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Práxis Educativa

versão impressa ISSN 1809-4031versão On-line ISSN 1809-4309

Práxis Educativa vol.18  Ponta Grossa  2023  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.5212/praxeduc.v.18.21289.032 

Seção Temática: Ética em Pesquisa e Integridade Acadêmica em Ciências Humanas e Sociais: atualizando o debate

O agir ético na pesquisa educacional na perspectiva do materialismo histórico-dialético

Ethical action in education research from the historical and dialectical materialism perspective

El accionar ético en la investigación educativa en la perspectiva del materialismo histórico-dialéctico

Antônio Carlos de Souza* 
http://orcid.org/0000-0002-6077-226X

Fábio Antônio Gabriel** 
http://orcid.org/0000-0002-4990-4102

*Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação - Mestrado Profissional em Educação Básica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp). E-mail: <acsouza@uenp.edu.br>.

**Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Professor da Secretaria de Educação do Paraná (SEED/PR) e professor em Regime Especial (CRES) da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp). E-mail: <fabioantoniogabriel@gmail.com>.


Resumo

Este artigo objetiva apresentar um debate sobre a ética em pesquisa em educação partindo do pressuposto de que a área de Ciências Humanas e Sociais necessita de diretrizes e normas éticas próprias, superando o modelo deontológico que transpõe parâmetros da área médica para os diversos campos de pesquisa. O referencial teórico é o materialismo histórico-dialético, que parte do entendimento de que a consciência, os valores éticos, o conhecimento e a ciência estão relacionados às determinações históricas, econômicas, políticas e sociais. Nesse sentido, os resultados desta investigação corroboram a defesa do argumento de que é fundamental pensar a dimensão ética no processo de pesquisa e sua relação com as questões políticas e epistemológicas, como crítica e superação de princípios abstratos e procedimentos burocráticos presentes nos protocolos de ética em pesquisa em educação.

Palavras-chave: Pesquisa em educação; Fundamentos éticos; Materialismo histórico-dialético

Abstract

This paper aims to present a debate on ethics in education research from the assumption that the area of Human and Social Sciences requires its own ethical guidelines and norms, surpassing the deontological model that transposes the parameters of the medical area to various research fields. The theoretical framework is the historical and dialectical materialism from the understanding that consciousness, ethical values, knowledge, and science are related to historical, economic, political, and social determinations. In this sense, the results of this investigation support the argument that it is fundamental to think about the ethical dimension in the research process and its relationship with political and epistemological issues, as criticism and overcoming abstract principles and bureaucratic procedures present in ethics protocols in education research.

Keywords: Education research; Ethical foundations; Historical and dialectical materialism

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar un debate sobre la ética en investigación en educación a partir de la suposición de que el área de Ciencias Humanas y Sociales necesita directrices y normas éticas propias, superando el modelo deontológico que transpone parámetros del área médica para las diversas áreas de investigación. El marco teórico es el materialismo histórico-dialéctico que parte del entendimiento de que la conciencia, los valores éticos, el conocimiento y la ciencia están relacionados a las determinaciones históricas, económicas, políticas y sociales. En este sentido, los resultados de esta investigación corroboran la defensa del argumento de que es fundamental pensar en la dimensión ética en el proceso de investigación y su relación con las dimensiones políticas y epistemológicas, como crítica y superación de principios abstractos y procedimientos burocráticos presentes en los protocolos de ética en investigación en educación.

Palabras clave: Investigación en educación; Fundamentos éticos; Materialismo histórico-dialéctico

Introdução

Vivemos em um tempo histórico de intenso acirramento das contradições do capital na produção da existência e nas relações de produção, o que influencia a constituição do ser, do pensar, do agir humano. Daí a necessidade de buscar-se compreender essa realidade a partir da pesquisa que, além de sua dimensão epistemológica, tem uma dimensão política e ética, no sentido da busca de conhecimento do ser e do dever ser humano na sua relação histórica e social.

Com isso, queremos contribuir para o atual e necessário debate sobre ética e pesquisa, especificamente em educação, em uma sociedade organizada segundo o modo de produção capitalista e da forma liberal de organização da sociedade, que tem como valores sociais e morais fundamentais o agir eficiente, competente, a garantia das vantagens individuais, o lucro, para atender os interesses privados. Para isso, há as diversas formas de alienação, de exploração das atividades produtivas, inclusive do trabalho científico.

Nesse contexto social e histórico, a área de Educação e Ciências Humanas elabora seus princípios, diretrizes, normas sobre ética em pesquisa, baseadas em princípios gerais e fundamentos práticos. A pergunta que fazemos é: O que significam tais princípios, qual sua relação com os fundamentos práticos na pesquisa e quais suas relações com a realidade social e histórica, ou seja, a dimensão social, economia, política da pesquisa? Defendemos a necessidade de pensarmos em fundamentos éticos para a ação do pesquisador em educação que tenham prioridade em relação a procedimentos burocráticos.

Diante disso, colocamos como problema de pesquisa: Em que medida o materialismo histórico-dialético contribui para uma discussão ética, no que diz respeito aos fundamentos éticos que devem ser adotados na pesquisa em educação? Na busca pela compreensão dos princípios, das diretrizes e das normas éticas na pesquisa em educação, analisamos como ocorre a atividade produtiva humana em geral e especificamente no campo de produção científica, em uma realidade histórica e social determinada, no modo de produção capitalista. Nesse contexto, buscamos compreender qual é a relação entre o desenvolvimento e o engajamento ético e o desenvolvimento científico e tecnológico, na perspectiva ontológica, epistemológica, política do materialismo histórico-dialético como crítica dos modelos éticos metafísicos, utilitaristas. Por fim, apontamos possíveis diálogos entre tais fundamentos éticos e produções teóricas atuais sobre ética e pesquisa em educação, como Rachel Brooks, Kitty te Riele e Meg Maguire.

O referencial teórico desta pesquisa é o materialismo histórico-dialético, que parte do pressuposto de que o conhecimento e a ação humana são inerentes tanto à teoria quanto à prática humana, relacionados às determinações históricas, econômicas, políticas e sociais. Para tanto, apresentamos os fundamentos teóricos dessa perspectiva, elaborados por Marx e Engels e apropriados historicamente, especificamente na produção teórica de pensadores como Adolfo Sánchez Vázquez, Carlos Roberto Jamil Cury, Gaudêncio Frigotto, István Mészáros, Jefferson Mainardes, Rachel Brooks, Kitty te Riele e Meg Maguire e Sílvio Sánchez Gamboa.

Defendemos que o materialismo histórico-dialético tem uma dimensão ética, que busca compreender as ações humanas no seu conjunto, como as ações morais, relacionadas às condições materiais e culturais concretas da existência humana, no sentido que pensa o pesquisador em sua concretude histórico-social e nos desdobramentos de sua ação investigativa, não somente como preceito burocrático, mas como fundamento ético, político e social. Com isso, buscamos analisar a Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013), e a Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016), ambas do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Ao longo da história do pensamento ocidental, especificamente na filosofia, dentre as tantas preocupações de investigar e dar respostas aos problemas básicos que se referem à vida humana, seu ser, existir, agir, situa-se a reflexão de natureza ética, sistematizada como teorias éticas. Por isso, se há o caráter histórico das transformações sociais, também há o caráter histórico dos comportamentos, das práticas humanas. Portanto, a reflexão filosófica e ética também é produzida ao longo dos diferentes tempos e espaços, buscando dar respostas aos problemas da vida humana e produzindo conceitos de acordo com o contexto social e histórico.

Na primeira parte deste artigo, discutiremos os princípios, as diretrizes e as normas de pesquisas, envolvendo seres humanos e sua relação com a realidade histórico-social. Na sequência, apresentaremos reflexões sobre a relação entre o desenvolvimento e o engajamento ético e o desenvolvimento científico e tecnológico, partindo dos referenciais teóricos do materialismo histórico-dialético. Finalizaremos, desvelando as contribuições da obra Ética e pesquisa em educação (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017) para o debate sobre os comitês de ética.

Enfim, o argumento central que defenderemos é que a área de Educação se torne autônoma para pensar nos protocolos de pesquisa, e não mais refém dos protocolos burocráticos da área médica, no que tange aos parâmetros éticos. Pensar a ética na pesquisa em educação envolve, sobretudo, argumentar sobre a relevância de se considerar que a atitude ética do pesquisador é mais relevante do que observar algumas prescrições protocolares da ética na pesquisa. Não que os protocolos não sejam importantes, mas são insuficientes e acabam reduzindo ética à burocracia, quando deveria se converter em atitude concreta do pesquisador no processo de investigação.

Os princípios, as diretrizes, as normas de pesquisas envolvendo seres humanos e sua relação com a realidade histórico-social

Faz-se necessário rever do ponto de vista da análise da filosofia da ciência toda a afirmação de que a ciência é neutra. A ciência está intrinsicamente relacionada a um posicionamento teórico, a uma concepção de sociedade. A pesquisa em educação sempre está amparada em diferentes perspectivas de análise do fenômeno educacional e social. O modo de produçao capitalista e liberal defende uma educação neutra, mas que, na realidade, tende a valorizar ideais neoliberais. Na realidade, defende a aniquilação da educação pública com propostas de transferência de recursos públicos para o âmbito privado.

A pesquisa em educação implica a produção de conhecimento acerca da dinâmica que objetiva o ato humanizador, como processo exclusivo do ser social, uma vez que o mundo natural é, em última instância, o mundo da necessidade, e a humanização busca a emancipação humana, o mundo da liberdade. Essa afirmação se relaciona diretamente com a superação da forma como a vida é produzida em sociedade, nos tempos atuais, sob a égide do modo de produção capitalista.

Mesmo que o conhecimento científico seja a forma mais sistemática de conhecimento, aberta às discussões, ela é uma produção humana desde o projeto até o relatório final, e sua aplicação “[…] pode trazer grandes bens ou espantosos males para a humanidade” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 105). Assim sendo, para que a atividade científica tenha consequências sociais benéficas à sociedade, ela requer responsabilidade do cientista na sua atividade de busca pela verdade, com “[…] honestidade intelectual, desinteresse pessoal, decisão na defesa da verdade e na crítica da falsidade etc.” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 104).

A ciência não deve ser compreendida como um fim em si mesma, com pretensa neutralidade política ou pretensão absoluta da verdade, mas é busca da verdade, no mundo da necessidade humana, de interesses, de conflitos. Por isso, ela deve ser confrontada com outras formas de conhecimento, como a filosofia e suas diversas dimensões, com “[...] suas implicações epistemológica, éticas e políticas” (LEVINS; LEWONTIN, 2022, p. 13).

El hombre conoce para transformar. El conocimiento tiene sentido cuando revela las alienaciones, las opressiones y las misérias de la actual fase de desarrollo de la humanidad, cuestiona críticamente los determinantes económicos, sociales e históricos y da potencialidad a la acción transformadora. El conocimiento crítico del mundo y de la sociedad y la comprensión de su dinámica transformadora propician acciones (praxis) emancipadoras. La praxis elevada a categoría epistemológica fundamental se transforma en criterio de verdad y de validez científica. La praxis significa reflexión y acción sobre una realidad buscando su transformación. Transformación orientada para la consecución de mayores niveles de libertad del individuo y de la humanidad en su devenir histórico (interés crítico emancipador). (SÁNCHEZ GAMBOA, 1998, p. 121).

Toda pesquisa científica deve ser conduzida por princípios éticos básicos, que fundamentam, normatizam e orientam a elaboração, execução e aplicação das investigações: responsabilidade, autonomia, proteção, benefício e bem-estar, respeito à dignidade da pessoa humana. Tais princípios estão presentes nos diversos códigos de ética em pesquisa, conhecidos universalmente, como o Código de Nuremberg (1947), a Declaração dos Direitos do Homem (1948), a Declaração de Helsinque (1964) (MAINARDES; CURY, 2019). A preocupação com as questões éticas deve permear todo o processo de pesquisa, da elaboração do projeto à disseminação de seus resultados (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017; MAINARDES; CARVALHO, 2019).

A ética na pesquisa não é um simples procedimento burocrático, instrumental, de seguimento de princípios universais abstratos. É uma necessidade histórica, concreta, uma relação entre o campo teórico e o prático. Ao longo da história do pensamento humano, foram elaboradas teorias éticas, especialmente no campo filosófico, no sentido de investigar, justificar, dar respostas a problemas específicos que se referem à vida humana prática, concreta, da vida real, do “comportamento prático-moral” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 19). Ou, como aponta Grisotti (2015, p. 7): “Como todo conceito, o termo ética é uma construção social, cujos princípios norteadores e práticas decorrentes são sustentados de acordo com o espírito (ou características socioculturais) de lugares e épocas diferentes”.

Com isso, estamos partindo da concepção de que a ética, como as demais ciências, se confronta com fatos concretos e que “[...] a função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 20). No entanto, a ética tem também sua dimensão prescritiva, normativa, ditando diretrizes, normas pelas quais os homens devem pautar seu comportamento, “[...] cuja função fundamental seria de indicar o melhor comportamento do ponto de vista moral” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 20).

Neste texto, não vamos analisar fatos humanos concretos, efetivos, que poderiam ser caracterizados como atos morais, fundamental para se falar de pesquisa e de ética na pesquisa. Com isso, queremos dizer que partimos da concepção que toda pesquisa, assim como a ética na pesquisa, parte do mundo da necessidade humana, na variação da realidade sócio-histórica, na qual há também a variação dos princípios, das diretrizes e das normas. “A pretensão de formular princípios e normas universais, deixando de lado a experiência moral histórica, afastaria da teoria exatamente a realidade que deveria explicar” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 20).

A Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012 (BRASIL, 2013), e a Resolução Nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016), ambas do CNS, apresentam uma série de princípios, diretrizes, normas éticas sobre pesquisa com seres humanos, que devem ser atendidas nas diversas áreas do conhecimento, como na pesquisa em educação. Entendemos que tais princípios não são conceitos abstratos, a-históricos, mas nasceram do mundo da necessidade humana, histórica, concreta, prática. “A ética é uma construção humana, portanto histórica, social e cultural” (BRASIL, 2016).

A ética, ao deparar-se com uma realidade histórico-social no terreno da moral, ou seja, com uma série de práticas morais em vigor e partindo delas, procura entender por que os homens agem de uma determinada maneira, quais as condições objetivas e subjetivas daquele ato moral, quais as fontes ou origem da avaliação moral, quais os critérios de justificação dos juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais. Nessa concepção, não trabalha com um mundo absoluto e apriorístico, mas com fatos concretos do “comportamento moral-prático”.

O “comportamento moral-prático” é inerente ao ser humano, como ser social, que age sobre os outros seres humanos, sobre a natureza, sobre a sociedade, com algum motivo, com emprego de determinados meios, orientada a um fim e com um objetivo efetivo e suas necessárias consequências. Em uma determinada sociedade, as ações humanas são influenciadas pelas relações econômicas, sociais e políticas. “As ciências humanas e sociais têm especificidades nas suas concepções e práticas de pesquisa, na medida em que nelas prevalece uma acepção pluralista de ciência, da qual decorre a adoção de múltiplas perspectivas teórico-metodológicas” (BRASIL, 2016).

Procuramos analisar os princípios, as diretrizes e as normas éticas sobre pesquisa com seres humanos nas citadas resoluções, a partir do materialismo histórico-dialético como “[...] concepção do mundo; enquanto um método que permite uma apreensão radical da realidade e, enquanto uma práxis, isto é, unidade de teoria e prática na busca da transformação de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica” (FRIGOTO, 2001, p. 73). O materialismo histórico-dialético é uma concepção “[...] antirreducionista, que enfatiza o caráter processual dos fenômenos materiais [...] com suas implicações epistemológicas, éticas e políticas” (LEVINS; LEWONTIN, 2022, p. 13).

[...] não há simplesmente um interesse exclusivamente científico em elaborar um método para se compreender a sociedade em todas as suas nuanças, mas, também, e principalmente, um interesse ético-político, que a motiva a apreender as dinâmicas da transformação para que se possa, atuando sobre elas, construir as condições de emergência de uma nova realidade, posição manifestada na XI Tese sobre Feuerbach. (MARTINS, 2008, p. 85).

No mundo da necessidade humana, nas suas relações, nos seus interesses e contradições, em que se dá o processo de pesquisa, de uma forma de fazer ciência, a responsabilidade, a liberdade, a consciência humana não são princípios e ações verticais, de transcendência atemporal, mas são horizontais, imanentes, de pensar e agir históricos de uma humanidade que deve se realizar, como manutenção, preservação da vida. No modo de produção capitalista, “[...] no qual a força de trabalho se vende como mercadoria e no qual vigora a lei da obtenção do maior lucro possível, gera-se uma moral egoísta e individualista que satisfaz o desejo do lucro” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 34).

A produção de ideias, de representações, da consciência está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens. [...]. Os homens são os produtores de suas representações, suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde [...]. A consciência jamais pode ser outra coisa que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. (MARX; ENGELS, 2007, p. 94).

Assim como “a existência social dos homens determina sua consciência”, são os homens mesmos que transformam as circunstâncias. Daí a necessidade e possibilidade da intervenção e transformação da realidade e a perspectiva da emancipação humana universal. Por isso, a ética na perspectiva materialista-histórica não parte de representações, de conceitos abstratos, especulativos, mas das condições materiais de vida dos seres humanos; desse modo, os princípios éticos, filosóficos e políticos só podem ser entendidos pela compreensão da base material sócio-histórica na qual surgem.

A relação entre desenvolvimento e engajamento ético e desenvolvimento científico e tecnológico

A Resolução Nº 466, de 12 de dezembro de 2012, do CNS, que aprovou as diretrizes, as normas e os princípios regulamentadores de pesquisas envolvendo seres humanos, está fundamentada em princípios éticos, como “[...] do reconhecimento e da afirmação da dignidade, da liberdade e da autonomia do ser humano” (BRASIL, 2013, p. 59). Além disso, que tais princípios precisam ser compreendidos diante de um comportamento concreto na prática da pesquisa especificamente com seres humanos: “O desenvolvimento e o engajamento ético que é inerente ao desenvolvimento científico e tecnológico” (BRASIL, 2013, p. 59).

Aqui buscamos desenvolver essa relação entre o desenvolvimento científico e o desenvolvimento ético, tendo como referência os conceitos de “progresso moral” e “progresso histórico-social”, conforme Sánchez Vázquez (2008). Segundo o autor, o comportamento moral dos homens não se dá independentemente do processo de desenvolvimento histórico-social, apesar de o primeiro não se reduzir ao segundo, nem este àquele, mas “[…] a ética é uma construção humana, portanto histórica, social e cultural” (BRASIL, 2016, p. 44).

O que define o desenvolvimento histó rico, social e cultural é a totalidade das atividades materiais, sociais e espirituais do homem, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, no contexto de “[…] mudança e à sucessão de formações econômico-sociais, isto é, sociedades consideradas como totalidade nas quais se articulam unitariamente estruturas diversas: econômica, social e espiritual” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 54).

Podemos falar, portanto, em progresso histórico no terreno da produção material, da organização social e da cultura. Não se trata de três linhas de progresso independentes, mas de três formas de progresso que se relacionam e se condicionam mutuamente, pois o sujeito do progresso nestas três direções é sempre o mesmo: o homem social. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 55).

Nesse sentido, só podemos falar de “progresso histórico” se for acompanhado de um “progresso moral”. No modo de produção capitalista, isso não ocorre, pois o progresso da ciência e da tecnologia traz impactos na percepção e nos modos de vida, mas necessariamente não traz benefícios para o ser humano, “[...] possibilitando a promoção do bem-estar e da qualidade de vida e promovendo a defesa e preservação do meio ambiente, para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 2013, p. 59). Dessa forma, a produção e a apropriação material, no modo de produção capitalista, não beneficia todos os seres humanos, mesmo se eles participam do seu processo de produção, não maximiza benefícios, nem minimiza danos ou prejuizos. Assim, o “progresso histórico”, no modo de produção capitalista, se realiza mediante a exploração, a desigualdade social, e, por isso, é impossível, nesse modelo de sociedade, criar as condições de adequação entre “progresso histórico-social” e “progresso moral”.

A formação do capitalismo e a consequente acumulação primitiva do capital - processo histórico-progressista - realiza-se através dos sofrimentos e dos crimes mais espantosos. De modo análogo, a introdução da técnica mecanizada - fato histórico-progressista - acarreta a degradação moral do operário. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 56-57).

É no modo de produção capitalista, em sua especificidade econômica, política, social, científica e moral, que discutimos ética, ética na pesquisa, ética na pesquisa em Ciências Humanas. Não são princípios, diretrizes, normas éticas que criam a atitude comportamental-prática, inclusive na pesquisa, mas são elementos que possibilitam a manutenção ou a mudança das ações humanas.

No modo de produção capitalista, “[…] a ciência [...] é um produto cada vez mais mercantilizado da indústria capitalista do conhecimento” (LEVINS; LEWONTIN, 2022, p. 16). Isso confirma que: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes [...]. A classe que tem em sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual” (MARX; ENGELS, 2007, p. 47). Porém, em toda sociedade dividida em classes sociais, ao lado da classe dominante, capitalista, com seus interesses comuns de manter o seu poder material e espiritual, há a classe dominada, subalterna, a classe trabalhadora, caracterizada pela situação e por interesses comuns e que luta pela sua emancipação política e humana. Essa luta se dá nas diversas relações sociais de produção, como na produção científica, de busca de consolidação da ordem socioeconômico-cultural estabelecida ou de sua transformação através da “seriedade intelectual e postura crítica engajada” (LEVINS; LEWONTIN, 2022, p. 13).

Na perspectiva do materialismo histórico-dialético, a possibilidade de uma nova sociedade, de uma nova ciência, sem a exploração do homem pelo homem, passa pela ação consciente, responsável e livre da classe trabalhadora. O fundamento da ética materialista-histórica está intimamente imbricado com a visão socioeconômico-cultural, na análise da relação homem-natureza-sociedade historicamente constituída.

Neste sistema econômico-social, a boa ou má vontade individual, as considerações morais não podem alterar a necessidade objetiva, imposta pelo sistema, de que o capitalista alugue por um salário a força de trabalho do operário e o explore com o fim de obter uma mais-valia. A economia é regida, antes de tudo, pela lei do máximo lucro, e essa lei gera uma moral própria. Com efeito, o culto ao dinheiro e a tendência a acumular maiores lucros constituem o terreno propício para que nas relações entre os indivíduos floresçam o espírito de posse, o egoísmo, a hipocrisia, o cinismo e o individualismo exacerbado. Cada um confia em suas próprias forças, desconfia dos demais, e busca seu próprio bem-estar, ainda que tenha de passar por cima do bem-estar dos outros. A sociedade se converte assim num campo de batalha no qual se trava uma guerra de todos contra todos. (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 48-49).

Daí a crítica ao modo de produção capitalista, fundado na propriedade privada dos meios de produção, na exploração do trabalho, na divisão da sociedade em classes sociais e nos seus imperativos, como a competição e a produtividade do trabalho, que regem não somente as relações econômicas, mas as relações sociais em geral, como na produção científica. Esse modelo de sociedade aliena, coisifica, desumaniza o homem e a sociedade, em nome do valor fundamental que é a acumulação do lucro para o capital, de não reconhecimento e afirmação da “dignidade, da liberdade e da autonomia do ser humano” (BRASIL, 2013, p. 59). Por isso, a necessidade de uma nova visão ética e de uma nova compreensão científica diante da “incorrigibilidade da lógica perversa do capital” (MÉSZÁROS, 2007, p. 201, grifos do autor) como “[...] a grande tarefa histórica do nosso tempo, ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana [...]” (MÉSZÁROS, 2007, p. 207).

O modo de produção capitalista, com sua produção destrutiva, cria e vive das desigualdades sociais, da segmentação social, do uso de recursos para a especulação financeira, da negação do trabalho criativo, da manipulação da ciência para interesses privados. Daí a necessidade da responsabilidade, da consciência crítica e propositiva, dando novo sentido aos princípios, às diretrizes, às normas e aos fundamentos éticos e políticos, nos diversos campos da atividade humana, como na produção científica. Trata-se do “[...] desenvolvimento e o engajamento ético, que é inerente ao desenvolvimento científico e tecnológico” (BRASIL, 2013, p. 59), atitudes necessárias na construção de novos valores que sejam, ao mesmo tempo, as inspirações para a construção de novas bases e novas relações econômicas, políticas e sociais.

Contribuições da obra Ética e pesquisa em educação para o debate sobre os comitês de ética

No campo da pesquisa em educação, os encaminhamentos para validação em conselhos de ética, no que concerne à burocracia, seguem os procedimentos pensados pela área biomédica. A Plataforma Brasil acreditamos ser uma plataforma cujos recursos procedimentais são pensados com relação à pesquisa na área da Medicina. Na área de Educação, com efeito, atenta para as especificidades que o pesquisador deve respeitar, muito mais do que procedimentos burocráticos, é preciso a atenção aos fundamentos e aos princípios de pesquisa, em conformação com o enfoque, a perspectiva teórica e metodológica adotada pelo pesquisador.

Para o materialismo histórico-dialético, a fundamentação ética da pesquisa está imbricada nas condições de vida do próprio ser do pesquisador, nos seus pressupostos epistemológicos, na sua atividade investigativa, que é uma prática política. Isso pode ser detectado em pesquisadores como Sánchez Vázquez (1998), Mészáros (2006), Frigotto (2001) e Sánchez Gamboa (2007), para os quais, além da dimensão de fazer diagnóstico dos fenômenos humanos, a pesquisa científica também expressa a perspectiva de intervir e transformar o estado atual de coisas, no processo de construção de uma outra realidade social, seguindo a perspectiva de Marx e Engels (2007, p. 46) de que não basta “[...] apenas instaurar uma consciência correta sobre um fato existente, mas trata-se de derrubar o mundo existente”.

Assim, a pretensão de um posicionamento científico de neutralidade não pode estar presente em uma pesquisa realizada a partir de fundamentos ontológicos, éticos, políticos, científicos do materialismo histórico-dialético, tendo em vista que o pesquisador, nessa perspectiva, faz a pesquisa tendo como fim contribuir no processo da emancipação humana. Assim, a emancipação humana não é um ideal a ser alcançado, mas o processo de trabalho crítico na superação dos imperativos e das práticas do modo de produção capitalista e forma de organização social liberal.

Nessa perspectiva do materialismo histórico-dialético, o agir ético e a obrigação moral não estão em vista de um fim último, o reino da liberdade, mas de meios concretos no reino da necessidade na busca de seus fins, que é a realização das possibilidades humanas e a liberdade face aos obstáculos à realização da natureza humana, como diz Marx (2017, p. 883): “O verdadeiro reino da liberdade que, no entanto, só pode florescer tendo como base aquele reino da necessidade”. E isso se dá na superação da alienação, da propriedade privada dos meios de produção, da exploração e da divisão social do trabalho.

Portanto, analisar o que é, quais são os limites e como realizar a liberdade humana ou a emancipação humana se constitui uma questão fundamental para a compreensão dos fundamentos éticos do marxismo. Isso significa a necessidade de investigar tal questão, não de maneira especulativa, mas dentro do movimento histórico, isto é, nas formas de organização dominante da sociedade, e descobrir quais os seus obstáculos à realização da liberdade humana. Daí que a liberdade é uma questão humana prática, como ser histórico e social, em outras palavras, a liberdade como “[...] consciência das possibilidades de agir numa ou noutra direção. Contém também uma consciência dos fins ou das consequências do ato que se pretende realizar. Acarreta também os motivos que impelem a agir” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008, p. 131).

A verdadeira questão é a liberdade humana, não um princípio abstrato chamado “liberdade”. E como o caráter específico de tudo é ao mesmo tempo a “essência” (poder, potencial, função) daquela determinada coisa, bem como o seu limite, chegaremos então ao fato de que a liberdade humana não é a transcendência das limitações (caráter específico) da natureza humana, mas uma coincidência com elas. Em outras palavras, a liberdade humana não é a negação daquilo que é essencialmente natural no ser humano - uma negação em favor do que parece ser um ideal transcendental - mas, pelo contrário, sua afirmação. Os ideais transcendentais - no sentido em que transcendental significa a superação das limitações inerentemente humanas - não têm lugar no sistema de Marx. (MÉSZÁROS, 2006, p. 149, grifos do autor).

Frigotto (2001), ao tratar do materialismo histórico-dialético na pesquisa educacional, apresenta três dimensões intrinsecamente vinculadas, a visão de mundo, o método e a práxis. A visão de mundo requer a práxis, e ambas caminham ao lado do método. Nesse sentido, há uma relação fundamental entre o método dialético de investigação como mediação no processo de apreender, revelar e expor a organização, o desenvolvimento dos fenômenos sociais e a atitude polêmica, crítica, de desafio, de ruptura, como pressuposto de superação, transformação e produção “[...] de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica” (FRIGOTTO, 2001, p. 73).

Enquanto uma atitude, ou concepção do mundo; enquanto um método que permite uma apreensão radical (que vai à raiz) da realidade e, enquanto uma práxis, isto é, unidade de teoria e prática na busca da transformação de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade histórica. (FRIGOTTO, 2001, p. 73).

A escolha por uma técnica ou metodologia de pesquisa requer, no plano científico, “[...] admitir a necessária relação lógica entre os processos instrumentais (técnicas e metodologia) de investigação, os referencias teóricos e as concepções epistemológicas que lhe servem de pressupostos” (SÁNCHEZ GAMBOA, 2007, p. 16). Isso quer dizer que pesquisar é um processo de compreensão dos fenômenos sociais e humanos, que envolve as relações entre técnicas, métodos, paradigmas científicos, pressupostos gnosiológicos, ontológicos, antropológicos, todos eles presentes, mais ou menos explícitos, em qualquer pesquisa científica, o que Sánchez Gamboa (2007) chama de “esquema paradigmático”. Essa forma de pensar e fazer pesquisa está presente em produções de atuais pensadores, como Mainardes (2022), Stetsenko (2021, 2022) e Vianna e Stetsenko (2021). Stetsenko (2021), por exemplo, também defende que a ciência não é neutra, desinteressada. Para a autora, é preciso pensar em uma ético-ontoepistemologia, como a unidade entre ser, saber e fazer no sentido de que a pesquisa é uma forma de engajamento, de envolvimento do pesquisador no contexto e nos aspectos sociopolíticos. A concepção de ético-ontoepistemologia, como indissociabilidade entre ética, ontologia, epistemologia na prática científica e na produção de conhecimento científico, é fundamental para a pesquisa no campo educacional.

O ato de tomar uma posição - sobre as questões sociopolíticas e as lutas do dia, inclusive porque estas são refratadas em situações aparentemente mundanas com as quais lidamos diariamente - constitui a dimensão formativa central da vida social e do desenvolvimento, incluindo a pesquisa. O que está em jogo é extraordinariamente alto, especialmente devido à crise e à turbulência atuais sem precedentes. A crise atual provocada pelo capitalismo predatório e sua gradual desintegração em caos e guerras torna imperativo que os pesquisadores tomem uma posição para resistir e combater o status quo, pelo qual o ethos sociopolítico da justiça social avance, seja legitimado e estabelecido como princípio orientador e metodologia-chave. (STETSENKO, 2021, p. 27).

Stetsenko (2022) pontua sobre a importância de se pensar as atividades humanas para além dos dualismos, do solipsismo. A partir dessa visão, há a necessidade de superação do pensamento e das práticas individualistas, e pensar os fundamentos éticos da pesquisa, nas suas relações sociais, econômicas, políticas. Como afirmam Marx e Engels (2007, p. 94): “Ele parte de pressupostos reais e nao os abandona em nenhum instante. Seus pressuposos são os homens, não em quaisquer isolamento ou fixação fantásticos, mas em seu processo de desenvolvimento real, empiricamente observável, sob determinda condição”. Para Stetsenko (2022):

A ontologia transformadora da práxis humana resultante sugere que é diretamente por meio de e no processo (em vez de além de) de pessoas constantemente transformando e criando seu mundo social e, assim, indo além do status quo que as pessoas simultaneamente criam e constantemente transformam sua própria vida, portanto, também se modificam de maneiras fundamentais, enquanto, no processo, tornam-se individualmente únicas e ganham conhecimento sobre si e sobre o mundo. (STETSENKO, 2022, p. 8).

Tal pensamento é defendido também por Mainardes (2022) que, em sua conceituação de um posicionamento ético-ontoepistemológico, defende que é importante ressaltar que se faz necessário superar uma visão cartesiana de separar processos que não são separados, mas, sim, fazem parte de um todo. Assim, o pesquisador deve ter uma formação ética capaz de dar condições de ele pensar todo o processo da pesquisa de forma ética e não apenas cumprir rituais prescritivos de uma deontologia da área da Saúde e que não atende as demandas da área da Educação, tendo em vista sua especificidade.

O desafio colocado aos pesquisadores é integrar a ética, a ontologia e a epistemologia, em termos de conteúdo e forma, em outras palavras, verificar se esses elementos estão coerentes e articulados na pesquisa. Um ponto de partida importante é compreender que a teoria (ou teorias) que fundamenta(m) a pesquisa está articulada a matrizes epistemológicas específicas e a perspectivas ontológicas e éticas. A perspectiva ontológica envolve a cosmovisão do pesquisador, bem como a explicitação de conceitos fundamentais da pesquisa. A clareza do pesquisador a respeito dessas questões é fundamental para que ele possa operar com maior lucidez, discernimento e coerência com as perspectivas ontoepistemológicas. (MAINARDES, 2022, p. 5, grifo do autor).

Para Brooks, Te Riele e Maguire (2017), a ética está presente em todas as etapas da pesquisa. No livro Ética e pesquisa em educação, as pesquisadoras partem de exemplificações de casos e dilemas éticos na pesquisa, sem, contudo, buscar oferecer “receitas” éticas (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017). De maneira contrária, o que o texto defende é que, desde o design da pesquisa até o momento conclusivo, o pesquisador deve pautar sua pesquisa por uma reflexão ética, e não apenas cumprir protocolos burocráticos em relação ao cuidado da vigilância epistemetodológica da pesquisa.

Brooks, Te Riele e Maguire (2017, p.15) entendem que o “[...] pensamento ético liga-se intimamente às habilidades práticas de pesquisa a serem desenvolvidas e refletidas”. Se retornarmos à origem grega da palavra “filosofia”, veremos que os filósofos gregos pensavam mais em cidadãos éticos do que em atitudes éticas isoladas. Aristóteles, por exemplo, defendia que o ser humano era um zoon politikon, ou seja, “[...] um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade” (ARISTÓTELES, 1973, p. 410). Nesse contexto, ser ético não seria algo isolado, mas, sim, um ser que se realizava em um contexto social. Assim sendo, fundamentamos uma crítica: a compreensão dos comitês de ética de limitarem a observância ética ao aspecto que tange à dimensão de padrões positivistas, apenas de preenchimento burocrático de formulários na Plataforma Brasil.

Brooks, Te Riele e Maguire (2017, p. 15), em sentido oposto, afirmam que o objetivo da obra é “[...] informar a prática por meio da discussão de princípios úteis, bem como exemplos práticos de como os pesquisadores respondem a tais dilemas” (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017, p. 15). As questões éticas no campo da Educação devem ir muito além do simples preenchimento da Plataforma Brasil, que apresenta, de maneira burocrática, um acompanhamento ético formalista da pesquisa. Os próprios pesquisadores poderiam dispor de autonomia maior para definir uma postura ética em relação a todo o processo de pesquisa, pois o design da pesquisa já deve contemplar uma fundamentação ética. Para as autoras: “A pesquisa em educação difere de alguns tipos de pesquisa social em virtude de sua estreita relação com políticas e práticas” (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017, p. 19); e afirmam que: “Dentro da área de Educação, os pesquisadores utilizam uma grande variedade de abordagens e métodos, em grande parte pela variedade de abordagens e métodos, tradições teóricas e pressupostos metodológicos que sustentam seu trabalho” (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017, p. 20)

A partir dessa visão, entendemos que é insustentável que a área de Educação continue submissa a parâmetros éticos das áreas biomédicas. Conforme Brooks, Te Riele e Maguire (2017, p. 27), a obra “Ética e pesquisa em Educação baseia-se no pressuposto de que as questões éticas precisam ser abordadas em todas as etapas do projeto de pesquisa”. Nessa perspectiva, é de grande importância uma nova visão da dimensão dos protocolos meramente burocráticos de validação ética. As autoras defendem que os comitês de ética, por vezes, parecem estar mais preocupados em defender as universidades de futuros problemas legais do que uma preocupação com a real condição ética e preservação de riscos aos participantes e pesquisadores. Quando se burocratiza a dimensão ética e não se defende uma reflexão crítica sobre os fundamentos éticos a serem adotados em uma pesquisa, acaba-se reduzindo a dimensão ética da investigação ao cumprimento de protocolos formais, como dos formulários.

O uso de formulários de consentimento também pode levar um pesquisador a acreditar que eles esclarecem plenamente os participantes, mesmo que isso seja impossível dentro de um breve formulário, fornecido com antecedência; e embora, na prática, muitos participantes podem não ler ou entender completamente a informação no formulário. (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017, p. 52).

Após o projeto aprovado nos atuais modelos de comitês de ética, resta a impressão de que os parâmetros éticos foram alcançados, não necessitando de uma vigilância epistemetodológica e ética do processo de pesquisa. Parece-nos que, de modo diverso, a ética no âmbito da pesquisa exige maior confiança no profissionalismo do pesquisador e do seu orientador.

Mais do que preencher formulários vazios, é de fundamental importância que se realize uma investigação sobre os fundamentos da dignidade humana, aos envolvidos na pesquisa, como seres humanos individuais e sociais. É do princípio do respeito à dignidade humana que derivam outros preceitos éticos, como a confidencialidade, a proteção de riscos aos envolvidos, respeito do participante na sua liberdade de participar de uma pesquisa.

Brooks, Te Riele e Maguire (2017) apontam que não é producente submeter a mesma burocracia dos comitês de ética às pesquisas quantitativas e às qualitativas, porque há diferenças significativas no aspecto epistemológico. Assim, pesquisas estatísticas com questionários contendo alternativas requerem um menor cuidado ético e humanístico, do que entrevistas em pesquisas qualitativas. Os referidos autores defendem a necessidade, conforme já se afirmou, de o design contemplar os aspectos éticos da pesquisa, principalmente os instrumentos portadores de elementos e detalhes mais significativos no processo de constituição ética, na interação com os sujeitos da pesquisa.

Questões éticas influenciam no design de instrumentos de pesquisa também de outras formas. Por exemplo, para os pesquisadores de levantamentos, usar uma ferramenta on-line em vez de um questionário em papel pode ter vantagens em termos de alcançar potencialmente uma população maior e evitar a necessidade de entrada manual de dados no software de análise. No entanto, a ausência de qualquer meio de identificação de respondentes individuais em tais levantamentos provavelmente tornará mais difícil, se não impossível, que os respondentes retirem seus dados em uma data posterior, se decidirem que não querem fazer parte do estudo. (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017, p. 52).

Não é nosso objetivo esgotar as análises sobre as contribuições das autoras para a área da ética em pesquisa, mas, a partir de sua relevante obra - Ética e pesquisa em Educação -, apontar para a necessidade crítica de questionarmos os atuais modelos vigentes de critérios para validação ética, amparados em formulários a serem preenchidos. Faz-se necessário cultivar, no ambiente da pesquisa em educação, uma reflexão que contribua para conferir autonomia para essa área, encaminhar fundamentos éticos de ordem funcional para que as questões éticas sejam vistas de maneira mais reflexiva e menos burocrática.

Conclusões

Conforme defendemos neste artigo, a produção científica não é neutra, mas, sim, uma atividade pensada e executada, em uma determinada forma de sociedade, na forma liberal de organização da sociedade, do modo de produção capitalista, com seu valor fundamental, a mercantilização, o lucro para o capital.

É no interior desse modo de produção e forma de organização social que se produz o conhecimento, a pesquisa e a ciência, que, assim como a educação, podem reproduzir os interesses dominantes, mas podem ser também espaços de resistência ética, política e epistemológica, na produção de bens que podem ser apropriados pelo conjunto da sociedade (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2008). Assim, a dimensão ética, da ética na pesquisa, não é algo particular, de um determinado grupo, mas, sim, uma construção humana, social e histórica (BRASIL, 2016).

Retomando o nosso problema de pesquisa - Em que medida o materialismo histórico-dialético contribui para uma discussão ética, no que diz respeito aos fundamentos éticos que devem ser adotados na pesquisa em educação? -, ao menos parcialmente, nossa resposta é que a perspectiva materialista histórico-dialética, com sua visão de mundo, método de análise e práxis política, defende a autonomia científica, a responsabilidade ética, a participação política do conjunto da sociedade na produção e a apropriação do conhecimento científico, como das Ciências Humanas e, de modo particular, da Educação.

A partir do exposto neste artigo, entendemos que a própria Plataforma Brasil para a área de Educação deveria ser repensada a partir de parâmetros que não sejam ou pareçam ser fundamentalmente de procedimentos burocráticos. É preciso pensar nas dimensões éticas, políticas, epistemológicas da pesquisa, dimensões que devem envolver o pesquisador em sua atitude de probidade intelectual diante da pesquisa, desde o projeto até a socialização da pesquisa, pois o pesquisador é um ser social, e o processo de pesquisa tem sua dimensão social (BROOKS; TE RIELE; MAGUIRE, 2017).

Se “[...] as Ciências Humanas e Sociais têm especificidades nas suas concepções e práticas de pesquisa, na medida em que nelas prevalece uma acepção pluralista de ciência da qual decorre a adoção de múltiplas perspectivas teórico-metodológicas [...]” (BRASIL, 2016, p. 44), o materialismo histórico-dialético, como crítica a toda forma de dogmatismo, determinismo e prescritivismo ético ou moral, defende o caráter radical do conhecimento que, historicamente, se dá mediante rupturas, críticas às formas de manutenção do status quo.

O processo de produção da existência humana, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, não se dá, portanto, com normas, princípios imutáveis, eternos, universais, como deontologia individualista ou teleologia transcendental, mas como práxis, ação humana sobre as consciências e sobre as circunstâncias, com seus pressupostos reais, em seu processo de desenvolvimento real, como a ciência real (MARX; ENGELS, 2007). Com isso, o agir ético requer embates sociais reais, como busca de novas sínteses no plano do conhecimento e no plano da realidade social, em outras palavras, a criação de novas relações homens-natureza-sociedade.

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Recebido: 21 de Novembro de 2022; Revisado: 01 de Abril de 2023; Aceito: 05 de Abril de 2023; Publicado: 11 de Maio de 2023

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