que se aproxima bastante com a linha de pensamento da Educação Crítica de periferias urbanas. Corroboramos Oliveira (2013, p. 32) ao afirmar que “[...] não é por acaso que a organização escolar é controlada de perto pelas classes dominantes, que influenciam abertamente nas escolhas dos conteúdos, das disciplinas, dos perfis dos professores que servem e que não servem para a escola etc.”, o que torna o tema do currículo altamente significativo para qualquer estratégia voltada à questão da relação entre periferia, pobreza e educação.

Apple (2008), teórico pertencente à Educação Crítica em periferias urbanas, afirma que a educação não é um empreendimento neutro, tampouco o educador está isento do ato político. De sorte que, para ele, o educador não tem como “[...] separar totalmente sua atividade educacional das diferentes reações dos sistemas institucionais e das formas de consciência que dominam economias altamente industrializadas” (Apple, 2008, p. 35). O teórico defende a existência de uma relação intrínseca entre educação e estrutura econômica, assim como conexões entre conhecimento e poder. Por essa razão, o problema existente entre a escola, o ensino e o currículo adotado têm se tornado cada vez mais uma questão estrutural. Ressalta, ainda, que há, na escola, dois tipos de conhecimento: um conhecimento aberto (concepções normativas de cultura de valores legitimados no currículo) e um conhecimento encoberto ou oculto (são os subterfúgios do ambiente escolar - regras de convivência que mais excluem, que incluem; sentimento de prazer pelo fracasso do outro; sentimento de competitividade; entre outros), cujos princípios de seleção e organização servem para medir o “sucesso” do ensino.

A partir da compreensão desses dois conhecimentos, Apple (2008, p. 36, grifo nosso) considera basilar atentar-se às “[...] mediações ideológicas e culturais que existem entre as condições materiais de uma sociedade desigual e a formação da consciência de seus indivíduos”. Isso é o que possibilita, para o teórico, a dominação cultural como resultado de uma dominação econômica. Aquela, para Apple, tenta naturalizar a reprodução desta; e isso ocorre, inclusive, no espaço escolar. Essa tentativa de “reprodução natural” da cultura dominante, segundo Apple (2008, p. 37), faz com que, no espaço escolar, sejam criadas e recriadas determinadas formas de consciência que permitem “[...] a manutenção do controle social sem a necessidade de os grupos dominantes terem de apelar a mecanismos abertos de dominação”, que seria precisamente o uso da força. Esse controle silencia algumas vozes e constitui a escola como uma cultura de classe.

Diante do exposto, parece-nos evidente que, para a existência da hegemonia, é preciso, antes, que se instaure um processo social do qual ela depende, que são os modos de incorporação cultural (Olindo, 1995), entre os quais estão as práticas pedagógicas e o currículo escolar (Apple, 2008). Se as instituições escolares não apenas “produzem pessoas”, mas também “produzem conhecimento”, essas mesmas instituições e seus currículos são, de semelhante maneira, “agentes da hegemonia cultural e ideológica” (Apple, 2008, p. 40). Portanto, é possível dizermos que há uma relação intrínseca entre estrutura econômica e educação, assim como conexões entre conhecimento e poder.

Esse ponto é relevante para a discussão que aqui propomos, pois discutimos a implementação do NEM, instituído por meio da Lei no 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Brasil, 2017). De acordo com informações retiradas do site do Ministério da Educação (MEC), o NEM se define por uma organização curricular “mais flexível” e visa dar continuidade ao projeto de formação básica que compõe a BNCC; e, também, aproxima “[...] as escolas à realidade dos estudantes de hoje, considerando as [...] complexidades do mundo do trabalho [...]” (BRASIL, 2018b, grifo nosso). Convém lembrar que os estudantes de hoje são advindos de classes economicamente menos favorecidas e tiveram maior acesso à escolarização formal como direito social fundamental durante governos populares entre os anos de 2003 e 2015 (Cobo; Athias; Mattos, 2014; Pinheiro-Machado; Scalco, 2022; Silva; Bruno; Silva, 2020; Soares, 2017). Esse ponto merece, portanto, bastante atenção.

O site do MEC informa que foram criados os Itinerários Formativos (IF), que são basicamente um “[...] conjunto de disciplinas, projetos, oficinas, núcleos de estudos, entre outras situações de trabalho, que os estudantes poderão escolher no ensino médio” (Brasil, 2018b, grifo nosso). O projeto parece objetivar uma formação técnica e profissional desse público de alunos. O MEC apresenta, ainda, como “benefício”, as habilitações de formação técnica e profissional, por meio do “projeto de vida do estudante” (BRASIL, 2018b), que terá de escolher, entre seus 15 e 17 anos de idade, uma formação técnica ou profissional, a qual deverá seguir. Da mesma forma, há informação de que nenhuma disciplina será excluída, mas as já existentes sofrerão nova organização curricular, vide redução de carga horária. Ademais, permite que pessoas com “notório saber” possam atender à demanda de formação desses estudantes, “ministrando conteúdos afins” à sua área de formação ou “experiência profissional” (BRASIL, 2018b). Assim, basta ter afinidade com um determinado tipo de conhecimento, ou uma breve experiência profissional, para estar apto à atividade docente sem que, para isso, tenha obtido formação adequada.

Estudos recentes, como os de Barros (2021), Baruffi (2023), Esteves e Oliveira (2022), Gabriel, Pereira e Gabriel (2022), Lemos (2022), Lima e Monteiro (2022), Macário (2022), Rodrigues e Ferreira (2021) e Silva Filho (2019), apresentaram evidências de que a reforma do Ensino Médio: 1) segue políticas e diretrizes neoliberais; 2) fragiliza as humanidades e forma consumidores e mão de obra barata para o mercado de trabalho; 3) oferta conteúdos sob uma perspectiva meritocrática, individualista e descontextualizada; 4) contribui para haver instabilidade educacional e política; 5) não representa as demandas do alunado, dos professores e dos pesquisadores e mantém a reprodução estrutural segregadora vigente; 6) cerceia a autonomia de pensamento e priva os alunos do amplo conhecimento filosófico e científico; 7) desarticula o acesso ao conhecimento historicamente construído e prioriza os interesses neoliberais em detrimento das conquistas históricas; 8) viabiliza um desmanche da educação pública; 9) provoca uma defasagem de aprendizagem, reduzindo a carga horária de disciplinas humanas.

Percebe-se escancarado o direcionamento dado à escola pública, desde a BNCC até à reforma do Ensino Médio, inclinado à precarização da educação, bem como à formação de mão de obra para o mercado de trabalho, constituindo-se, assim, como uma formação tecnicista e mercadológica (Campos, 2021; Gonçalves; Deitos, 2020; Sena; Albino; Rodrigues, 2021). Ademais, ainda que nenhuma disciplina tenha sido excluída, a maior parte das humanidades deve ficar em segundo plano. Os conteúdos específicos para uma formação filosófica, sociológica e acadêmica em geral tiveram redução de carga horária e passaram a possuir apenas 40 horas/aulas durante todo o ano letivo. Não diferente, as matérias específicas para a formação nas áreas das Ciências Biológicas ou Ciências da Saúde, como Física, Química e Biologia, também foram reduzidas e possuem, agora, 40 horas/aulas destinadas a todo ano letivo.

Entendemos, com isso, que a formação da classe trabalhadora parece estar sendo prejudicada pela nova formação curricular e isso articula para que a maior parte dos filhos de classes menos favorecidas não consiga ultrapassar a linha da subalternidade em termos de formação humana e profissional. Sena, Albino e Rodrigues (2021, p. 4) dizem que as novas diretrizes da BNCC têm aberto caminhos para novos ajustes e discursos cujo objetivo é “[...] efetivar a política neoliberal no âmbito ou no espaço educacional”. Conforme Sena, Albino e Rodrigues (2021), essa efetivação está sendo alcançada mediante a utilização da própria estrutura pedagógica como meio de concretizar seus objetivos. Isso tem trazido ao espaço escolar um discurso mercadológico que ganhou legitimidade e credibilidade, influenciando diretamente a formação inicial de professores.

Em relação às diretrizes sobre o ensino de leitura, na BNCC, o documento recomenda o tratamento das práticas leitoras a partir de dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão, como as condições de produção e recepção de textos em diferentes mídias e esferas da atividade humana, dialogia e relação entre os diversos textos, reconstrução de textualidade, reflexão crítica de temáticas, compreensão de efeitos de sentido nos usos linguísticos e multissemióticos, estratégias e procedimentos de leitura e, por fim, adesão às práticas de leitura (Brasil, 2018a). O documento, no entanto, não estabelece com maior precisão como avaliar a autonomia e a fluência nas práticas leituras, dado que não existem “[...] muitos pré-requisitos (a não ser em termos de conhecimentos prévios), pois os caminhos para a construção de sentidos são diversos” (Brasil, 2018a, p. 76). Argumentamos, com isso, que, apesar de o documento prever o ensino das competências necessárias para haver práticas leitoras do público estudantil em geral, desconsidera que esse mesmo público estudantil pode pertencer a realidades socioeconômicas bastante heterogêneas e até mesmo discrepantes.

Em termos gerais, Peroni, Caetano e Arelaro (2019) veem as direções curriculares dispostas na BNCC não como uma disputa pela qualidade da educação, mas como uma forma de submissão da educação aos interesses dominantes. Campos (2021, p. 150) também compreende essa nova diretriz como algo de caráter “(neo)tecnicista”, dado que, na BNCC, está impregnada uma lógica economicista da educação. Outrossim, Gonçalves e Deitos (2020, p. 8) dizem que a BNCC “[...] atende aos imperativos do mercado”, fazendo parte das “[...] prescrições ideológicas do pensamento econômico dos organismos internacionais”. Torna-se razoável dizer, também, que esse não é um problema que se instaurou nos documentos oficiais atuais, mas é uma problemática que vem sendo discutida há um período de tempo significativo. Apple (2008, p. 82), por exemplo, diz que:

O campo do currículo, mais especialmente do que em outras áreas educacionais, tem sido dominado por uma perspectiva que poderia ser chamada de “tecnológica”, pelo fato de que o maior interesse que orienta seu trabalho envolve encontrar o melhor conjunto de meios para atingir fins educacionais previamente escolhidos.

O que está acontecendo na atualidade é uma ostensiva tentativa de precarização e concessão do ensino público aos interesses mercadológicos, que permite ao filho das classes mais empobrecidas apenas adquirir certas habilidades educacionais para viver na condição de subalternos dos mais privilegiados, nunca para questionar essa condição a que é submetido (Soares, 2017). O NEM sobrecarrega o currículo de conteúdos voltados ao mercado de trabalho, dispostos em apostilados que pouco ou nada podem ser modificados pelo docente a depender do contexto de ensino e do público estudantil; e pouco ou nada abre espaço para priorizar o ensino e a aprendizagem de leitura como prática reflexiva, crítica e libertadora.

Ao retomarmos o 2º ponto apresentado por Pereira (2019), voltamos a falar sobre as relações de interdependências familiares em meios populares, propostas a princípio por Lahire (2004). Se, por um lado, há a discussão de que o incentivo à leitura, infundido no seio familiar, é essencial para que uma criança se desenvolva como pessoa leitora; por outro, é inevitável considerar que o currículo se efetue como possibilidade de organização de conhecimento que vise ao desenvolvimento e à consolidação da aprendizagem da leitura, na medida em que prioriza as práticas de leitura em sala de aula. Entende-se que:

De fato, uma vez que a criança formou, sobretudo na interdependência com seus pais, um conjunto de disposições e de competências, escolarmente adequadas, pode enfrentar “sozinha” as exigências escolares. Mas é exatamente este conjunto de disposições e de competências pré-requisitadas que parece estar mais ou menos presente, dependendo do meio social considerado, e, nesse nosso caso, dependendo da configuração familiar considerada (Lahire, 2004, p. 65).

A autonomia leitora, nesse sentido, deve ser concebida como um produto de estruturas formadas em contextos socioculturais e socioeconômicos, permeadas por relações de interdependência. A responsabilidade de corresponder às expectativas escolares, que propagam, na mesma medida em que exigem, um comportamento sistematizado na cultura dominante, não deve, pois, ser despejada sobre os ombros de quem não pode suportar, dado que

[...] autonomia não é a consequência de uma vontade que reconhece a regra enquanto algo racionalmente fundado, mas sim a consequência de um ethos que reconhece, imediata e tacitamente, princípios de socialização, regras do jogo não muito distantes daquelas que presidiram sua própria produção (Lahire, 2004, p. 65).

Admitindo a existência dessas complexidades, defendemos, sim, que tal responsabilidade não deve ser incumbida tão somente à criança ou à sua família, mesmo que a pretensão fosse fundamentar uma análise a partir do esforço pessoal do indivíduo. Isso porque, para a moral “[...] da perseverança e do esforço”, para que “[...] possam constituir-se, desenvolver-se e serem transmitidas, é preciso certamente condições econômicas de existência específicas” (Lahire, 2004, p. 24, grifo nosso). Argumentamos, portanto, que as relações de interdependência desempenham um papel fundamental no desenvolvimento e na consolidação de práticas de leitura mais autônomas. No entanto, é importante ressaltar que, dependendo do contexto em que um aluno empobrecido e periférico está inserido, nem sempre terá acesso integral às oportunidades e aos recursos necessários para seu desenvolvimento. Ainda assim, e por mais contraditório que pareça, é preciso que a escola viabilize maior contato com a leitura e a escrita às pessoas mais empobrecidas, para que enxerguem, nessas práticas, uma oportunidade de desenvolvimento.

Desafios na implementação do NEM e o ensino de leitura

Nesta seção, apresentamos e discutimos os dados construídos durante observações que abrangeram desde as primeiras reuniões pedagógicas do ano de 2022 até o final do semestre letivo 2022.1, em uma escola pública e periférica localizada na cidade de Imperatriz, Maranhão (MA). Todos os registros, feitos majoritariamente na sala dos professores em momentos de reuniões ou intervalos, foram documentados em diário de campo. Abordamos as questões de desigualdades socioeconômicas que resultam em desigualdades educacionais e são marcadas pela oferta de um currículo escolar que perpetra a exclusão e a segregação.

No primeiro dia de observação, durante a primeira reunião pedagógica para o planejamento do ano letivo de 2022, uma das professoras, Professora 1 (P1), mencionou: “[...] aqui, nesse novo Ensino Médio, tudo é voltado para o mercado” (P1, diário de campo, 2022). Alguns outros professores concordaram. A Coordenadora Pedagógica do turno vespertino (CP1), de forma mais branda, mencionou que “[...] o novo Ensino Médio é uma educação mais flexível, voltada para a formação técnica e profissional desses estudantes [e que] eles [o governo] não retiraram as outras disciplinas de humanas e de ciências naturais, apenas reduziram a carga horária”, por isso, a escola iria apenas “[...] sistematizar o que já fazia, reduziram o conteúdo justamente para isso” (CP1, diário de campo, 2022), o que também foi observado nos estudos de Gabriel, Pereira e Gabriel (2022) e de Lima e Monteiro (2022). Diante disso, inferimos que alguns professores adotam uma postura mais resistente em relação à nova formação curricular do Ensino Médio, mas também há aqueles que entendem que a escola já vinha implementando esse tipo de abordagem pedagógica e que o novo currículo escolar não parece tão prejudicial para a formação intelectual dos alunos.

Em outro momento de observação, que ocorreu durante o intervalo entre aulas no turno vespertino, a Professora 2 (P2) fez a seguinte fala:

O novo Ensino Médio está parecendo com o ensino de 80. Eu lembro de quando eu passava em frente à UEMA [Universidade Estadual do Maranhão] e queria estudar ali. Mas era muito distante de mim. Era um sonho distante, porque o que eu sabia era pouco. Não por mim, não pelo meu desinteresse, mas porque era o que tinham me ensinado na escola (P2, diário de campo, 2022).

Na fala da referida professora, há uma ênfase no fato de que seu distante sonho de estudar em uma universidade durante sua trajetória estudantil não se devia à sua própria falta de competência intelectual ou interesse pessoal pela aprendizagem, aspecto também observado nos estudos de Baruffi (2023), Esteves e Oliveira (2022) e Macário (2022). Ao contrário, era resultado da formação que ela recebeu ao longo de sua jornada escolar, que tinha uma composição curricular distinta e desigual em relação à distribuição dos conteúdos necessários para o ingresso no Ensino Superior. A professora compreende, agora, que essa antiga estrutura curricular está retornando às escolas públicas disfarçada de “novo” Ensino Médio. Ainda nesse momento de observação, o professor de Língua Inglesa, Professor 3 (P3), fez o seguinte comentário: “Esse novo Ensino Médio é só trabalho, não forma o aluno para pensar, só pensa em trabalho. Abri o livro e não tem dificuldade nenhuma com o conteúdo, está fácil demais, o aluno não vai aprender a pensar. É só para formar gente para trabalhar de graça, para morrer de trabalhar” (P3, diário de campo, 2022).

O mesmo professor, no entanto, mencionou em seguida que sua posição política é alinhada aos valores do nacionalismo e expressou simpatia pela ditadura militar. Segundo ele, “[...] o melhor tempo que a gente viveu foi no militarismo, aquilo não era ditadura, ditadura é o STF [Supremo Tribunal Federal] de hoje” (P3, diário de campo, 2022). Chamamos atenção ao fato de que o docente, na qualidade de um agente pedagógico de ensino, foi capaz de perceber e formular uma análise crítica sobre o material didático recebido, identificando as intenções mercadológicas incrustadas na nova proposta para o Ensino Médio (Campos, 2021; Gonçalves; Deitos, 2020; Sena; Albino; Rodrigues, 2021). No entanto, ele não foi capaz de relacionar o conteúdo do livro recebido com o mesmo modelo pedagógico promovido durante a ditadura militar, tampouco foi capaz de identificar a ideologia segregadora e violenta perpetrada nesse período.

Depoimentos como esses evidenciam o papel que a Educação Tradicional vem executando ao longo dos séculos, por meio do qual se “naturalizam” desigualdades disfarçadas pelo argumento do mérito (Apple, 2008). Aos alunos de baixa renda fica a obrigação de se esforçarem pessoal e individualmente para, então, alcançarem seu próprio “sucesso” pessoal (vide financeiro), desconsiderando as condições e a distribuição de informações desiguais, para que esse esforço produza algum fruto, em relação aos seus pares mais privilegiados, o que está bastante alinhado ao pensamento neoliberal no contexto educacional, como informaram Baruffi (2023) e Lemos (2022).

É oportuno mencionar a fala do Gestor Escolar (G), ao afirmar que “[...] o ano de 2021 foi complicado, porque os alunos sumiram e muitos deles precisaram trabalhar” (G, diário de campo, 2022). A Professora 4 (P4) complementou dizendo que “[...] só tem o nome deles, mas nenhum está estudando” (P4, diário de campo, 2022). Evidencia-se uma acentuação de pobreza e vulnerabilidades sociais, motivo de evasão escolar durante o pico de pandemia pela covid-19 entre 2020 e 2021, também constatado por Sobrinho Junior e Moraes (2020). A P2, durante a mesma reunião e no afã de estimular os demais colegas [interpretação nossa], expressou uma fala que merece ser destacada: “[...] a reunião de hoje será o cabeçalho de tudo o que nós vamos escrever para todo o ano letivo de 2022, e vamos tentar fazer isso de maneira mais poética possível” (P2, diário de campo, 2022). As falas do Gestor Escolar, da Professora 4 e da Professora 2 revelam a complexidade da situação enfrentada pela escola em relação a essa problemática e também às dificuldades socioeconômicas dos alunos. Ainda assim, o engajamento dos professores em enfrentar esses desafios é evidente, como expresso pela Professora 2, ao ressaltar a importância de superar as dificuldades e proporcionar uma experiência educativa significativa para os estudantes.

Em conversa com a Vice-gestora (G2), tomou-se conhecimento de que os alunos estavam sem ter o que comer e sem ter dispositivos eletrônicos para participarem das aulas, o que contribuiu para a alta taxa de evasão escolar. A G2 informou que a escola chegou a fazer vaquinha entre toda a comunidade “[...] para ajudar alguns alunos por conta da situação econômica deles, porque são alunos muito pobres; e teve até uma funcionária da escola que recebeu ajuda também” (G2, informação oral, 2022). A vaquinha, segundo G2, serviu para comprar alimentos, remédios, uniformes e até sapatos para esses alunos.

Outro aspecto que merece ressalto é um diálogo entre professores durante o intervalo, iniciado porque um dos alunos havia perguntado para a cozinheira da escola o que haveria de merenda naquele dia. Alguns professores acharam indolente da parte do aluno. A CP2, no entanto, disse aos colegas que “[...] se o teu aluno chega para ti, no início da aula, e pergunta o que vai ter na merenda é porque ele veio para escola com fome” (CP2, diário de campo, 2022). Essa fala recebeu contribuição da G2, que completou: “[...] o pé de mamão da escola, antigamente, chegava a amadurecer os mamões, hoje em dia nem os mamões verdes escapam, eles comem tudo, eles chupam a cana-de-açúcar4 no talo, nem descascam e isso é fome” (G2, diário de campo, 2022). Embora o relato se refira a uma única escola da cidade, o problema é mais abrangente. Pudemos constatar, por meio de noticiários diversos5, que a acentuação da pobreza durante os anos de 2020 e 2021 não apenas contribuiu para a evasão escolar, como também foi o motivo pelo qual crianças e jovens viessem a desmaiar de fome dentro da sala de aula por falta de alimentação em suas casas.

Segundo relato da G2, o dinheiro para a merenda escolar não atende à demanda do público estudantil. Isso porque a quantia é calculada de acordo com o número de alunos do ano anterior - período de isolamento social e maior evasão escolar -, que era em menor quantidade em relação ao número de discentes que a escola recebeu em 2022 - momento de retorno às aulas presenciais. É importante ressaltar que milhões de famílias enfrentaram situações de falta de renda, levando-as a passar por dificuldades financeiras e até mesmo fome. Essa realidade tem impactos diretos na capacidade das famílias de garantir uma educação adequada para seus filhos, criando uma disparidade educacional significativa e duradoura. Durante a recepção de pais e filhos, foi possível constatar essa realidade, quando a Coordenadora Pedagógica do turno matutino (CP1) fez um pedido aos pais para que alimentassem seus filhos e os incentivassem a frequentar a escola, o que foi reforçado pelo Gestor (G) da instituição. A presença desses pais em horário comercial, para atender ao chamado da escola, indica essas famílias valorizam as práticas escolares, o que é fundamental para o sucesso escolar nos meios populares, conforme Lahire (2004).

Além disso, em reunião pedagógica, a CP1 declarou que “[...] já é uma prática da escola em manter contato e ir atrás dos alunos e dos pais, para saber sobre as faltas desses alunos” (CP1, diário de campo, 2022), antes mesmo do contexto de pandemia. A CP1 continuou dizendo que “[...] eles [os professores] sabem que a maioria dos alunos que faltam é porque precisam trabalhar, ou porque têm problemas familiares” (CP1, diário de campo, 2022). Segundo os gestores e os coordenadores pedagógicos, os principais motivos para o agravamento da evasão escolar residem em questões socioeconômicas.

Além disso, parece haver um evidente desgaste da classe docente que também foi afetada, como todos, pelas situações emergenciais em decorrência tanto da pandemia por covid-19, mas também pela tentativa de mercantilização da Educação Básica pública (Neri; Osório, 2021; Nunes, 2021). Os professores parecem estar jogados à própria sorte, como pode ser observado no depoimento do G: “[...] o Ministério da Educação6 não passou as informações necessárias às Secretarias de Estado, que também não conseguiram repassar nenhuma informação para as escolas e nós, com isso, não conseguimos ajudar os professores” (G, informação oral, 2022). Durante nossas observações, identificamos uma dificuldade na compreensão da dinâmica dos Itinerários Formativos (IF). Gestores e professores também nos informaram que as cartilhas já vêm prontas e que os docentes têm pouca liberdade para fazer modificações, o que evidencia uma ameaça ao direito do professor da Educação Básica de exercer a livre cátedra.

É propício dizer, no entanto, que os professores, de modo geral, continuam dispostos a pensar estratégias pedagógicas voltadas para o público de alunos que têm. Como exemplo, citamos um dos professores, Professor 5 (P5), que propôs um momento lúdico e dinâmico para a recepção dos novos alunos do 1º ano do Ensino Médio. Outro professor, Professor 6 (P6), indicou músicas para as dinâmicas de recepção inclinadas ao gosto musical dos mais jovens, além de sugestão de leitura de textos para reflexão em conjunto, momento em que as práticas de leitura, embora timidamente, ganharam algum espaço.

Essas evidências contrariam frases de efeito que propagam o senso comum de que o professor “não se renova”, ou “não busca alternativas”, conforme os argumentos de Pereira (2019). Aliás, de maneira mais clara e objetiva, o problema educacional não parece estar no professor, nem no aluno, tampouco na família do aluno, muito menos na escola em si. O problema aparenta estar em um sistema que reduz a escola a interesses mercadológicos e trata os alunos das camadas mais empobrecidas como mera mão de obra para o mercado de trabalho, portanto menos crianças que as outras crianças; como também trata o professor como menos profissional que os outros profissionais, colocando sobre seus ombros a responsabilidade de reparar um problema que se inicia na violência das privações materiais e culturais. Como resultado, a escola acaba falhando em seu propósito educacional emancipador. Além disso, o entendimento entre os professores é uníssono e claro: o NEM obriga os jovens a decidirem o resto de sua vida profissional aos 15 anos de idade, conforme pode ser observado a seguir:

Esse momento na vida de vocês é inglório, porque, com esse novo Ensino Médio, vocês terão que decidir a vida de vocês agora, exatamente na idade que vocês estão descobrindo a vida. Então, eu queria que vocês entendessem que é um momento bem sério. Eu sei que uma pequena parcela de vocês tem um problema sério, real, pesado e que independe só da boa vontade de vocês para resolver. Mas, fora esses poucos estudantes que têm problema sério e real mesmo, a maioria vai ver que os problemas de hoje não são nada. Vocês vão ver isso no futuro (G, diário de campo, 2022).

É manifesto o compromisso do gestor escolar em evidenciar o significado da implementação do NEM para a vida e para a formação desses estudantes. Além do mais, fica notória sua preocupação em alertá-los sobre o peso de mais uma responsabilidade que é colocada sob os ombros desses jovens discentes: a decisão sobre seu futuro profissional em uma fase da vida tão complexa e dinâmica, como é a fase da adolescência.

Ainda no contexto escolar, ao analisarmos o PPP, elaborado e aprovado pela equipe pedagógica, identificamos propostas de um documento “[...] que pensa os alunos e demais colaboradores como peça chave para uma sociedade mais igualitária e questionadora [...]”, visando “[...] estimular e proporcionar ações que vão de encontro às problemáticas sociais [...]”, bem como “[...] objetivando criar condições para a formação de cidadãos críticos e compromissados com sua realidade [...]”, em direção a uma “[...] sociedade mais justa e igualitária” (Maranhão, 2022, p. 8). Dos 14 objetivos que constam no documento, alguns são interessantes à análise realizada neste estudo:

  • 1º - Articular os docentes com o objetivo de descobrir as causas que interferem no desenvolvimento do trabalho pedagógico;

  • 2º - Proporcionar aos docentes meios teóricos e práticos para um fazer pedagógico que os protagonize como transmissores de conhecimentos e saberes significativos;

  • 3º - Contextualizar a realidade do aluno no meio onde vive, respeitando o seu modo de ser e viver;

  • 4º - Sensibilizar o corpo docente para que se torne capaz de estabelecer uma relação ativa e transformadora no meio social onde atua; ampliar a participação democrática na escola em todos os aspectos (Maranhão, 2022, p. 12).

Em relação ao primeiro objetivo, observações em campo permitiram-nos notar que uma das causas que mais interferem no trabalho docente é a demanda social que o aluno traz para a escola, decorrente da aguda estratificação social. Ao professor é atribuída a responsabilidade de resolver problemas para os quais não foi formalmente preparado, como lidar com a questão das desigualdades sociais que afetam diversas áreas da vida de seus alunos. Esse fator pode interferir significativamente nas condições de acesso e permanência escolar desses discentes, bem como em sua aprendizagem, desenvolvimento e consolidação leitora. Não menos importante, salários irrisórios, comparados a outros segmentos profissionais, longas e exaustivas jornadas de trabalho, precárias condições de serviço (Carvalho; Silva; Santana, 2022) parecem estar entre os principais motivos que interferem no trabalho docente.

A respeito do segundo objetivo destacado, percebemos que os docentes, desde a implementação do NEM, parecem estar perdendo a autonomia pedagógica; ficando, portanto, tolhidos para contribuir com a ampliação de “conhecimentos e saberes significativos” (Maranhão, 2022, p. 12). A respeito do terceiro objetivo frisado, percebemos que há uma preocupação dos gestores e das coordenadoras com as intempéries que fazem parte da vida dos alunos e que afetam diretamente sua relação com a escola, aspecto também observado nos artigos da obra organizada por Burgos (2014), que estabelece uma relação entre a escola e o mundo do aluno. Notamos, no campo de pesquisa, haver certa preocupação em conseguir uma linha de transporte coletivo aos estudantes que vivem em áreas urbanas irregulares e, por isso, a prefeitura não coloca à disposição meios de locomoção até a escola. O Gestor geral da escola informou que já encaminharam inúmeros ofícios pedindo à Prefeitura a criação de uma linha de ônibus que atenda a esse público de alunos, mas recebem resposta negativa com a alegação de que esses alunos não possuem comprovante de residência7.

Já o quarto objetivo aqui destacado merece uma atenção específica. Elenca-se como objetivo tornar o corpo docente mais sensível a uma relação afetiva e democrática com seus alunos (Maranhão, 2022). Para tanto, acredita-se que a escuta ativa é basilar. Durante o momento de observação em sala de aula, foi possível presenciar um momento de sério esgotamento docente, em que a P1 não conseguia falar devido ao barulho em sala de aula por parte dos discentes e, por isso, convocou a presença da CP2. No limite de sua exaustão de trabalho pedagógico, a CP2 tentou conter o “mau comportamento” dos alunos com expressões verbais como: “Esses quatro idiotas que ficam atrapalhando a aula” e, também, “[...] vocês são um bando de à toa que não quer nada da vida” (CP2, diário de campo, 2022), em tom de voz alto e irritadiço.

Reconhecemos que é preciso muita cautela para analisar esses dados, visto que o ano letivo de 2022 começou carregado de cansaço mental derivado de um trabalho exaustivo de Ensino Remoto (ER) entre 2020 e 2021, bem como perdas irreparáveis tanto a uma parte dos alunos, quanto a uma parte dos professores, derivadas da letalidade da covid-19. Professores e coordenadoras aparentavam estar no limite da exaustão em relação ao trabalho pedagógico que, a cada dia, ficava mais controlado por um currículo escolar despótico, como também por estruturas prediais insuficientes e recursos escassos ao desenvolvimento de sua função educadora. Os professores e a equipe docente, como um todo, além de também serem pessoas humanas e estarem passíveis de estresse e esgotamento, parecem ser a “linha de frente” que suporta as consequências da violenta desigualdade de recursos materiais e culturais injustamente distribuídos entre as classes de pessoas. São questões multifatoriais que precisam ser consideradas, para que não se caia na armadilha da generalização diversas.

A G2, a respeito de situações como as relatadas, disse que “[...] parece haver uma bomba-relógio na mão dos educadores, que não sabem lidar com questões que estão além do trabalho pedagógico; e por outro lado o professor e a equipe escolar não podem abrir mão de sua autoridade, está muito difícil” (G2, informação oral, 2022). A P2 ratificou dizendo que “[...] está todo mundo com o cérebro fatigado de tanto celular durante a pandemia, inclusive os professores” (P2, informação oral, 2022). Segundo a G2, o uso excessivo do celular, durante o período de isolamento social e as aulas no modelo de ER, fez com que muitos alunos desenvolvessem ansiedade e depressão. A G2 relatou que, no início do ano letivo de 2022, “[...] uma aluna teve crise de ansiedade, arrancando os cabelos da sobrancelha, porque está viciada no celular; e outro aluno da manhã gritou no meio do pátio com a CP2, mandando ela [sic] tomar no cu” (G2, informação oral, 2022). A P2 complementou dizendo que “[...] os alunos estão enlouquecidos depois da pandemia” (P2, informação oral, 2022).

A primeira autora deste artigo teve a oportunidade de estar em sala de aula com cada turma do 1º ano do Ensino Médio e, com essa experiência, foi possível constatar que os alunos parecem apresentar uma atenção muito fragmentada durante as aulas; assim sendo, o problema que já havia antes da pandemia por covid-19 foi agravado. Essas crianças, que ficaram isoladas e cativas de aparelhos celulares para fins educativos, segundo apontamento de alguns estudos (Neri; Osório, 2021; Nunes, 2021), não atingiram seus objetivos nas camadas mais populares. É pouco provável que a escola e seu quadro docente consiga, sozinha, conter os efeitos provocados por um corpo social desigual, excludente e discriminatório. Além do mais, os próprios professores sofrem, também, as consequências das desigualdades sociais (Carvalho; Silva; Santana, 2022). Isso porque a esses profissionais é destinada uma parte muito pequena dos recursos de remuneração pelo seu trabalho, e muitos precisam se dedicar a dois ou mais empregos para conseguirem viver com o mínimo de dignidade. Esse é um fator que precariza o trabalho docente, dado que os professores, como pessoas humanas, não exercem apenas uma única função social, mas são, além de docentes, mães, pais, filhas, filhos, mulheres, homens, pessoas não binárias e precisam de tempo para se dedicarem a esses outros papéis sociais.

Toda essa situação de sobrecarga de trabalho, má remuneração, recursos escassos para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, bem como estar na linha de frente dos efeitos das profundas desigualdades a que os discentes estão submetidos, contribui para que a relação afetiva com os alunos e a sensibilidade para uma participação mais democrática em todos os aspectos (Maranhão, 2022) fique expressivamente prejudicada. Seguindo, o aspecto leitura é contemplado no PPP no componente Língua Portuguesa e no componente Artes, cujo objetivo é promover a leitura de produções literárias de diversos autores em seus mais diversos gêneros textuais. Para tanto, o PPP prevê que o espaço da biblioteca tenha como finalidade incentivar a pesquisa bibliográfica, a leitura e outras atividades que contribuam para o enriquecimento intelectual, cultural e intercultural de professores, estudantes, suporte pedagógico, administrativos e comunidade escolar como um todo (Maranhão, 2022). Essa, também, é uma previsão que consta apenas no PPP, devido à falta de infraestrutura da biblioteca.

Diante das evidências apresentadas e dos relatos dos gestores e professores, torna-se evidente a complexidade e os desafios enfrentados pelos profissionais da educação. A carga de responsabilidade atribuída aos professores vai além do trabalho pedagógico, envolvendo as dimensões socioeconômicas dos alunos, como a pobreza e os impactos da pandemia. É importante ressaltar que no PPP da escola é reconhecida a importância da leitura e prevista a promoção de atividades que enriqueçam o conhecimento cultural e intelectual. No entanto, a falta de infraestrutura adequada dificulta a implementação dessas propostas.

Considerações finais

Este artigo teve como principal finalidade fazer uma análise a respeito de como o currículo e a cultura escolares, em contextos de periferias urbanas, acabam por rarear as já escassas possibilidades de consolidação das práticas de leitura de alunos empobrecidos. Buscamos estabelecer um diálogo junto a outras pesquisas que têm como ponto comum contextos de escolas inseridas em periferias urbanas. Os principais resultados apontam para a compreensão de que, na concepção dos professores, o NEM foca em processos educativos inclinados ao mercado de trabalho (Brasil, 2018b; Campos, 2021; Gonçalves; Deitos, 2020; Sena; Albino; Rodrigues, 2021), deixando em segundo plano o desenvolvimento do pensamento crítico dos aprendentes. Alguns docentes, inclusive, chegaram a comparar o novo currículo à proposta educacional do período da ditadura militar. Observou-se, também, que um dos professores colaboradores, apesar de ter identificado perfeitamente as inadequações educacionais na nova formação curricular para o Ensino Médio, bem como as lacunas do material didático, não pôde associar a identificação dos conteúdos das cartilhas com o período do militarismo.

Foi possível constatarmos que a maior parte dos docentes percebe a nova formação curricular do NEM como um retrocesso educacional, também constatado nos estudos de Barros (2021), Esteves e Oliveira (2022), Lemos (2022), Lima e Monteiro (2022), Silva Filho (2019), entre outros, dado que conteúdos de formação humana perderam espaço de maneira bastante expressiva, além de muitos docentes precisarem ministrar os conteúdos para os quais não foram formados, tampouco receberam qualquer instrução. A gestão escolar se mostrou bastante insatisfeita com a forma como essa nova configuração curricular precisou ser implementada, pois também não receberam qualquer orientação mais específica sobre como conduzir o processo de implementação nas escolas.

As novas matérias incluídas, como as disciplinas eletivas, também parecem ser um desafio pouco proveitoso para os objetivos educacionais, uma vez que os próprios docentes sequer sabem por onde devem seguir para alcançar os objetivos educativos. O PPP da instituição lócus de pesquisa parece não priorizar a leitura como um dos principais componentes de aprendizagem nas mais diversas áreas do saber, o que pode indicar algo a ser repensado, dado que a autonomia de aprendizagem necessariamente passa pelos processos formativos e de consolidação de uma prática leitora autônoma e acurada.

Reconhecemos que este estudo apresenta algumas limitações, como ter sido realizado em uma única escola durante um semestre letivo, fator que pode suprimir a generalização dos resultados para outras escolas ou contextos educacionais. Ademais, a pesquisa contou com a colaboração de 19 professores da escola em questão, que podem não representar a diversidade de professores e realidades educacionais. As observações, por terem sido realizadas apenas durante o primeiro semestre letivo de 2022, podem limitar a compreensão dos efeitos a longo prazo da implementação do novo currículo do Ensino Médio em relação à leitura.

Apesar dessas limitações, este estudo tem o potencial de contribuir significativamente para o campo de pesquisa e estudos que abordam práticas de leitura em contextos de pobreza e periferia urbana. Ao analisar a relação entre periferia urbana, currículo e cultura escolares e suas influências nas práticas de leitura dos alunos nessas escolas, o estudo oferece uma compreensão aprofundada das experiências e das percepções dos professores. A colaboração com professores experientes e o uso de um diário de campo como instrumento de registro enriquecem a compreensão do contexto educacional. Embora os resultados não possam ser generalizados, eles podem servir como base sólida para estudos futuros relacionados às práticas de leitura em escolas de periferia urbana.

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*O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes). Certificado de Apresentação de Aprovação Ética (CAAE): 56529422.9.0000.5554.

1 Burgos (2014) realizou seu estudo na favela da Rocinha, Rio de Janeiro.

2Segundo Garcia-Silva e Lima Junior (2020), a posição periférica é sempre relativa, uma vez que os qualificadores de uma região periférica em um lugar podem não ser os mesmos em outro. Dito isso, neste estudo, utilizamos o termo “periferia urbana” como espaço de carências, cuja população é majoritariamente pobre, com taxa de criminalidade acima da média e instalação escolar com poucos recursos. Para melhor entendimento, sugerimos conferir o artigo científico intitulado A educação científica das periferias urbanas: uma revisão sobre o ensino de Ciências em contextos de vulnerabilidade social (1985-2018) (Garcia-Silva; Lima Junior, 2020).

3Embora a pesquisa esteja centrada no ensino de Ciências em escolas localizadas em periferias urbanas, consideramos importante trazer essa discussão para o nosso estudo, pois compartilhamos o mesmo ponto principal: o contexto periférico no qual essas escolas estão inseridas.

4A escola possui uma pequena horta nos fundos, dispondo de mamoeiros, cana-de-açúcar, ateira (ou pinheira, em outras regiões), coentro, cebola de palha, amoreira, goiabeira, entre outras árvores frutíferas.

5Ver BBC News Brasil, disponível em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59215351; e CUT Brasil, disponível em https://www.cut.org.br/noticias/aluna-de-8-anos-desmaia-de-fome-em-escola-publica-do-rio-0cfe. Acesso em: 22 mar. 2022.

6Referente ao último ano do governo Jair Bolsonaro.

7Segundo o G, essas famílias estão radicadas em territórios clandestinos ou irregulares e não possuem residência própria, dependendo de programas habitacionais. De acordo com informações contidas no site da Câmara de Vereadores de Imperatriz/MA, em 2021, pelo menos três mil famílias ainda aguardavam a entrega de suas casas, enquanto um dos conjuntos habitacionais estava em estado de abandono há pelo menos oito anos (Rodrigues, 2021). A relação entre programas habitacionais abandonados e ocupação clandestina de territórios inviabiliza o acesso tanto à habitação digna quanto ao transporte coletivo assegurado por lei, que também configura como direito necessário ao amplo acesso à educação, visto que essas crianças e adolescentes residentes nas periferias urbanas não dispõem de outros meios de transporte para se locomoverem à escola.

Recebido: 15 de Dezembro de 2022; Revisado: 18 de Julho de 2023; Aceito: 20 de Julho de 2023; Publicado: 03 de Agosto de 2023

Declaração de conflito de interesse

Os autores declaram que não há qualquer conflito de interesse com o presente artigo.

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